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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.3 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

A constituição da subjetividade a partir de Sartre e Pirandello

 

The constitution of subjectivity from Sartre and Pirandello

 

La creación de la subjetividad a partir de Sartre y Pirandello

 

 

Lucrecia Paula Corbella Castelo Branco

Doutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo se propõe a analisar, através das obras A náusea, de Jean-Paul Sartre, e O falecido Mattia Pascal, de Luigi Pirandello, como a literatura, entendida como o conjunto da obra de um autor, pode ser uma via de compreensão da constituição da subjetividade. O filósofo Sartre parte de um homem concreto em sua experiência vivida para analisar a relação deste com o mundo. Para o dramaturgo Pirandello, as pessoas constroem máscaras para se relacionarem umas com as outras. O que está no cerne da questão filosófica para Sartre, assim como para Pirandello, é a subjetividade que, para ambos, se constitui a partir de uma relação conflituosa entre o homem e a sociedade. Fazer literatura é afirmar uma singularidade em determinado contexto histórico no qual o escritor e o leitor se comunicam através de um exercício de liberdade.

Palavras-chave: Subjetividade; Literatura; Sartre; Pirandello.


ABSTRACT

This article aims to examine, through the works Nausea by Jean-Paul Sartre and The deceased Mattia Pascal by Luigi Pirandello, how literature, understood as the overall work of an author, can be a way of understanding the constitution of subjectivity. Philosopher Sartre analyzes the relationship between man and the world through the "concrete" man and his living experience. For playwright Pirandello, people make masks to relate to one another. Central to the philosophical question for Sartre, as well as for Pirandello, is subjectivity, which for both is constituted from an adversarial relationship between man and society. Producing literature is affirming a singularity in a given historical context in which the writer and the reader communicate through an exercise in freedom.

Keywords: Subjectivity; Literature; Sartre; Pirandello.


RESUMEN

El presente artículo propone analizar, a través de las obras La nausea, de Jean-Paul Sartre, y El fallecido Mattia Pascal, de Luigi Pirandello, cómo la literatura, entendida como el conjunto de la obra de un autor, puede ser una vía de comprensión de la creación de la subjetividad. El filósofo Sartre analiza la relación del hombre com el mundo a mundo a partir de un hombre concreto en su experiencia vivida. Para el dramaturgo Pirandello, las personas para poder relacionarse entre sí, construyen máscaras. Lo que está en el núcleo de la cuestión filosófica para Sartre, así como para Pirandello, es la subjetividad que, para ambos, se constituye a partir de una relación conflictiva entre el hombre y la sociedad. Hacer literatura es afirmar una singularidad en determinado contexto histórico en el cual el escritor y el lector se comunican a través de un ejercicio de libertad.

Palabras-clave: Subjetividad; Literatura; Sartre; Pirandello.


 

 

Introdução

A experiência vivida é multifacetada por si só, não existe um único ângulo que possa defini-la. É como olhar através de um caleidoscópio; cada ângulo tem seu colorido, seu brilho, sua aridez, sua opacidade. As ciências humanas estudam a existência a partir de muitos ângulos, por entenderem que o homem não é um ser isolado no mundo, e sim um ser que se constitui a partir de sua relação com o mundo. A antropologia, por exemplo, concebe o homem constituído a partir de sua cultura, e a cultura, por sua vez, é formada a partir de um mosaico de diferenças de raças, credos, sexualidades e posicionamentos políticos. Já a psicologia, para poder compreender um homem, precisa pesquisar o contexto social no qual ele está inserido, como é a relação com sua família, com seu trabalho, com seu bairro, com sua cidade e com seu país. A fenomenologia, por sua vez, procura observar e descrever um número cada vez maior de facetas de uma experiência, através de ângulos distintos, com o intuito de afirmar a experiência vivida. O que a psicologia, a antropologia e a fenomenologia têm em comum, apesar de seus objetos de estudo serem diversos, é a busca por uma compreensão das relações que as pessoas estabelecem umas com as outras em um determinado contexto histórico-cultural.

O presente artigo se propõe a analisar, a partir das obras La nausée, de Jean-Paul Sartre (1986), e O falecido Mattia Pascal, de Luigi Pirandello (1981), de que forma a arte, mais especificamente a literatura, entendendo literatura como o conjunto da obra de um autor (romances, teatro, contos, novelas), se relaciona com a noção de existência. O referencial teórico que nos parece mais apropriado para realizar essa análise é a fenomenologia existencialista sartriana; mais do que um referencial, é uma atitude filosófica que orientará a reflexão sobre a literatura como compreensão da constituição da existência.

A fenomenologia, por ser uma "ciência" não positivista, por ter uma forma peculiar de pensar, entende que a subjetividade se constrói na relação entre o mundo e a existência. Longe de ser um método, a fenomenologia é, inicialmente, uma atitude diante do próprio fazer científico e do objeto de estudo. O objeto da fenomenologia para Sartre (2007) é o fenômeno tal qual ele se manifesta e a experiência é o que se apresenta, sem ter uma essência por trás dela que a possa definir: "O que o fenômeno é, é absolutamente, pois se revela como é. Pode ser estudado e descrito como tal, porque é absolutamente indicativo de si mesmo" (p.12, trad. nossa 1). Engajado politicamente com a história, o filósofo Jean-Paul Sartre construiu sua obra filosófica e literária a partir do homem concreto imerso no mundo. Esse homem não tem uma essência divina que o predetermina; o homem, segundo Sartre, é um projeto que se concretiza a partir de suas escolhas no cotidiano. É somente a partir de suas experiências vividas que o homem vai se constituindo. Por essa razão, Sartre (1996b) afirma que a "existência precede a essência" (p.26, trad. nossa). Nesse sentido, a criação literária é, para Sartre (1948), uma via de acesso à existência, um "dom" (p.103, trad. nossa) do escritor capaz de mediar liberdades deste e do leitor. O autor, através da ação concreta de escrever um livro, faz um apelo à existência do leitor.

O ponto de partida do escritor, sua fonte de criatividade, é, de acordo com o dramaturgo Luigi Pirandello, a imaginação; é a partir dela que ele inventa e descreve a série de personagens que se constituem em uma rede de relações. O que Pirandello (2010) coloca em evidência nessas relações é o conflito da existência, pois existir significa estar em relação com os outros em uma correspondência direta do que os outros esperam de nós. Em nome dessa relação, cada um sente necessidade de criar uma forma que o proteja, que ele denomina máscara, mas o intuito de fixar a existência nessa máscara é um projeto vão, pois a vida é um fluxo que não se fixa em uma forma específica. Santana Dias (2008) sustenta que, em Pirandello, o confronto entre vida e forma constituiu uma questão importantíssima que atravessou durante muito tempo toda sua obra. Pirandello (1981) considera a ficção mais relevante do que a realidade, pois, para ele, é a vida que imita a ficção, e não o contrário. Para o dramaturgo italiano, a arte é imprescindível para o homem, a arte é o alimento da vida e o que traz sentido ao absurdo da existência. Refletir sobre a possibilidade de constituição da existência realizada através da criação literária é o que se pretende, ao aproximarmos as obras de Pirandello e Sartre.

 

A existência: fluxo, escolhas e conflitos

A obra e a vida de Sartre foram marcadas pela busca do entendimento da existência através de diversos meios de expressão. Sartre (2007) percebia a experiência vivida de forma multifacetada e acreditava que nem a ciência positivista nem a filosofia da época seriam capazes de compreendê-la. Por esse motivo, além de conceber um novo estilo de fazer filosofia, ele se lançou em outros horizontes: o romance, o teatro, a atividade política e pacifista. Era um defensor da liberdade, acima de tudo. Sempre preocupado com a relação entre o homem e o mundo, avesso a uma filosofia idealista, Sartre almejava elaborar uma filosofia que tratasse do homem concreto e do seu dia-a-dia. Segundo Sass (1999), com a influência dos filósofos Edmund Husserl e de Martin Heidegger, Sartre se empenhou na "elaboração de uma teoria que aproximasse o rigor da reflexão filosófica dos problemas da existência cotidiana" (p.264). O objeto da filosofia deve ser o próprio homem em sua existência no mundo.

O que está no cerne da questão filosófica, para Sartre (1996b), é a subjetividade: "O nosso ponto de partida é, com efeito, a subjetividade do indivíduo, e isso por razões estritamente filosóficas" (pp.56-57, trad. nossa). Se nos perguntarmos o que é a subjetividade para Sartre (1996b), nós a veremos bem definida na seguinte passagem do L´existentialisme est un humanisme: "[...] o homem, antes de mais nada, é o que se lança para um futuro[...]. O homem é, antes de mais nada, um projeto que se vive subjetivamente" (pp.29-30, trad. nossa). Com uma obra marcada pela conflituosa relação entre o homem e a sociedade, Pirandello, assim como Sartre, ao escrever seus livros, também parte do homem em uma situação concreta de sua vida.

Em L´être et le néant, Sartre (2007) afirma que não basta conhecer uma só conduta do homem para compreendê-lo, e sim é preciso aprofundar-se nas mais variadas condutas para, de fato, entender a relação "homem-mundo" (p.38, trad. nossa).Ao criar suas personagens, Pirandello traz essa delicada relação à tona. Avesso a uma rotulação de homem normal, baseada num modelo de psicologia biologizante e mecanicista, o autor teatral busca mergulhar no conflito de um homem particular, em uma determinada experiência vivida, em determinado contexto social, político e cultural. Tal qual Sartre, Pirandello concebe a subjetividade como uma construção humana que está em constante movimento, feita a partir de uma relação dialética entre o mundo e o homem.

Vestir os nus é uma peça de Pirandello na qual a questão central é a construção de uma subjetividade a partir do julgamento das outras pessoas. Como Ercília não encontrava mais sentido em sua vida, que, segundo ela, estava despida de significações, totalmente estilhaçada, passou a inventar várias histórias a seu respeito para dar uma razão de ser à sua existência. Através dessas histórias, Ercília tenta vestir o "nu" de sua existência. Nessa peça, podemos ver como Pirandello (2007) expressa a questão da construção da subjetividade que está em constante movimento através de sua personagem Ercília: "A verdade mudou porque, para minha desgraça, estou viva, continuo viva. [...] Me condenaram a ser aquela que eu queria matar. Não, não, aquela acabou!" (p.123).

Também para Sartre (2007), a vida é concebida como um fluxo que está em constante transformação: "O existente, com efeito, não se pode reduzir a uma série finita de manifestações porque cada uma delas é uma relação com um sujeito em perpétua mudança" (p.13, trad. nossa). Em L´existentialisme est un humanisme (1996b), Sartre afirma que o homem é um "projeto" (p. 30, trad. nossa) que constrói sua subjetividade à medida que vive em um determinado tempo histórico. Isso quer dizer que nada está determinado previamente, ou seja, são as ações concretas realizadas no cotidiano que definem uma determinada subjetividade. O "projeto" que cada um inventa para si ganha corpo na medida em que são realizadas escolhas em um determinado contexto.

A obra de Pirandello está inserida no projeto de vida que ele criou para si. Costumava dizer que era filho do caos, pois nasceu no dia 8 de junho de 1867 em Càsuvu, palavra de dialeto italiano derivado da palavra grega caos. Pirandello (1994) foi um homem marcado por uma existência muito dura, em um tempo histórico muito conturbado. Seu pai, homem de posses, tornou-se pobre, ao perder suas minas de enxofre, devido a um desmoronamento. Sua mulher, Maria Antonietta, enlouquece, e um filho seu, Stefano, é feito prisioneiro pelo exército austríaco, durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1902, pressionado por problemas financeiros, escreve O falecido Mattia Pascal. Nesse romance, Pirandello expõe, pela primeira vez, noções existenciais que trabalhará durante toda sua obra. Segundo Guinsburg (2009), "Compreende-se, pois, que seja inerente à obra pirandelliana uma estética visceralmente fenomenológica" (p.12). O homem, para Pirandello (2010), não é uma só, e sim uma multiplicidade de máscaras, é o somatório do que crê ser mais o que os outros esperam que ele seja, é dessa forma que constitui sua subjetividade.

Apesar dos problemas econômicos, ou a partir deles, Pirandello imagina o personagem Mattia. O escritor se vê a si mesmo sem saída: está arruinado financeiramente; sua mulher, que enlouqueceu, vive isolada num mundo à parte, no quarto ao lado do qual ele escreve; tem que educar praticamente sozinho os três filhos; não consegue montar nenhuma peça que escreve. Nesse momento crucial de sua vida, o dramaturgo inventa Mattia e, ao criar a personagem, ele se reinventa; é como se, ao fazer nascer uma personagem, tivesse a chance de recomeçar sua própria vida. O autor não escreve apesar de sua vida e sim a partir dela; é por problematizar sua vida que é impelido a escrever. Pirandello, no lugar de negar a sua existência penosa, afirma-a e coloca-a em cena.

Sartre (1980) nos convida a pensar que a raiz através da qual o escritor começa a criar é sua própria existência: "o que faz seu objeto é o ser-no-mundo, não enquanto se aproxima dele a partir do exterior, mas enquanto vivido pelo escritor" (p.101, trad. nossa). Os conflitos sempre surgem de uma relação com os outros, na qual nada é dado, nada é previsto de antemão, pois é na relação vivenciada que ocorrem determinados conflitos sempre em decorrência de escolhas feitas por um homem. Para Sartre, assim como para Pirandello, o homem é o resultado das escolhas de suas experiências vividas em um contexto histórico.

No texto L´existentialisme est un humanisme, Sartre (1996b) afirma que o existencialismo é uma doutrina otimista, por considerar que o homem constrói seu próprio destino; ninguém nasce herói ou fraco, e sim cria condições de possibilidade para tornar-se um ou outro. É justamente para tratar dessa delicada questão da constituição da subjetividade, fruto das escolhas que são realizadas por um homem em um mundo concreto, que, em 1938, Sartre escreve o seu primeiro romance. O tema central trabalhado por Sartre (1986) no romance La nausée é a existência, o que é e como se constitui um ser imerso no mundo, em um determinado país, em uma cidade específica, em um contexto histórico, a partir de circunstâncias concretas do cotidiano. Antoine Roquentin, protagonista do romance escrito em forma de diário, é um historiador que, após ter vivido em várias cidades, tais como Xangai, Marrakech, Segóvia, Roma, Barcelona, Marrocos, Ilhota do Baray de Preah-Kan, dentre outras, se muda para Bouville, pequena cidade portuária fictícia da França, para poder finalizar seu livro sobre o Marquês de Rollebon. A ação de escrever dá sentido à vida de Roquentin, tanto que ele escreve o seguinte, em seu diário: "Não esquecer que o Sr. de Rollebon representa agora a única justificativa de minha existência" (p.106, trad. nossa).

Antoine Roquentin começa a escrever seu diário no ano de 1932 com o intuito de descrever meticulosamente o mundo à sua volta. Descreve em detalhes sua cidade, as ruas, os parques, as pessoas, os cumprimentos de chapéu, as fisionomias, realizando uma verdadeira observação e descrição fenomenológicas: "De repente a mulher, um pouco sonhadora, um sorriso orgulhoso e um pouco escandalizado nos lábios, pronuncia com voz arrastada..." (p.78, trad. nossa). Mas o que ele analisa? Qual é seu objeto? Na verdade, não é um objeto. Ao descrever exaustivamente os outros e si mesmo, Roquentin busca entender a própria existência. Ao tentar descrever seu universo, sem deixar passar um mínimo detalhe, Roquentin acaba por descrever também a si mesmo, pois não está dissociado da cidade, da biblioteca, dos restaurantes, dos parques; também está lá presente.

O Café Mably é um lugar privilegiado da cidade para Roquentin, local no qual observa as pessoas, local em que escreve seu diário. O protagonista se define como um homem solitário: "Eu vivo sozinho, inteiramente só. Nunca falo com ninguém; não recebo nada, não dou nada" (p.21, trad. nossa). Esse relato do diário é extremamente importante, pois revela de que forma Roquentin se coloca diante do mundo; por não ter amigos e por não encontrar mais Anny, seu grande amor, Roquentin desaprendeu a usar as palavras, desaprendeu a organizar seu pensamento em palavras, seu pensamento o invade na forma de fluxo incoerente, carecendo de uma construção de sentido. Roquentin escreve no diário uma lembrança de sua infância. Narra que, aos oito anos de idade, ao brincar com amigos no Jardim de Luxemburgo, um ex-inspetor de colégio, um homem que usava uma bota em um pé e um chinelo no outro, os aterrorizava: "Nós tínhamos um medo horrível dele porque sentíamos que ele era só" (p.24, trad. nossa). É justamente a partir de sua condição de homem solitário que emana em Roquentin a vontade de escrever um diário. Ao se sentir incomodado, pela primeira vez, por sua solidão, começa a vivenciar uma emoção que até então não conhecia: a náusea. Ao sentir saudades de Anny, o protagonista resolve escrever sobre sua vida, mas sente dificuldade para começar, pois, como não costuma narrar o que lhe acontece, a descrição, segundo ele, se torna imprecisa, em relação aos fatos, à cronologia e à relevância.

Roquentin inicia seu diário descrevendo sua relação com os objetos; reconhece que gosta da sensação das suas mãos em contato com os objetos, mas logo após se assombra com a proporção que essa emoção pode alcançar. De repente os objetos o assustam: "E isso vinha da pedra, tenho certeza, isso passava da pedra para minhas mãos. Sim, é isso, é exatamente isso: uma espécie de náusea nas mãos" (p.26, trad. nossa). Mas o que será a náusea? Roquentin não sabe ao certo o que seja a náusea, mas sabe que ela se apodera do seu corpo pouco a pouco, impedindo-o de trabalhar. Começa a construir hipóteses a esse respeito, a primeira delas é que o sol o impede de pensar; Roquentin passa a não conseguir escrever mais à luz do dia. Além disso, já não consegue escrever nos cafés, pois a náusea se manifesta pela primeira vez no Café Mably, enquanto escrevia: "A Náusea não está em mim: sinto-a na parede, nos suspensórios, por todo lado ao redor de mim. Ela forma um todo com o café: sou eu que estou nela" (p.38, trad. nossa).

Eis que, num dado momento, no Rendez-vous des cheminots, ao som de Some of these days, a "náusea" dá uma trégua a Roquentin e ele começa a vivenciar outra emoção: a alegria. O jazz transporta Roquentin para cidades nas quais ele viveu, como Roma e Barcelona. Lembra-se também da Ilhota do Baray de Preah-Kan, de suas aventuras, de seus amores, das travessias nos rios e mares, do vagar de cidade em cidade. Aparentemente nada mudou, mas Roquentin se sente outro; ele, que até então considerava que não tinha o direito de existir, passa a ter consciência de existir: "eu vejo que me acontece que eu sou eu e que eu estou aqui; sou eu que inauguro a noite, estou feliz como um herói de romance" (p.84, trad. nossa).

Pode-se observar que o entendimento da subjetividade como multifacetada, eternamente flexível e sempre aberta à mudança pode ser encontrado, tanto na obra de Sartre quanto na obra de Pirandello. Monner Sans (2009) escreve sobre a condição de metamorfose presente na existência de todas as personagens criadas por Pirandello: "[...] a unidade psicológica do ser é apenas generosa ficção [...] a personalidade se transforma, e não no acessório e sim no substancial com o fluir do tempo. Que em cada qual existem muitas vidas: por acaso 'cem mil´" (p.11, trad. nossa).

O protagonista do romance de Sartre (1986) La nausée, após descobrir que existe, que existir é um dado concreto, começa a perceber que suas mãos existem, que suas pernas existem, que seu coração existe, se dá conta de que está vivo, ao passo que Rollebon, o Marquês objeto de seu livro, está morto. Por essa razão, desiste de seu projeto. A existência se torna algo tão concreto para o protagonista que, a partir desse momento, só lhe interessa a sua própria existência: "Dentro de quatro dias reverei Anny: é isso! No momento, é essa a minha única razão de viver" (p.150, trad. nossa). A partir desse momento, Roquentin começa a enxergar a si mesmo e ao mundo à sua volta de outra maneira. O personagem "autodidata" que até então o enfadava com intermináveis perguntas sobre suas viagens, passa a ser alguém para Roquentin: "Alguém se preocupa comigo, pergunta se tenho frio; falo com outro homem: há anos que isso não me acontece" (p.150, trad. nossa). A percepção de existir se inaugura praticamente de forma simultânea à percepção de que ele não está sozinho no mundo; existir é uma ação coletiva, pois nós nos constituímos a partir do outro, a partir do olhar do outro, a partir da emoção que o outro projeta em nós, a partir do seu julgamento e de sua crença.

Em L´être et le néant, Sartre (2007) afirma que a subjetividade se constitui a partir do olhar do outro: "Eu reconheço que sou como o outro me vê" (p.260, trad. nossa). Roquentin sente-se, pela primeira vez, fazendo parte de uma coletividade. Segundo Sartre (1986), ele percebe a si mesmo, a partir de então, conectado com as demais pessoas: "[...] Estou completamente sozinho, mas caminho como uma tropa que chega a uma cidade [...] cada soluço sangrento dos feridos que transportamos corresponde a cada um dos meus passos, a cada batida do meu coração" (p. 85, trad. nossa). O protagonista de La nausée passa a entender que sua existência se constitui a partir da sua imersão no mundo, da sua relação com as demais pessoas, ou seja, da intersubjetividade. Roquentin escreve em seu diário a seguinte constatação: "E eis aqui o sentido de sua existência: é que ela é consciência de ser transbordamento" (p.239,trad. nossa).

Em La transcendance de l´Ego, Sartre (1996a) afirma que o ego é uma reunião de estados e de ações, e que são justamente esses estados e essas ações que transcendem em direção ao mundo: "O Ego é a unificação transcendente espontânea de nossos estados e de nossas ações" (p.59, trad. nossa). A náusea poderia ser entendida como um estado que toma conta do corpo de Roquentin, e como para Sartre o corpo é, ao mesmo tempo, um objeto do mundo e uma experiência vivida, podemos dizer que a náusea é um objeto transcendente, uma forma de se posicionar perante o mundo, uma forma de afirmar determinada existência. A náusea é uma emoção que o protagonista escolhe para lidar com o mundo e, a partir dessa escolha e dessa experiência vivida, o mundo se modifica porque, segundo Sartre (1960), a emoção "é uma transformação do mundo"(p.43, trad. nossa).

O ego de Roquentin não está determinado ao nascer, nem é fruto de um dom divino. Através de seus estados, qualidades e ações, ele se constitui no mundo. Essa relação é delicada, constituindo-se pouco a pouco, através das experiências vividas e das escolhas implicadas em cada uma dessas vivências. É por essa razão que Sartre (1996a) afirma que: "A relação do ego com suas qualidades, seus estados e suas ações é uma relação de produção poética..., ou, se quisermos, de criação" (pp.59-60, trad. nossa). Roquentin resolve deixar de lado o projeto de escrever o livro histórico sobre o Marquês de Rollebon e escolhe escrever um romance sobre o compositor da música Some of these days. Este é, a partir de então, o sentido da existência do protagonista de La nausée. A escolha de escrever um romance sobre a vida da pessoa que inventou a música de jazz que tanto encanta Roquentin está imbricada com a produção poética que o protagonista fará com sua própria existência. Para Sartre (1986), existir é uma criação: "O essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é simplesmente estar presente; os entes aparecem, se deixam encontrar, mas nunca podemos deduzi-los" (p.187, trad. nossa).

 

A imaginação: ato intencional e fonte de criação

Como foi dito, a matéria-prima da criação artística, para Pirandello (1981), é a imaginação. Como um vulcão, ela é um movimento que irrompe, que afirma, que tem urgência de expressão. É a partir dela que a existência das personagens se inaugura: "[...] Numa peça que seja, por exemplo, fruto de pura imaginação, poderá apresentar-se a necessidade de uma personagem fazer ou dizer uma determinada coisa que seja indispensável. Eis então que a personagem nasceu" (p.339). Da mesma forma, a imaginação também é um conceito caro para Sartre. Segundo ele, as teorias clássicas trataram a questão da imagem e da imaginação de forma parcial, sempre deixando muitas contradições. Sartre afirma que foi somente a partir das contribuições do filósofo Edmund Husserl que a questão da imaginação começou a ser vista com outros olhos. Segundo Sartre (2008), as concepções filosóficas de Descartes, Leibniz e Hume a respeito da imagem se aproximam na raiz: "a imagem conserva uma estrutura idêntica. Ela continua sendo uma coisa. Somente suas relações com o pensamento se modificam [...] a imagem é apenas uma coisa" (p.23). Será que a imagem é apenas uma coisa? Para poder responder a essa pergunta é preciso percorrer, ainda que de forma sucinta, a reflexão filosófica que Husserl realiza em relação a esse tema. Sua primeira contribuição importante à psicologia da época é a crítica em relação a seus pressupostos teóricos, idênticos aos das ciências exatas.

Para Sartre (2008), "a fenomenologia começa quando 'colocamos fora do jogo´ a posição geral de existência que pertence à essência da atitude natural" (p.119). É justamente por não considerar a existência como natural que a psicologia pode afastar-se da física e da biologia e constituir um domínio próprio de saber, no qual nem a razão nem os dados naturais imperam. Através da fenomenologia, a psicologia ganha outro terreno de investigação. O que passa a ser relevante é a existência individual, e não mais as generalizações, como, por exemplo, os tipos de personalidade nos quais muitos indivíduos seriam enquadrados. Essa busca pela existência individual não parte de nenhum a priori, nem de nenhum juízo de valor sobre o que é relevante ou não em uma trajetória de vida.

No entender de Sartre (2008), para a fenomenologia, tanto a imaginação quanto os fatos reais são de suma importância: "É de pouca importância que o fato individual que serve de suporte à essência seja real ou imaginário" (p.120). A imagem passa a ser concebida a partir de um novo referencial teórico, pois, para Sartre (2008), a estrutura pela qual Husserl entende tanto a imagem quanto a consciência é a intencionalidade. A consciência não é um a priori que conhece o mundo, e sim uma forma de se relacionar com o mundo. Ela só surge como consciência de alguma coisa, e o objeto só surge quando investido pela consciência.

Não existe uma consciência dada de um lado e um objeto definido do outro que inauguram uma relação. Ambos surgem simultaneamente; é a relação que os constitui tanto um quanto o outro. Segundo Ewald, Gonçalves, Garcia e Dantas (2008), "a consciência é um movimento, é um fluxo contínuo em direção ao mundo" (p.420). É justamente esse movimento da consciência em direção ao mundo que Sartre (1947) nomeará de intencionalidade, definindo-a como "a superação da consciência por ela mesma" (p.34, trad. nossa). Essa intencionalidade, para Sartre (2008), diz respeito ainda à imagem: "a imagem também é imagem de alguma coisa. Portanto, lidamos com uma relação intencional de uma certa consciência a um certo objeto" (p.124). Dessa forma, a imagem não é nem poderia ser uma coisa, nem está dentro da consciência.

Assim como a consciência, a imagem também diz respeito a um modo de relação com o mundo, a uma visão de mundo a partir de uma existência: "Não há, não poderia haver imagens na consciência. Mas a imagem é um certo tipo de consciência. A imagem é um ato e não uma coisa. A imagem é consciência de alguma coisa" (Sartre, 2008, p.137). No romance O falecido Mattia Pascal, a personagem nasce, na imaginação de Pirandello (1981), com uma vida duríssima: "Uma das poucas coisas, e talvez menos, a única que eu sabia ao certo era esta: que me chamava Mattia Pascal" (p. 9). É dessa forma que Pirandello começa esse instigante romance. Mattia era um menino rico, sua família possuía terras e casas. A morte súbita de seu pai, aos seus quatro anos de vida, foi a ruína para a família. A mãe dele, uma santa mulher, assim descrita por Mattia, não soube administrar a herança, entregando-a aos cuidados de um senhor nada honesto. Mattia não tinha grandes ilusões em relação à sua vida: "Eu gozava de ótima saúde e isso me bastava" (p. 28). Mattia, já adulto, se torna um sujeito com uma vida muito sofrida, pois casa-se com uma mulher que não ama, muda-se para a casa da sogra e é pai de duas filhas gêmeas que morrem uma logo ao nascer, outra um ano depois. No mesmo dia no qual morre sua segunda filha, morre também sua mãe, referência afetiva importantíssima em sua vida. Quando viaja furtivamente para se esquecer dessa vida tormentosa, acontece o inesperado: Mattia é dado como morto. Um homem morre na sua pequena cidade, Miragno, e é reconhecido por sua mulher como o Mattia Pascal. A primeira coisa que passa pela cabeça de Mattia é voltar à sua cidade para desfazer o engano; sente vontade de gritar a todos que está vivo. Ele se vê diante de uma encruzilhada, que à primeira vista o angustia, o revolta, mas depois se dá conta de que, pela primeira vez, pode ser livre: "[...]Estava morto, estava morto: não tinha mais dívidas, não tinha mais mulher, não tinha mais sogra, ninguém! Livre, livre, livre! Que pretendia mais?" (p.100). Quando estava a ponto de pegar o trem que o levaria de volta a Miragno, muda de ideia, resolve pegar outro trem.

A liberdade de escolha, a partir de então, torna-se tão grandiosa e generosa para Mattia que ele tem a oportunidade de escolher até as condições de seu nascimento. Para inventar-se outro, Mattia precisava cortar os elos com seu passado, com sua história, que ele havia construído até então. Toda sua história de vida e suas memórias eram tão dolorosas que seria muito fácil livrar-se delas. Mattia sentia que começava do ponto zero, estava livre para escolher, já que em sua vida passada, segundo sua percepção, não tivera escolha alguma. Sobre essa questão de constituição da subjetividade, Sartre (1996b) afirma que o homem é o resultado do que ele faz de si através de suas escolhas e é inteiramente "responsável" pela vida que cria para si. Dessa forma, estar vivo é permanentemente inventar-se outro, assim como Mattia Pascal se reinventará no romance de Pirandello.

Ao deparar-se, pela primeira vez, com a experiência da liberdade, Mattia ainda não sabia que teria muito trabalho pela frente. Após cortar os elos com o passado e inaugurar uma vida nova, percebe que, ao voltar a conviver com os outros, mesmo que seja em outro lugar e com pessoas desconhecidas, ele terá de construir uma nova identidade, no entender de Pirandello (1981), uma nova máscara. Com o anel que o ligava ao passado devidamente descartado "[...] estava escrito 'Homens´, e ali sepultei minha aliança de casamento [...]" (p.116). Mattia inicia o processo de construção de sua nova identidade inventando que nasceu durante uma viagem de navio na Argentina e foi criado pelo avô. Ele não escolhe uma cidade qualquer para viver e construir sua nova identidade, mas uma grande metrópole. Essa escolha se dá pelo fato de que somente em um lugar assim ele poderia andar despercebido. É em Roma que começa a constituição de Adriano Méis, composta de fragmentos de vidas alheias, de histórias ouvidas e de pessoas observadas; é com esse material que Mattia inventa o presente e o passado de sua nova máscara.

É a partir da experiência vivida de Pirandello que aparece, em sua imaginação, Mattia com sua inusitada história. Como, segundo Sartre (2008), a imaginação, assim como a consciência, também é consciência de alguma coisa, pode-se afirmar que ela também é um ato intencional. Ou seja, tanto a inteligência quanto a imaginação e a sensibilidade fazem parte de um mesmo conjunto que diz respeito à experiência vivida. Nesse sentido, Ewald (2008) afirma: "[...] é a vivência imediata da consciência, tomada como ato intencional (uma percepção, uma emoção, uma imaginação, uma recordação, por exemplo) que visa um objeto, que Husserl adota como ponto de partida para discutir a questão do conhecimento" (p.153). Para Husserl, o que aparece, o que toma corpo é o fenômeno e é a partir dele que se deve iniciar qualquer investigação intelectual. A imaginação é o ponto de partida da criação de Pirandello, é a partir dela que ele inventa sua obra e sua vida. Mattia surge para propor um novo começo também para a vida de Pirandello, que, ao imaginar outro destino para Mattia, escreve e inventa outro destino para si próprio. Então, pode-se afirmar que o ato de escrever constitui uma nova existência? Vejamos o que Sartre escreve a respeito em Qu´est-ce que la littérature?. Nesse ensaio, de 1948, Sartre coloca em cena uma série de questionamentos a respeito do sentido de escrever.

A prosa, além de estar inteiramente inserida na linguagem, ainda a utiliza como uma função utilitária, a de gerar ações que emanam de uma relação dialética entre escritor e leitor. Para Sartre (1948), essa relação dialética significa que o escritor é imprescindível para o leitor e o leitor também é imprescindível para o escritor. A prosa é um jogo de forças que se exerce a partir desses dois polos:

A operação de escrever implica a de ler como seu correlativo dialético e esses dois atos conexos precisam de dois agentes diferentes. É o esforço conjugado do autor e do leitor que fará surgir o objeto concreto e imaginário... Somente há arte para e pelo outro (p.93, trad. nossa).

O escritor escreve sobre um determinado ângulo da existência com o intuito de comunicar esta realidade. Sartre (1986), em La nausée, expõe o que pensa a esse respeito através da seguinte fala do personagem Autodidata: "Que me digam: escrevo para uma determinada categoria social, para um grupo de amigos. Ótimo. Talvez o senhor escreva para a posteridade... Mas, senhor, querendo ou não, escreve para alguém" (p.169, trad. nossa).

De acordo com Sartre (1948), o escritor escreve para seus contemporâneos, pois somente eles compreenderão, de forma aguda, uma experiência vivida em determinado tempo histórico, ou seja, o seu contexto. O escritor e o leitor devem ter um mundo em comum para que se possa criar uma relação entre eles que gere o novo. O escritor é um mediador de uma determinada visão de mundo que faz um apelo à existência do leitor. O primeiro se coloca como um homem situado historicamente que fez uma escolha: a ação de escrever um livro. Esse é um projeto concreto que o escritor inaugura ao escrever um livro, mas não é um projeto acabado. Para Sartre (1948), ele se desenrola através da ação do leitor: "Cada palavra é um caminho de transcendência... toda obra literária é um apelo. Escrever é fazer um apelo ao leitor para que ele faça passar à existência objetiva esse desvelamento que eu realizei por meio da linguagem" (p.96, trad. nossa).

O apelo que Pirandello faz aos seus leitores e aos espectadores de suas peças é que se defrontem com a máscara que cada qual constrói para si mesmo. Bosi (2010) afirma que, em O falecido Mattia Pascal, Pirandello mostra a impossibilidade de se conter a vida, entendida como variável, contraditória e ambígua, em uma forma fixa determinada pela "máquina social" (p.8). A sociedade exige que cada pessoa pense e aja segundo sua identidade. A identidade, ou seja, as características que definem uma pessoa, é um contorno, uma demarcação que delimita o que está dentro e o que está fora. O que está dentro é a identidade, a intimidade, o familiar, e regular, o previsível. Já o que está fora dessa demarcação é o estranho, o diferente, o outro, o que surpreende. A identidade reúne o que é semelhante a ela e exclui o que não é. Podemos ler, nesta passagem do texto Advertência sobre os escrúpulos da fantasia, como Pirandello (1981) define a máscara: "é a metáfora bisonha e incerta de nós mesmos; a construção, frequentemente cerebrina e capciosa, que fazemos de nós ou que de nós fazem os outros" (p.319). É a partir da imaginação que Pirandello propõe uma reflexão em relação à máscara que enclausura a vida em uma forma fixa.

Em Qu´est-ce que la littérature?, Sartre (1948) afirma que a imaginação do escritor é um ato intencional transcendente que está sempre em movimento em direção ao leitor: "A imaginação... está sempre fora, sempre engajada na execução de um empreendimento" (p.97, trad. nossa). A partir da imaginação surgem as personagens e a história que será, pela livre escolha do escritor, contada em um livro. A ação de transformar a imaginação em criação literária é transcendente: "A arte é aqui uma cerimônia de dom" (p.103, trad. nossa). Mas esse dom não é desinteressado, o dom da obra de arte vem sempre acompanhado de vários apelos. O primeiro deles é justamente o da existência da obra de arte, pois se ninguém lê um livro que foi escrito, ele, de fato, não existe. Para poder existir, é necessário que haja alguém, chamado leitor, que se proponha a realizar uma ação, a ação de ler o livro, chamada ação da leitura.

O escritor se dirige à liberdade do leitor para demandar, em primeiro lugar, que sua obra exista. Em segundo lugar, o escritor apela para a criação do leitor, pois na ação de ler está imbricada uma série de desejos, expectativas e também frustrações. A ação da leitura de uma obra literária, portanto, não seria uma ação mecânica como, por exemplo, a de ler um manual de instruções de funcionamento de um eletrodoméstico. Trata-se sim de uma criação de hipóteses, de sonhos, de expectativas e de frustrações. A partir de tal ação, o leitor constrói um processo criativo em relação à obra escrita, transformando-a em transbordamento: "É preciso que o leitor invente tudo em um ritual de ultrapassagem da coisa escrita... a leitura é a criação com direção" (Sartre, 1948, p.95, trad. nossa). Esse processo de ultrapassagem da obra escrita realizada pelo leitor é uma criação feita sempre em nome da liberdade. Pois, lendo um livro situado historicamente, o leitor está lendo um livro engajado, comprometido com o seu contexto histórico e social, o que o leva a se defrontar com sua própria condição de liberdade.

O escritor, ao escrever um livro sobre uma situação real, concreta e engajada, faz um apelo à liberdade e ao engajamento do leitor. No livro Plaidoyer pour les intellectuels, Sartre (1980) mostra haver uma relação muito estreita entre criação literária e liberdade. Para o autor, o escritor se comunica com o leitor em um exercício de liberdade, pois a ação da leitura é um ato de criação que emana da condição de liberdade despertada no leitor. O escritor é um intelectual de grande importância, pois, através de sua arte, a literatura, ele tem a função de despertar todo e qualquer leitor para sua condição de liberdade.

 

A literatura como criação da existência: algumas considerações

Fazer literatura, para Sartre (1980), é uma forma de ser-no-mundo. O escritor tem a responsabilidade de assumir seu tempo histórico ao mesmo tempo em que tem um compromisso com uma história única e particular. Ao explicitar esses dois elementos (o contexto histórico e a subjetividade), que, segundo Sartre, são indissociáveis, o escritor afirma uma determinada "visão de mundo". A arte, mais especificamente a literatura, transforma a maneira de ver o mundo. Ao transformar a maneira de ver o mundo, transforma o próprio mundo, pois, ao enxergá-lo com outros olhos, este se transforma, mudando, consequentemente, toda a existência em uma relação que já nasce indissociável. Segundo Ewald (2008), a fenomenologia "é a forma de acesso ao fundamento, a consciência não é nem o homem nem o mundo, mas o acordo entre ambos" (p.153).

Em uma concepção muito singular sobre a filosofia e a literatura de Sartre, Silva (2004) nos faz o seguinte convite: no lugar de entender a filosofia como a única forma de pensar o mundo e a literatura como uma forma de ilustrar a filosofia, sua proposta é a de pensarmos em uma relação de comunicação entre ambas, que denomina de "passagem interna". A filosofia e a literatura, para o autor, comunicam-se através de uma "vizinhança comunicante". Dito de outra forma, a filosofia não é uma ilha isolada de pensamento que tem uma relação de exterioridade com a literatura, que seria seu apêndice. Filosofia e literatura estão totalmente imbricadas em um movimento de busca de entendimento da existência em determinado mundo e a forma pela qual as duas se comunicam é por uma "passagem interna". Segundo o autor, fazer literatura é um exercício de "transitividade de consciências": "[...] ela só se realiza como um encontro de liberdades. A escrita é um exercício de liberdade que somente se completa apelando para a liberdade do outro, o leitor. A leitura [...] é exercício de liberdade" (p.20).

Defrontar-se com as questões de sua época é, de acordo com Silva (2004), o que significa fazer literatura, é uma forma de estar situado no mundo, conectado com a história, estar consciente de todas as suas virtudes e suas mazelas. E, do mesmo modo que Silva (2004) utiliza a noção de "vizinhança comunicante" para analisar a relação entre a filosofia e a literatura de Sartre, propomos aqui utilizá-la para analisar a relação entre a filosofia de Sartre e a literatura de Pirandello.

Através da literatura, no entender de Ewald e Alt (2007), nos tornamos mais compreensivos na medida em que, a partir dela, nos colocamos no lugar do outro. Tornar-se mais compreensivo significa perceber o outro como multifacetado, ao invés de como um objeto que é identificado por esta ou aquela característica. Através da literatura percebe-se o outro como uma subjetividade rica em ângulos e em intensidades que estão em constante movimento. Ao perceber o outro, a personagem como "consciência transcendente", percebe-se a si próprio como tal e se inaugura uma relação entre "consciências transcendentes".

A subjetividade é construída nessa relação entre consciências transcendentes, através do movimento em direção aos outros. Para Sass (1999) é dessa forma que constituímos nosso ego: "O ego, tal qual a consciência, é transcendente, ou seja, ele se constitui no movimento de se voltar para fora de si em direção aos outros e em direção ao mundo" (p.264). Esse movimento do ego em relação ao mundo é que Sartre (1947) denomina transcendência. Vejamos a definição dessa noção sartriana no texto Situations, I: "Ser é explodir para dentro do mundo, é partir de um nada de mundo e de consciência para subitamente explodir-como-consciência-no-mundo [...]. Tudo está fora, tudo, até nós mesmos: fora, no mundo, entre os outros" (pp.33-34, trad. nossa).

É a partir de sua imaginação, construída através de fragmentos de experiências vividas e de desejos futuros em relação à existência, que Pirandello escrevia suas peças, contos, romances. Para ele, vida e arte estão intimamente ligadas, pois uma alimenta a outra. A literatura de Pirandello, atravessada pela urgência que sentia em compartilhar seus escritos com os outros, é uma forma de explosão para dentro do mundo, para a relação entre as pessoas, para a subjetividade. A literatura pode ser uma via para se posicionar no presente afirmando uma postura política, humana e social com um vértice sempre apontado para o futuro que desejamos para a sociedade.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Lucrecia Paula Corbella Castelo Branco
lucorbella@ig.com.br

Submetido em: 12/12/2011
Revisto em: 14/01/2012
Aceito em: 17/01/2012

 

 

1 N.E. Ao longo deste artigo, as citações de obras estrangeiras consultadas no original foram traduzidas pela autora do presente texto.

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