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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.64 no.3 Rio de Janeiro dez. 2012

 

ARTIGOS

 

Juventude e pobreza: a construção de sujeitos potencialmente perigosos

 

Youth and poverty: the construction of potentially dangerous subjects

 

Juventud y pobreza: la construcción de individuos potencialmente peligrosos

 

 

Andrea Cristina Coelho ScisleskiI; Carolina dos ReisII; Oriana HadlerIII; Mariana de Assis Brasil WeigertIV; Neuza Maria de Fátima GuareschiV

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Campo Grande. Mato Grosso do Sul. Brasil
IIMestre em Psicologia Social. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional. UFRGS. Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil
IIIDocente. Curso de Psicologia. Instituto Metodista de Porto Alegre (IPA). Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil
IVDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. UFRGS. Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil
VDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo problematizar como vêm sendo constituídos os modos de subjetivação do jovem na articulação das práticas psicológicas às políticas de saúde, assistência social e justiça. Entendemos que é no seio dessas políticas que se propõe a proteção de jovens vítimas de violações de direitos; no entanto, se produz inversamente uma série de práticas normalizadoras e punitivas na vida desses sujeitos. O fio condutor para essa análise concerne às práticas de saber-poder-subjetivação presentes no caso de Highlander, um jovem em conflito com a lei que foi alvejado com 15 tiros e vem sendo acompanhado por diversos setores de cumprimento de medida socioeducativa. Como conclusão, salientamos que entender os discursos acerca do jovem em conflito com a lei e as práticas concernentes a ele é um caminho potente para provocar deslocamentos quanto ao lugar da psicologia nas políticas públicas.

Palavras-chave: Jovens em conflito com a lei; Políticas públicas; Produção de subjetividade.


ABSTRACT

This article aims to problematize how the subjectivation modes of young subjects have been constituted, regarding the articulation between psychological practices and health, social assistance and justice policies. It is understood that despite the discourse of protection that is promoted in the core of these politics, inversely, it is also produced a succession of practices that perpetrates a normalized and punitive character towards the life of young subjects who had their rights violated. The conducting line for this analysis emanates from the knowledge-power practices presented in the case of Highlander, a teenager in conflict with law that was target with fifteen gunshots and has been attended by diverse sectors in social-educational measurement arena. To question the insertion of youth population in the government mechanisms and the practices that act over them may be a way to provoke displacements towards the place that psychology occupies in the public politics scenario.

Keywords: Youth in conflict with the law; Public policies; Process of subjectivation.


RESUMEN

Este artículo pretende discutir la forma en que se han establecido los modos de subjetividad del joven en la articulación de las prácticas psicológicas a las políticas de salud, asistencia social y justicia. Creemos que es dentro de estas políticas que se proponen proteger a los jóvenes víctimas de violaciones de derechos; sin embargo, se producen, inversamente, una serie de prácticas de normalización y de punición en la vida de estas personas. El hilo conductor de este análisis se refiere a las prácticas poder-saber-subjetivación presentes en el caso de Highlander, un joven en conflicto con la ley que fue alcanzado con quince tiros y ha sido acompañado de varios sectores de instituciones para cumplimento de medidas socioeducativas. En conclusión, destacamos que entender los discursos sobre el joven en conflicto con la ley y las prácticas al respecto es una forma poderosa para provocar cambios en el lugar de la psicología en las políticas públicas.

Palabras-clave: Jóvenes en conflicto con la ley; Políticas públicas; Producción de subjetividad.


 

 

Introdução

Este artigo tem como objetivo questionar a construção da juventude pobre como uma categoria que passa a ser tomada como um problema social, tendo como ponto de análise as políticas públicas, com destaque para as que se referem ao campo da assistência social, da segurança pública e das políticas antidrogas. Cabe ressaltar que, ao tomar a juventude como problema, entendemos que essa categoria da população adquire visibilidade especialmente atrelada à pobreza, à violência e ao uso de drogas, demandando soluções por parte do Estado.

Nossos questionamentos partem de nossas experiências como pesquisadoras do assunto, uma vez que temos constatado a insistência de intervenções voltadas para essa juventude que buscam reificar estratégias de contenção e de internação que, sob o nome de uma proteção social, colocam-na em posições ainda mais excluídas da sociedade, em uma espécie de "punição preventiva" (Scisleski, 2010; Reis, 2012; Hadler, 2010; Weigert, 2010). Cabe ressaltar ainda que preferimos utilizar os termos juventude e jovem, em vez de adolescência e adolescente, especialmente porque na psicologia entendemos que a adolescência se refere mais explicitamente a uma fase na perspectiva das teorias desenvolvimentistas - com as quais não trabalhamos. Contudo, avisamos ao leitor que em alguns momentos as palavras adolescência e adolescente poderão aparecer no sentido de referenciar o Estatuto da Criança e Adolescente (Brasil, 1990), que as emprega, já que para essa lei o período de adolescência aparece como relativo a uma faixa etária, dos 12 aos 18 anos.

Nesses termos, este artigo alia-se à postura de Bocco (2009), quando revela que "pensar em juventude pareceu, até agora, a melhor forma de trazer uma intensidade invés de uma identidade (...). Com esse deslocamento, ganham relevo as forças mais que as formas, enfatizando processos onde parecia haver apenas produtos" (p. 81). Dessa forma, o termo juventude aqui é empregado não com o intuito de fugir de instituídos. Ao nos remetermos a jovens, também incluímos, nesse campo populacional, sistemas de governo e regimes de verdade que vêm conjugar modos de ser sujeito. Porém, ao nos referirmos ao sujeito jovem, visamos salientar a existência de uma noção de juventude que se constitui tanto como foco de intervenção estatal, a partir de determinadas urgências históricas, quanto como vida a ser manejada, e de uma população que é preciso abarcar e governar (Hadler, 2010).

Para pensar nas formas de governo das condutas e na construção de determinada categoria juvenil, organizamos o texto em dois eixos: uma reflexão sobre as políticas públicas e suas articulações propriamente ditas e a operacionalização das intervenções elucidadas a partir do caso Highlander, que vem mapear o percurso de um jovem na rede de proteção a partir de sua entrada em um CREAS (Centro de Referência Especializado em Assistência Social) de um município do Estado do Rio Grande do Sul/Brasil. Nossa discussão analisa a complexidade de tais políticas e ao mesmo tempo aponta os efeitos que produzem na sociedade, principalmente nos sujeitos diretamente envolvidos.

 

Uma juventude criminosa e patológica

Diversas ações relativas às políticas de proteção social, saúde, justiça e segurança pública - como veremos adiante, no decorrer deste artigo - propõem a proteção de jovens vítimas de violações de direitos. No entanto, se produz inversamente uma série de práticas de caráter normalizador e punitivo na vida desses sujeitos, já que muitos dos programas a que os jovens se vinculam ainda prescrevem uma forma de tratamento pautada na ideia de que eles compõem uma grande ameaça à segurança pública (Reis, 2012). Queremos ressaltar que o que fica evidente é apenas uma ponta do iceberg, enquanto as questões que criam e sustentam a produção desses jovens como ameaça social se tornam invisíveis. Nossa proposta é deslocar a discussão para pensar os modos de produção de uma subjetividade juvenil que vem sendo taxada como um perigo iminente, principalmente por campos de saber que atravessam o âmbito da assistência social, saúde e justiça.

Nos últimos 20 anos, no Brasil, vê-se a proliferação de políticas públicas voltadas para uma dita juventude em situação de vulnerabilidade social. É interessante destacarmos essa questão justamente porque vivemos em um momento em que crianças e adolescentes passam a ser considerados cidadãos, devido ao advento do Estatuto da Criança e do Adolescente - o ECA (Lei Federal 8.069/1990). Sendo assim, o que constatamos é que, se por um lado o ECA surge como uma lei importante, vindo a modificar a Doutrina da Situação Irregular de crianças e adolescentes (Faleiros, 2009) - que, como podemos recordar, em períodos anteriores na história do nosso país perdurou por muitos e muitos anos -, por outro lado entendemos que a forma como o ECA tem sido operacionalizado, ainda que evidentemente se constatem avanços diante dos modelos anteriores, não condiz com a esperada efetivação dos direitos desses jovens (Scisleski, 2010). A partir dessa lacuna, entre a garantia que a lei diz oferecer e o que as práticas adotadas em nome dela realmente oferecem, colocamos em discussão o que se tem feito com os jovens em situação de vulnerabilidade social.

Quanto a essa temática, convém lembrar que, durante os anos de vigência da Doutrina da Situação Irregular, inicialmente apresentada no primeiro Código de Menores, em 1927 - também chamado de Código Mello Matos -, e posteriormente reformulada, ainda com mais austeridade, no Código de Menores de 1979, preconizava-se certa correlação entre pobreza e criminalidade (Arantes, 2009). Para tanto, bastava que uma criança vivesse em situação de pobreza para que isso fosse tomado como argumento capaz de destituição do pátrio poder, uma vez que indicava também uma família desestruturada, sem condições de criá-la e, portanto, passível de encaminhamento da criança para ser abrigada em grandes instituições, como era o caso das unidades da FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor). Esse modelo vigorou até a implementação do ECA, em 1990. No entanto, como colocamos em debate no decorrer deste artigo, uma das questões que balizam nossa discussão permeia justamente as mudanças realizadas efetivamente pela implementação do ECA. Ressaltamos que, com esse questionamento, não pretendemos desconsiderar os avanços trazidos por essa lei - que certamente reorganizou as grandes instituições de abrigo, transformando-as em casas residenciais para essa população, por exemplo -, mas que ainda, como veremos pelas práticas que analisaremos aqui, permitem ações que, agora sob o nome de proteção, continuam punindo e marginalizando a população infanto-juvenil pobre.

Através de pesquisas (Scisleski, 2010; Reis, 2012; Hadler, 2010; Weigert, 2010) que se fundamentam nos estudos de Michel Foucault, procuramos problematizar os discursos que circundam a juventude e as práticas concernentes a ela. Portanto, o objeto deste artigo não é a juventude, mas as racionalidades que a produzem, sustentam e legitimam como marginal. Não procuramos aqui propor novos modos de ser jovem, nem agir para sua vitimização, mas evidenciar os jogos de verdade e as relações de poder que constroem esse objeto como natural e verdadeiro, passando a fixar determinadas identidades para esses jovens, através de uma justificativa essencialista (situação familiar, genética, personalidade desviante etc.).

Alguns dos tópicos envolvidos nos debates atuais sobre a violência juvenil, como o uso de crack, o bullying - especialmente nas escolas -, os atos infracionais, entre outros, não são novidades na sociedade, embora muito recentemente tenham adquirido um caráter patológico. Essa nova configuração, portanto, rearranja outra maneira de nomear, de falar e de visibilizar novos significados na contemporaneidade e, nesse sentido, produz modos subjetivos de ser sujeito (Hadler, 2010). Quando uma criança que vive nas ruas diz para uma psicóloga "tia, não precisa te preocupar comigo porque a minha vida é assim mesmo", essa criança não está apenas dando um conselho à profissional, está mesmo demonstrando como se coloca e se sente no mundo, colocando sua maneira de pensar e expressando o valor que atribui (e que é atribuído) à sua vida. O que se evidencia é a persistência de certa leitura do social feita por muitos profissionais, e pelos próprios jovens, que os concebe em uma vida sem grandes possibilidades de saída de uma situação de marginalidade, uma vez que os modos de entender esses jovens como potenciais criminosos ou doentes (ou ainda ambos) mantêm o foco no sujeito individual, sendo ele, então, o único responsável por seu problema ou, no máximo, a família desestruturada de onde ele provém.

Ao fazermos essa análise, não queremos desresponsabilizar ou banalizar o uso de drogas, ou qualquer ato de violência sofrida ou provocada por esses jovens, mas é imprescindível estarmos atentos às formas como essas ações são consideradas no atual contexto histórico e social. Nesse caso, chamamos a atenção, especialmente, para a forma como a psicologia vem sendo convocada a dar respostas para esse problema social.

Quanto a esse aspecto, vemos que a própria formação do psicólogo vem sendo reestruturada, através de uma implicação maior dos currículos dos cursos de psicologia (Guareschi, Dhein, Reis, Machry, & Bennemann, 2010) nos campos de atuação das políticas públicas, mas ao mesmo tempo, muitas vezes, a abordagem teórica que acompanha as práticas locais aponta para análises que reificam posicionamentos que visam detectar patologias naqueles que serão atendidos. Entendemos, dessa maneira, que existem outras possibilidades de intervir e que as que apenas aludem à patologização da juventude pobre não têm produzido modificações nos resultados. Ou seja, se por um lado se abre a possibilidade de uma problematização das próprias práticas do psicólogo em sala de aula, por outro, muitas ações que se dão no contexto dos serviços na esfera das políticas públicas propriamente ditas derivam das teorias mais tradicionais que, portanto, se perpetuam. Nesse âmbito, percebemos que se trata de uma passagem ainda em construção, em que há o debate sobre a necessidade de novas teorias para esses campos, mas ainda se reafirmam práticas antigas. Apesar de não nos atermos neste artigo diretamente à questão da formação do profissional da Psicologia, entendemos que é pertinente perceber a complexidade da questão, que envolve de forma incisiva a produção e a interlocução entre a produção de conhecimento e a construção do que se entende como um problema social.

Um exemplo dessa questão diz respeito à "epidemia do crack" entre a juventude pobre, ou melhor, em situação de vulnerabilidade social. A nosso ver, para um grande número de jovens pobres usuários de crack, a droga pode se constituir como uma ferramenta para proporcionar, por exemplo, prazer e alívio frente às frustrações e enfrentamentos que fazem parte da vida. A questão é que ninguém faz a pergunta: por que essa juventude tem buscado o crack? Ou ainda: o que o crack oferece a esses jovens? Considerando que estamos já há algum tempo em plena campanha da mídia e do próprio governo federal para combater o uso de crack, ressaltamos a implementação de leis que buscam, em tese, a (re)integração do dependente químico à sua família ou à sociedade, baseando-se na política de redução de danos, mas que na prática, entretanto, ainda vemos como perpetuação da lógica da tolerância zero (Rigoni & Nardi, 2005). Exemplo disso é a nova legislação antidrogas no Brasil - Lei 11.343/06 -, na qual um dos pontos que muito se enaltece é o fato de não mais punirse com pena de prisão o usuário, o que estaria em consonância com um projeto de redução de danos (Brasil, 2006). Todavia, essa mesma lei aplica penas mais severas ao traficante, o que demonstra que a redução de danos é muito mais um discurso do que uma realidade quando se fala em sujeitos envolvidos com substâncias entorpecentes no Brasil (Brasil, 2012). Cabe dizer que muitas vezes o traficante em questão não é o chefe do tráfico, mas o jovem que, sem dinheiro para sustentar seu vício, acaba vendendo também a droga para obter recursos para consumi-la. É importante ressaltar que não estamos colocando em questão os diversos tratamentos voltados para enfrentamento do uso de drogas nesse campo, mas, sim, o modo como determinadas articulações em relação ao envolvimento com a droga vão sendo constituídas em relação ao jovem pobre.

Nesse âmbito, trazemos à tona a implementação do Protejo (Proteção de Jovens em Territórios Vulneráveis), do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), que chega com o objetivo de "selecionar e acompanhar jovens entre 15 e 24 anos em situação de risco ou vulnerabilidade familiar e social (... ) para a prevenção da violência, da criminalidade e do envolvimento com droga" (Brasil, 2012, p. 4). Sob tal ótica, tem-se o estabelecimento de uma série jovens - situação de vulnerabilidade - drogas que vem demarcar práticas de segurança e controle dessa população juvenil, supostamente perigosa: que, afirma-se, poderia vir a ser traficante. Assim, são selecionados os jovens que vêm representar uma possível ameaça à segurança pública nacional, constituindo-se, desta forma, uma prevenção que recai sobre o indivíduo, e não sobre o ato efetivamente cometido. Pois, antes mesmo de qualquer envolvimento com o tráfico, o jovem é previamente gerenciado e controlado em nome da potencialidade do perigo que representa.

Ademais, para além da esfera criminal, também no campo da saúde, a maioria dos movimentos propostos defende que os usuários sigam uma postura de abstinência, que com frequência é feita através de encaminhamentos intermitentes, compulsórios e compulsivos às (re)internações psiquiátricas (Scisleski, Maraschin, & Silva, 2008). Os serviços de saúde não têm se mostrado resolutivos diante dessa problemática, uma vez que a quantidade de serviços vigentes para substituir as instituições de lógica manicomial, por exemplo, é muito menor do que o previsto, conforme relatório do Tribunal de Contas da União (TCU, 2012). Para tornar ainda mais complexa essa questão, vemos a proliferação de um verdadeiro arsenal de comunidades terapêuticas apresentadas como respostas eficazes para lidar com os jovens usuários de crack (Reis, 2012). Como o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2011) constatou, essas comunidades, em sua grande maioria, são espaços que não oportunizam um efetivo cuidado em saúde, já que não apresentam um projeto terapêutico para os internos. As práticas ditas terapêuticas restringem-se a trabalhos forçados (o que acaba sendo uma reedição da laborterapia - herança dos manicômios) e a intensa rotina de rituais religiosos. Com essa colocação, não estamos dizendo que os serviços substitutivos não funcionam, mas que a rede substitutiva ainda está aquém do esperado. O que queremos com esta escrita é também evidenciar nosso posicionamento em prol de um real investimento na implantação dos serviços substitutivos, bem como potencializar o jovem como cidadão; para isso, é imprescindível um olhar crítico em relação às políticas públicas da forma como vêm sendo executadas.

Esse panorama de imposição de abstinência, ao sujeito capturado pelas malhas do sistema penal ou de saúde pública, é reflexo da política de drogas fundada na proibição, que impera ainda hoje na maioria dos países ocidentais. Tal corrente tem como seu maior defensor os Estados Unidos, que, através de ameaças políticas e econômicas, fazem com que a grande maioria dos países siga suas principais orientações, ou seja, a coibição de qualquer contato com a droga, seja através do comércio ou do uso pessoal. E o reflexo disso no Brasil é uma legislação que segue à risca a lógica da tolerância zero, com aplicação de penas para crimes de baixa gravidade. Todavia, a lei de 2006 se diz em consonância com a lógica da redução de danos e em muitas passagens chega a referir tais práticas em sua redação (Weigert, 2010).

Quando olhamos para casos exemplares dessa situação, vemos claramente uma culpabilização que recai exclusivamente sobre os indivíduos (Scisleski & Maraschin, 2008), pois não se olha para os múltiplos fatores envolvidos na produção da criminalidade e da insegurança social. Nesse aspecto, quando falamos em insegurança, é preciso pensá-la a partir de um sentido mais amplo: não só na insegurança literalmente produzida pelo medo dos roubos e da violência das ruas, capazes de acarretar morte física, mas também nas outras formas de expor os sujeitos à insegurança e à morte, como é o caso do desemprego, da fome, da falta de moradia, de proteção social (Reis, 2012; Soares, 2006). Cabe ressaltar ainda que, quando falamos em segurança pública, não estamos falando somente de criminalidade, mas de determinado projeto de sociedade. O que quer dizer que podemos continuar olhando para essa mesma categoria populacional em um esforço contínuo de manutenção e de estabilização dessa noção de um inimigo interno (Foucault, 2005), ou podemos partir para uma análise sobre os modos como cotidianamente todos nós - enquanto campos de saber, instituições, sociedade civil ou nas relações que estabelecemos uns com os outros - nos envolvemos na construção desses sujeitos perigosos.

 

Produzindo sujeitos perigosos na trama das políticas de proteção

Ao colocarmos em questão essas afirmações, assumimos o entendimento de que a constituição dos modos de ser sujeito é pautada por processos de subjetivação, atravessados cotidianamente por um conjunto de práticas que produzem as formas através das quais os sujeitos são chamados a se reconhecer e a se relacionar consigo. Trata-se, portanto, de evidenciar os jogos de saber/poder que operam na produção de determinados regimes de veridicção sobre esses jovens, pois é atravessando por esses estatutos de verdade que vemos a constituição de "Highlander, o sujeito jovem que não morre". Em outras palavras, o jovem perigoso, sujeito desse caso, dá visibilidade aos processos de subjetivação que vão sendo constituídos a partir de uma trama de regulamentações e normatizações marcadas nas políticas de proteção voltadas para a juventud em situação de vulnerabilidade social.

Antes mesmo de nascer, Highlander já havia sido marcado pelo signo da patologização e periculosidade. Enquanto embrião, acompanhava sua mãe quando esta frequentava o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) da região. Diagnosticada como paciente crônica - esquizofrênica, apresentando episódios dissociativos, conforme consta no DSM IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) -, a seu rebento foi antecipadamente creditada a possibilidade de sequelas comportamentais. Sua família já havia sido nomeada como vulnerável e em situação de violação de direitos, visto que, dentre seus irmãos, dois já haviam sido presos, uma tinha cinco filhos, enquanto outros estavam desaparecidos. Somente um dos irmãos, nessa matriz desestruturada, havia conseguido emprego, era casado e mantinha família coerente com os modelos hegemônicos.

Com nove anos o nosso protagonista já estava na rua, cometendo pequenos furtos. Porém, ao completar 12 anos, idade mínima para ingressar em um centro corretivo, foi encontrado pelas autoridades locais e encaminhado para o Centro de Atendimento Socioeducativo em Semiliberdade (CASEMI), passando por outras instituições e fugindo delas periodicamente. Entre idas e vindas por vários institutos, ele encontra uma namorada nos corredores dos acolhimentos, se unem quando ele vira homem feito - aos 15 anos -, e, um ano após a união, ela engravida do primeiro filho; mas eis que ele suspeita da não paternidade e alveja a noiva com quatro tiros. Ela sobrevive. Com a sobrevivência da companheira, Highlander, que vinha sendo acompanhado pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da região e recebendo auxílio do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), passa a ser observado de perto pelo Conselho Tutelar (CT) e Juizado da Infância e da Juventude (JIJ) da região.

Após ir e vir nos entremeios de um ano de processos, prontuários, registros no Ministério Público (MP), entre outras ocorrências, a vida do guri vai, de sigla em sigla, sendo marcada como ferro em brasa em pele de novilho. Entre leis e punições, passa a compor o grupo de meliantes que cumpriu medidas socioeducativas com restrição de liberdade na Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE) e que percorreu muitas camas pelo Programa de Apoio a Meninos e Meninas (PROAME). Assim, entre medidas determinadas pelo programa de Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), Highlander é encaminhado para o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) do município, para, conforme determinação judicial, cumprir oficinas de Medidas Socioeducativas (MSE), enquanto sua família passa a incorporar os serviços de atendimento do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI).

O ano é 2010, e sua história chega até o corpo de técnicos da Secretaria de Cidadania de um município da região metropolitana de Porto Alegre assim: adolescente em conflito com a lei encaminhado por tentativa de homicídio. A razão judicial declara: agora com 17 anos Highlander havia arquitetado com comparsas um plano para matar sua mulher, entretanto o tiro literalmente sai pela culatra, e os compadres aliam-se à sua companheira, voltando-se contra ele. Numa emboscada ele é fuzilado com 15 tiros, como as 15 siglas que atravessaram sua vida, em meio aos 15 prontuários existentes sobre si, nas malhas das 15 políticas de saúde, assistência, educação, cidadania, trabalho, segurança etc. que subjetivaram modos de existência para ele, como infame, desde antes mesmo de seu nascimento, ao marcar sua matriz familiar como constituída por vidas banidas da normalização.

Esta é a história de mais um entre tantos guris que são levados aos serviços de proteção socioassistencial e que termina em trágica morte. Eis que Highlander não morre... Após esse episódio ele retorna ao serviço socioassistencial, com algumas sequelas do fuzilamento, mas vincula-se com a assistente social do CREAS, passando a participar das oficinas de medidas socioeducativas ministradas ali. O guri que não morre comparece aos encontros necessários, reconcilia-se com a esposa e, quase ressocializado, é encaminhado para um emprego.

Não fossem as dificuldades para se lembrar de detalhes do trabalho, Highlander teria conseguido reabilitar-se como office boy de uma empresa. Porém, após tantos atravessamentos, ele não é reinserido na sociedade de maneira adequada, não consegue ressignificar sua vida, dar conta das falhas de seu ser. Pede para sair do emprego e passa, dessa forma, a recair na esfera criminal, pois agora, com 18 anos, o guri Highlander entra para novas siglas, as dos homens "sem nenhuma chance verdadeira de realmente iniciar" (Lispector, 2009, p. 21).

Trazemos esse personagem da vida real para a discussão não como um processo de julgamento sobre práticas e ações com determinadas populações, mas na busca de um exercício genealógico de olhar para a história e refletir sobre aquilo que produzimos, problematizando os discursos que nos objetivam. É preciso notar que designamos como sujeito dessa história a primeira pessoa do plural, o pronome nós, uma vez que as questões discutidas neste texto surgem a partir de experiências vividas na trajetória profissional das autoras e no espaço de discussão das práticas psicológicas na articulação entre psicologia, sistema de justiça, políticas públicas e Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Dessa forma, ao trazer as experiências que atravessaram a história de Highlander, a ideia é assumir uma "humildade epistemológica (...) e ter sempre presente que somos irremediavelmente parte daquilo que analisamos e que tantas vezes queremos modificar" (Veiga-Neto, 2002, pp. 34-36), questionando os estatutos de verdade presentes nas práticas voltadas para uma juventude tomada como alvo de investimento estatal.

Nesse sentido, entender os discursos acerca dos adolescentes em conflito com a lei e as práticas que atravessam essa população, como parte das forças que assim a constituem, pode ser um caminho para provocar deslocamentos quanto ao lugar que a psicologia ocupa nesse campo, além de questionar o âmbito das próprias políticas que teimam em justificar sua atuação em nome de discursos "re" (de ressocialização, reabilitação, reeducação, reinserção, entre outros). Para tal, após apresentar Highlander como visto pelos prontuários e serviços de atendimento, podemos visualizar as possibilidades para que esse grupo populacional, composto por muitos outros Highlanders, torne-se objeto de intervenção de uma trama de práticas de governo voltadas para jovens em situação de conflito com a lei.

A história de Highlander torna possível observar o conjunto de práticas que constituem aquele que é passível de ser exterminado: o jovem em situação de conflito com a lei. São práticas heterogêneas, poderes e saberes que se utilizam da lógica do evolucionismo, de que sobrevive o mais forte, eliminando-se o mais fraco: um direito que vem intervir "para aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências" (Foucault, 2005, p. 295), para que uma sociedade mais sadia seja construída. Dessa forma, as intervenções sobre os sujeitos se justificam ao serem legitimadas normalizações sobre a vida, e, embrenhando-se em meio aos mecanismos de poder agenciados para capturar os considerados anormais e infames, as populações jovens tomadas como abjetas vão se constituindo como vida a ser gerenciada.

A sujeição dos jovens vai ocorrendo nos campos dos saberes da medicina, da educação, da administração e da produção: uma juventude que se vê como conjunto heterogêneo, que deve ser aproveitada no auge de sua saúde, capacidade e aptidão, gerando cidadãos úteis para a sociedade. Os jovens passam a ser instrumentos do progresso, vistos como achados funcionais para a manutenção das práticas de uma sociedade produtiva. Com o sujeito jovem sendo tomado como problema social, passa a existir a necessidade de homogeneização, controle e regulamentação dessa população. Tais movimentos reguladores podem ser vistos na instituição de leis para dirigir os sujeitos que estão enquadrados na categoria juvenil, na criação de políticas de inclusão que coloquem os desviantes na bandeja do Estado, na produção de oficinas que acabam servindo para a manutenção e governo de certos tipos de jovens, como Highlander.

Em suma, em grande parte das ações sociais voltadas para essa população, que remetem a regimes de verdade sobre o sujeito jovem, vemos a busca pela constante reconfiguração e envolvimento (no sentido de abarcar em um invólucro) dos excluídos. Entretanto, cabe dizer aqui que não queremos desconsiderar as lutas que construíram as políticas públicas para a juventude - dentre elas o próprio ECA, por exemplo -, mas ressaltar que, no movimento de inserir o jovem no social, oferecemos a eles ações que os incluem já em uma posição de marginalidade, como é o caso de Highlander.

Nesse sentido, a ciência psi passa a tomar o campo das políticas de proteção como espaço para novas práticas de subjetivação, alcançando aqueles que uma vez eram inatingíveis:

Insistimos nesta articulação entre a Assistência Social e a afirmação da vida - não por acaso ou por retórica - mas porque é disso que se trata. Esta é a questão a ser aprofundada, o desafio a ser enfrentado por nós, profissionais da Psicologia, intervindo por meio da política da Assistência Social. É preciso estar atento às potencialidades e às vulnerabilidades instaladas nas comunidades, nos territórios, onde as famílias estabelecem seus laços mais significativos. É preciso "ir onde o povo está", já disseram antes (CREPOP, 2008, p. 15).

Essa possibilidade de ampliação do alcance das práticas psicológicas no interior das políticas governamentais põe à mesa a estatização da vida, posto que as práticas de subjetivação se voltam para o campo de uma política da vida juvenil, cujos discursos envolvem uma juventude que é vista como um bem naturalizado e que pode ser atravessada, tão literalmente como os tiros que perfuraram Highlander, por diversos programas que vão formatando a vida desses sujeitos. Assim, em cada etapa de vida dos jovens infames, existe um programa para acudi-lo, contorná-lo, gerenciá-lo... como aconteceu com o jovem Highlander, que desde os nove anos passa pelas diversas siglas de proteção (PAEFI, PETI, ASEMA, CASEMI, CREAS e assim por diante). O sujeito jovem vai, então, se despedaçando em migalhas de siglas e serviços em prol de uma coletividade, uma vez que em uma sociedade de consumo o jovem desviante passa a ser considerado um produto que funciona em termos de interesses. Entre consumir e ser consumida, essa população vai se constituindo na voragem de uma lógica utilitarista.

Considerar a juventude dessa forma deve-se, segundo Foucault (2008), à nova razão governamental que se instaura a partir do século XIX e que nos molda atualmente. Essa razão visa o mercado, expõe "um jogo complexo entre os interesses individuais e coletivos, a utilidade social e o benefício econômico, entre o equilíbrio do mercado e o poder público, (... ) entre direitos fundamentais e independência dos governados" (p. 61). A propósito do mercado, é dada abertura a uma era a serviço da liberdade, em cujas práticas se observam o cuidado, a manutenção e a segurança sobre determinadas populações. Uma era em que os discursos da inclusão social e da ressocialização aparecem diretamente associados com o slogan dos direitos humanos e da liberdade, gerando, no cenário social, ações que promovem a quantificação e a qualificação dos sujeitos para o bem-estar da sociedade.

Compreendendo que a ideia da qualidade de vida liga-se a uma questão política biopolítica -, pois existe uma lógica de consumo através da qual os sujeitos passam a ser governados para o benefício de todos, o bem comum da espécie, é possível falar em uma disciplinarização dos jovens pobres, considerados desviantes para a vida, produzindo estratégias de governo que se destinam ao gerenciamento desse grupo populacional juvenil. O Estado, nesse sentido, não intervirá diretamente nos sujeitos jovens, mas na "república fenomenal dos interesses" (Foucault, 2008, p. 63) que move a circulação e a aplicabilidade dessa população. Desse modo, a gestão da vida acontece na garantia dos direitos à liberdade dos indivíduos: liberdade para ser o máximo que podem ser e capitalizar, liberdade para aumentar o potencial vital e produzir, liberdade para consumir.

A ligação entre inclusão social e liberdade desenrola-se, então, no momento em que os indivíduos devem ser livres para usufruir e gerir suas vidas movimentando o mercado. Contudo, mais do que isso, a amarra entre ambas ocorre quando existe uma ordem natural que diz que todos têm o direito de ser livres e devem gozar plenamente desse direito, isto é, quando se tem um mandato que incumbe potencializar o desenvolvimento de cada ser humano. É nesse ponto que se governa o sujeito livre: nas ações que passam a mapear essa liberdade, as quais vão prevenir o modo como cada um dirige suas ações, na busca pela melhoria da qualidade de vida. Desse modo, falamos ironicamente em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, que, como no caso Highlander, destinam-se a colocar o sujeito meliante no campo do mercado, para ser digno e conseguir comprar sua coca-cola, para ser punido por seu ato infracional, mas também sentir na pele a qualificação do trabalho honesto.

Assim, vai ocorrendo um jogo entre a manufatura e a manutenção da liberdade e o desenvolvimento de novos aparatos de segurança, conjunto do qual a economia de interesses se alimenta. Dessa forma, as políticas de proteção podem ser compreendidas como mecanismos de segurança que surgem para garantir a liberdade dos indivíduos, mas em suas práticas vão construindo e organizando certas formas de gerir a vida livre. Projetos sociais e campanhas públicas são planejados para proteger e regulamentar os sujeitos, comunidades terapêuticas vêm para isolar os desvalidos sociais, oficinas de medidas socioeducativas vêm marcar como ferro em brasa os infratores. Assim, entre o controle e a regulamentação, entre práticas de assistência e cidadania, entre normativas e disciplinas a cumprir, tomam forma as engrenagens que constituem as práticas de governo para conduzir a população juvenil infratora, agenciadas através de um jogo calculado ligado à proteção pública. Nelas, movimentos que falam em liberdade, assim como as propostas para políticas públicas vão marcando a emergência de uma função biopolítica que atravessa os jovens sujeitos de direitos, transformando-os em uma população que se deve administrar.

O apelido dado ao jovem protagonista de nossa história foi assim proposto pelos técnicos da rede socioassistencial do município em que ele circulava, a partir de um personagem fictício de um filme dirigido, em 1986, por Russel Mulcahy e chamado, na versão brasileira, de Highlander - O Guerreiro Imortal. No enredo cinematográfico, o guerreiro, mesmo ferido mortalmente diversas vezes, insiste em sobreviver. No decorrer da trama, descobre-se que sua parte mortal é a cabeça. Tal nome fez sentido no caso do nosso Highlander, visto que a insistência em se fazer viver o mantém desacomodando as práticas socioassistenciais, mesmo após ter sido alvejado por 15 tiros. Assim, ele é motivo de brincadeiras, no campo social, daqueles que conhecem o jovem sobrevivente, o guerreiro imortal. Enquanto não morre, essa vida nua pode ser jogada no tabuleiro das políticas públicas, sendo atravessada por siglas e enviada a terrenos disciplinares da alma (Ramos do Ó, 2006), sendo estes tomados como lugares que visam expor e manipular os sujeitos ali apreendidos. Nesse sistema, Highlander passa a ter sua vida quantificada, e, para abarcar seus desvios, o número de políticas públicas existentes vai aumentando.

 

Considerações finais: alianças entre a psicologia e o direito na produção de saberes sobre jovens perigosos

A psicologia e o direito, como campos de saber convocados a falar sobre a juventude, entram nos jogos de produção de verdade que circundam essa população, produzindo conhecimentos sobre quem é o sujeito tido como viciado ou delinquente, quais são as atitudes que podem ser esperadas dele, de que forma combater suas atitudes nocivas ao corpo social, qual o curso e o prognóstico de sua doença, quais distúrbios de comportamento estão associados, quais os perigos a que estão expostas as famílias e a sociedade na proximidade desse sujeito. A isso segue-se uma série de estratégias de manifestação desse conhecimento como verdade, como a apresentação de dados estatísticos, dos resultados de pesquisas, de imagens cerebrais ou mesmo de casos do cotidiano em que os fatos ocorreram tal qual previsto pela ciência. Vê-se aí o exercício de produção pela ciência da questão que se quer elucidar. Atrela-se a isso a oferta de respostas, tratamentos e formas de manejo mais ou menos eficazes, das quais devem cercar-se aqueles a quem cabe a defesa da sociedade, do Estado e dos cidadãos.

Os jovens em situação de vulnerabilidade social vão ser descritos pelos saberes psi muitas vezes como imediatistas e sem perspectivas de futuro, tendo em vista o risco de morte que se faz presente no cotidiano. A própria condição adolescente é vista como impulsiva e inconsequente. Somam-se a isso as afirmações sobre o descontrole e a fraqueza frente à potência da droga e de seus efeitos durante o uso e em períodos de abstinência. A montagem desse quadro contribui para a emergência da noção de que, estando essa população desprovida de autocontrole, resta como única forma de intervenção/solução possível aquela que se dá pela via da disciplina e da contenção, mesmo que forçada, desse jovem, afastando-o, ainda que momentaneamente, das ruas, lugar reconhecido como cenário dessa obra.

Cabe ainda ao Estado exercer o controle, que se faz deficitário, na vida da população de jovens. Encontra-se, portanto, a função fundamental do Judiciário de intervir em favor dessa solução oferecida por diversos especialistas como única possível, em nome da garantia do direito à vida, pelo bem do jovem, das famílias e da sociedade. O que se evidencia aqui é a vinculação de determinados saberes com formas de exercício do poder que opera na inclusão da vida desses jovens nos mecanismos de gestão do Estado.

Quando lançamos um olhar mais atento para as políticas públicas que se propõem a cuidar dessa população, a caracterização desses indivíduos e famílias como sujeitos disfuncionais e potencialmente perigosos é a justificativa da necessidade de intervenção do Estado, visando à proteção desses sujeitos porque sua história e seus modos de vida se parecem com as histórias e os modos de descrever a vida de sujeitos que já se envolveram em atos ilícitos e violentos. Relação essa produzida essencialmente por saberes psi. Esses sujeitos ameaçam a ordem social não somente pela via da segurança pública, mas porque denunciam a falência das nossas instituições de disciplinamento e os limites dos conhecimentos que produzimos.

A produção de algo que está fora da ordem é, então, o que permite a ação, tanto dos campos de saber quanto do Estado, na busca da condução de uma população desviante que ameaça a estabilidade do sistema ao lugar da norma. Esse poder de normalização, como descrito por Foucault (2001), não se constitui apenas como o encontro entre os saberes psicológicos e jurídicos, mas atravessa a sociedade moderna. Isto é, embora esse poder de normalização possa apoiar-se nas instituições psi e jurídicas, ele se situa na fronteira entre ambas e está para além destas com sua autonomia e suas regras próprias. Ao falarmos em um poder de normalização, referimo-nos aqui a uma noção de norma que se constituiu sobre os sujeitos através da produção de saberes por áreas das ciências humanas, dando-se não mais sobre a doença, mas pela descrição de padrões de conduta objetivos e válidos em determinada organização social (Canguilhem, 2006). Como resíduo, surgiram os irredutíveis, não ajustáveis, que justificam a necessidade de intervenção. As estratégias de reinscrição da norma vão se focar, principalmente, no indivíduo reconhecido como perigoso (Foucault, 2001).

A resposta a essa demanda de intervenção aparece no desmembramento de tecnologias de governo sobre a população de jovens potencialmente perigosos. A sobreposição da imagem da juventude com a violência é o que favorece a disseminação de sentimentos de insegurança junto à população, consolidando a ideia de uma juventude potencialmente perigosa. Criam-se aparatos governamentais destinados a gerir a vida e a conduta de crianças e adolescentes, como as políticas públicas de assistência social, saúde, justiça e segurança pública.

As ações do Estado junto aos jovens justificam-se pela necessidade de garantir a efetivação dos direitos fundamentais. A criação do ECA constrange o Estado a agir em prol da proteção dessas crianças e adolescentes - nesse caso, em nome de crianças e adolescentes que não dispõem de proteção ou de acesso a bens e serviços por meios próprios, através de suas famílias. Ao mesmo tempo em que o ECA se constitui como ferramenta de garantia de direitos, é por meio dele que se articulam mecanismos de governo que operam politicamente sobre essa parcela de jovens pobres economicamente desassistidos. Nesse sentido, o ECA não é só fonte de proteção aos adolescentes, tendo em vista que impõe, além das medidas protetivas, as medidas socioeducativas; ou seja, é também o próprio ECA que aplica a punição legitimada, sob a falácia da reeducação dos adolescentes.

É no interior mesmo dessas políticas públicas que se constrói uma inversão na relação protetiva, que se desloca do sujeito jovem para a proteção de determinada ordem social. Isso porque, sob a justificativa da proteção e do cuidado, abre-se caminho para práticas de punição, exclusão e sofrimento, ainda que sob o nome de medida socioeducativa. Enquanto as medidas punitivas precisam seguir uma série de determinações legais, as medidas protetivas, sob a bandeira do cuidado, têm se constituído como mecanismos privilegiados de exercício de um poder punitivo e de normalização sem limites. Nesse sentido buscamos, justamente, questionar o que está sendo garantido quando o Estado age em nome da garantia de direitos, isto é, o que mais se produz através de um poder que se quer exercer sobre a vida, ou o que mais se produz através de políticas públicas de proteção à vida.

 

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Endereços para correspondência
Andrea Cristina Coelho Scisleski
ascisleski@yahoo.com.br

Carolina dos Reis
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Oriana Hadler
orianahhadler@terra.com.br

Mariana de Assis Brasil Weigert
mabw@terra.com.br

Neuza Maria de Fátima Guareschi
nmguares@gmail.com

Submetido em: 23/05/2012
Revisto em: 23/11/2012
Aceito em: 08/12/2012