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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.64 no.3 Rio de Janeiro dez. 2012

 

ARTIGOS

 

Os psicólogos na atenção às psicoses nos CAPS

 

Psychologists in the care of psychosis at CAPS

 

Psicólogos en atención a las psicosis en CAPS

 

 

Gabriel Amador de LaraI; Janine Kieling MonteiroII

IMestre em Psicologia (Unisinos). Psicólogo do CAPS Vida Nova de Brusque. Prefeitura Municipal de Brusque. Santa Catarina. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). São Leopoldo. Rio Grande do Sul. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa teve como objetivo explorar as práticas dos psicólogos na atenção às psicoses nos CAPS do estado de Santa Catarina. A metodologia empregada foi qualitativa, sendo o estudo descritivo e transversal. A coleta de dados foi realizada com entrevista semiestruturada, interpretada através de análise de conteúdo. Participaram dez psicólogos dos CAPS I, II e III de quatro regiões diferentes do estado. Os resultados mostraram formação insuficiente para atuação nos serviços. O trabalho em equipe foi considerado satisfatório, sendo fonte de prazer para os profissionais. Os dados também mostraram evolução das práticas desenvolvidas pelos psicólogos para patamares mais aproximados da proposta de atenção psicossocial contida nos preceitos da reforma psiquiátrica brasileira. Os CAPS foram avaliados como de boa qualidade. Alguns problemas apontados foram: a má política de gestão do trabalho, a escassez de recursos e a pouca articulação externa de alguns CAPS.

Palavras-chave: Psicólogos; Saúde mental; Psicoses.


ABSTRACT

This research aimed to explore the practices of psychologists in the care of psychoses at CAPS of Santa Catarina state. The methodology used was qualitative, descriptive and transversal. Data collection was made of semi-structured interviews, analyzed through content analysis. A total of 10 psychologists of CAPS I, II and III in four different regions of the state participated. The results showed insufficient training to work with services. Teamwork was satisfactory, with good partnerships and being a source of pleasure to the professionals. The data also showed the evolution of practices developed by psychologists to more approximate of the psychosocial care contained in the proposal of the Brazilian psychiatric reform. The Caps were assessed as being in good quality. Some problems cited were: poor political management of labor, scarcity of resources and low external articulation of some CAPS.

Keywords: Psychologists; Mental health; Psychosis.


RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo explorar las prácticas de los psicólogos con las psicosis en los CAPS del estado de Santa Catarina. La metodología utilizada fue cualitativa, descriptiva y transversal. La recolección de datos se realizó con entrevistas semiestructuradas, interpretada a través de análisis de contenido. Participaron 10 psicólogos de CAPS I, II y III de cuatro regiones del estado. Los resultados mostraron una formación insuficiente para trabajar en los servicios. El trabajo en equipo fue satisfactorio, siendo fuente de placer para los profesionales. Los datos también mostraron la evolución de las prácticas desarrolladas por los psicólogos a niveles más aproximados de la propuesta de atención psicosocial contenidas en los preceptos de la reforma psiquiátrica brasileña. Los CAPS fueron evaluados como de buena calidad. Algunos de los problemas citados: la mala gestión de la mano de obra, la escasez de recursos y la baja articulación externa de algunos CAPS.

Palabras-clave: Psicólogos; Salud mental; Psicosis.


 

 

Introdução

Esta pesquisa tem como tema as práticas dos psicólogos na atenção às psicoses nos CAPS. A inserção dos psicólogos na saúde coletiva brasileira vem acontecendo ao longo das ultimas três décadas, a partir das lutas iniciadas pelos profissionais do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), através das reformas psiquiátrica e sanitária brasileira. No período em que o modelo hospitalocêntrico era predominante, a participação dos psicólogos nessas instituições era insipiente, sendo esses profissionais alocados principalmente em consultórios particulares (Ferreira Neto, 2010; Vasconcelos, 2004).

Foi a partir da montagem das primeiras equipes multidisciplinares de perfil ambulatorial, na reforma sanitária, que o psicólogo se inseriu de maneira mais incisiva nas políticas públicas de saúde (Vasconcelos, 2004). A expansão da rede de atenção psicossocial na década de 90 permitiu a abertura de muitas vagas neste campo de atuação. Apesar disso, o percurso acadêmico de graduação focado no modelo clínico liberal não se alterou de forma significativa devido a certa resistência dos profissionais às práticas inovadoras que necessitavam emergir para essa nova situação de trabalho. A mudança necessária vem da premente incorporação do compromisso social e responsabilização pelas necessidades de uma demanda diferenciada baixa renda, sujeitos psicóticos, diversidades culturais (Dimenstein, 2001; Vasconcelos, 2004).

As novas competências requeridas desde então têm se afastado do modelo clássico de atuação e se aproximado das necessidades de uma clínica comprometida com a integridade e territorialidade dos cuidados, sendo mais alinhadas às propostas da atenção psicossocial. No entanto, muitos desafios se apresentam ainda, principalmente no tocante às intervenções extraclínicas (Ferreira Neto, 2010). Ressalta-se, entretanto, que a clínica psicossocial não exclui o conhecimento clássico advindo da psicopatologia e da psicanálise, tão caros ao campo da saúde mental.

 

A clínica psicossocial e os CAPS

As novas ações construídas se deslocaram para o interior de uma perspectiva ampliada, aparecendo na literatura em saúde mental sob o cognome de clínica psicossocial. Para que seja operacionalizada, o profissional necessita trabalhar em rede, intermediando o diálogo entre os setores públicos e a sociedade civil, articulando suas ações no âmbito comunitário e familiar. A intersetorialidade deve ser utilizada na recuperação dos laços sociais e ser promotora de autonomia, auxiliando os sujeitos no desenvolvimento de suas potencialidades e na transformação de suas realidades contextuais (Alves & Francisco, 2009).

Dentro da política nacional de saúde mental, cabe aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ser referência para os portadores de sofrimento psíquico grave e/ou crônico, incluindo-se os sujeitos psicóticos. Os CAPS trazem em suas diretrizes a realização de acompanhamento clínico e de reinserção social, bem como ser uma alternativa às internações hospitalares. Procuram se articular dentro de um fluxo municipalizado de saúde, sendo responsáveis por organizar a rede local de saúde mental e dar máxima resolutividade aos casos que surgem na comunidade de sua responsabilidade (Cavalcanti, Dahl, Carvalho, & Valencia, 2009; Nunes, 2005). Contam com equipes multiprofissionais, que devem atuar de maneira integrada às demandas de cuidado condizentes com os paradigmas da reforma psiquiátrica (Olschowsky, Glanzner, Mielke, Kantorski & Wetzel, 2009).

Um dos principais problemas que necessitam do tipo de cuidado oferecido nos CAPS é o dos transtornos psicóticos. O espectro do quadro psicótico pode ser definido de maneira descritiva, geralmente em compêndios de classificação (estes utilizados oficialmente como parâmetros para os serviços públicos de saúde), agrupando critérios diagnósticos para formar quadros maiores e pode também ser explicado por teorias psicológicas, neurofisiológicas, genéticas, familiares, dentre outros fatores combinados ou isolados (Sadock & Sadock, 2008). Para os sujeitos com essa problemática pode causar extremas dificuldades de interação social, autonomia e autocuidado, isolamento e possíveis riscos de suicídio (10% dos casos). Na abordagem desse quadro destaca-se a crítica de Foucault (1975) à noção de doença mental, importante para o campo da atenção psicossocial. Para esse autor, essa concepção promove uma objetalização do sujeito e, por isso, negligencia as particularidades pessoais, essenciais para a compreensão da história do indivíduo. Para Foucault, a própria noção de doença está condicionada à cultura e ao contexto no qual a mesma está inserida. Assim, um grupo de manifestações tidas como patológicas pode ter significados variados, validados e alterados sóciohistóricamente pelos grupos humanos.

As pessoas atendidas pelo CAPS têm a seu dispor uma série de atividades que direcionam a reabilitação e reinserção psicossocial, assim como o protagonismo dos usuários frente às suas vidas (Leão & Barros, 2008; Onocko-Campos & Furtado, 2006). Dentre elas, pode-se destacar: atendimentos individuais, em grupo e familiares; oficinas artísticas; visitas domiciliares; atividades esportivas; atividades de inserção na comunidade e assembleias de organização do serviço abertas a todos (técnicos, usuários, familiares, população). Tudo isto é operacionalizado através de projetos terapêuticos individualizados, os quais servirão como ferramenta para o planejamento e acompanhamento do tratamento (balizando as ações da equipe), bem como para a co-responsabilização do usuário pelo seu processo de reabilitação (Onocko-Campos et al., 2009; Rinaldi & Bursztyn, 2008; Sanduvette, 2007; Rosa, 2005).

Ao analisar as publicações científicas sobre CAPS entre 1997 e 2008, Ballarin, Miranda e Fuentes (2010) encontraram 160 artigos, com predominância da categoria temática rede de serviços em saúde mental (58%), ficando em quinto lugar as pesquisas sobre os trabalhadores dos serviços (5,6%). Estudos investigando os processos de trabalho e os impasses, ganhos e dificuldades dos trabalhadores de CAPS têm sido realizados nos últimos anos em vários municípios do Brasil, apresentando resultados diferentes (Alverga & Dimenstein, 2006; Antunes & Queiroz, 2007; Cavalcanti et al., 2009; Jardim, Cartana, Kantorski, & Quevedo, 2009; Koda & Fernandes, 2007; Leão & Barros, 2008; Lopes Neto, Veira, Arruda, & Farina, 2009; Luzio & L'Abbate, 2009; Mondoni & Costa-Rosa, 2010; Nascimento & Galvanese, 2009; Olschowsky et al., 2009; Rabelo & Torres, 2006).

Do lado das críticas e problemas, com relação à organização do trabalho, os resultados mostraram a possibilidade de alguns serviços estarem se tornando ambulatórios cronificantes sem projeto terapêutico individualizado, formando filas de espera para atendimento ou trabalhando sem perspectiva de alta. Destaca-se ainda: escassez e má gestão de recursos financeiros e humanos, sobrecarga de funções dos técnicos, desigualdades regionais na implementação da reforma, baixos salários e desconhecimento da legislação em saúde mental. Foram encontradas dificuldades em expandir as práticas para fora dos serviços. Sobre as práticas e concepções, aparecem ideias de tutela, de incapacidade dos usuários, de dependência excessiva da medicalização, hegemonia do modelo biomédico, convivência de práticas e modelos de atenção conflitantes entre os profissionais, além de formação deficitária para atuar em saúde mental.

No entanto, pesquisas também têm apontado avanços e qualidades no trabalho desenvolvido nos CAPS (Campos & Soares, 2003; Mielke, Kantorski, Jardim, Olschowsky, & Machado, 2009; Kantorski et al., 2009; Nunes, Torrenté, Ottoni, Moraes Neto, & Santana, 2008; Onocko-Campos et al., 2009). Há transformação no cuidado e nas relações interpessoais em relação ao modelo asilar, com experiências de boas práticas de reabilitação, auxilio e orientação familiar. Percebeu-se capacidade para acolher crises, a construção de projetos terapêuticos e avanço para concepções multicausais do sofrimento psíquico. Surgiram avaliações positivas dos usuários, que julgaram ser tratados com respeito e afeto, sentindo-se valorizados por poder participar nas decisões sobre seu tratamento. Em pesquisa realizada em CAPS de toda região Sul do Brasil, as equipes se mostraram bastante engajadas e comprometidas com o cotidiano da construção do processo de reforma (Kantorski et al., 2009).

 

Atuação do Psicólogo nos CAPS

Algumas pesquisas foram desenvolvidas (Correia, 2007; Figueiredo & Rodrigues, 2004; Sales & Dimenstein, 2009a, 2009b) com a finalidade de investigar práticas e desafios atuais para os psicólogos de CAPS, mas nenhuma teve foco específico no acompanhamento de sujeitos psicóticos. Figueiredo e Rodrigues (2004) estudaram a atuação de psicólogos dos CAPS do Espírito Santo e perceberam que a desinstitucionalização não estava sendo de fato implementada no cotidiano destes profissionais. Predominava o modelo clínico tradicional, de abordagem psicanalítica, foco na estrutura clínica e nos sintomas do usuário, pouco centrado nos elementos relacionais e comunitários do adoecimento. A insipiente promoção da reinserção social foi atribuída à escassez de formação específica para atuar na saúde mental e às condições de trabalho precárias.

Em levantamento quantitativo que reuniu os psicólogos dos CAPS de Santa Catarina, Correia (2007) encontrou dados semelhantes. Os pesquisados responderam que os CAPS possuem boa estrutura física, mas carência de recursos humanos e financeiros. Na atuação dos psicólogos, também predominou a psicoterapia individual, seguida pelo atendimento em grupo e, em último plano, o atendimento à família e à comunidade. Novamente foi constatada defasagem no ensino de graduação que auxiliasse os profissionais no desempenho das suas funções.

Em estudo com psicólogos dos CAPS do Rio Grande do Norte, Sales e Dimenstein (2009a, 2009b) concluíram que falta postura crítica e ação política na transformação dos saberes e dos sujeitos na busca de promoção de saúde mental. A maioria dos técnicos colocou a escuta clínica qualificada como a especificidade do psicólogo na equipe, mas apontaram que a prática em um CAPS é diferente do consultório privado. A lacuna na formação e no conhecimento é relatada como um dos entraves ao avanço da reforma.

Diante das questões abalizadas, considerando a necessidade de aperfeiçoamento dos quadros que atuam nos serviços de implementação da reforma psiquiátrica nacional e a ausência de pesquisas sobre o trabalho dos psicólogos dos CAPS com os usuários psicóticos, faz-se pertinente a seguinte questão: Quais são as práticas que estão sendo desenvolvidas pelos psicólogos na atenção às psicoses nos CAPS? Para pesquisar este mote, este estudo teve como objetivo investigar a atuação destes profissionais no contexto catarinense. Além disso, foi necessário estabelecer alguns objetivos secundários, tais como: compreender a concepção de doença mental e de psicose dos psicólogos dos CAPS I, II e III de Santa Catarina; analisar aspectos relacionados à formação e à atuação profissional dos psicólogos com pacientes psicóticos neste contexto; identificar dificuldades e desafios encontrados em seu cotidiano de trabalho com os portadores dessa classe de sofrimento psíquico.

 

Método

O delineamento utilizado foi qualitativo, descritivo e transversal. Pope e Mays (2009) afirmam que a pesquisa qualitativa está ligada à exploração e detecção dos significados subjetivos atribuídos às vivências singulares que os sujeitos experimentam cotidianamente, sem a utilização de uma manipulação experimental do que se está procurando descrever ou explicar, tendo, inclusive, o papel de desanuviar fenômenos sociais e atitudinais que não se deixam apreender por métodos quantitativos. O pesquisador sempre está implicado em sua pesquisa e assume esse fato naturalmente, sem pretender acomodar-se com o argumento da neutralidade e da abstenção científica.

Participantes

Foram entrevistados presencialmente 10 psicólogos, pertencendo a CAPS de quatro microrregiões do estado de Santa Catarina. A seleção foi realizada por conveniência, a partir dos profissionais contatados que responderam uma pesquisa quantitativa anterior. A determinação do número final de participantes ocorreu através de saturação das respostas por repetição dos conteúdos (Flick, 2004). Os critérios de inclusão adotados foram: estar no cargo há no mínimo seis meses e trabalhar em um CAPS I, II ou III.

Participaram seis psicólogos de CAPS I, dois de CAPS II e dois de CAPS III. Oito mulheres e dois homens, possuindo de 28 a 57 anos de idade (M = 43,5). Tinham entre quatro e 31 anos de formados (M = 11,6), e entre 10 meses a 10 anos de atuação em CAPS (M = 3,5). Na orientação teórica dos profissionais, predominou a abordagem cognitivo-comportamental, com quatro sujeitos, seguida do psicodrama, com dois, e a psicanálise, sistêmica, análise transacional e a reabilitação psicossocial com um representante cada. Todos os sujeitos possuíam pós-graduação, oito com especialização latu sensu e dois com mestrado - sendo três com temáticas alinhadas ao foco de seu trabalho no CAPS.

Instrumento

Foi utilizada uma entrevista com roteiro semiestruturado contendo 14 perguntas subdivididas em quatro eixos temáticos, elaborados a priori a partir da revisão de literatura e dos objetivos da pesquisa. A entrevista semiestruturada se apresenta como uma forma de depoimento a partir que uma sequência de perguntas abertas, propostas oralmente e em uma determinada ordem, que pode ser flexibilizada com a inclusão de novos questionamentos e esclarecimentos a partir do que foi respondido (Pope & Mays, 2009).

Procedimentos de pesquisa

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (número 010/2011), sendo observados todos os critérios éticos necessários. A coordenação estadual de saúde mental do estado de Santa Catarina e os coordenadores dos CAPS foram consultados primeiramente, autorizando as coletas de dados.

Na coleta de dados, os profissionais foram convidados por telefonema e esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa. As entrevistas foram gravadas presencialmente nos locais de trabalho. A coleta de dados aconteceu entre maio e agosto de 2011.

 

Resultados e discussão

As entrevistas foram transcritas, codificadas tematicamente, categorizadas e submetidas à análise de conteúdo, a fim de ser, posteriormente, discutidas sob o enfoque da revisão de literatura realizada. A codificação temática refere-se ao processo de fragmentar o corpus textual reorganizando-o a partir de partes mais gerais para categorias específicas definidas a priori. Feito isso, subcategorias são criadas dentro das categorias analíticas gerais, predefinidas na construção do instrumento de pesquisa. Quando se passa para a análise dos conteúdos, leva-se em consideração também o contexto - tanto dentro do campo linguístico quanto relacional - para a compreensão do material produzido na interação entre o pesquisador e o pesquisado (Flick, 2004). A partir do relato das entrevistas, as unidades de sentido foram agrupadas em três eixos: concepção de doença mental e psicose, possibilidades terapêuticas no ambiente institucional e desafios e dificuldades.

Concepção de doença mental e psicose

Quanto às noções de doença mental, sete descrições foram contempladas: a doença como consequência do sofrimento psíquico, como forma de alterações comportamentais e emocionais, como sintomas que extrapolam a normalidade, como ausência de saúde, como uma forma de funcionamento particular e associada ao comprometimento da vida cotidiana. A doença percebida através do sofrimento psíquico que a acompanha se refere às manifestações dos sujeitos p1, p4, p8 e p10: "A referência vai ser o que, como eu disse no inicio, é a função daquele comportamento né... Então, é se aquele comportamento é adaptativo ou não, qual o grau de sofrimento que aquilo causa ao sujeito" (p1).

Já a doença compreendida através de alterações comportamentais e emocionais aparece em p1, p3, p4 e p8:

Na verdade doença mental está bem atrelada à questão de alteração de comportamento... Também está atrelada ao sofrimento psíquico, e tudo que altera o comportamento está relacionado à doença mental... Por quê? Por que as pessoas percebem a doença mental através da alteração do comportamento da pessoa (p4).

A doença vista como um conjunto de sintomas que escapam a uma percepção de normalidade pelo olhar de terceiros foram relatadas por p6 e p7: "É quando a pessoa apresenta sintomas fora da normalidade, que aquilo está causando algum perigo pra própria pessoa ou pra alguém" (p7). O fenômeno foi definido também pelo seu oposto, como ausência de saúde, para p5 e p7: "Independente de qualquer diagnóstico, de qualquer patologia. Eu acho que é bem esse inverso da saúde, apesar da gente não saber qual é o limite entre uma e outra" (p5).

Quando a pessoa perde a capacidade de resolver seus conflitos e problemas a doença acontece como uma manifestação desta dificuldade, acreditam p2 e p6: "Aquilo que ultrapassa a capacidade do paciente de lidar com suas dificuldades" (p2). Além deste fato, alguns participantes creem que o adoecimento mental se dá no momento em que a pessoa percebe que suas atividades cotidianas estão afetadas, e aquilo lhe causa sofrimento: "Qualquer transtorno que traga dificuldade de adaptação. Limite alguma atividade de vida, não aquilo que a gente espera dele na sociedade, mas que para ele seja um problema" (p8).

Um sujeito apresentou uma percepção particular. Para p9, não existem doenças e sim pessoas doentes, e a doença mental é um julgamento moral sobre um funcionamento pessoal não aceito socialmente: "O diferente, a pessoa que não se enquadra, na realidade é um modo próprio de viver o mundo e vivenciar as coisas que acontecem consigo mesmo, e que nem sempre é uma forma saudável de resolver".

Os participantes, em geral, demonstraram visões dispersas do processo de adoecimento. Três categorias mostraram uma perspectiva que retira o foco da doença e o desloca para o sujeito do sofrimento, aquele que sofre em decorrência do comprometimento de suas vivências interiores e relacionais - perspectiva esta que se aproximam do novo modelo epistêmico proposto no âmbito da reforma psiquiátrica nacional (Amarante, 2008). No entanto, se mostram conflitantes com estas ideias as percepções da doença mental como alterações comportamentais e emocionais do ponto de vista externo, uma vez que a vivência de sofrimento é singular e só pode ser capturada a partir do relato de quem a traz como demanda.

Além disto, a perspectiva da doença como desvio da normalidade coloca o indivíduo em um ponto de vista assujeitado, passível de intervenções do outro social na voz do especialista, que, através de atos curativos, lhe trará novamente para o campo do comportamento não desviante. O perigo deste enfoque é o profissional pautar suas práticas no controle moral do desvio, no desrespeito à alteridade e singularidade, deixando à margem aquilo que pode ser produtor de sociabilidades renovadas (Yasui, 2010).

A psicose é vista pelos participantes, principalmente, através do viés do rompimento da pessoa com a realidade, como uma falha na percepção ou na mistura entre realidade e fantasia: "mas podem acontecer falhas na percepção da realidade, na interpretação da realidade. Então acho que isso é uma forma de você compreender e explicar o que acontece quando a pessoa tem o que normalmente se classifica como psicose" (p1).

A visão da psicose como déficit ou dificuldade também foi relatada através das dificuldades nos relacionamentos interpessoais - "[...] aí entra aquela coisa do sujeito distante, do sujeito que está com isolamento social, o sujeito que está com o discurso desorganizado" (p5) - e nas dificuldades para realizar tarefas cotidianas, como trabalhar, estudar ou organizar condições de moradia: "já é um transtorno mais significativo, aquele que realmente cria uma dificuldade de adaptação em todas as áreas: na aprendizagem, desenvolvimento, relacionamento, profissional, social" (p8).

Como no conceito de doença, as manifestações comportamentais e verbais pautam o julgamento de diversos profissionais, e na psicose isto se dá através dos seus sintomas clássicos, como alucinações, delírios e cisões identitárias,

Começam a aparecer aqueles sintomas tradicionais e típicos de psicose, delírios e alucinações, e a gente sabe que em transtornos de humor severos também podem aparecer delírios e alucinações... Mas aí a psicose... Na prática, no dia-a-dia com o paciente a gente percebe outras características... Aí entra aquela coisa do sujeito distante, do sujeito que está com isolamento social, o sujeito que está com o discurso desorganizado (p5).

Um participante apresentou visão única da psicose, que seria um modo diferenciado de funcionamento integral do sujeito, que lhe causa dificuldades sociais pela não aceitação de suas particularidades existenciais:

Um modo diferente de ver o mundo, é uma outra forma de você enxergar, às vezes, uns muito mais além do que os ditos normais... Enquanto que outros sim tem uma dificuldade na organização desses pensamentos e que possa dar uma qualidade ou um funcionar junto com algum grupo, porque não é aceita essa forma de ver (p9).

A pesquisa revela perspectivas predominantemente corroborativas com o saber instituído da psiquiatria clássica sobre as psicoses, onde o fenômeno psicótico é tomado a partir de um saber "normalizante", no qual uma realidade, supostamente comum a todos, pauta o direito à intervenção sobre o comportamento desviante, sendo esta intervenção uma ação também política (Yasui, 2010).

Ressalta-se que é importante tomar o sintoma ou manifestação dita psicótica no âmbito da experiência do sujeito, aproveitar a comunicação que o sintoma positivo traz, o entendendo como uma resposta ao campo social ao qual pertence aquele ser humano apontado como psicótico (Guerra, 2004). A prática de intervenção sobre o psicótico, sem uma demanda de sofrimento localizada por ele perante o outro, acaba tornando-se uma operação moral de normalização e pode ser sentida por ele como uma forma de violação e violência. Além disto, a desinstitucionalização necessita da presença do aprendizado para a lida cotidiana com a diferença, com aquilo que não cabe dentro da norma. Para Sales e Dimenstein (2009b), esse é o maior desafio dos profissionais que têm se aventurado no campo da reforma psiquiátrica.

No quesito da percepção do fenômeno - que irá sedimentar os caminhos da atenção e de um provável projeto terapêutico no serviço -, os sujeitos se reportaram predominantemente às manifestações comportamentais e sintomáticas: "Então quando há uma distorção entre o que a pessoa percebe, interpreta da realidade, e o que a realidade mostra..." (p1). Há, também, a consideração ao relato de terceiros, tanto como fonte de confrontamento do discurso do usuário, quanto na ideia de que os sintomas psicóticos são congruentes e não causam estranhamento à pessoa:

[...] se a gente vê que aquela historia que vem trazendo diariamente, a gente vai investigar a veracidade disso, aí a gente percebe que aquilo não procede, investigar com a família, né, investigar com pessoas que vivem com ele, a gente percebe que aquilo não procede, que aquilo pode fazer parte de um quadro psicótico (p5).

O comprometimento da vida cotidiana e o sofrimento subjetivo são os aspectos que devem ser considerados no julgamento de outro social e não os sintomas:

Você acaba vendo a pessoa, você não entra no diagnóstico, mas a pessoa em si, e dentro daquilo ali o que dele, do funcionamento dele dificulta a sua vida como um todo... Vou trabalhar isso, o desejo dele, do que ele tá querendo modificar, que é isso que a gente vai estar atuando, que ele tem uma dificuldade sim, mas que não é dado pelo sintoma, é dado pelo funcionamento dele, em relação ao que ele está sentindo (p.9).

Diferentemente da fala dos participantes anteriores, p6 e p8 admitem dificuldade em reconhecer ajustamentos psicóticos, seja pela mutabilidade das manifestações, seja por falha apontada na formação acadêmica:

O diagnóstico é muito difícil, porque ele muda, ele é mutável, existe uma séria de fatores que se deve observar. Então eu não consigo ver uma pessoa num primeiro atendimento e definir a realmente é um esquizofrênico... Eu, enquanto psicóloga, sinto muita dificuldade, eu sempre busco nos outros profissionais da área mais referências... (p8).

Esta categoria reforça a concepção predominante trazida no conceito de psicose, onde o observador externo do comportamento se faz juiz para instituir uma norma.

Certamente que existirá, em caso de sintomatologia positiva, incongruência entre o relato do sujeito e de terceiros, visto que a experiência particular da psicose possui uma lógica própria que dificulta os relacionamentos sociais da pessoa (Rinaldi, Cabral, & Castro, 2008). Além disto, a crise, como expressão do rompimento radical com os laços familiares e comunitários e como comunicação de um sofrimento particular, tem recebido como resposta condutas de dominação, visto as ideias de periculosidade que a acompanham (Willrich, Kantorski, Chiavagatti, Cortes, & Pinheiro, 2011).

Portanto, o processo de percepção, acolhimento e cuidado dos sujeitos psicóticos passa pelo sofrimento pessoal, em decorrência do comprometimento para a vida cotidiana, sem um olhar anulador e castrador sobre os sintomas. O auxilio na travessia desse processo, por meio da intermediação no desenvolvimento de potencialidades, está no cerne da reabilitação psicossocial. Não obstante, isso não exclui a necessidade de uma qualificação técnica no campo da psicopatologia que, quando utilizada de maneira crítica, em suas diversas vertentes, irá auxiliar o profissional a orientar sua atuação.

A formação acadêmica dos participantes, para trabalhar com os psicóticos, foi julgada pela maioria como insuficiente no que diz respeito à graduação, tanto por déficits teóricos quanto por carência de práticas direcionadas. Apenas p5 a julgou suficiente, mas não pela sua qualidade curricular, mas pela sua busca pessoal por estudar a psicopatologia tradicional. Por sua vez, a pós-graduação foi suficiente para a maioria dos participantes, apontada como aquela que veio suprir lacunas anteriores do percurso universitário, principalmente nas questões clínicas clássicas. Os relatos vão de encontro a dados de outras pesquisas sobre psicólogos na saúde mental (Figueiredo & Rodrigues, 2004; Correia, 2007; Sales & Dimenstein, 2009a).

Possibilidades terapêuticas no ambiente institucional

O segundo eixo de análise se foca nos discursos sobre as concepções clínicas, as práticas implementadas pelos psicólogos nos serviços, bem como sua relação de trabalho com a equipe multiprofissional. As duas primeiras categorias foram subdivididas entre clínica clássica e clínica psicossocial. A primeira aqui compreendida como aquela que tem seu modelo centrado em ações individuais de avaliação psicodiagnóstica e psicoterapia, influenciada pelo modelo médico e pela clínica psicanalítica tradicional, com clientela foco nas classes médias e altas que acessam serviços particulares de psicologia. Já a clínica ampliada ou psicossocial se localiza em meio às práticas emergentes em psicologia, amplamente diversificadas e ainda em construção, com seus profissionais ligados a instituições públicas ou ao terceiro setor, em equipes multidisciplinares, com clientela-demanda de classes sociais diversificadas, incluindo as mais pauperizadas, que acessam serviços do SUS (Ferreira Neto, 2008).

A concepção de clínica das psicoses se refere ao modelo idealizado, o qual os participantes acreditam que deveria acontecer nos CAPS, mas que pode ser diferente do qual conseguem realizar na prática, devido às suas condições de trabalho. A clínica clássica está representada em grande parte pela psicoterapia individual, incluindo nela técnicas cognitivo-comportamentais específicas citadas por p1, p4 e p10:

[...] outra é a gente começar um trabalho psicoterapêutico dessa pessoa, pra ela tá entendendo (sic) um pouquinho o que está se passando com ela... Procurar deixar claro de que apesar de você não estar vendo as alucinações, não ter os delírios, você acredita nelas... Nesse momento a gente escuta mais do que fala... (p4).

O acolhimento e a formação do vínculo são citados como fatores importantes, na medida em que diminuem o sofrimento do sujeito e auxiliam na adesão à ajuda oferecida. Foi dada atenção também à farmacoterapia e às técnicas de adesão à medicação, as quais foram citadas como essenciais.

O trabalho especializado, por critério diagnóstico, foi citado por três participantes como um modelo que traria maior qualidade para a terapêutica. Um participante alerta para uma possível periculosidade em se misturar os usuários em algumas atividades.

Por sua vez, a clínica psicossocial foi lembrada, através de intervenções em rede (familiar, rede de saúde, intersetorial) e na promoção da autonomia do usuário (direitos de cidadania, desenvolvimento de potencialidades e geração de renda). Chama a atenção o relato de um psicólogo, que destoa dos participantes ao declarar que se deve trabalhar o sujeito e não seu quadro, sendo qualquer diagnóstico secundário ao trabalho com a individualidade.

As respostas mostram uma tendência já apontada por Ferreira Neto (2008), com atuações se aproximando da perspectiva da atenção psicossocial. Nota-se nos relatos dos participantes modelos que contém práticas mistas, envolvendo o papel clássico de psicoterapeuta ensinado nas graduações, incluindo também avaliações clínicas e orientações. Soma-se a isso o investimento no acolhimento e na aliança, comportamentos que atravessam a clínica clássica e fazem parte também do modo psicossocial. As condutas da clínica psicossocial são amplamente citadas, incluindo intervenções grupais, em rede, socializantes e reconstrutoras de projeto de vida, através da perspectiva de cidadania dos usuários. No entanto, o trabalho intersetorial, grande facilitador de inclusão e de promoção de autonomia, foi citado por apenas um sujeito, o que vai ao encontro dos argumentos de Nasi e Schneider (2011) que atentam para o avanço que ainda deve acontecer nas práticas que estimulem os recursos comunitários para socialização mais ampla dos usuários.

No que diz respeito às práticas cotidianas realizadas nos serviços, a clínica clássica é amplamente praticada através da psicoterapia individual, das avaliações, do acolhimento e das orientações. A psicoterapia individual foi citada por nove participantes, sendo usada para os mais diversos motivos, seja para responder a crises, para realizar o vínculo com o serviço, para utilização de estratégias cognitivocomportamentais de habilidades sociais e enfrentamento dos sintomas, ou para atender uma necessidade do usuário, mas não da equipe. Apenas um não citou a psicoterapia individual como uma prática que realiza com os usuários ditos psicóticos. As orientações geralmente se focaram em atividades rotineiras, organização da vida pessoal, aderência à medicação, hábitos de higiene, mas também em direitos de cidadania e formação política dos usuários.

No campo das estratégias psicossociais, predominaram as atividades coletivas, como grupoterapia, grupo operativo, oficinas terapêuticas, atividades de socialização (como festas), e atividades externas ao CAPS (caminhadas, pescaria, visitas domiciliares). Além disto, metade dos profissionais citou que trabalha com as famílias, intervindo de maneira mais sistêmica. Dentro da perspectiva ampliada, são realizadas ainda atividades de formação política e de cidadania dos usuários (assembleias, grupo sobre direitos), além de um sujeito ter também citado o acompanhamento terapêutico como estratégia de reabilitação e socialização.

A atuação cotidiana detalhada pelos participantes também mostrou avanços na direção da clínica psicossocial em relação às pesquisas anteriores com psicólogos de CAPS (Figueiredo & Rodrigues, 2004; Correia, 2007; Sales & Dimenstein, 2009a). As práticas também foram bastante heterogêneas, com profissionais utilizando-se de psicoterapia individual, oficinas, orientações, trabalhos de reinserção, articulação com a rede de apoio e intersetorial. Bastante investimento tem se dado à grupalidade nas condutas, o que permite ganhos no desenvolvimento interpessoal dos usuários.

Apesar disto, apenas quatro profissionais fazem oficinas e somente dois realizam atividades externas ao CAPS. Dois profissionais trabalham basicamente com atendimento individual e, eventualmente, com os familiares. Atitudes que não promovem, diretamente, a reinserção social e a desestigmatização - componentes centrais da atenção psicossocial às psicoses -, deixando lacunas na contribuição ao trabalho multidisciplinar de reabilitação (Jorge, Randemark, Queiroz, & Ruiz, 2006).

A relação de trabalho com a equipe foi avaliada como positiva pelos profissionais. Metade a considerou muito boa, e outra metade afirmou que era tranquila. No entanto, três participantes relataram que ela nem sempre foi assim, sendo difícil no passado e tendo melhorado atualmente, inclusive pela alta rotatividade de técnicos no serviço.

Ferreira Neto (2010) afirmou que existiu historicamente uma dificuldade dos psicólogos em se integrar ao trabalho em equipe, por conta de sua formação focada para o trabalho em consultório. O trabalho em equipe é o pilar sustentador da atuação na atenção psicossocial, pois permite a circulação dos saberes diferentes na construção dos projetos terapêuticos frente à complexidade do acolhimento, vinculação e responsabilização perante os usuários e seus familiares (Yasui, 2010).

Desafios e dificuldades

Na avaliação sobre as qualidades e os problemas no atendimento aos sujeitos psicóticos dos CAPS no qual atuam, os problemas se sobrepuseram em número de citações às qualidades. No entanto, o aspecto mais citado foi uma qualidade: o bom trabalho em equipe, no julgamento de sete participantes. Quatro psicólogos creem que o serviço prestado pelo CAPS é de qualidade. O atendimento às famílias (citado por p7) e o desenvolvimento de potencialidades (citado por p1) poderiam ser incluídos neste critério de qualidade do serviço. A qualidade do acolhimento acaba se transformando em referência para a população, em caso de situações de crise. Outros aspectos positivos citados dizem respeito ao funcionamento da rede, como o amplo acesso ao serviço, o funcionamento de matriciamento na rede de saúde e a parceria com a polícia na resolução de crises.

No quesito problemas na atenção, o tema mais citado foi a escassez de recursos financeiros e materiais, que resulta na queda da qualidade do serviço. O fato de o CAPS trabalhar mais como um ambulatório, sem ter clareza de sua clientela alvo prioritária, foi apontado como elemento que piora também a qualidade do cuidado. Outro problema apontado foi a estigmatização do serviço e dos usuários, muitas vezes, pelos próprios profissionais de saúde de outros locais da rede. Problema adicional relativo à rede é a falha no seu funcionamento e a resultante fragmentação dos cuidados: "Com os hospitais, o suporte para internar, é muito difícil isso. A gente não tem leito, não tem ala psiquiátrica. A gente encaminha pro pronto-socorro, nem sempre o regional aceita" (p8). Instituições extra rede também têm tido um papel negativo sobre o atendimento, como afirma p7 sobre as Igrejas Evangélicas: "[...] muitos pacientes são evangélicos, isso interfere bastante, quando têm que tomar medicação, a Igreja promete que vai curar eles, e deixam de tomar medicação...".

As falas dos participantes se aproximam à de outros estudos atuais sobre a realidade da rede CAPS. Em geral, os profissionais, as atividades e ações do CAPS são bem avaliados pelos usuários e pelos familiares, que se sentem valorizados, escutados e acolhidos com atenção e qualidade nas instituições, que cumprem seu papel de referência para a rede de saúde mental. Adicionam-se a isso estudos que já vem demonstrando a efetividade dos CAPS para a diminuição de crises e ocorrência de internações (Azevedo & Miranda, 2011; Kantorski et al., 2009, Tomasi et al., 2010). Os centros catarinenses parecem estar caminhando nesta direção também. Não obstante, os problemas locais também se repetem na literatura nacional, mostrando que alguns fatores da rede pública de saúde mental são comuns entre as regiões do país, e ainda necessitam de soluções - a falta de recursos humanos perante a grande demanda, a falta de recursos materiais, a dificuldade na articulação da rede intersetorial, o trabalho ainda insipiente de desestigmatização dos usuários frente à população e os profissionais de saúde (Kantorski et al., 2009).

Apenas quatro sujeitos citaram desafios pessoais para a reabilitação das psicoses, relacionados ao estigma social do psicótico. Um dos participantes crê que o desafio se põe em auxiliar o crescimento político e autonômico dos usuários, para que se sintam mais senhores de si e de seu caminho.

Seis participantes elencaram dificuldades pessoais. Três categorias se referem diretamente às condições de trabalho, como o excesso de demanda, falta de recursos materiais e o pouco espaço físico. Dificuldades relativas a lidar com os usuários foram lembradas, relativas ao abandono de tratamento, à cronificação e aos surtos, comuns em casos de psicose.

Os desafios se mantêm centrados basicamente nas atitudes dos profissionais perante a rede e às famílias, para a atuação que envolva uma dimensão política de intervenção na realidade social que permita uma mudança de postura frente à loucura, além do protagonismo dos usuários e seus familiares para com suas vidas (Yasui, 2010). Nesse sentido, a qualidade do acolhimento, a responsabilização pelo território e a articulação adequada com os recursos da rede de saúde e intersetorial podem evitar ou combater algumas das dificuldades arroladas (Pande & Amarante, 2011). Já a falta de recursos materiais, assunto recorrente na literatura nacional sobre os CAPS, pode ser combatida também como uma forma de ação clínica, estimulando o protagonismo dos usuários na fiscalização dos recursos públicos e na participação no controle social do SUS.

 

Considerações finais

Esta pesquisa buscou contribuir, através de estratégia exploratória e compreensiva, como estão trabalhando os profissionais de psicologia dos CAPS do estado de Santa Catarina, especificamente com a clientela do serviço que está diretamente relacionada ao estigma da loucura: os usuários psicóticos. Para isso, foi necessário não apenas perguntar o que estavam fazendo, mas como concebiam os fenômenos com os quais estavam lidando cotidianamente. Alguns resultados foram diferentes da literatura existente até o momento, como o predomínio da abordagem cognitivo-comportamental entre os participantes, tendo as pesquisas até agora mostrado a psicanálise como referencial principal dos psicólogos de CAPS ou da rede de saúde mental dos locais investigados (Figueiredo & Rodrigues, 2004; Ferreira Neto, 2008; Sales & Dimenstein, 2009a). Em geral, a visão de doença mental aparece de forma mais ampliada, o que inclui o sofrimento subjetivo e o comprometimento da vida cotidiana como critério principal no julgamento do que vem a ser ou não patológico. No entanto, a psicose ainda é vista pela maioria dos participantes em sua concepção clássica, sendo considerada predominantemente um rompimento com a realidade compartilhada socialmente.

A formação de graduação para o trabalho com sujeitos psicóticos no CAPS se mostrou insuficiente, tendo os profissionais que preencher estas lacunas com cursos de pósgraduação e através do aprendizado cotidiano. Por sua vez, o trabalho em equipe foi considerado satisfatório, com boas parcerias estabelecidas e sendo fonte de prazer, confirmando fatos já encontrados pela literatura (Glanzner, Olschowsky, & Kantorski, 2011). Aparece também nos dados uma evolução das práticas desenvolvidas pelos psicólogos para patamares mais aproximados da proposta de atenção psicossocial contida nos preceitos da reforma psiquiátrica nacional, acrescentando ao foco do trabalho individual ações com familiares, grupais e com as redes de saúde e intersetorial, ainda que, neste último quesito, de maneira bastante tímida.

Os problemas apontados já são conhecidos, como a má política de gestão do trabalho, a precarização dos serviços e das condições de trabalho, a escassez de recursos, a pouca articulação externa de alguns CAPS, o funcionamento ambulatorial de outros (Guimarães, Jorge, & Assis, 2011). Os desafios estão ainda na tentativa de auxiliar a organização dos usuários para que reivindiquem melhorias para os serviços e isto também sirva como exercício de cidadania. Há a necessidade da real implementação de trabalho em rede, assumindo o papel de organizador da rede de cuidados descrito na portaria 336/2002 (Ministério da Saúde, 2002), além de ações de diminuição de preconceitos dos próprios profissionais de saúde e da comunidade em geral para com os usuários.

Este trabalho não se propõe a ter um caráter explicativo, mas sim compreensivo e analítico. Portanto, há limitações no âmbito da generalização de seus dados para outros contextos regionais brasileiros. Há maior necessidade de investigação sobre a qualidade das práticas dos psicólogos, que abarquem estudos avaliativos de efetividade e exploratórios que englobem o ponto de vista de outros profissionais dos CAPS, usuários e familiares.

 

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Endereços para correspondência
Gabriel Amador de Lara
gabrieldelara2@hotmail.com

Janine Kieling Monteiro
janinekm@terra.com.br

Submetido em: 17/12/2012
Revisto em: 09/02/2013
Aceito em: 16/02/2013