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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.3 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

Relacionamento conjugal e temperamento de crianças: uma revisão da literatura

 

Marital relationship and child temperament: a review of literature

 

Relación conyugal y temperamento de los niños: una revisión de la literatura

 

 

Beatriz SchmidtI; Maria Aparecida CrepaldiII; Mauro Luis VieiraIII; Carmen Leontina Ojeda Ocampo MoréIV

IMestranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis. Santa Catarina. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis. Santa Catarina. Brasil
IIIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis. Santa Catarina. Brasil
IVDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis. Santa Catarina. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do presente trabalho foi analisar a produção científica que aborda as associações entre temperamento dos filhos e relacionamento conjugal dos pais. Realizou-se o levantamento das produções a partir de buscas em bases de dados nacionais e internacionais, por meio de descritores preestabelecidos. O período de publicação dos documentos foi delimitado entre os anos de 1980 e 2010. Os estudos adotados para análise compreenderam artigos científicos. Categorias foram criadas para analisar esses estudos. Todos os trabalhos analisados se referiam a pesquisas empíricas, com abordagem quantitativa dos dados. A maior parte dos trabalhos enfatizou os impactos do temperamento dos filhos no relacionamento conjugal dos pais. Discute-se a importância de considerar o contexto familiar nas pesquisas em psicologia, haja vista as inter-relações entre os subsistemas familiares.

Palavras-chave: Temperamento; Relações conjugais; Conflito conjugal; Relações familiares.


ABSTRACT

The aim of this study was to review the scientific production that addresses the associations between children´s temperament and the parents´ marital relationship. A survey of the scientific production in national and international databases was conducted using pre-established descriptors. The research was restricted to scientific articles published from 1980 to 2010. Categories were created to analyze these studies. All the work analyzed employed empirical research with quantitative data analysis. Most of the articles emphasized the impact of the children´s temperament on the parents´ marital relationship. The importance of considering the family context in psychological research is discussed, given the interrelationships between family subsystems.

Keywords: Temperament; Marital relations; Marital conflict; Family relations.


RESUMEN

El presente trabajo tuvo por objetivo analizar la producción científica que aborda las asociaciones entre temperamento de los hijos y la relación conyugal de los padres. Se realizó el levantamiento de las producciones a partir de búsquedas en bases de datos nacionales e internacionales, por medio de descriptores preestablecidos. El período de publicación de los documentos fue delimitado entre los años 1980 y 2010. Los estudios adoptados para análisis comprendieron artículos científicos, creándose categorías para analizarlos. Todos los trabajos revisados se referían a investigaciones empíricas, con abordaje cuantitativo de los datos. La mayor parte de los estudios enfatizó los impactos del temperamento de los hijos en la relación conyugal de los padres. Se discute la importancia de considerar el contexto familiar en las investigaciones en psicología, en vista de las interrelaciones entre los subsistemas familiares.

Palabras-clave: Temperamento; Relaciones conyugales; Conflicto conyugal; Relaciones familiares.


 

 

A família, considerada contexto primário de socialização dos indivíduos, exerce um importante papel no processo de desenvolvimento humano (Kreppner, 2003). De acordo com o pensamento sistêmico, é possível compreendê-la como um sistema aberto em constante transformação, ou seja, como um organismo complexo que enfrenta uma série de tarefas desenvolvimentais, necessitando, continuamente, de adaptação e reestruturação (Minuchin, 1982).

O sistema familiar é composto por subsistemas que contribuem para que a família se diferencie e realize suas funções. Os indivíduos podem ser considerados subsistemas, da mesma forma que as díades constituídas por mãe-filho, pai-filho, esposa-esposo, irmã(o)-irmã(o). Os membros de uma família podem pertencer, ao mesmo tempo, a diferentes subsistemas, nos quais aprendem diferentes habilidades e exercem diferentes níveis de poder. O subsistema conjugal, por exemplo, é constituído por dois adultos que se unem com o objetivo comum de formar uma família. Com o nascimento do primeiro filho, um novo nível de formação familiar é alcançado, formando o subsistema parental (Minuchin, 1982).

Os subsistemas familiares se relacionam e se influenciam mutuamente. De acordo com Dessen e Braz (2005a), parece haver um consenso na literatura a respeito da importância que exerce a relação marital no desenvolvimento da criança. Discorrendo sobre o estudo da família na perspectiva do desenvolvimento humano, essas autoras apontam como tendência atual a abordagem dos subsistemas em pesquisas cientificas; ou seja, o foco de interesse parece ir além das díades pai-criança e mãe-criança. Na pesquisa com famílias, atualmente, enfatiza-se a bidirecionalidade das influências genitores-criança, considerando-se as relações estabelecidas pelos cônjuges na perspectiva do subsistema conjugal e parental.

Há uma ampla difusão da ideia de que a relação conjugal e a relação parental se influenciam mutuamente, ambas influenciando o desenvolvimento infantil (Villas Boas, Dessen & Melchiori, 2010). O relacionamento conjugal caracteriza-se como importante na predição do desenvolvimento de crianças. Uma relação conjugal satisfatória, em que os cônjuges se apoiam mutuamente, tende a favorecer o estabelecimento de relações parentais de boa qualidade (Cummings, Kouros & Papp, 2007; Dessen & Braz, 2005b). Por outro lado, a literatura científica aponta para os impactos negativos das relações conjugais insatisfatórias, permeadas por situações de conflito conjugal, no desenvolvimento de crianças (Benetti, 2006; Villas Boas, Dessen & Melchiori, 2010; Wong, Mangelsdorf, Brown, Neff, & Schoppe-Sullivan, 2009). A relação conjugal insatisfatória ou conflituosa gera desequilíbrio emocional e irritação nos cônjuges; dessa forma, como genitores, eles se tornam menos sensíveis e atenciosos às suas crianças (Dessen & Braz, 2005b).

As relações conjugais insatisfatórias se associam a problemas físicos e psicológicos em crianças, como problemas de saúde, dificuldades no processo ensino-aprendizagem, depressão, baixa competência social, transtornos de conduta (Gottman, 1998) e problemas de comportamento externalizante e internalizante (Cummings, Kouros & Papp, 2007). No que diz respeito aos comportamentos externalizantes, há evidências de que se tratam de indicadores de dificuldades futuras quando apresentados por crianças menores de seis anos (Alvarenga & Piccinini, 2007; Patterson, Degarmo & Knutson, 2000). Algumas características individuais estão também relacionadas ao risco de desenvolvimento de psicopatologias, como é o caso do temperamento, que consiste em uma importante variável individual na compreensão de trajetórias desenvolvimentais de crianças, associando-se a desfechos adaptativos ou desadaptativos (Klein, 2009; Klein & Linhares, 2007).

Nos estudos sobre temperamento é possível identificar três principais abordagens teórico-conceituais (Klein, 2009; Klein & Linhares, 2007). A primeira delas se refere à pesquisa iniciada em 1956 por Thomas e Chess, denominada New York Longitudinal Study (NYLS). Nessa perspectiva, o temperamento foi entendido como derivado de comportamentos apresentados pela pessoa num dado momento de sua vida, resultantes de influências presentes e passadas, que modificam e modelam esses comportamentos em um processo de interação constante (Klein & Linhares, 2007). Nesse caso, a concepção é a de que o temperamento se refere à forma (estilo) com que as pessoas se comportam, sendo isso diferente de o que elas fazem e com que habilidade o fazem. Assim, essa abordagem teórica compreende o temperamento como padrões estáveis em como os comportamentos são apresentados pelos sujeitos (Alvarenga, 2004).

Foram identificadas, a partir do NYLS, nove dimensões do temperamento, a saber: nível de atividade; ritmicidade; aproximação ou afastamento; adaptabilidade; limiar de responsividade; intensidade de reação; qualidade de humor; distratibilidade; período de atenção e persistência. Essas dimensões fundamentam a classificação do temperamento em três principais tipos, nos quais estariam incluídos dois terços de todas as crianças. O primeiro deles é o "temperamento fácil", que se caracteriza por funcionamento biológico regular, pouca intensidade nas reações, respostas positivas diante de novos estímulos, adaptabilidade rápida a situações novas e humor predominantemente positivo. O segundo tipo diz respeito ao "temperamento difícil", que se relaciona à irregularidade nas funções biológicas, adaptabilidade lenta ou inadaptabilidade às mudanças, tendência a se afastar e expressões intensas de humor, geralmente negativas. O terceiro e último tipo é definido como "temperamento de aquecimento lento", que se refere a crianças caracterizadas por uma combinação de respostas negativas a novos estímulos, podendo gradualmente apresentar adaptabilidade lenta depois de repetidos contatos (Muris & Ollendick, 2005).

Outra abordagem teórico-conceitual de estudo do temperamento se refere a um modelo composto por três dimensões, descrito como Emocionalidade, Atividade e Sociabilidade (Buss & Plomin, 1984, citado por Muris & Ollendick, 2005). A abordagem proposta por Buss e Plomin se diferencia daquela proposta por Thomas e Chess no sentido de que as características temperamentais influenciam o comportamento; contudo, não se constituem em seus determinantes diretos (Alvarenga, 2004).

A terceira abordagem teórico-conceitual aqui contemplada é a proposta por Rothbart (2004), que define temperamento como diferenças individuais com base constitucional na reatividade e autorregulação, observadas nos domínios de emocionalidade, atividade motora e atenção, sendo influenciadas ao longo do tempo pela hereditariedade, maturação e experiência (Rothbart, 2004; Rothbart, Evans & Ahadi, 2000). Segundo Rothbart, Ahadi, Hershey & Fisher (2001), as duas primeiras abordagens apresentadas assumem que as diferenças individuais do temperamento refletem apenas características de respostas comportamentais. A terceira abordagem vai mais além por considerar características afetivas, como a qualidade e a intensidade da reação emocional. Com fulcro nesse modelo teórico, é possível conceber 15 dimensões do temperamento: antecipação positiva; prazer de alta intensidade; sorriso/riso; nível de atividade; impulsividade; timidez; desconforto; medo; raiva/frustração; tristeza; controle inibitório; focalização da atenção; prazer de baixa intensidade; sensibilidade perceptual; capacidade de se acalmar/reatividade decrescente (Klein, 2009).

Concebe-se, com base nessa abordagem teórico-conceitual, que o temperamento é influenciado ao longo do tempo pela hereditariedade, maturação e experiência (Rothbart, 2004; Rothbart & Ahadi, 1994). Dessa forma, é possível considerar que o contexto no qual uma pessoa está inserida pode influenciar suas características temperamentais. No que diz respeito às relações entre contexto familiar e temperamento, Wachs (2002) afirma que são recentes - uma vez que começaram a ser desenvolvidas a partir da década de 1980 - e pouco numerosas as pesquisas que enfocam o comportamento dos pais como um fator moderador que atua no sentido de modificar o temperamento dos filhos. Por outro lado, estudos apontam também para os efeitos do temperamento dos filhos no relacionamento conjugal dos pais, destacando que características vinculadas ao "temperamento difícil" das crianças estão associadas a prejuízos na qualidade da conjugalidade (Burney & Leerks, 2010; Cook, Schoppe-Sullivan, Buckley, & Davis, 2009; Wong et al., 2009).

Constata-se que trabalhos que têm como objeto as inter-relações entre temperamento e ambiente familiar são mais escassos e, também, atuais. Tal fato pode ser explicado pela ênfase que, prioritariamente, as tradicionais concepções teórico-conceituais sobre temperamento conferem às bases biológicas do mesmo. Disso resulta em um grande número de estudos sobre as influências bioquímicas, genéticas e neurais nas diferenças individuais do temperamento (Wachs, 2002). Em virtude da natureza dessas pesquisas, as abordagens metodológicas adotadas para estudo do temperamento são, prioritariamente, quantitativas. Ademais, a produção acerca da temática ainda é incipiente no Brasil, sendo mais expressiva no contexto internacional.

No que tange às estratégias de medida do temperamento de crianças em pesquisas científicas, as mais usuais são questionários aplicados aos pais e observações, tanto as realizadas nos domicílios das famílias quanto em laboratório (Rothbart & Hwang, 2002). Sobre os questionários como instrumentos de mensuração, Putnam & Rothbart (2006) apontam que as mudanças desenvolvimentais ocorridas na infância criam dificuldades para medir o temperamento. Isso porque comportamentos indicativos de determinada característica em uma idade precoce, por exemplo, não servem para medir a mesma característica em crianças mais velhas. Dessa forma, é importante que se utilizem diferentes amostras no processo de validação dos instrumentos, visando garantir que os itens sejam válidos para a faixa etária prevista (Putnam & Rothbart, 2006).

Uma característica observável no campo de estudo do temperamento diz respeito à sua abordagem como sinônimo de personalidade (Guzzo, Riello, Primi, Serrano, Ito & Pinho, 2004; Hall, Lindzey & Campbell, 2000). Há, contudo, diferenças entre os dois conceitos. A personalidade tem sido definida como padrões de pensamento e comportamento que mostram consistência nas situações e estabilidade ao longo do tempo, afetando a adaptação do indivíduo ao ambiente interno e social. O temperamento desempenha um papel relevante na formação da personalidade, sendo concebido como um de seus domínios. Em adição às disposições comportamentais, a personalidade inclui outras características, como autoconceito, percepção sobre outras pessoas, valores pessoais e morais, expectativas, defesas, estratégias de enfrentamento, atitudes e crenças (Rothbart, Ellis & Posner, 2004).

Mesmo que alguns autores apontem que a hereditariedade parece desempenhar um papel mais importante no temperamento do que na personalidade (Hall et al., 2000), isso não exclui as influências que a maturação e a experiência provocam sobre o temperamento (Klein & Linhares, 2007). Pensa-se, assim, que as relações estabelecidas no contexto familiar são capazes de provocar influências sobre o temperamento (Schoppe-Sullivan, Mangelsdorf, Brown & Sokolowski, 2007; Wachs, 2002; Whiteside-Mansell, Bradley, Casey, Fussell, & Conners-Burrow, 2009). Da mesma forma, o temperamento dos filhos pode também influenciar as relações familiares, destacando-se as conjugais e parentais (Burney & Leerks, 2010; Cook et al., 2009; Wong et al., 2009). Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo analisar a produção científica nacional e internacional que aborda as associações entre temperamento dos filhos e relacionamento conjugal dos pais.

 

Método

A pesquisa realizada compreendeu as seguintes fases: (1) levantamento da produção científica em base de dados; (2) leitura dos resumos e seleção dos artigos relacionados ao objetivo do presente estudo; (3) leitura dos artigos obtidos; (4) definição das categorias de análise; e por fim (5) análise e articulação dos resultados obtidos nos trabalhos avaliados. O levantamento de dados foi realizado a partir de buscas em plataformas de pesquisa nacionais e internacionais. Os sítios utilizados nacionalmente foram a Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e a Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia Brasil (BVS-Psi), ambos de acesso livre. As bases de dados internacionais pesquisadas foram PubMed, de acesso livre, e APA PsycNET, de acesso restrito.

Optou-se por selecionar os descritores utilizados nas estratégias de busca, inicialmente, na Terminologia em Psicologia da BVS-Psi. Os termos pré-selecionados para a pesquisa foram temperamento, relações conjugais e conflito conjugal. Na busca pelo descritor temperamento, observou-se que o sítio indicava a utilização do termo personalidade, como se os conceitos fossem sinônimos. Considerando as diferenças conceituais entre temperamento e personalidade, já brevemente discutidas na introdução deste artigo, buscou-se o termo temperamento no sítio dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), da BVS, onde foi possível encontrá-lo.

Após a seleção dos descritores, procedeu-se à seleção das estratégias de busca, considerando versões em língua portuguesa, inglesa e espanhola. A pesquisa foi realizada pela combinação de dois termos, sempre no mesmo idioma - um referente ao temperamento e outro ao conflito conjugal ou relação conjugal. Recorreu-se ao operador lógico "AND" para combinação dos descritores utilizados no rastreamento das publicações. As estratégias de busca, portanto, foram as seguintes: (1) temperamento AND conflito conjugal; (2) temperament AND marital conflict; (3) temperamento AND conflicto marital; (4) temperamento AND relações conjugais; (5) temperament AND marital relations; (6) temperamento ANDrelaciones conyugales.

Na busca pelos trabalhos foram selecionadas todas as bases de dados disponíveis nas plataformas de pesquisa. O período de publicação dos documentos foi delimitado entre os anos de 1980 e 2010. Os estudos adotados para a análise compreenderam artigos científicos, dissertações e teses produzidas tanto nacional quanto internacionalmente. Os documentos foram selecionados e importados para o software End Note X4.

Após esse processo ocorreu a avaliação dos resumos e a retirada de trabalhos duplicados (isto é, disponibilizados em mais de uma base de dados), bem como a exclusão de estudos não concernentes ao objetivo do presente artigo, ou seja, aqueles que não apresentavam como foco de análise as inter-relações entre o temperamento dos filhos e o relacionamento conjugal dos pais. Sendo assim, foram retirados da análise, por exemplo, documentos que abordavam os impactos negativos do conflito conjugal no desenvolvimento infantil, sem enfocar o temperamento da criança, ou que tratavam de características mais amplas do contexto familiar, como famílias em situação de risco psicossocial e possíveis associações com comportamento social da criança. Foram excluídas, ainda, publicações que se referiam a editoriais de revistas científicas, livros, resenhas ou capítulos de livro e, também, referências que não apresentavam resumo. Quando no resumo não estava suficientemente claro se o estudo referia-se, de fato, às possíveis relações entre temperamento e conflito conjugal ou relacionamento conjugal, o texto era consultado na íntegra, sempre que disponível.

A partir das buscas nas plataformas de pesquisa foram encontrados, inicialmente, 238 trabalhos entre artigos publicados em periódicos científicos, teses, livros e capítulos de livro. Dessas publicações, 199 encontravam-se na APA PsycNET, 33 na BVS e seis na PubMed. Nenhuma publicação foi encontrada na BVS-Psi. Com a exclusão dos trabalhos que apareciam em duplicidade, restaram 181 documentos. Desse total, foram retirados 24 que apresentavam apenas a referência, sem a contemplação do resumo. Dos 157 trabalhos restantes, 21 foram identificados como livros ou capítulos de livro, dois como resenha e um como editorial, sendo excluídos, portanto, da análise. Foram lidos, por fim, 133 resumos (102 artigos científicos e 31 teses). Apenas um dos trabalhos lidos referia-se a uma produção nacional (Frizzo & Piccinini, 2005). Os demais 132 estudos consistiam em produção internacional, tendo seus resumos publicados em língua inglesa.

Dos estudos cujo resumo foi lido, 10 estavam diretamente relacionados à temática que a pesquisa objetivava estudar. Todos esses estudos se referiam a artigos científicos publicados em periódicos. Somente um dos 10 documentos não pôde ser lido integralmente, por se tratar de um artigo escrito em língua persa. Do referido trabalho utilizaram-se, portanto, apenas as informações contidas no resumo. Os demais nove artigos foram lidos na íntegra.

Na penúltima etapa do estudo foram definidas categorias de análise com base nas estratégias metodológicas utilizadas nos artigos: método (observação, experimentação, levantamento de dados e combinação de dois ou mais métodos); tipo de estudo (transversal ou longitudinal); técnicas utilizadas (observações diretas, entrevistas, questionários/escalas ou combinação de duas ou mais técnicas); análise de dados (qualitativa ou quantitativa); faixa etária dos participantes cujo temperamento foi avaliado; ano de publicação do documento e periódico em que foi publicado. Por fim, foram estabelecidas ainda categorias de análise que congregaram as variáveis envolvidas nas pesquisas e, também, seus principais resultados, realizando-se uma articulação entre as temáticas abordadas. As categorias definidas nessa última etapa foram: (1) Parentalidade, Conjugalidade e Temperamento; (2) Conflito Conjugal e Temperamento; (3) Gênero, Ordem de Nascimento, Conjugalidade e Temperamento.

 

Resultados

Constatou-se, nos 10 estudos relacionados ao objetivo da pesquisa (qual seja, relacionamento conjugal e temperamento infantil), que um dos artigos foi publicado no final da década de 1980, tendo sido os outros nove publicados a partir de 2000. Esse dado indica que o interesse por estudos sobre a temática é recente, uma vez que a maioria das publicações (nove) ocorreu na última década.

No que diz respeito às revistas nas quais os trabalhos foram publicados, verificou-se que os periódicos Journal of Family Psychology e Infant Behavior & Development publicaram, respectivamente, dois e três artigos. As demais publicações distribuíram-se igualmente em outros cinco periódicos (uma publicação por periódico), como pode ser observado na Tabela 1. É possível identificar, portanto, que não parece haver uma revista que tenha se destacado pela publicação de trabalhos sobre relacionamento conjugal e temperamento de crianças.

 

 

Com relação às características dos participantes, identificou-se que em oito trabalhos foram pesquisados pai, mãe e filho(s), ou seja, famílias. Em duas pesquisas participaram díades mãe-filho(a), sendo uma delas mãe-criança e outra mãe-adolescente. Com relação à idade dos filhos, sujeitos-alvo das avaliações sobre temperamento, identificou-se que a maioria das pesquisas referiu-se ao temperamento de crianças de zero a 14 meses (seis trabalhos). Crianças em idade pré-escolar, escolar e adolescentes foram enfocadas, cada qual, em um trabalho. Um dos artigos investigou crianças no período pré-escolar e escolar.

O enfoque de todos os estudos avaliados foi classificado na categoria Empírico-pesquisa. No que diz respeito ao tipo de estudo, houve igual distribuição entre as categorias Transversal e Longitudinal. Todos os estudos longitudinais foram desenvolvidos junto a famílias cujos sujeitos-alvo de avaliação do temperamento eram crianças de até 14 meses de idade (bebês) ao final da coleta de dados, caracterizando-se, portanto, como longitudinais de curto prazo. A análise de dados foi Quantitativa em todos os trabalhos. O método predominante foi o Levantamento de dados, seguido por Levantamento de dados e Observação. As técnicas mais utilizadas foram Questionários/Escalas, seguidas da combinação de Questionários/Escalas e Observação. Esses dados podem ser observados na Tabela 2.

 

 

Em seis dos trabalhos, para medida do temperamento questionários desenvolvidos com base na abordagem teórico-conceitual proposta por Mary Rothbart foram utilizados: o Infant Behavior Questionnaire (IBQ - Rothbart, 1981) e o Revised Infant Behavior Questionnaire (IBQ-R - Gartstein & Rothbart, 2003), direcionados a crianças de três a 12 meses foram utilizados, cada qual, em dois estudos. Além disso, outros dois trabalhos adotaram a Very Short Form of the Children´s Behavior Questionnaire (Putnam & Rothbart, 2006), elaborada para crianças de três a sete anos de idade e o Early Adolescent Temperament Questionnaire (EATQ-R - Ellis & Rothbart, 2001), para a faixa etária entre nove e 15 anos.

Os demais quatro trabalhos analisados utilizaram instrumentos baseados na abordagem do temperamento proposta por Thomas e Chess: em dois deles foi empregado o Infant Characteristics Questionnaire (ICQ), elaborado por Bates, Freeland e Lousbury (1979) e direcionado a crianças com idade entre quatro e seis meses. Em outros dois trabalhos utilizou-se a Temperament Assessment Batery (TAB - Martin, 1984, citado por Stoneman, Brody. & Burke, 1989) apropriada para crianças de três a nove anos e o Revised Dimensions of Temperament Survey (DOTS-R - Windle, 1992; Windle & Lerner, 1986), para adolescentes.

Os resultados obtidos a partir da leitura e análise dos artigos componentes da amostra foram agrupados nas seguintes categorias: (1) Parentalidade, Conjugalidade e Temperamento; (2) Conflito Conjugal e Temperamento; (3) Gênero, Ordem de Nascimento, Conjugalidade e Temperamento. São apresentadas, a seguir, cada uma dessas categorias.

Parentalidade, Conjugalidade e Temperamento

Dos estudos analisados, seis tiveram como objeto de pesquisa características do relacionamento parental, conjugal e suas relações com o temperamento dos filhos. Constatou-se, em três desses estudos, que o foco de análise foi a coparentalidade em associação à conjugalidade e ao temperamento (Burney & Leerks, 2010; Cook et al., 2009; Schoppe-Sullivan et al., 2007). A coparentalidade se refere à divisão de liderança por parte de pai e mãe, na qual ambos se apoiam nos papéis parentais, ou seja, de "chefes" de família (Frizzo et al., 2005). Dessa forma, diz respeito ao envolvimento mútuo e partilhado dos pais na formação, educação e definições acerca da vida dos filhos (Lamela, Nunes-Costa & Figueiredo, 2010).

Constatou-se uma tendência, nos casais caracterizados por menor qualidade conjugal que participaram da pesquisa desenvolvida por Schoppe-Sullivan et al. (2007), de baixa adaptabilidade da criança (temperamento) e menores índices de coparentalidade. Casais com alta qualidade conjugal mostraram bom comportamento de coparentalidade quando confrontados com uma criança cujo temperamento se caracterizava por emocionalidade negativa, enquanto casais com menor qualidade conjugal mostraram pior comportamento de coparentalidade na mesma situação. A qualidade do relacionamento conjugal parece, portanto, predizer o comportamento de apoio na coparentalidade. Além disso, a interação entre baixa adaptabilidade da criança e qualidade da relação conjugal se aproximou da significância.

Identificou-se que pais de crianças que apresentavam temperamento caracterizado como "difícil" demonstraram comportamento de coparentalidade mais fraco, o que se associou a desdobramentos no relacionamento conjugal (Burney; Leerks, 2010; Cook et al., 2009). No estudo desenvolvido por Cook et al. (2009) o ajustamento conjugal moderou as relações entre crianças com afeto negativo e o comportamento de apoio na coparentalidade de seus pais. A associação entre afeto negativo da criança e ajustamento conjugal consistiu em um preditor significativo da coparentalidade de apoio.

Resultados semelhantes foram obtidos na pesquisa desenvolvida por Burney & Leerks (2010). Verificou-se uma associação positiva na percepção do pai sobre a alta reatividade da sua criança, coparentalidade negativa e baixa qualidade na relação conjugal, mas apenas quando a baixa qualidade na relação conjugal já era observada no período pré-natal. Dessa forma, casais insatisfeitos com seus relacionamentos teriam maior dificuldade para lidar com crianças que apresentam alta reatividade como característica do temperamento, uma vez que eles possuem, em adição às características da criança, problemas a serem resolvidos com seus companheiros.

Assim como a coparentalidade, constatou-se que o engajamento do pai nos cuidados com a criança varia em função do temperamento. Nesse sentido, o temperamento difícil da criança pode se associar ao menor engajamento do pai, desencadeando estresse e desapontamento à mãe, o que influencia o relacionamento conjugal, no sentido de prejudicá-lo (Wong et al., 2009).

O apontamento de que, potencialmente, crianças com características de temperamento ligadas à emocionalidade negativa poderiam acarretar maiores níveis de estresse à relação conjugal também foi realizado no estudo de Leve, Scaramella e Fagot (2001). Esses autores indicaram, ainda, que pais e mães que avaliaram sua criança como apresentando mais limitações para superar experiências estressantes relataram menos prazer na rotina de cuidados maternos e paternos.

As características temperamentais da criança ligadas à melhor regulação e menor afeto negativo correlacionaram-se positivamente com a qualidade do relacionamento conjugal, de acordo com os resultados obtidos por Mehall, Spinrad, Eisenberg e Gaertner (2009). Com base nessa pesquisa, verificou-se que as disposições de temperamento da criança demonstraram influenciar a relação conjugal e, também, a percepção dos pais acerca de outras relações familiares. Quando a criança exibe alta negatividade, a visão dos pais sobre o casamento tende a ser mais negativa.

Conflito Conjugal e Temperamento

Três estudos tiveram como foco as inter-relações entre conflito conjugal e temperamento dos filhos (Crockenberg, Leerkes & Lekka, 2007; Davies & Windle, 2001; Gharehbaghy & Aguilar-Vafaie, 2009). O conflito conjugal correlacionou-se positivamente com características ligadas ao temperamento difícil e negativamente com características ligadas ao temperamento fácil (Crockenberg et al., 2007; Gharehbaghy & Aguilar-Vafaie, 2009).

O relacionamento conjugal conflituoso e permeado por interações agressivas foi preditor de retraimento na criança, sugerindo, portanto, que elas são sensíveis aos aspectos emocionais do contexto. Crianças expostas a elevados níveis de discussões conjugais pareceram apresentar maiores limitações para superar experiências estressantes, estando o conflito conjugal ligado à sua pobre regulação emocional. Crockenberg et al. (2007) ponderam que, em virtude de as medidas de agressão conjugal da pesquisa terem sido obtidas no período pré-natal, elas não poderiam ser uma resposta ao temperamento infantil; assim, a direção da influência parece ser primariamente dos pais para os filhos, e não o contrário.

Ademais, o conflito conjugal e o temperamento estiveram também associados a desdobramentos negativos no desenvolvimento dos filhos. No trabalho de Gharehbaghy e Aguilar-Vafaie (2009), o conflito conjugal e o temperamento foram preditores de sintomas psicopatológicos e de saúde nas crianças. Já na pesquisa desenvolvida por Davies e Windle (2001), constatou-se que associações entre conflito conjugal, delinquência e sintomas depressivos em adolescentes foram moderadas pelas diferenças individuais do temperamento. Os resultados indicaram que características concernentes ao temperamento difícil estão associadas à maior vulnerabilidade aos efeitos do conflito conjugal, sendo as características referentes ao temperamento fácil fatores de proteção ao risco do conflito conjugal na trajetória de desenvolvimento (Davies & Windle, 2001).

Gênero, Ordem de Nascimento, Conjugalidade e Temperamento

O processo de influência entre o temperamento infantil e o modo de funcionar da família, incluindo aí o funcionamento conjugal, pode diferir em função do gênero da criança. No estudo desenvolvido por Stoneman, Brody e Burke (1989), junto a pais e mães de famílias com dois filhos do mesmo sexo, em que o irmão de mais idade possuía idade entre sete e nove anos e o mais novo entre quatro anos e meio e seis anos e meio, foram encontradas fortes associações entre temperamento das filhas com mais idade e funcionamento conjugal. A qualidade do relacionamento conjugal no que se refere ao grau de concordância entre o casal se associou ao funcionamento saudável da família, especialmente quando crianças tinham mais idade e eram do mesmo gênero que os pais, tendo sido percebidas como apresentando temperamento fácil.

 

Discussão

Foi possível constatar, a partir dos resultados obtidos, a existência de publicações exclusivamente internacionais concernentes às inter-relações entre temperamento dos filhos e relacionamento conjugal dos pais. O único artigo produzido nacionalmente foi excluído, uma vez que seu foco não estava relacionado à temática de interesse desta pesquisa. Chama a atenção o fato de nenhum artigo ter sido encontrado no sítio da BVS-Psi, portal de pesquisa nacional amplamente difundido entre psicólogos e estudantes de graduação e pós-graduação em psicologia, mesmo utilizando-se seis estratégias diferentes de busca.

Confirmando o que já havia sido identificado na literatura, as pesquisas sobre temperamento parecem ser recentes (Guzzo et al., 2004; Ito & Guzzo, 2002). O primeiro artigo obtido no processo de busca de dados foi publicado em 1989, ou seja, há pouco mais de duas décadas, o que se coaduna com o apontamento de Wachs (2002) sobre a atualidade do interesse em estudos sobre o tema. Além disso, o número de produções desde o período de publicação desse estudo até o presente momento ainda é reduzido: a média não alcançou um artigo por ano, com exceção de 2009, com quatro produções. De acordo com Wachs (2002), uma das justificativas da escassez de produção científica sobre as inter-relações entre temperamento e ambiente familiar reside na ênfase às abordagens biologicistas no estudo do temperamento.

A maioria dos trabalhos (nove) contou com crianças como sujeitos-alvo das avaliações do temperamento. Esses dados apresentam conformidade com os encontrados por Guzzo et al. (2004) em um trabalho de verificação do estado da arte de pesquisas sobre temperamento, exclusivamente. Parece que a faixa etária de maior interesse nas pesquisas atuais sobre a temática é, efetivamente, a infância. Ademais, a principal fonte de acesso ao temperamento infantil ocorre por meio do relato dos pais, como já havia sido constatado em outros trabalhos (Guzzo et al., 2004; Klein, 2009; Rothbart & Hwang, 2002). Esses resultados possibilitam questionamentos sobre a prevalência desse interesse: há maior facilidade de acesso e medida do temperamento nessa faixa etária, por exemplo?

No que diz respeito às características dos participantes, observou-se que a categoria família, ou seja, pai, mãe e filho(s), foi a mais recorrente, tendo sido pesquisada na maior parte dos estudos (oito). Dois estudos foram realizados com díades (mãe-criança e mãe-adolescente). Esse resultado confirma o que indicam Dessen e Braz (2005a) a respeito da tendência atual de abordagem dos subsistemas familiares nas pesquisas científicas: o foco de interesse é estendido para além das díades, enfatizando-se as relações que os cônjuges estabelecem entre si, tanto do ponto de vista da conjugalidade quanto da parentalidade.

Todos os estudos foram classificados na categoria Empírico-pesquisa. Detecta-se, assim, a inexistência de estudos com enfoque teórico nessa amostra, como as revisões de literatura. Estudos de revisão são importantes, haja vista que é necessária a contínua análise da produção científica, conhecendo os métodos adotados (Guzzo et al., 2004), identificando lacunas e possibilidades de avanços e aprofundamentos, com o objetivo de fomentar a produção de conhecimento científico.

Não houve diferença no que tange aos tipos de estudo: cinco transversais e cinco longitudinais. Considerando as inter-relações entre temperamento das crianças e relacionamento conjugal dos pais, a realização de estudos longitudinais parece ser adequada para avaliar esse fenômeno. Isso porque os modelos longitudinais buscam coletar dados ao longo do tempo, fazendo inferências sobre mudanças, bem como seus determinantes e efeitos (Sampieri, Collado & Lucio, 2006).

Vale ressaltar ainda que os estudos longitudinais componentes da amostra foram todos realizados junto a crianças de até 14 meses (bebês) ao final da coleta de dados, não sendo identificada, portanto, nenhuma investigação longitudinal com crianças mais velhas ou um acompanhamento de longo prazo. Levanta-se aí uma possibilidade de futuras pesquisas que tenham como objetivo a avaliação das associações entre relacionamento conjugal e temperamento, visando observar no decorrer de um espaço maior de tempo a estabilidade (ou não) das características do relacionamento conjugal dos pais e do temperamento das crianças, bem como os possíveis efeitos de uma variável sobre a outra.

No que diz respeito ao método, predominou o Levantamento de dados, sendo as principais técnicas Questionários/Escala, seguido pelo método de Levantamento de dados e Observação, com as técnicas Questionários/Escalas e Observação. Todos os instrumentos de medida utilizados nos estudos componentes da amostra avaliada estiveram embasados teoricamente em duas das principais abordagens do temperamento: seis deles na abordagem de Mary Rothbart e quatro na de Thomas e Chess. Esse resultado corrobora com o indicado por Rothbart e Hwang (2002), uma vez que as autoras apontam que o temperamento de crianças vem sendo mensurado via relato dos pais e observações. A opção por tais métodos e técnicas tem relação com as análises quantitativas, identificadas em todos os estudos avaliados. A abordagem quantitativa dos dados apresenta aspectos positivos, ao se considerar "a intenção de garantir a precisão de resultados, evitar distorções de análise e interpretação, possibilitando, consequentemente, uma margem de segurança quanto às inferências" (Richardson, 2009, p.70).

Por outro lado, tendo em vista a complexidade do objeto de estudo do presente artigo, é premente pensar na contribuição das abordagens qualitativas, que parecem ter sido preteridas nas pesquisas que compõem a amostra aqui analisada. Utiliza-se esse tipo de abordagem quando se pretende uma compreensão mais detalhada das situações investigadas (Richardson, 2009). Objetivando melhor abordar a complexidade do fenômeno em questão, é possível pensar na possibilidade de junção dos modelos qualitativo e quantitativo em uma mesma pesquisa, haja vista que ambos não são mutuamente exclusivos. Caracterizam-se, pelo contrário, como complementares, podendo ser utilizados conjuntamente, visando reduzir possíveis limitações de cada um deles (Fleith & Costa Junior, 2005).

Destaca-se, mediante a leitura dos artigos obtidos, que os trabalhos enfocam, notadamente, os impactos do temperamento da criança no relacionamento conjugal dos pais (em especial filhos considerados pelos pais como apresentando disposições ligadas ao temperamento difícil) e, também, a influência do conflito conjugal nas manifestações das características de temperamento da criança. Em resumo, as pesquisas enfatizaram as associações entre os dois fenômenos, tanto na direção do relacionamento conjugal para o temperamento dos filhos como do contrário, ou seja, do temperamento dos filhos para o relacionamento conjugal e, ainda, parental. Contudo, é importante ressaltar que a maior parte desses trabalhos (seis) enfatizou a influência do temperamento dos filhos no relacionamento conjugal dos pais.

Esse resultado parece indicar que a maior parte das pesquisas sobre temperamento e relacionamento conjugal ora analisadas concebe as características do temperamento como estáveis ao longo do tempo, o que se relaciona à concepção adotada por algumas abordagens teórico-conceituais sobre a improbabilidade de mudança em virtude das interações com o ambiente. Todavia, conforme assinala Klein (2009, citando Rutter, 1994), "na medida em que o desenvolvimento envolve continuidades e descontinuidades, certa consistência no temperamento é esperada, podendo, no entanto, adotar diferentes formas ao longo do tempo" (Rutter, 1994, citado por Klein, 2009, p.54). Percebe-se, assim, que as asserções sobre temperamento não são uníssonas entre os estudiosos da área. Da mesma maneira, os instrumentos utilizados para avaliá-lo tomam por base teorias diferentes, sendo compostos por distintas dimensões, o que dificulta uma análise comparativa entre os resultados obtidos nos estudos empíricos sobre a temática.

Finalmente, destaca-se que as pesquisas mostraram, de maneira geral, as ligações entre o temperamento da criança e o relacionamento conjugal. Esse dado sugere a importância de não se desconsiderar o contexto familiar, onde ocorre o desenvolvimento dos pais e dos filhos, nas pesquisas e nas intervenções em psicologia, tendo em vista as inter-relações entre os distintos subsistemas familiares.

 

Considerações finais

Este artigo apresentou uma análise da produção científica sobre as associações entre relacionamento conjugal e temperamento dos filhos, levantando características relacionadas aos objetivos, métodos e principais resultados desses estudos, buscando identificar os principais avanços da literatura acerca da temática. Destacou-se a prevalência de estudos realizados a partir da abordagem quantitativa de dados, em detrimento da qualitativa, gerando, portanto, uma defasagem na produção científica no que diz respeito à utilização da abordagem qualitativa. Ademais, apesar de o temperamento de crianças ser o maior foco de interesse dos estudos, notou-se a baixa produção no que diz respeito às crianças em idade pré-escolar e escolar, abrindo-se, então, uma possibilidade para o desenvolvimento de pesquisas futuras.

No presente trabalho foram encontradas algumas indicações sobre o tema, tendo como base os artigos analisados no período especificado. Sugere-se que novas revisões sejam realizadas com outros descritores para averiguar se as mesmas tendências são observadas. Além disso, uma análise histórica, incluindo a avaliação de publicações anteriores a 1980, também seria importante de ser realizada.

Considerando as dificuldades de se estudar o desenvolvimento da família sem levar em conta as relações estabelecidas pelos subsistemas familiares, é importante que se implementem mais pesquisas, enfocando a temática aqui abordada, especialmente no contexto nacional, em que nenhuma publicação foi identificada. É relevante que esse tipo de trabalho seja efetivado considerando-se as características da população brasileira, haja vista a possibilidade de se planejarem ações preventivas ou de abordagem de agravos que sejam adequadas ao nosso contexto sociocultural. Ademais, destaca-se ainda a importância da realização de estudos longitudinais sobre temperamento e relacionamento conjugal, com controle das variáveis ao longo do tempo, possibilitando a verificação e análise das mudanças e continuidades no decorrer da trajetória de desenvolvimento dos participantes.

 

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Endereço para correspondência:
Beatriz Schmidt
psi.beatriz@gmail.com
Maria Aparecida Crepaldi
maria.crepaldi@gmail.com
Mauro Luis Vieira
maurolvieira@gmail.com
Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré
carmenloom@gmail.com

Submetido em: 18/03/2011
Revisto em: 06/06/2011
Aceito em: 14/10/2011

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