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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.3 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

Crianças, orçamento participativo e teoria da atividade: algumas reflexões

 

Children, participative budget and the theory of activity: some reflections

 

Niños, presupuesto participativo y teoría de la actividad: algunas reflexiones

 

 

Lis Albuquerque MeloI; Veriana de Fátima Rodrigues ColaçoII; Jesus Garcia PascualIII

IMestranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Ceará. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Ceará. Brasil
IIIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Ceará. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O direito à participação e à voz é concedido às crianças em uma sociedade cultural e historicamente construída tendo como referência o adulto e na qual a infância é por vezes concebida como um "vir a ser". O presente artigo objetiva problematizar a participação de crianças no orçamento participativo de um município do Nordeste brasileiro a partir de uma discussão de cunho teórico fundamentada na Teoria da Atividade Humana de Leontiev. A atividade humana, compreendida em seu papel de mediação na relação ser humano - mundo material -, possibilita pensar a participação das crianças relacionando-a à atividade que se tenha em conta e, portanto, às ações e operações empreendidas para o desenvolvimento dessa atividade, considerando sua apropriação por parte das crianças, em contextos culturalmente configurados.

Palavras-chave: Participação de crianças; Orçamento participativo; Teoria da atividade humana.


ABSTRACT

The right to participation and to be heard is granted to children in a society that is culturally and historically constructed with reference to adults and that also conceives childhood as a "becoming". This paper aims to discuss children´s participation in the participatory budgeting of a Brazilian northeastern municipality, from a theoretical discussion based on Leontiev´s Human Activity Theory. Human activity, understood in its mediation role in the human being - material world relationship -, makes it possible to think about children´s participation by relating it to the activity that is taken into account and, hence, to the actions and operations undertaken to develop this activity, considering its appropriation by children within culturally configured contexts.

Keywords: Children's participation; Participative budget; Human activity theory.


RESUMEN

El derecho a la participación y a la voz se les concede a los niños en una sociedad cultural e históricamente construida con base en el adulto y en la cual la infancia es a veces concebida como un "viene a ser". Este artículo tiene como objetivo discutir la intervención de los niños en el presupuesto participativo de un municipio en el noreste brasileño a partir de una discusión teórica basada en la Teoría de la Actividad Humana de Leontiev. La actividad humana, entendida en su papel de mediación en la relación ser humano - mundo material, posibilita pensar la participación de los niños relacionándola con la actividad que se considere y, por lo tanto, a las acciones y operaciones emprendidas para el desarrollo de esta actividad, teniendo en cuenta la adaptación por parte de los niños, en contextos culturalmente configurados.

Palabras-clave: Participación de los niños; Presupuesto participativo; Teoría de la actividad humana.


 

 

Introdução

Das experiências e contatos da primeira autora com a temática da infância nas atividades da graduação em Psicologia e na carreira profissional (ações de pesquisa e extensão universitária na área de promoção e defesa dos direitos e deveres de crianças e adolescentes, desenvolvimento de estágios com crianças nas áreas de Psicologia Social e Clínica, além da atuação em políticas públicas de desenvolvimento comunitário e proteção especializada em casos de violação de direitos), surgiram algumas inquietações que, em estudo aprofundado orientado pelos demais autores, são problematizadas no presente artigo. Discursos e práticas sociais que posicionam a criança como um "vir-a-ser" (segundo uma visão adultocêntrica da realidade) coexistem com perspectivas que lhe conferem direito e voz na participação política e social, por a conceberem como sujeito de sua história. Acompanhando crianças em momentos ditos de participação, em políticas públicas e atividades institucionais (governamentais e não-governamentais), é possível observar aquelas sendo tratadas como miniaturas de adultos, aparentemente atendendo a planos e expectativas destes, consideradas em parte como objetos de propagandas institucionais. Tomando especificamente a iniciativa da participação infantil no Orçamento Participativo (OP) de um determinado município do Nordeste brasileiro, têm surgido, entre os delegados adultos do OP, questionamentos e discussões acerca da capacidade de as crianças participarem - a elas é facultado espaço de participação no OP Criança e Adolescente. Os referidos delegados discordam da abertura desse espaço, convidando para o debate, entre outros discursos, o da Psicologia.

Implantada em 2005 no município em questão, o OP, como política pública de participação popular, tem o intuito de contribuir para a formação cidadã e o controle popular da gestão pública, enfocando a construção de uma democracia para além da representação política. Tem como principais características o compartilhamento de decisões, recursos, experiências e responsabilidades, sendo marcado pela corresponsabilidade nas decisões sobre a cidade (Prefeitura Municipal de Fortaleza, s/d). Conforme esclarece Soares (2009), o OP está organizado para atender à população da cidade nos níveis "territorial" (local de origem do cidadão, organizado a partir das subunidades administrativas do município) e "segmento social", dentre os quais estão elencados crianças e adolescentes, população negra, LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais), idosos e pessoas com deficiência.

O ciclo do OP inclui processos de mobilização e formação, nos quais os participantes são esclarecidos acerca de questões relativas ao orçamento público e ao ciclo orçamentário do município, além da própria questão da participação popular e formação cidadã. Reformulado em 2010, esse ciclo tem início com as "assembleias eletivas" realizadas em diversos bairros do município, nas quais são demandadas propostas de obras e serviços a serem desenvolvidos pela Prefeitura. Na sequência, há as "assembleias decisivas". Nestas, são votadas as propostas a serem concretizadas, partindo de uma análise prévia de sua viabilidade pelo poder público. Nesse momento, são eleitos os delegados do OP, que compõem então os Fóruns Regionais de Delegados em cada subunidade administrativa, responsabilizando-se por debater e acompanhar o processo de execução das obras do OP em cada localidade. Ao final, são eleitos pelos delegados os membros do Conselho do Orçamento Participativo (COP), do qual fazem parte, também, representantes da administração pública, com direito à voz, mas não ao voto. O COP é responsável por planejar, fiscalizar, discutir, propor e deliberar sobre a peça orçamentária anual, além de tomar decisões acerca do próprio processo de organização do OP (Soares, 2009; Prefeitura Municipal de Fortaleza, s/d).

O ciclo descrito ocorre de maneira análoga para os segmentos sociais, diferenciando-se pelo fato de as assembleias ocorrerem em entidades e instituições que agregam esses segmentos. No caso do segmento crianças e adolescentes, há tanto as assembleias territoriais (realizadas em cada subunidade administrativa) como as escolares (realizadas em uma escola de cada subunidade administrativa). Importante dizer que as crianças e os adolescentes contam com Fóruns próprios e também elegem seus delegados e representantes para o COP, em um processo totalmente integrado ao OP (Soares, 2009).

O OP Criança e Adolescente (OPCA), seguindo os regimentos internos do OP e do OPCA, fundamenta-se na concepção de crianças como cidadãs desde o momento atual, enfatizando que o futuro que estaria a elas destinado arquitetar não será possível se não houver uma construção desde o presente. Acredita-se que "dar" às crianças o direito de participação na vida coletiva constitui a melhor forma de protegê-las, incentivando, por sua vez, o protagonismo de suas experiências. Participam do OPCA crianças e adolescentes com idades dos 6 aos 17 anos. As atividades, com mesmo peso de decisão daquelas desenvolvidas com os adultos, são realizadas a partir de metodologias e linguagens específicas, a fim de que as crianças debatam e entendam sua cidade, trazendo ideias e propostas não apenas para o seu segmento, mas para toda a cidade (Prefeitura Municipal de Fortaleza, 2010).

A propósito, Soares (2009) traz diversas indagações relativas à construção da participação popular nas ações do OP municipal, consoantes com as que nos motivam a problematizar a temática da participação infantil. Ele aponta alguns obstáculos culturais à participação, questionando se as pessoas "sabem" participar de uma forma a constituir relações horizontais ou apenas a partir de velhas formas hierarquizadas "que reproduzem uma dicotomia entre 'alguém que manda porque pode´ e 'alguém que obedece porque tem juízo´" (p.2).

Soares (2009) denuncia a constituição de espaços de participação nos quais esta se torna sinônimo de falar, questionando se "[...] eles favorecem a expressão do pensamento dos sujeitos de forma livre e original ou as falas das pessoas que não dispõem de uma oratória polida e bem articulada suscitam apenas 'risinhos´ irônicos e enfado indisfarçado" (p.2). Quando se trata das crianças, então, com suas formas particulares de expressão, raciocínio e linguagem, acrescenta-se ainda a "histórica menorização", seguindo-se o desprezo e ironia por parte dos adultos.

É possível observar, portanto, uma tensão entre a ideia de crianças como sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento, fundamentando a necessidade de sua proteção, e a ideia de crianças que participam, que fazem parte da construção de uma realidade social comum, consideradas sujeitos ativos de direitos e possuidores de voz. Isso porque muitas vezes essa proteção, talvez de fato necessária, considerando o contexto brasileiro, pode também acabar reforçando uma noção de incapacidade e fragilidade absolutas das crianças, enquanto as oportunidades de participação acabam sendo dadas às crianças e não conquistadas nem devidamente apropriadas por estas.

Somando-se a essa tensão, Soares (2009) apresenta-nos que nos falta aprender a participar, considerando que não há um intuito legítimo para esse aprendizado na família, na escola e nos demais espaços microssociais. Há, sim, atitudes hierarquizadas, autoritárias, sendo a expressão livre de ideias, por vezes, ridicularizada.

Empiricamente, são destacadas questões de maturação, habilidade e capacidade, quando se fala em participação infantil. Em quais circunstâncias as crianças são capazes de participar? A resposta para tal questão pode recair sobre a negatividade constituinte a partir da qual a infância tem sido concebida, recusando, portanto, a possibilidade ou a efetividade dessa participação. É possível, no entanto, buscar respostas a partir de uma perspectiva diferente, considerando a possibilidade do ser criança no presente.

É importante deixar claro que estamos falando de participação infantil em uma sociedade eminentemente adultocêntrica, na qual as crianças são concebidas como inferiores em um percurso normatizado de desenvolvimento. Compreendemos, portanto, que a infância se forja nessa sociedade, significando e sendo significada nesse contexto histórico e cultural. Conforme pontuado por Espinar (2002), em estudo realizado sobre participação de crianças, investigar sobre esse tema pode parecer um paradoxo nesse padrão societário, no qual se costuma negar o exercício completo dos direitos infantis. O que seria de fato confiado às crianças?

O objetivo deste artigo não é classificar formas de participação de crianças ou construir tipologias e, desse modo, tecer julgamentos morais sobre as práticas sociais. Não pretendemos apresentar fórmulas de como proceder para que crianças participem de fato, mas, sim, buscar compreender como essa participação pode acontecer. Para tanto, propomos problematizá-la a partir da Teoria da Atividade de Alexi Leontiev (1903-1979), não sem antes deixarmos claro a que nos referimos quando tratamos de infância e de participação.

 

Desenhando a participação

Bordenave (1994) afirma que "a participação é uma habilidade que se aprende e se aperfeiçoa" (p.46); sendo assim, aponta para a necessidade de os sistemas educativos desenvolverem mentalidades participativas pela prática constante e refletida. Esse autor discute diversas maneiras de efetuar essa prática, graus e níveis de participação, destacando a importância de atentar para o grau de controle dos membros sobre as decisões e a importância das decisões de que se pode participar.

Bordenave (1994) traz a noção de participação como fazer parte, tomar parte ou ter parte, considerando as diferenças dessas expressões:

[...] a prova de fogo da participação não é o quanto se toma parte, mas como se toma parte [...] a democracia participativa seria então aquela em que os cidadãos sentem que, por 'fazerem parte´ da nação, 'têm parte´ real na sua condução e por isso tomam parte´ - cada qual em seu ambiente - na construção de uma nova sociedade na qual se 'sentem parte´ (p.23).

Esse autor classifica como participação simbólica quando "os membros de um grupo têm influência mínima nas decisões e nas operações, mas são mantidos na ilusão de que exercem o poder" (p.63). Contrapondo-se a essa categorização, há a participação real, que ocorre quando "os membros influenciam em todos os processos da vida institucional" (p.63), embora participem de maneiras e em funções e momentos diferentes.

De acordo com Hart (1992), as crianças são os membros da sociedade mais fotografados e menos escutados. Ele é incisivo ao denunciar que a participação de crianças muitas vezes se configura como uma performance, o que se deve, segundo ele, à tendência dos adultos de subestimar a competência das crianças, embora reconheçam o poder de influência destas, usando-as portanto em eventos diversos. Nesse sentido, ele traz uma discussão sobre a capacidade de as crianças participarem, enumerando alguns fatores que afetam a habilidade para essa participação, como seu desenvolvimento social e emocional, a competência em compreender a perspectiva do outro e as variações relacionadas às classes sociais e ao gênero.

Compreendendo que há uma diversidade de maneiras de as crianças participarem, é possível questionar se há uma forma ideal de participação infantil. De fato, há uma tendência em classificar valorativamente essa variedade de formas de participação. No entanto, a partir de uma perspectiva histórico-cultural da constituição do ser humano e da cultura, a participação infantil pode ser compreendida como uma construção, no palco de negociações que constitui a vida cultural.

Para Hart (1992), a participação infantil na sociedade começa quando a criança entra no mundo e descobre o quão capaz é de influenciar eventos com seus choros e movimentos. Esse autor utiliza o termo participação para se referir ao processo de compartilhar decisões que afetam a vida de uma pessoa e da comunidade na qual se vive. Trata a participação de crianças como condição para a cidadania dessas, considerando-a como processo para a construção da democracia.

A participação infantil, no entanto, está relacionada, segundo esse autor, a um contexto maior de participação, não variando apenas com o desenvolvimento de motivações e capacidades da criança, mas também com os contextos familiares e culturais. Ou seja, como é possível falar de promoção dessa participação infantil em uma sociedade individualista, na qual os próprios adultos pouco vivenciam essa prática?

Em estudo realizado com organizações não governamentais da América Latina, por Espinar (2002), as crianças entrevistadas relacionaram sua participação à expressão de ideias, através de palavras e ações, bem como à expressão de opiniões, aos benefícios para o seu desenvolvimento e sua aprendizagem, à ajuda na gestão de atividades, aos direitos e às responsabilidades, à capacidade de decidir por si mesmas o que querem fazer, ao agir por convicção e à autonomia. Os adultos que trabalhavam nas instituições visitadas no estudo reconheciam e aceitavam a participação infantil. No entanto, a forma de entender o que é melhor para as crianças e como saber, por elas mesmas, o que é melhor para si gerava percepções distintas na promoção da participação, caracterizando atitudes desde predominantemente tutelares e protecionistas ao reconhecimento de formas plenas e autônomas de participação.

No referido estudo, a participação de crianças está relacionada ao direito de opinar, com a possibilidade de expressar o que se pensa, ser escutado e levado em conta. A tomada de decisões, sem a qual não é possível efetivar-se uma participação real e autêntica, requer o acesso à informação, o reconhecimento de propostas, a possibilidade de escolha, disponibilidade de tempo e o reconhecimento das decisões empreendidas. A participação apresenta, ainda, sujeitos em relação, mediados por discursos e significações que articulam ações. Trata-se de relações de poder, possibilidades de diálogo, reconhecimento de direitos, compartilhamento de decisões, em um processo no qual crianças e adultos podem caminhar juntos, afirmando-se mutuamente, reconhecendo e respeitando suas diferenças (Espinar, 2002).

A partir dessas afirmações, é possível compreender a participação como algo que envolve informação e conhecimento sobre os temas que se compartilha, com sentimento de pertença e poder de decisão e de ação. Como afirma Bordenave (1994), trata-se de uma intervenção ativa na construção da sociedade, através da tomada de decisões e das atividades sociais em todos os níveis. É fundamental, ainda, entender que a participação está envolvida em relações de poder. No presente trabalho, utilizaremos a noção de participação compreendida como maneiras possíveis de as crianças fazerem parte, tomarem parte e terem parte em situações nas quais se envolvem em condições decisórias, estando em jogo relações de poder.

 

Por uma compreensão de infâncias plurais

Compreendemos que ser criança não foi e não é da mesma forma em todos os espaços e tempos, em todas as culturas existentes e contextos possíveis, sendo a infância constituída a partir de referências étnicas, culturais, de gênero e de classe social, entre outras. Os estudos empreendidos por Ariès (1975/2006) nos ajudam a compreender a infância como essa construção social. Considerando que esse autor faz um estudo da França do final da Idade Média adentrando na Modernidade - o que torna inviável fazer generalizações -, interessa-nos atentar para o fato de que, ao analisar as mentalidades de uma época num determinado espaço, Ariès nos fala da constituição de um sentimento de infância forjado em relação direta com as concepções de família e de educação estabelecidas ao longo da história e em decorrência dos interesses e diferentes configurações sociais. Esse sentimento de infância relaciona-se com a consciência da particularidade infantil, o que tornava possível a distinção entre crianças e adultos. Nem sempre esse sentimento existiu. Na sociedade francesa tradicional, as crianças se juntavam aos adultos logo que superavam um período mais frágil de sua sobrevivência. Adultos e crianças compartilhavam atividades sociais, como jogos, brincadeiras, profissões e armas, de tal forma que a aprendizagem infantil era assegurada na convivência com os mais velhos, jovens e adultos (Ariès, 1975/2006).

Castro (2001) afirma que, na era moderna, a construção da psicologia da infância esteve intimamente relacionada com a noção de norma, correspondendo o sentido da infância a uma trajetória a ser percorrida até a idade adulta:

Assim, a compreensão da especificidade da infância fica por conta de um 'débito social e cultural´ que lhe é atribuído frente à tarefa de crescer, e se tornar, eventualmente, como um adulto. Frente a este 'débito´ interpõem-se as ações educativas e familiares que visam, então, fazer das crianças, adultos´, 'socializá-las´, 'amadurecê-las´ (p.20).

Desse modo, a autora questiona como é possível compreender a infância sem que as diferenças entre esta e os adultos recaiam sobre uma lógica desenvolvimentista, segundo a qual a criança é posicionada como um sujeito em potencial, marcado pelo "vir a ser" e não pela competência no presente, tendo como consequência sua inserção na sociedade afastada do mundo das atividades socialmente reconhecidas.

Brincar e estudar tornaram-se, assim, sintagmáticos da infância, enquanto assimilados numa só referência: uma identidade, uma natureza infantil. Participar ativamente da sociedade, e ser assim reconhecido, foi postergado para mais tarde, quando a criança se tornaria, enfim, um adulto. Deste modo, a lógica desenvolvimentista favoreceu uma perspectiva de 'menoridade´ sobre a infância, que põe em questão, ou mesmo reduz seus direitos civis e políticos (p.22).

Segundo Castro (2001), aos jovens e às crianças são atribuídas posições de incapacidade social, política e cultural, que, por vezes, viabilizam a exclusão da criança e do jovem da participação plena na vida social. Para contrapor o paradigma desenvolvimentista, essa autora se referencia nas ideias do conceito de ação trazido por Hannah Arendt e Max Weber. Assim, Castro assinala que é notável que adultos e crianças apresentem diferentes inserções nos espaços de convivência, tendo possibilidades distintas de intervir no mundo e construí-lo. Entretanto, a criança foi alijada de muitos desses espaços, sendo destacados dentre eles o espaço público e os interesses da vida em comum, desfavorecendo-se em termos de uma participação mais imediata e legitimada, restringindo-se aos espaços de aprendizagem e proteção, enquanto aguardam uma futura posição de participação e responsabilidade.

Tendo como referência a antropologia filosófica de Walter Benjamim, Kramer (1996) discute proposições teóricas de diversos campos do conhecimento voltados à infância, buscando delinear um referencial para o estudo desta, concebendo a criança na sua condição social de ser histórico, político, cultural, que verte e subverte a ordem e a vida social. Kramer (1996) destaca a visão predominante sobre a infância brasileira na década de 1970, a qual trazia uma versão marginalizadora e preconceituosa das crianças das classes populares, sustentando as ideias de privação cultural e de compensação de carências. Entretanto, ao longo da história, chegando aos dias atuais, a criança deixa de ser alguém que não é (pelo menos nas discussões acadêmicas) e passa à condição de cidadão (pelo menos na letra da lei). Crescendo como estatuto teórico, busca-se forjar outro olhar sobre a infância, um olhar da criança e não sobre ela. Assim, Kramer (1996) mostra-nos que é possível colaborar para uma concepção da criança não de uma maneira romântica ou ingênua, mas entendendo-a na história, inserida numa classe social, parte da cultura e produzindo cultura.

Essas discussões sobre a infância vão ao encontro dos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, segundo a qual o ser humano se constitui a partir das interações sociais em um dado contexto, participando de práticas sociais, cultural e historicamente construídas, transformando seu contexto e sendo transformado. A cultura, conforme destacado por Rego (1995), é compreendida em seus constantes movimentos de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significações. A infância, nesse sentido, é dita e se diz. Dessa forma, Rego (1995) afirma que o desenvolvimento humano não pode ser compreendido como algo previsível, universal, linear ou gradual, visto que acontece relacionado ao contexto sociocultural e se processa de forma dinâmica e dialética, com rupturas, desequilíbrios e constantes reorganizações.

Sendo assim, se partirmos de uma concepção da infância construída histórica e culturalmente, em oposição à infância fixa e essencialista, podemos pensar a criança como um sujeito que compartilha ações significadas desde o momento presente, a partir das quais (re)constrói o mundo no qual vive, ao mesmo tempo em que se subjetiva. É nesse sentido que a Teoria da Atividade pode colaborar na discussão sobre a participação de crianças nas atividades do Orçamento Participativo do município em questão.

 

As crianças e o orçamento participativo

Apresentadas as concepções de participação e de infância que fundamentam a construção da presente discussão, buscaremos, como definido em nosso objetivo, problematizar a participação de crianças no OP municipal à luz da Teoria da Atividade Humana desenvolvida por Leontiev. Conforme apresentado por esse autor, enquanto a atividade dos animais, eminentemente instintiva, permanece nos limites das relações biológicas com a natureza, a espécie humana, qualitativamente distinta, inclui em seu desenvolvimento psíquico as experiências sócio-históricas, das quais se apropria no decurso deste.

Não somos constituídos apenas por nossa herança genética, embora esta tenha um papel fundamental no desenvolvimento das funções psíquicas complexas. Isso implica dizer que somos seres em construção, em constantes transformações de si e do mundo no qual vivemos. Assim, como pontuado, o que denominamos infância em um determinado contexto histórico e cultural não se manterá igual, necessariamente, por todos os tempos e espaços. A infância pode ser, então, compreendida como um fenômeno social construído, assim como sua participação.

Nascida em um mundo material culturalmente constituído, a criança se torna humana e participa da construção da realidade a partir das relações sociais que estabelece em seus contextos de vida, sendo sua relação com esse mundo mediada por sua atividade e seus processos de significação. Nessas relações sociais, apropria-se dos produtos da atividade humana, que encarnam e objetivam as forças e faculdades intelectuais, a história da cultura material e intelectual e as aptidões humanas. A partir de atividades práticas ou cognitivas, o mundo é descoberto pela criança, em relações sempre mediadas por outros seres humanos, pela sociedade.

Essa relação da criança com o mundo dos objetos humanos é caracteristicamente ativa, acontecendo no decurso do desenvolvimento das relações reais do sujeito com o mundo. Relações estas determinadas pelas condições históricas concretas, sociais, nas quais a criança vive e pela maneira com que sua vida se forma nessas condições. Conforme assinala Leontiev (1959/1978):

Cada geração começa, portanto, a sua vida num mundo de objetos e de fenômenos criados pelas gerações precedentes. Ela apropria-se das riquezas deste mundo participando no trabalho, na produção e nas diversas formas de atividade social e desenvolvendo assim as aptidões especificamente humanas que se cristalizaram, encarnaram nesse mundo (pp. 265-266).

É nesse ponto que se faz necessário destacar novamente algumas condições culturais que caracterizam nosso contexto. Vivemos em uma sociedade na qual o adulto (do sexo masculino, branco, heterossexual, ocidental e pertencente às classes economicamente favorecidas) é tomado como centro: de um percurso de desenvolvimento às lógicas socioeconômicas. Historicamente, esse adulto delibera, comanda, define as formas hegemônicas de convivência e organização sociais. A criança, concebida como um ser inferior, incompleto em seu processo de desenvolvimento, é por vezes tida como incapaz de participar das decisões referentes à vida comum, sendo colocada em posições de tutela e proteção. Mas essas posições são compreendidas, a partir de uma perspectiva histórico-cultural, como mutáveis, em movimentos que ocorrem não de forma neutra, mas sim a partir de relações de poder, ideologicamente configuradas.

Entretanto, como já apresentado, a relação da criança com o mundo material, mediada por sua atividade, está imersa na comunicação, tanto prática como verbal, a partir da qual a criança se apropria ativamente da linguagem, dos conceitos, das ideias, além de todos os outros produtos materiais e intelectuais resultantes da atividade humana. Ela intervém e transforma seu contexto, ao apropriar-se deste, ao mesmo tempo em que transforma a si própria.

Leontiev (1959/1978) assinala que o desenvolvimento psíquico da criança está relacionado às mudanças da posição real que ela ocupa nas suas relações e na vida cotidiana com os adultos e com o mundo humano e social que a rodeia. Essas mudanças caracterizam o nível atingido num dado momento de seu desenvolvimento, mas não o determinam. Cada estágio do desenvolvimento psíquico da criança é caracterizado por um tipo de relação desta com a realidade e determinado, por sua vez, pelo tipo de atividade dominante para ela. Essa atividade dominante da qual fala Leontiev (1959/1978) é aquela que condiciona as principais mudanças nos processos psíquicos da criança e as particularidades psicológicas de sua personalidade em um dado estágio do desenvolvimento.

Assim, Leontiev (1959/1978) mostra que, inicialmente, a criança manipula objetos humanos e se relaciona com os adultos a partir de uma comunicação prática, mediada por esses objetos e, pouco a pouco, pela palavra. Ao se inserir no mundo dos objetos humanos, na atividade de jogos, por exemplo, a criança se comunica e reproduz ações desse mundo. Suas necessidades vitais são, inicialmente, todas satisfeitas pelos adultos dos quais depende. Quando a criança entra na escola, todo o seu sistema de relações vitais se reorganiza. Suas obrigações tornam-se objetivamente relativas à sociedade. As relações com as pessoas de seu círculo íntimo perdem seu papel fundamental, sendo sua comunicação determinada por campos de relações mais amplos. Dessa forma, no decorrer do seu desenvolvimento psíquico, a criança passa a perceber que ela tem possibilidades que ultrapassam a relação direta que estabelece com o mundo, na medida em que suas relações sociais tornam-se mais complexas. Mas, o desenvolvimento psíquico depende, na verdade, dos processos reais da vida da criança, ou seja, de suas atividades, externas e internas. E o conteúdo dessas atividades depende das condições históricas concretas em que ocorre o desenvolvimento, cada nova geração encontra prontas certas condições de vida que possibilitam o conteúdo de determinadas atividades. Sendo assim, Leontiev (1959/1978) mostra-nos que:

Assim se explica que a duração e o conteúdo do período de desenvolvimento que se poderia chamar de preparação do homem para a participação na vida social do trabalho, a duração e o conteúdo da educação e do ensino, nem sempre tenham sido os mesmos historicamente (p. 294).

É essa perspectiva de construção que destacamos quando nos referimos à infância e sua participação como historicamente concebidas. O tempo e o conteúdo das atividades ditas infantis transformam-se. Atualmente, as crianças passam mais tempo nos bancos escolares do que na época descrita por Ariès (na França do final da Idade Média e início da Modernidade). Há uma ênfase na infância quando se trata, por exemplo, de fomentar o mercado de consumo. Falamos em direitos e deveres da criança, concebida em sua condição cidadã, mas ao mesmo tempo constatamos situações diversas de exploração, seja através do trabalho, seja da violência sexual ou outras formas de violência. Podemos considerar, portanto, que a infância se desenvolve em condições históricas concretas marcadas por tensões entre tutela e autonomia, proclamação de direitos e violação constante destes, proteção e participação. Dessa forma, contando com as breves considerações tecidas, interessa-nos discutir como a atividade da criança, mediadora de sua relação com o mundo material, pode nos ajudar a compreender a participação infantil no OP municipal.

A atividade humana é definida por Leontiev (1959/1978) como um processo que, ao realizar determinada relação do homem com o mundo, responde a uma necessidade particular própria do homem. Nesse sentido, ele destaca que na atividade humana o seu objeto, aquilo para que tende no seu conjunto, coincide sempre com o seu motivo, o elemento objetivo que incita a atividade. Esse motivo precisa constituir um sentido para aquele que desenvolve a atividade e está associado a sentimentos e emoções.

Seguindo o raciocínio de Leontiev (1959/1978), as ações, partes integrantes de uma atividade, caracterizam-se como processos cujo objeto (ou fim) não coincide com o motivo. Ou seja, para constituir uma atividade é necessário que sejam realizadas algumas ações que, embora tenham um objeto que não coincide com o motivo da atividade, estão ligadas ao conjunto desta pelo sentido que possuem nesse conjunto. É como dividir a atividade em vários pedaços aparentemente independentes, que, porém, quando inter-relacionados, formam a totalidade da atividade.

Já as operações são definidas como os modos de execução de uma ação. São formadas, inicialmente, como ações associadas a um fim, constituindo processos conscientes. No decorrer de sua formação são, de certa forma, automatizadas e passam a compor as ações que, por sua vez, buscam outros fins. As operações tornam-se dependentes das condições em que é dado o fim das ações.

Retomemos, portanto, a participação de crianças no OP municipal. É destacada nesse espaço de participação a necessidade constante de momentos de formação e educação de seus membros. Há todo um empenho em esclarecer as formas de funcionamento do ciclo orçamentário da cidade e do próprio OP. Em relação ao OPCA, é enfatizada a necessidade do emprego de metodologias e linguagens específicas, considerando as diferenças e singularidades dos segmentos infância e adolescência. Dessa forma, são priorizadas atividades de caráter lúdico, incluindo oficinas, dinâmicas, jogos, brincadeiras, dramatizações, revistas e cartilhas. Poderíamos inferir que tais iniciativas contribuem para que os temas em questão na participação no OP possam ser acessados e apropriados pelos seus participantes, podendo constituir-se em uma atividade mediadora.

O OP, ao tratar do orçamento do município, aborda conteúdos e procedimentos nem sempre presentes no cotidiano de quem participa. São assuntos que parecem fazer parte de um universo adulto, muitas vezes de pouco acesso às crianças. Trata-se, no entanto, de informações e conhecimentos imprescindíveis no processo de participação. Por essa razão, para que a participação seja efetivada, é necessário que haja a apropriação desses conhecimentos. E ainda, como podemos afirmar com Werscht (1999), caracteriza essa atividade mediadora o domínio que se tem sobre o conteúdo envolvido. Conforme destacado por Bordenave (1994), quando falamos de participação, é importante atentar para o grau de controle dos membros sobre as decisões empreendidas e a importância das decisões de que se pode participar. É possível que esses aspectos sejam precisamente o que justifica a significativa atenção dispensada aos processos educativos e de formação no OP.

É importante também assinalar que a atividade empreendida na apropriação dos objetos do mundo material está implicada com a produção de sentidos acerca dessa atividade. Em outras palavras, a criança não só necessita apropriar-se dos fenômenos em voga na sua atividade participativa como é imperativo que essa atividade envolva algum sentido para a criança, sentido este relacionado às suas maneiras de compreender o mundo do qual faz parte. Em que medida os conteúdos tratados nas discussões do OPCA estão sendo efetivamente apropriados pelas crianças que delas participam e qual o sentido que fazem para elas são questionamentos que se põem a fim de compreender o modo de participação das crianças nesses espaços.

Outro aspecto importante para a nossa reflexão relaciona-se com a construção de espaços de participação centrados eminentemente na fala, como destacado por Soares (2009) e mencionado no início deste artigo. A exclusividade da fala pode restringir e excluir a participação democrática. Seu domínio pode ser compreendido, retomando Leontiev (1959/1978), como uma ação necessária à realização da atividade de expor em assembleias opiniões e posicionamentos acerca do que está sendo discutido e decidido. Se não há uma apropriação por parte da criança da ação da retórica, sua participação fica comprometida. E ainda, se se trata de temas ainda não acessados pelas crianças, conforme as condições culturais nas quais vivem, as tentativas de participação estarão fadadas ao fracasso. Recairemos na diferenciação que Leontiev (1959/1978) faz entre motivos "apenas compreendidos" (aqueles que caracterizam uma ação) e motivos "que agem realmente" (aqueles que incitam uma atividade), quando trata dos motivos que transformam uma ação em atividade.

Nesse sentido, compreendendo o desenvolvimento psíquico da criança pela apropriação da experiência acumulada pela humanidade ao longo de sua história social, em um processo ativo, Leontiev (1959/1978) assinala que:

Para se apropriar de um objeto ou um fenômeno, há que efetuar a atividade correspondente à que é concretizada no objeto ou fenômeno considerado. Assim, dizemos que uma criança se apropria de um instrumento, isto significa que aprendeu a servir-se dele corretamente e já se formaram nela as ações e operações motoras e mentais necessárias pra esse efeito (p. 321).

Em outras palavras, a criança precisa aprender a servir-se corretamente dos modos de mediação compartilhados nas práticas sociais de participação, em concordância com a formação das ações e operações motoras e mentais necessárias para esse efeito. De outra maneira, as crianças seriam obrigadas a realizar operações não integradas em ações, que por sua vez não podem ser integradas em atividade, porque o objetivo e o motivo não coincidem. Haveria, portanto, uma participação inócua e iníqua no que diz respeito à relação desta com o processo de subjetivação infantil.

A propósito, parece simples tratar a participação de crianças no OP restringindo-a a uma questão de apropriação. É preciso reforçar que essa apropriação da produção humana, a partir da atividade mediadora, se dá de forma ativa e implicada em contextos culturalmente definidos. Tomemos neste momento a noção de cultura como "palco de negociações", como é colocada por Rego (1995). Nesse palco estão em movimento uma diversidade de discursos e práticas sociais constituindo os lugares a serem ocupados por crianças e adultos, lugares estes mediados semiótica e axiologicamente. É nesse palco em movimento que podemos construir e reconhecer o que é ser criança e ser adulto, sendo estes concebidos nas relações que estabelecem.

Nesse sentido, é importante pontuar que a criança se constitui como tal nas interações sociais mediadas que estabelece no mundo material, simbólica e ideologicamente construído, do qual faz parte. É nesse mundo que participa, ou seja, em uma sociedade adultocêntrica, sustentada por pilares da racionalidade do homem branco, colonizador, que então falamos de participação de crianças. No caso das atividades do OP municipal, embora o espaço de participação das crianças seja assegurado baseando-se nos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (1990/2005) relativos à atribuição de sua condição cidadã e sujeito de direitos, as relações já estão minadas por uma descrença nas capacidades da criança, na medida em que os delegados adultos discordam desse espaço em nome de pressupostos psicológicos que reafirmam a sua inferioridade ou sua não capacidade de julgamento pleno.

 

Considerações finais

Destacamos, portanto, nessa tentativa de problematização, o papel da cultura na construção das práticas sociais. Não nos referimos à cultura como determinante dessas práticas, mas enfatizamos os entraves e obstáculos que podem dela originar na efetivação de atividades como a participação de crianças no OP municipal. Mesmo que às crianças sejam destinados espaço e voz nas atividades do OP, sua participação parece ser, por vezes, barrada por questões culturais. Compreendendo a cultura como produção humana, podemos ressaltar possibilidades de construção de novos discursos e práticas, os quais favoreçam de fato essa participação.

Tal fato pode ser também relacionado à questão da não efetivação dos direitos concedidos às crianças. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989/2009), a Constituição Federal Brasileira (1988/1989) e o ECA (1990/2005) reservam um lugar especial destinado às crianças e ao reconhecimento de seus direitos e deveres. No entanto, como destaca Demartini (2006), há um paradoxo na própria concepção de infância, na medida em que existem tantos direitos constituídos legalmente diante de realidades de negação desses mesmos direitos, vividas por tantas crianças. Por que os direitos e deveres de crianças e adolescentes brasileiros, considerados avançados na forma da lei, não se efetivam? Deparamo-nos novamente com questões que vão além do prescrito, porque precisam ser conectadas com a realidade histórica e sociocultural em que se inscrevem. Não basta apenas promover convencionalmente direitos e deveres. Há toda uma realidade social na qual esses direitos podem não encontrar espaço de repercussão.

Destacamos ainda, como fundamental, que as políticas públicas sejam realizadas a partir das pessoas que dela se beneficiarão e a constituirão. O desenvolvimento das atividades mediadoras implica nessa produção de sentido: é necessário o reconhecimento das demandas, das dinâmicas de organização, dos obstáculos e das formas de convivência envolvidas no cotidiano das pessoas para quem essas políticas públicas serão destinadas.

No que tange às crianças, Sólon, Costa e Rossetti-Ferreira (2008), referindo-se à pesquisa com esse segmento social, dão ênfase à necessidade de reconhecer que as crianças são potencialmente vulneráveis à relação de poder desigual entre pesquisador adulto e criança participante, o que leva a crer que é necessário refletir sobre o motivo de considerar a voz da criança, também no concernente ao processo de participação em espaços de decisão como o OP. Ou seja, atentar para que a razão de se incluir a criança seja realmente garantir o fortalecimento dos aspectos que irão beneficiar os interesses da própria criança. Reforçam, portanto, que escutar as crianças, ouvi-las e agir sobre o que falam são três atividades diferentes e que talvez poucas pessoas tenham agido eficientemente sobre o que as crianças tenham dito.

Podemos finalizar, por ora, com a afirmação de que a Teoria da Atividade nos possibilita pensar em uma participação das crianças dependendo da atividade que se tenha em conta e, portanto, das ações e operações empreendidas para o desenvolvimento dessa atividade, atentando para os constructos culturais em movimento no contexto da atividade humana. Para isso, é necessário escutar as próprias crianças e reconhecer seus reais interesses e preocupações. Dessa forma, podemos colocar que a participação infantil é possível quando se trata de ações às quais as crianças possam estar apropriadas ou possam desenvolver essa apropriação. Não há, portanto, porque impedir sua participação e, consequentemente, sua contribuição para a construção do mundo humano. Até porque, a partir da leitura de mundo discutida neste artigo, ela participará dessa construção de qualquer forma.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Lis Albuquerque Melo
lis.albuquerque@hotmail.com
Veriana de Fátima Rodrigues Colaço
verianac@uol.com.br
Jesus Garcia Pascual
garciapascual2001@yahoo.com.br

Submetido em: 18/03/2011
Aceito em: 14/11/2011

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