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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.64 no.2 Rio de Janeiro ago. 2012

 

ARTIGOS

 

O encobrimento do erotismo na sexualidade contemporâneai

 

The covering of eroticism in contemporary sexuality

 

El encubrimiento del erotismo en la sexualidad contemporánea

 

 

Clara Virgínia de Queiroz PinheiroI; Cristiane Holanda QueirozII

IDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Fortaleza. Ceará. Brasil
IIDoutoranda. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Fortaleza. Ceará. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

Por meio das elaborações foucaultianas que vinculam sexualidade e subjetividade, este trabalho tem como objetivo trazer uma reflexão a respeito do conceito fundamental de pulsão, tendo em vista ser um construto teórico capaz de demarcar a descontinuidade da psicanálise em relação à ciência sexual, que produziu, na modernidade, um saber sobre o sexo como verdade do sujeito. Inicialmente, situamos o caráter cientificista do modelo nosográfico da psiquiatria para, em seguida, destacarmos o aspecto distintivo da teoria freudiana mediante a compreensão do campo pulsional através do erotismo. Finalmente, ressaltamos a amplitude da concepção sobre o sexual estabelecida pela psicanálise, que, por ultrapassar questões reprodutivo-biológicas, posiciona-a como uma teoria bastante relevante para analisarmos os novos formatos que a sexualidade vem assumindo atualmente.

Palavras-chave: Foucault; Psicanálise; Sexualidade.


ABSTRACT

Through the foucauldian's elaborations which links sexuality to subjectivity, this paper aims to bring a reflection on the fundamental concept of drive because it's a theoretical construct capable of marking the discontinuity of psychoanalysis in relation to the sexual science that produced, in modernity, a knowledge about sex as the truth of the subject. At first, we place the scientificist character of the nosographic model of psychiatry and then we draw attention to the distinctive aspect of the Freudian theory by the understanding of the field of drive through the eroticism. Finally, we emphasize the breadth of the conception about the sexual established by psychoanalysis that goes beyond reproductive and biological issues, considering it as a very relevant theory to analyze the new formats that sexuality has currently taken.

Keywords: Foucault; Psychoanalysis; Sexuality.


RESUMEN

A través de las elaboraciones de Foucault que vinculan sexualidad y subjetividad, este trabajo tiene como objetivo presentar una reflexión sobre el concepto fundamental de pulsión, con el fin de ser un constructo teórico capaz de delimitar la discontinuidad del psicoanálisis en relación con la ciencia sexual que ha producido, en la modernidad, un conocimiento sobre el sexo como verdad del sujeto. Inicialmente, situamos el carácter cientificista del modelo nosográfico de la psiquiatría para, entonces, destacar el aspecto distintivo de la teoría freudiana por la comprensión del campo de la pulsión a través del erotismo. Finalmente, enfatizamos la amplitud de la concepción sobre lo sexual establecida por el psicoanálisis que, al superar las cuestiones reproductivas y biológicas, lo posiciona como una teoría muy relevante para analizar los nuevos formatos que actualmente está asumiendo la sexualidad.

Palabras-clave: Foucault; Psicoanálisis; Sexualidad.


 

 

Introdução

Trabalhando em uma perspectiva histórico-genealógica, Foucault (1988) nos indica de que forma a relação entre sexo e verdade tornou-se fundamental para os modos de subjetivação da modernidade. Especialmente no século XIX, tendo como uma de suas questões centrais a própria constituição daquilo que nomeamos sexualidade. Tomada como algo que faz parte da idealização de uma natureza humana, pois vinculada à reprodução e a seu aspecto essencial para a existência dos seres vivos, a sexualidade acabou sendo compreendida, em função disso, como detentora de um caráter de perenidade e de imutabilidade. Entretanto, foi com relação à reprodução que puderam ser definidos os desvios, as patologias e os tratamentos adequados àquilo que fugia a essa regra biológica. Daí a preocupação com a manutenção da família burguesa, que se transformou, então, no modelo ideal para todas as constituições familiares vindouras, tendo em vista a fixidez dos papéis de suas personagens, facilitando, assim, o regramento de suas práticas sexuais.

Dessa maneira, as distinções históricas quanto à forma como se lida com o sexo são definidas com "os aphrodisia para os gregos, a carne para os cristãos e a sexualidade para o homem moderno" (Foucault, 2002, p. 337). Se na Grécia Antiga os atos sexuais não regiam a constituição de quem se é, pois não havia ainda a experiência de uma interioridade que singularizava os sujeitos e os identificava às suas preferências sexuais, para o monasticismo cristão já se congrega na carne o risco da demasia sexual, especialmente sob a forma do desejo insistente que deve ser apaziguado. "Mas a carne não é inteiramente sinônimo de sexualidade" (Foucault, 2002, p. 337), tendo em vista que o pecado da gula também será configurado como problema.

Portanto, foi apenas através da constituição do dispositivo da sexualidade, e de sua disseminação, que se abriu a possibilidade de colocar uma questão que, segundo Foucault (2002), "tornou-se inevitável" (Foucault, 2002, p. 338): "Que ser sexual é você?" (Foucault, 2002, p. 338). Essa pergunta, evocada por Foucault, principalmente em relação ao que foi produzido no período oitocentista, conforme salientamos acima, leva-nos a outro questionamento, mais voltado para os dias de hoje: será que a relação que temos com nós mesmos ainda nos constitui como seres sexuais? Não há dúvidas de que o mundo atual tornou-se distante, em muitos aspectos, daquele que foi discutido por Foucault em sua história da sexualidade.

Ferraz (2010) nos chama a atenção para o fato de que a relação estabelecida pelo filósofo francês entre sexualidade e subjetividade "diz respeito a um modo de subjetivação hoje em declínio" (Ferraz, 2010, p. 79). Neste, observa-se uma minimização do experienciar voltado para a interioridade e um incremento da identidade referenciada ao corpo, "um corpo configurado em termos médicos" (Ferraz, 2010, p. 80). Ainda assim, ressalta a autora, o método e as análises propostos por Foucault permanecem válidos para pensarmos as mudanças pelas quais vêm passando a forma como lidamos com a nossa sexualidade e a maneira como estamos constituindo aquilo que denominamos de subjetividade contemporânea.

Partindo, pois, de uma compreensão foucaultiana, o propósito deste trabalho é fazer uma reflexão sobre a concepção de sexualidade para a psicanálise, trazendo o conceito de pulsão como uma especificidade essencial da teoria, pois demarca uma descontinuidade em relação às demais estratégias para produzir o sexo-verdade na cultura moderna. Para atingirmos nosso objetivo, tomamos como referência, dentro do dispositivo da sexualidade, a psiquiatria e o modelo nosográfico que sustentou sua cientificidade para, em seguida, definirmos a teoria freudiana em seus aspectos emblemáticos, como o campo pulsional e erótico. Por fim, discutimos sobre a mudança na maneira como lidamos com a sexualidade hoje em dia e de que forma a psicanálise pode se inscrever nesse contexto.

Ressaltamos, ainda, que analisar a posição da psicanálise em relação à psiquiatria justifica-se por alguns aspectos. Primeiramente, visa chamar a atenção para a relevância do trabalho de Foucault nos dias atuais. Afinal, o filósofo francês é uma das maiores referências para qualquer estudo que se disponha a investigar a sexualidade. Especialmente quando queremos destacar o caráter normativo que atravessou o discurso biomédico produzido sobre o sexual na modernidade. Assim, ao situarmos tanto a psiquiatria como a psicanálise dentro do momento histórico em que ambas surgiram, estamos reduzindo a força normalizadora da primeira, por meio do estabelecimento de suas bases culturais, e explicitando a especificidade conceitual da teoria freudiana naquilo que a determina como diferente do saber médico.

 

As sexualidades heréticas e os caminhos do erotismo

Imaginava que me apegando às mulheres, eu teria juízo; que meus desejos, (...), não se expandiriam para o vosso [sexo]. Projetos quiméricos, meu caro; os prazeres de que queria privar-me se ofereceram ao meu espírito com mais ardor ainda, (...) [pois] quando se nasce como eu para a libertinagem, é inútil querer se impor freios (...). Enfim, meu caro, sou um animal anfíbio; gosto de tudo, tudo me diverte; quero reunir todos os gêneros. (Sade, 1795/1999, p. 15)

A maneira refinada e detalhada com que o Sade narra os embates sexuais intermináveis entre suas personagens revela o caráter descritivo e confessional que o sexo irá assumir na modernidade. Em A Filosofia na Alcova (Sade, 1795/1999), a Senhora de Saint-Ange, que se considera um animal anfíbio - condição que será catalogada mais tarde, pela ciência, como bissexual -, coloca-se como preceptora da jovem Eugénie nas artes libertinas, revelando à moça curiosa e dedicada os prazeres infindáveis de uma sexualidade que precisa ser exposta, mesmo que de forma violenta, com finalidades educativas e libertadoras, pois "só sacrificando tudo à volúpia [se conseguirá] semear algumas rosas sobre os espinhos da vida" (Sade, 1795/1999, p. 11, em itálico no texto). Sade torna-se, assim, o enunciador mais explícito, ou pelo menos o mais famoso, de um sexo que foi supostamente escondido, desconhecido, mas que se transformará numa das maiores fontes de discurso no Ocidente.

E é a lógica impressa nesse desconhecimento sobre o sexo que remete Foucault (1988) à própria constituição da relação entre saber, poder, verdade e prazer. A ocultação, o segredo, o mistério da coisa sexual fez com que fosse produzida uma vontade de saber que se tornou a condição de possibilidade para todas aquelas atividades que passaram a agenciar o dispositivo da sexualidade, como a pedagogia, a medicina, a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise. Colocando-o, assim, em prática nas vivências mais minuciosas, comezinhas e cotidianas do processo de legitimação da família heterossexual burguesa e da proliferação das sexualidades heréticas polimorfas. Penetrando nesses corpos dóceis e impregnando-os com sexo, um novo tipo de prazer foi inventado: "o prazer da verdade do prazer, prazer de sabê-la, exibila, descobri-la, de fascinar-se ao vê-la, (...)" (Foucault, 1988, p. 69).

Esse campo fascinante das verdades construídas se descortinará, no século XIX, primeiramente com a psiquiatria e depois também com a psicanálise, como as duas grandes referências para os sujeitos que se compreendem, e são compreendidos, como seres que possuem uma sexualidade que precisa ser dita e explicada não apenas para alguém que supostamente pode garantir essa verdade perigosa, mas também para si mesmo. Isso implica, então, conceber o processo da confissão como um fator individualizante, fundador da experiência da interioridade, pois cada um confessa/elabora sua história de vida de maneira própria, fazendo com que o desejo se torne, assim, o efeito e a causa da maneira como nos subjetivamos.

Com isso, como exemplifica Foucault (1988), se antes o sodomita era punido em função dos atos que perpetrava, a partir da classificação psiquiátrica, o homossexual surge como uma figura completamente singular, cuja existência é absolutamente perpassada por suas relações com o mesmo sexo, definindo quem ele é e quem pode vir a ser. Além disso, podemos acrescentar ainda, com Roudinesco (2008), que tais relações - assim como as terríveis patologias causadas pela masturbação infantil passam a ter um caráter de afronta às normas da família burguesa idealizada, que estava firmando sua posição dominante: "felicidade das mulheres no casamento e na maternidade, apologia do pai como pater familias, protetor dos filhos" (Roudinesco, 2008, p. 94).

Assim, como nos chama a atenção Foucault (1988), é com a apropriação e definição das sexualidades pela psiquiatria que teremos uma verdadeira explosão de tipos perversos. Designados por uma nomenclatura exótica e extensa, toda uma fauna de pervertidos e desviantes das nobres finalidades reprodutivas foi produzida: os exibicionistas, os fetichistas, os zoófilos ou zooerastas, os automonossexualistas, os mixoscopófilos, dentre muitos outros. "A lista de todas essas práticas é por definição ilimitada" (Roudinesco, 2008, p. 78, nota de rodapé). Para assumir, então, seu status científico, laico, a medicina mental - conforme termo também utilizado por Roudinesco (2008) para referir-se à psiquiatria nosográfica - desvencilhou-se de palavras que, desde então, passaram a figurar apenas na literatura pornográfica ou erótica. Portanto, "não se fala mais de foder, de cu, de xoxota, nem das diferentes maneiras de tocar punheta, fornicar, enrabar, comer merda, chupar, mijar, cagar etc." (Roudinesco, 2008, p. 78).

Ao tomar a questão reprodutiva e, por consequência, a família como modelo e ponto central de atuação para o dispositivo da sexualidade, tornam-se compreensíveis as leituras médicas propostas para o entendimento da perversão. Como destaca Valas (1990), a explicação ocorre através da noção de instinto sexual. É, portanto, a partir de um apelo à natureza, uma natureza que pode ser desviada de seus propósitos mais relevantes, que se atribui à degenerescência do instinto sexual a origem dessas sexualidades sem destinação e possuidoras de uma lógica que visa estritamente o prazer e suas variadas formas de obtenção. Quando mantido, então, dentro da normalidade de seus objetivos, o instinto sexual visa o direcionamento inquestionável de um sexo para o outro, tendo em vista que ter filhos é o que há de mais fundamental para a manutenção de qualquer espécie.

Ainda segundo Valas (1990), é justamente por meio das deformações que esse instinto sexual pode sofrer, que o interesse do psiquiatra Krafft-Ebing foi despertado, levando o a escrever sua famosa Psychopathia Sexualis (Krafft-Ebing, 1886/2012). Essa obra clássica, amplamente utilizada por médicos de sua época e com várias reedições, é composta por uma quantidade bastante significativa de casos que exemplificam os hereditariedade e degenerescência (Valas, 1990). O trabalho de Krafft-Ebing (1886/2012) possui, portanto, um caráter de inventário, de classificação, e traz um "vasto conjunto de vidas paralelas e infames, das quais coleta todas as metamorfoses, (... ) um quadro sórdido, misturando compaixão à ridicularização" (Roudinesco, 2008, p. 86).

Essas vidas paralelas e infames, compostas por uma pletora de tipos padronizados pederastas, exibicionistas, fetichistas, necrofílicos, sádicos, masoquistas etc. -, revelam para Krafft-Ebing (1886/2012) os desvios maléficos que uma sexualidade sem fins civilizatórios pode tomar. Para o psiquiatra austríaco, a vida se constitui num interminável duelo entre a animalidade sempre presente em cada um de nós e os valores morais superiores que erigiram a vida civilizada (certamente, europeia e ocidental). Com isso, Roudinesco (2008) nos remete à influência das pesquisas de Darwin na sexologia do século XIX. É por meio do darwinismo que a ciência sexual passa a conceber a existência, no homem civilizado, de uma faceta remanescente de seu passado bestial, que pode vir à superfície caso ele não se submeta aos ditames da moral sexual civilizada. De acordo com Krafft-Ebing:

Man puts himself at once on a level with the beast if he seeks to gratify lust alone, but he elevates his superior position when by curbing the animal desire he combines with the sexual functions ideas of morality, of the sublime, and the beautiful. (Krafft-Ebing, 1886/2012, p. 1)

Como nos lembra Gay (1989), antes do surgimento da psicanálise, foi através da ciência sexual, tendo em Krafft-Ebing um de seus mais notórios representantes, que os mistérios, os segredos e, principalmente, as patologias relacionadas à sexualidade foram desveladas. Certamente, em função dessa anterioridade em relação à psicanálise, Freud não ficaria imune nem às repercussões da Psychopathia Sexualis (Krafft-Ebing, 1886/2012) nem aos trabalhos de tantos outros médicos que atribuíam à sexualidade um papel de suma importância para todos os aspectos da vida. E foram esses sexólogos, arautos da Scientia Sexualis discutida por Foucault (1988), que serviram de referência à primeira parte dos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (Freud, 1905/1996a), que trata das Aberrações Sexuais. Isso é explicitado por Freud (1905/1996a) não apenas através do uso da terminologia sexológica daquela época, mas especialmente ao citar os nomes dos vários autores por ele utilizados: "[a]s colocações deste primeiro ensaio foram tomadas das conhecidas publicações de Krafft-Ebing, Moll, Moebius, Havelock Ellis, (...), Lõwenfeld, (...) e M. Hirschfeld (...)" (Freud, 1905/1996a, p. 128, nota de rodapé).

Entretanto, ainda que inserida no mesmo contexto histórico da sexologia, a psicanálise traz algumas descontinuidades em sua construção clínico-teórica que a fazem divergir, de maneira fundamental, daquilo que se impunha como discurso na época de seu desenvolvimento. Se a ciência sexual estabeleceu a sexualidade no âmbito biológico/reprodutivo, a psicanálise irá inseri-la num registro de outra ordem. Se o trabalho de Krafft-Ebing (1886/2012) "transformou em postulados científicos uma série de interditos e de normas sobre a sexualidade que se constituíram no Ocidente desde o cristianismo" (Birman, 1999, p. 20), vinculando, dessa maneira, erotismo e pecado, temos com a psicanálise uma fratura nesse enquadramento que levará à elaboração de um conceito crucial para a teoria, a saber, a mitológica pulsão.

A teorização sobre as pulsões é inaugurada nos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (Freud, 1905/1996a) e rompe, sem dúvida alguma, com a perspectiva biologizante do sexual ao atribuir-lhe "uma pluralidade de objetos possíveis, sendo o indivíduo de outro sexo apenas um dentre os diversos objetos eróticos" (Birman, 1999, p. 32). E é essa concepção de pulsão sem um objeto fixo, e trazendo a marca de uma insistência que mobiliza toda a corporeidade, que assumirá, ao longo da obra de Freud, uma extrapolação mais complexa em sua compreensão, culminando com a própria noção da formação dos laços sociais a partir da batalha entre Eros (pulsão de vida) e pulsão de morte (Freud, 1930/1996c). Dessa forma, o sujeito nascido na modernidade, cuja sexualidade se constituiu pelo caráter eminentemente normalizador da Scientia Sexualis, tal como nos descreveu Foucault (1988), passará a ter outro sentido possível para o sexual por meio da radicalidade conceitual da Trieb freudiana.

O campo pulsional confirma que a sexualidade está voltada para o prazer. Com isso, as funções da reprodução e da obtenção de estimulações prazerosas "muitas vezes falham em coincidir completamente" (Freud, 1940/1996d, p. 165). Essa falha intrínseca ao âmbito sexual acaba denotando a amplitude, a variedade de objetos passíveis de serem investidos pela pulsão. E, acima de tudo, demarca a sexualidade como se situando para além da puberdade e da fase adulta. É, portanto, através da sexualidade infantil e de seu caráter desenvolvimentista que a teoria freudiana extrai algumas generalizações que servem para explicar a vida sexual do adulto, cuja dita normalidade irá sempre remeter à perversão. Para a psicanálise, então, toda sexualidade é perversa.

Sendo assim, a primeira e mais importante generalização refere-se ao fato de que "a disposição para as perversões é a disposição originária universal da pulsão sexual humana" (Freud, 1905/1996a, p. 218). Tal afirmação, certamente, compreende a noção de perversão não em seu aspecto de estrutura clínica, mas enquanto uma cooptação de zonas corporais diversas que servem ao prazer. Afinal de contas, como comenta Freud (1940/1996d) sobre outra característica fundamental da sexualidade humana, genital e sexual não podem ser tratados como sinônimos, tendo em vista que o segundo termo engloba uma infinidade de atividades que não podem ser restritas à genitalidade. É, pois, em relação às restrições culturais impostas à infância perverso-polimorfa, com seus inocentes prazeres orais, anais e masturbatórios que teremos a formação da sexualidade adulta, normal, mas "uma normalidade de contornos difusos" (Roudinesco, 2008, p. 103). Difusos porque essa infância, representante de uma sexualidade desmedida, estará sempre subjacente à vida sexual do adulto, pois a expectativa de uma centralização absoluta na genitalidade é impossível.

"É na descrição da sexualidade humana que se esboça a noção freudiana da pulsão" (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 395). Conforme esse entrelaçamento necessário entre o sexual e o pulsional, especificados a partir das questões que comentamos anteriormente, podemos compreender que a psicanálise lida mais diretamente com a perspectiva erótica da sexualidade. Falar de erotismo por meio da psicanálise significa, então, determinar que a sexualidade, pensada pela via da pulsão, permite uma infinidade de possibilidades ao prazer, possibilidades estas que têm como fator central a história de vida do sujeito. Dessa forma, "o sujeito pode escolher os próprios caminhos sexuais e traçar seus destinos eróticos, sem se submeter a qualquer padrão de normalização (...)" (Birman, 2010, p. 26).

Defender uma ideia de erotismo através da teoria de Freud significa, pois, um caminho possível para se pensar a sexualidade como passível de ser desvinculada da perspectiva limitante em que a Scientia Sexualis a posicionava. Tal posicionamento vem assumindo novos contornos, certamente, mas ainda parece visar certo enquadramento do âmbito sexual. Assim, mesmo que já não estejamos mais tão imersos no campo da normalização próprio à ciência sexual, é induvidoso que a forma como compreendemos a sexualidade tem sofrido modificações. Comentando sobre tais questões, Prata (2010) ressalta que é através "de uma aparente positivação das diversidades [que] as sexualidades são absorvidas e neutralizadas num processo de naturalização e unificação. O que parece natural e socialmente aceito é (... ) resultado de uma operação que visa camuflar a multiplicidade (...)" (Prata, 2010, p. 11). E é sobre isso que iremos discorrer no item a seguir.

 

Sexualidade contemporânea e diversidade

Se, como propõe Foucault, a apreensão da experiência sexual - e, portanto, o discurso que se constrói em torno dela ao mesmo tempo que a define - é contingente e histórica, é preciso interrogar se sustentar a permanência dessa forma discursiva particular, que centra a subjetivação e a construção de um domínio de si na sexualidade, não seria uma forma de recusar a transformação contingente das formas possíveis de existência. (Cunha, 2010, p. 96)

De acordo com Cunha (2010), se para a teoria freudiana a sexualidade assume infinitos encaminhamentos, trajetos e significações, marcando, assim, seu caráter de erotismo, hoje também experienciamos "um sexo sem fim" (Cunha, 2010, p. 100). E isso ocorre não apenas por estar presente em todo lugar, seja na mídia eletrônica ou no cotidiano mais banal, mas também pelo fato de "se encontrar de algum modo desvinculado de qualquer finalidade" (Cunha, 2010, p. 100). Dessa forma, o sexo suportado pela medicina, atrelada à tecnologia, encontra-se mais próximo de tentativas de aprimoramento saudável de desempenho do que necessariamente de uma busca pelo prazer. Deve-se retirar do sexo qualquer forma de incomodidade, podendo até mesmo prescindir-se da existência de um parceiro, substitui-lo por encontros virtuais. Com isso, se antes o sexo era valorizado em seus perigos e mistérios, hoje se encontra situado como "um objeto de consumo de massa" (Lipovetsky, 2005, p. 37).

Assim, a antiga fauna de tipos perversos evocada por Foucault (1988) e tão cara à psiquiatria oitocentista, conforme caracterizamos anteriormente por meio do trabalho de Krafft-Ebing (1886/2012), parece ter se transmutado numa diversificação de minorias. Tais minorias extrapolaram o saber médico-científico no qual estavam inseridas e passaram a voltar-se para a reivindicação de direitos impensáveis até bem recentemente. São "formas de conduta há pouco tidas como ignominiosas" (Lipovetsky, 2005, p. 37) que estão à procura de legitimidade. Mesmo que esse modo de buscar uma legitimação ainda se encontre assemelhado ao caráter classificatório que foi definido, na modernidade, pela ciência sexual e por sua terminologia. Mantémse, portanto, uma diferenciação em relação ao outro pela via do exercício da sexualidade: homossexuais, bissexuais, travestis, transexuais etc.

Reduzir-se a uma identidade sexual, ainda que sob pretensões igualitárias, pode ser tão limitante e excludente como aquilo que foi determinado pela Scientia Sexualis. Utilizando-nos aqui da observação de Prata (2010), há uma perda da "potência de subversão do múltiplo" (Prata, 2010, p. 11). Dessa maneira, a multiplicidade encontra- se minimizada não apenas em função de sua apropriação por um discurso médico que tenta impor a felicidade e o bem-estar para todos através daquilo que possa afetar a corporeidade, como os medicamentos, as cirurgias, os exercícios físicos etc., mas também por meio do consumo, "associado ao mercado de produtos" (Prata, 2010, p. 11). É, portanto, sob a égide da diversidade sexual que uma nova forma de regulação da sexualidade parece estar se constituindo.

Congregando, a diversidade, a expectativa de bem-estar na sexualidade, o consumo e o empobrecimento da sexualidade em seu caráter erótico, Gregori (2005) traz uma interessante constatação em relação a essas questões. De acordo com a antropóloga, a busca por um corpo saudável vem servindo como referência a esse novo formato assumido pelo erotismo nos dias atuais, esvaziando-o de sentidos que possam colocá-lo como fonte de mal-estar. Com isso, haveria uma tentativa de legitimar as variadas práticas sexuais, como o sadomasoquismo, por exemplo, tornando-as assépticas, clean. Comentando a respeito dos manuais sobre sexo, Gregori (2005) afirma que, em linhas gerais, eles não se diferenciam de livros de ginástica que ensinam como fazer exercícios físicos da maneira mais eficiente e correta. E, estendendo tal percepção a outros produtos vendidos em determinada sex- shop e que têm a melhoria do desempenho como foco, Gregori (2005) destaca que eles "são apresentados com o pragmatismo de uma bula." (Gregori, 2005, p. 87).

Estamos, então, diante daquilo que Zizek (2003) denominou de "hedonismo envergonhado" (Zizek, 2003, s/p). A sexualidade, desprovida de sua vertente erótica, acaba tornando-se uma forma de obtenção de prazer que não se diferencia da lógica da saúde que afeta tudo aquilo que fazemos em nossas vidas: "tudo é permitido, pode-se desfrutar de tudo, porém desprovido da substância perigosa" (Zizek, 2003, s/p). Essa equalização politicamente correta dos prazeres parece negar a multiplicidade de possibilidades para os investimentos pulsionais, inclusive aqueles aspectos do sexual que sempre escaparão às tentativas de inscrição num registro

harmônico, ajustado, limpo e feliz. E, como lembra Sontag (1987) em seu excelente ensaio sobre a imaginação pornográfica, a "sexualidade humana é (...) um fenômeno controverso e pertence, ao menos em potencial, mais às experiências humanas extremas que às comuns" (Sontag, 1987, p. 61).

 

Considerações finais

(...) Freud fez críticas contundentes à hipótese da degenerescência e da hereditariedade, questionou a moral higienista, rompeu com o positivismo científico, atribuiu primazia às fantasias e à pulsão em vez dos comportamentos e, por fim, aproximou a perversão dos prazeres normais de uma forma como jamais alguém fizera (Brandão, 2010, p. 227).

Ao constatar a impossibilidade de haver uma conciliação entre as pulsões sexuais e as imposições civilizatórias, Freud (1912/1996b) afirma a essencialidade dessa desarmonia para a existência da cultura. Se uma satisfação absoluta existisse, afirma ele, não teríamos quaisquer motivos para continuar investindo na vida, nas relações e nas produções culturais que nos permitem grandes feitos. Tendo em vista a interdição ao objeto primeiro da satisfação pulsional, resta-nos procurar em objetos substitutivos uma forma parcial de encontrar a satisfação. A única maneira que nos é viável, portanto, para ter prazer. É com essa constatação freudiana que somos apresentados a uma verdadeira erotização da existência, em que os investimentos pulsionais nos servem não apenas para empreender uma relação sexual, mas também para a manutenção da vida em agrupamentos humanos cada vez maiores.

A psicanálise é detentora, portanto, de uma radicalidade que a define como uma teoria que deve ser entendida e pretendida como não normativa. Daí não ser possível situá-la inteiramente dentro da ciência sexual, tal como propôs Foucault (1988), ainda que, como vimos, ela faça parte do momento histórico que produziu uma intensa discursividade sobre o sexo e que teve a psiquiatria como um de seus mais relevantes exemplares. É colocando, então, a teoria de Freud naquilo que a determina como radical que ela sempre poderá ocupar uma posição privilegiada para pensarmos a respeito da sexualidade nos dias atuais. Principalmente quando se ressaltam as mudanças em relação à maneira como a sexualidade foi constituída na modernidade. Daí Birman (2010) compreender que tanto os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905/1996a) "quanto as demais ficções sobre o erotismo forjadas pelo discurso freudiano ainda mantêm o frescor tanto teórico quanto ético" (Birman, 2010, p. 26).

Por fim, tomamos a ironia foucaultiana como representando aquilo que hoje acreditamos ter conseguido: "para amanhã o bom sexo" (Foucault, 1988, p. 12). Esse comentário do filósofo francês refere-se às promessas de liberdade futura previstas pela cultuada repressão à sexualidade. Tal repressão serviu, na verdade, como uma das formas mais eficazes para se falar de sexo, passando a atribuir-lhe um valor que, ao que tudo indica, ele não possui mais. Estamos, portanto, numa época que se vangloria do acréscimo de liberdade em relação às formas de se experienciar a sexualidade. Entretanto, essa pretensa liberdade vem trazendo, também, uma relativização do sexual que acaba afetando suas possibilidades eróticas, promovendo, assim, uma nova forma de adequação às práticas de saúde tão em voga atualmente. Concluindo, então, com a ironia de outro filósofo, sexo sem erotismo é como apresentar "um produto desprovido de sua substância: (... ) da mesma forma que o café descafeinado tem o mesmo cheiro e sabor do verdadeiro café sem ser o verdadeiro café" (Zizek, 2003, s/p).

 

Referências

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Endereços para correspondência:
Clara Virgínia de Queiroz Pinheiro
claravirginia@unifor.br

Cristiane Holanda Queiroz
cris_agave@yahoo.com.br

Submetido em: 03/02/2012
Revisto em: 06/08/2012
Aceito em: 12/08/2012

 

 

i Texto referido à pesquisa realizada com apoio da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP).