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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.65 no.1 Rio de Janeiro jun. 2013

 

ARTIGOS

 

Projetos de vida e recaídas em pacientes alcoolistas

 

Life projects and relapses in alcohol-dependent patients

 

Proyectos de vida y recaídas en pacientes alcohólicos

 

 

Fábio Becker PiresI; Daniela Ribeiro SchneiderII

IMestre em Psicologia (UFSC). Psicólogo. Hospital Universitário de Santa Maria (UFSM). Santa Maria. Rio Grande do Sul. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis. Santa Catarina. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

Tem-se discutido a necessidade de ampliar o escopo das pesquisas sobre o alcoolismo, para além da perspectiva biomédica predominante, a fim de abordar outros determinantes do problema e produzir uma compreensão mais próxima da realidade dos dependentes. Realizou-se um estudo transversal, descritivo e exploratório, com o objetivo de desvelar os projetos de vida de um grupo de alcoolistas e explorar possíveis relações entre tais projetos e as recaídas no uso do álcool, por um lado, e as possibilidades de recuperação, por outro. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com alcoolistas internados em enfermaria especializada de um hospital geral, as quais foram codificadas e analisadas conforme a Teoria Fundamentada nos Dados. Dentre os resultados, destaca-se a postura passiva da maioria dos entrevistados: predominam relatos de esperança de recuperação e melhora em vários aspectos da vida, porém com pobreza de planos concretos e tendência a guiar suas vidas em função do tratamento.

Palavras-chave: Alcoolismo; Recaída; Projeto de vida; Pesquisa qualitativa.


ABSTRACT

It has been discussed the need to broaden the scope of research on alcoholism, besides the dominant biomedical perspective in order to address the determinants of alcoholism and produce an understanding closer to the reality of the dependents. We conducted a cross-sectional, descriptive and exploratory survey aiming to unveil the life projects of a group of alcoholics and explore possible relationships between such projects and relapse in alcohol use, on one hand, and the possibility of recovery, on the other hand. Semi-structured interviews were conducted with alcoholics hospitalized in specialized ward of a general hospital, which were coded and analyzed according to Grounded Theory. Among the results, there is the passive attitude of the majority of respondents: they predominantly report hope of recovery and improvement in various aspects of life, but poor concrete plans, and tend to lead their lives according to treatment prescriptions.

Keywords: Alcoholism; Relapse; Life project; Qualitative research.


RESUMEN

Se ha discutido la necesidad de ampliar el alcance de la investigación sobre el alcoholismo, aparte de la perspectiva biomédica, con el fin de abordar otros determinantes del problema y producir una comprensión más cercana a la realidad de dependientes. Se realizó un estudio transversal, descriptivo y exploratorio, con el fin de descubrir los proyectos de vida de un grupo de alcohólicos y explorar las posibles relaciones entre dichos proyectos y la recaída en el consumo de alcohol, por un lado, y la posibilidad de recuperación, por otro. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con los alcohólicos hospitalizados en sala especializada, que fueron codificados y analizados de acuerdo a la Teoría Fundamentada. Entre los resultados, está la actitud pasiva de la mayoría de los encuestados: predominan afirmaciones de esperanza de recuperación y mejora en diversos aspectos de la vida, pero los planes concretos son pobres, siendo que tienden a vivir sus vidas alrededor de los planes de tratamiento.

Palabras-clave: Alcoholismo; Recaída; Proyecto de vida; Investigación cualitativa.


 

 

Introdução

A revisão da produção científica recente sobre o alcoolismo evidencia predominância de abordagens quantitativas nas pesquisas, indicando hegemonia da perspectiva biomédica, sustentada na concepção de dependência como doença orgânica e modelos de tratamento baseados em farmacoterapia e psicoterapia breve comportamental-cognitiva, voltados à abstinência e prevenção de recaída (Pires, 2011; Pires & Schneider, no prelo). A contribuição das ciências sociais tem sido pouco considerada nesses estudos publicados em revistas de impacto, mesmo com pesquisas apontando a importância do contexto, da história de vida e das interações sociais para a recuperação. Predominam, portanto, modalidades mais convencionais de tratamento, ainda que muitas investigações venham apontando resultados controversos e eficácia duvidosa (Cutler & Fishbain, 2005; Kalant, 2008; Kenna, 2005; Luty, 2006; Morley et al., 2006; UKATT Research Team, 2007; Zweben et al., 2008).

Um estudo de seguimento com alcoolistas em recuperação com e sem tratamento encontrou correlações muito pequenas entre receber tratamento e a melhora em termos de abstinência e redução do consumo, assim como apontou muito pouca variação dos resultados que poderiam ser atribuídos ao efeito do tratamento (Cutler & Fishbain, 2005). Outros estudos invertem a lógica de compreensão e mostram que o paciente não muda porque procurou ou permaneceu em tratamento, mas sim que só procurou ou permaneceu em tratamento porque já estava em um processo de mudança, destacando a importância da rede social (apoio familiar e do ambiente de trabalho) para a recuperação (Carballo, Fernández-Hermida, Secades-Villa, & García-Rodríguez, 2008; Gómez & Acuña, 2007). Ainda outras pesquisas mostram que na base das recaídas estão situações de pressão social, problemas nos relacionamentos interpessoais, estados emocionais negativos (Alvarez, 2007), indicando novamente a rede social como aspecto fundamental na compreensão das facilidades ou dificuldades de recuperação da dependência de álcool.

Orford, Hodgson, Copello, Wilton e Slegg (2009) apontam ainda que a recuperação é atribuída principalmente à determinação do próprio paciente, ainda que a importância do tratamento seja mencionada, mas muito mais em função do benefício que o paciente percebe na relação com um terapeuta, com quem pode falar abertamente. Resultados que reforçam o argumento de Bergmark (2008) sobre a maior relevância do vínculo acolhedor do que da técnica terapêutica em si.

Tem-se discutido a necessidade de ampliar o escopo das pesquisas na área (Orford, 2008), a fim de abordar outros possíveis determinantes do alcoolismo e de produzir uma compreensão do fenômeno que seja mais abrangente e mais próxima da realidade dos indivíduos. É importante flexibilizar o modo tradicional de se produzir ciência na área (marcado pelo empiricismo lógico e busca de elevada neutralidade e objetividade), assimilando mais amplamente as contribuições das ciências sociais.

Segundo Niewiadomski (2000), o interesse das técnicas de história de vida no alcoolismo se sustenta, fundamentalmente, em sua capacidade de permitir aos alcoolistas se confrontarem com as questões do sentido de suas ações, que eles têm dificuldade de enfrentar.

Este estudo investigou a recorrência de recaídas em dependentes de álcool através de uma abordagem qualitativa e partindo de uma concepção sócio-histórica de sujeito. Recorrendo ao olhar antropológico e fenomenológico sobre o abuso de drogas, a partir das contribuições de Velho (1999), Alves (1998), Minayo (2008) e Sartre (1960), compreende-se o alcoolismo como um fenômeno determinado, entre outros fatores, por um conjunto de interações e experiências do sujeito em determinados contextos. Em função do significado atribuído às próprias experiências e das circunstâncias do momento, o sujeito organiza sua conduta para determinadas finalidades e, assim, constitui continuamente sua identidade ao longo de sua trajetória.

A compreensão do mundo das drogas passaria pela "observação das redes sociais que organizam sua produção, distribuição e consumo, bem como pelo conjunto de crenças, valores, estilos de vida e visões de mundo que expressariam modos particulares de construção social da realidade" (Velho, 2001, p. 84). Os projetos individuais interagem com outros dentro de um campo de possibilidades, constituindo-se a partir de sua inserção em um contexto antropológico (cultural) e sociológico (rede de mediações sociais).

Em seu livro Crítica da Razão Dialética, Sartre (1960) discute a perspectiva de uma nova antropologia, que considera o homem sob o ponto de vista histórico e dialético. Nesse sentido, analisa os aspectos estruturantes da cultura, da sociedade e sua relação com os indivíduos concretos. Para compreender a realidade humana e, nesse caso, a dependência de álcool, devemos partir do conhecimento de que o homem é "produto de seu produto", quer dizer, ele faz a história, gera seus produtos, mas, por sua vez, estes o condicionam, ou seja, a história também o faz. Os sujeitos concretos fazem, portanto, eles mesmos, sua história, mas a fazem num meio dado que os determina (Sartre, 1960). O homem produz, assim, uma apropriação individual da realidade coletiva que o cerca, que ele mesmo contribuiu para construir; seu ser é, assim, resultante desse processo de interiorização da exterioridade social e de exteriorização de sua apropriação individual.

A pesquisa visou resgatar os sentidos atribuídos pelos sujeitos às suas histórias de uso de álcool e às experiências de tratamento e recaídas, descrevendo o contexto psicossocial em que se encontravam, com o objetivo de desvelar os projetos de vida desses usuários e explorar possíveis relações entre tais projetos e as recaídas no uso do álcool, por um lado, e as possibilidades de recuperação, por outro.

 

Método

O desenho metodológico do estudo foi de corte transversal, retrospectivo, descritivo e exploratório, com base em abordagem qualitativa. Utilizou entrevistas semiestruturadas com 13 pacientes reinternados por problemas recorrentes do uso de álcool.

A pesquisa foi realizada em uma unidade de internação do setor psiquiátrico de um hospital universitário. A unidade conta com 15 leitos e dispõe de equipe de enfermagem, médico psiquiatra, médico residente e psicólogo. A internação dura em média dez dias, e o tratamento oferecido consiste em manejo clínico dos sintomas de abstinência para realizar a desintoxicação, com acompanhamento psiquiátrico e psicológico, além de um programa de conscientização e motivação para a mudança de estilo de vida.

Participantes

Os participantes foram selecionados conforme os seguintes critérios: sexo masculino, diagnóstico de síndrome de dependência de álcool, mais de três internações para tratamento de dependência de álcool, concordar voluntariamente e expressamente em participar da pesquisa e não apresentar sintomas físicos ou psíquicos que comprometam a realização da entrevista (dor, náusea, tontura, sedação, fissura ou ansiedade intensa, sintomas psicóticos ou quadro de demência). Este último critério foi verificado através da avaliação médica e de enfermagem.

O número de participantes foi determinado pelo critério da amostragem por saturação (Fontanella, Ricas, & Turato, 2008), que consiste na interrupção da inclusão de participantes no momento em que os dados coletados passam a apresentar muitas redundâncias ou repetições, trazendo poucas informações novas e indicando uma saturação do tema investigado no conteúdo das respostas obtidas. Sendo assim, foram entrevistados 13 sujeitos.

Coleta de dados

Sendo o pesquisador um membro da equipe do serviço, há familiaridade com o campo, sendo desnecessária uma abordagem de aproximação inicial (Fontanella, Campos, & Turato, 2006). Optou-se pela entrevista, a fim de buscar um aprofundamento no relato da experiência singular de cada indivíduo; e pela modalidade semiestruturada, que mantém alguma abertura à variabilidade e nuances de respostas, porém permite ao entrevistador elaborar um roteiro prévio que direcione a entrevista a tópicos mais específicos (Biasoli-Alves, 1998; Fontanella et al., 2006).

Os tópicos que orientaram a elaboração do roteiro da entrevista foram: 1) Contexto e sentido atribuído à experiência de recaída; 2) Sentidos atribuídos ao tratamento; 3) Contexto e sentido atribuído às experiências de recuperação; e 4) Projetos de vida. Duas entrevistas foram realizadas como estudo-piloto, cujo resultado evidenciou a necessidade de reformulações e acréscimos no roteiro. A terceira entrevista, já com os ajustes do roteiro, foi considerada satisfatória, sendo por isso a primeira a ser incluída no corpus a ser analisado. Nas entrevistas seguintes, manteve-se então o roteiro. Todas as entrevistas foram gravadas em formato de áudio mp3, e as gravações foram transcritas.

A codificação e a análise das entrevistas seguiram os procedimentos da Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), de acordo com as propostas de Strauss e Corbin (2008) e, principalmente, Charmaz (2009). Semelhante a outros procedimentos de análise de conteúdo, na proposta de Charmaz (2009) a codificação do texto começa por leituras repetidas e exaustivas do material, para o autor se aprofundar na compreensão do texto e começar a identificar temas e perceber padrões, recorrências, contradições, discrepâncias e outras características com que esses temas aparecem.

Os elementos temáticos são as menores unidades de sentido que podem ser identificadas no texto; o destaque desses elementos é uma forma de reduzir o volume de texto sem perder conteúdo significativo. Neste estudo, o destaque desses elementos temáticos foi feito linha a linha (Charmaz, 2009); ou seja, de cada linha do texto original foi identificado um elemento (palavra ou oração) representativo do conteúdo daquela porção de texto. Resultou desse processo um conjunto de palavras e orações representativos do texto original. Foram realizadas sucessivas etapas de codificação semelhantes a essa, aglutinando, descartando e reelaborando os elementos temáticos, transformando-os em categorias, ou seja, em expressões mais abrangentes, descritivas e representativas de trechos maiores do conteúdo original, constituindo um volume de texto mais sintético para viabilizar uma análise.

A elaboração de categorias obedece a critérios semelhantes aos das demais modalidades de análise de conteúdo: devem ser sucintas, claras e mutuamente excludentes (Charmaz, 2009). Porém, a elaboração das categorias não é a priori, elas devem emergir do texto. Além disso, as categorias não podem ser somente descritivas do conteúdo original, o pesquisador deve procurar formular categorias que funcionem como conceitos. Isso porque a proposta da TFD não é formular uma descrição ou interpretação dos dados, mas empreender um esforço conceitual com alguma capacidade explicativa do fenômeno abordado (Charmaz, 2009). Assim, o processo de análise deve culminar não apenas em uma descrição do fenômeno, mas também em indicações de possíveis explicações para ele.

Aspectos éticos

O projeto de pesquisa foi aprovado pelos comitês de ética da UFSC (nº 630 CEPSH) e também do hospital onde foi realizada a pesquisa, além de outros órgãos reguladores da atividade de pesquisa nesta última. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Os resultados do estudo foram apresentados pelo pesquisador diretamente à equipe do serviço envolvido, discutindo implicações que pudessem ser do interesse do serviço e aproveitadas na prática.

 

Análise e discussão dos resultados

A tabela a seguir apresenta a classificação dos códigos utilizados em categorias. A ordem das categorias procura ilustrar a ordem cronológica dos contextos e processos a que elas se referem, descrevendo a trajetória dos 13 sujeitos entrevistados em relação ao surgimento e enfrentamento do alcoolismo.

 


Tabela 1 - Clique para ampliar

 

A codificação dos dados privilegiou o processo indutivo, através do recurso da comparação constante de dados com dados. O processo gerou duas categorias (1 e 7) de caráter descritivo, referentes à contextualização do momento inicial do alcoolismo e do momento atual que vivenciam os entrevistados. Outras cinco categorias, referentes a ações, reflexões e experiências dos usuários, puderam ser elaboradas de forma mais analítica, a fim de oferecerem alguma utilidade conceitual para uma teorização sobre as recaídas.

Neste artigo, as categorias analíticas serão apresentadas brevemente, pois ajudarão a compreender a descrição mais detalhada da categoria 6, Projetos de vida e de recuperação, considerada central para os objetivos propostos. As categorias 1 e 7 não serão descritas, dado o volume de dados que comportam. As categorias analíticas (2 a 5) podem ser assim sumarizadas:

 

Experiência passiva de tratamento

Esta categoria define uma maneira de o sujeito posicionar-se em relação à realização de tratamento em função do sentido que ele atribui a essa experiência. Tal definição articula um conjunto de expectativas, motivações e ações, para dar conta da situação do sujeito que se coloca como paciente no sentido tradicional do termo: ao ver-se em situação crítica de saúde, submete-se à intervenção profissional e institucional, esperando que essa intervenção externa sobre si o proteja e o cure. A experiência passiva de tratamento pode ser considerada uma reação adaptativa do sujeito que corresponde à oferta de tratamento nas modalidades biomédicas e jurídico-morais convencionais. Adotando essa forma de atribuir sentido ao seu tratamento, o sujeito mantém uma atitude passiva e repetitiva, a despeito de perceber poucas mudanças, o que é justificado pelo caráter de doença crônica atribuído ao alcoolismo.

 

Experiência ambivalente de recuperação

Esta categoria abarcou os códigos que descreviam as experiências de recuperação, buscando apreender como os participantes definiam os resultados como aceitáveis para qualificar uma recuperação, em que contextos eles obtiveram melhora ao longo de sua trajetória, quais estratégias utilizaram para tanto, e também que benefícios eles perceberam nos momentos de controle do alcoolismo. Interessante notar que há episódios claramente de recuperação, quando o sujeito se refere a melhorias em sua saúde e em sua vida, porém não considera essas melhorias como uma recuperação do alcoolismo. Também ocorre de o indivíduo contabilizar períodos de abstinência como recuperação, a despeito de não haver qualquer outra mudança em sua qualidade de vida. Há também momentos de recuperação que pouco ou nada têm a ver com a realização de tratamento.

A ideia de experiência ambivalente de recuperação define essa forma contraditória de atribuição de sentido à experiência de recuperação, que guarda tais discrepâncias em razão de refletir uma compreensão do alcoolismo estritamente em função do comportamento de beber e da ênfase na abstinência como meta, típicas dos modelos de tratamento a que se submeteram. O sujeito percebe melhorias de saúde e/ou em outros aspectos da vida, porém tende a avaliar suas possibilidades de recuperação apenas em função do tempo de manutenção da abstinência.

 

Processo de recaída

A mesma compreensão de alcoolismo e a mesma ênfase na abstinência, que suscitam a experiência ambivalente de recuperação, também levam a uma compreensão de recaída sustentada somente enquanto violação da abstinência. No máximo, encontram-se distinções entre o lapso (violação única) e a recaída propriamente dita (retorno ao padrão de uso) - distinção sustentada na racionalidade dos serviços que frequentaram, como hospitais, grupos de ajuda mútua e comunidades terapêuticas (Schneider, 2010). Os relatos dos entrevistados indicam que o reinício do consumo e a retomada do consumo intenso até o recrudescimento da síndrome de dependência deveriam ser entendidos como um processo, que pode ser muito curto (retorno imediato à dependência após a quebra da abstinência), como também pode ser longo e gradual, inclusive com períodos de manutenção de uso moderado, apesar de sua compreensão ser em termos absolutos (ou estão em sobriedade ou estão no que chamam de fase ativa).

A noção de processo de recaída reflete as afirmações dos alcoolistas acerca do caráter voluntário de suas ações nesse sentido, em que resolvem reiniciar o consumo sob diversas circunstâncias e a partir de diversas motivações, bem como resolvem interromper, manter ou aumentar o consumo também em função de variados fatores e circunstâncias. A principal vantagem dessa abordagem é escapar à noção restrita de recaída como violação de abstinência, em que o indivíduo sucumbe à força de impulsos que o levam, automaticamente, a um comportamento patológico.

 

Reorganização moral da identidade como alcoolista

Verifica-se a importância que esses sujeitos atribuem ao "papel de doente", interferindo na forma como eles reorganizam suas identidades após o diagnóstico, conforme descrito por Alves (1993). No papel de doente, há uma relativa desresponsabilização do sujeito, porquanto atribui o comportamento à doença da qual é portador, desobrigando-o do ônus da mudança, desde que se submeta ao tratamento prescrito. Livra-o também da pecha moral do alcoolismo (vadiagem, sem-vergonhice). Os entrevistados referem alívio ao poder atribuir seu comportamento a uma patologia, ao invés de a uma falha de caráter. Mesmo assim, os pacientes manifestaram preocupação em afirmar as próprias virtudes e apresentaram ambiguidades ao ponderar sobre o alcoolismo enquanto doença versus alcoolismo enquanto vício (falha de caráter), mostrando que a dimensão moral está no fundo da racionalidade em que se lançam para os processos de recuperação.

Para eles, a concepção de alcoolista, como apreendida nos serviços de saúde em que passaram, implica uma reorganização da identidade, agora como dependente do álcool. Embora traga alívio, assumir o papel de doente não exime o sujeito de se debater com questões morais. A separação entre a doença e a falha de caráter permanece como uma fronteira nebulosa e móvel para o indivíduo, que precisa então resgatar suas qualidades morais e modificar o olhar que os outros dirigem a ele (reivindicando reconhecimento de suas qualidades e esclarecendo que o alcoolismo é uma doença).

Essas questões têm por base a racionalidade social predominante, que de maneira geral é determinista, e não dialética (Schneider, 2010). Portanto, predomina nos serviços (e entre esses sujeitos) uma visão do alcoolismo a partir de um reducionismo biologicista (a ontologização da droga em si e a noção de doença crônica) e que não considera os aspectos psicossocias na determinação do alcoolismo.

 

Projetos de vida e possibilidades de recuperação

Esta categoria define as perspectivas do sujeito em relação ao seu futuro, contemplando dimensões de crenças (ideias e sonhos sobre o que deve fazer), expectativas (perspectiva de mudança ou de continuidade, esperanças de melhora) e ações (estratégias de recuperação, resgate de vínculos, projetos concretos).

A projeção que o sujeito faz decorre do contexto e do significado atribuído às suas experiências de tratamento, de recuperação e de recaída. Considerando as categorias referentes à significação das experiências dos entrevistados, percebe-se uma tendência à passividade: o tratamento pontual e repetitivo, a ambivalência ao reconhecer a recuperação, o papel de doente crônico que lhe foi atribuído pela racionalidade dos serviços de saúde. A tendência predominante nos relatos sobre as projeções de recuperação é coerente com a tendência das categorias anteriores: passividade; poucos planos concretos; perspectiva de repetição de tratamentos; restrição do cotidiano à prevenção de recaída; e esperanças vagas de melhora num futuro distante.

A seguir o detalhamento da categoria 6:

 

Tabela 2 - Clique para ampliar

 

De modo geral, para os entrevistados, recuperação é entendida em sentido amplo, não apenas o controle do alcoolismo, mas também o restabelecimento de vínculos e melhoria das condições de vida de modo geral.

Os participantes atribuíram destacada importância à realização de tratamento, colocando este como o aspecto prioritário da vida no momento. Para a maioria, a internação hospitalar foi porta de entrada para a rede de saúde, permanecendo como principal ou único tipo de atendimento.

A maioria dos pacientes explicitou como planos para tratamento após a alta a continuidade do tratamento em comunidade terapêutica (CT) ou em acompanhamento psiquiátrico ambulatorial, retorno ao Centro de Atenção Psicossocial -álcool e outras drogas (CAPS-AD) e aos Alcoólicos Anônimos (AA). Seguem a recomendação do próprio serviço, de que devem manter-se em tratamento, sendo que seus planos futuros ficam muito restritos nestas recomendações.

Novas internações, apesar de não desejadas, fazem parte da perspectiva de tratamento futuro para alguns pacientes, que consideram que precisam de internações muito longas, como em CT. Nessa mesma lógica, muitos mencionam a necessidade de manter-se em um tratamento permanente, ou por um prazo longo e indefinido, entendimento coerente com a concepção hegemônica de doença crônica, que impõe a necessidade de cuidado durante o resto de suas vidas. "Eu, quando sair daqui, eu quero ver se consigo uma fazenda. Um período maior, mais longo, né?" (Participante nº 13).

Os participantes também se referiram a estratégias que acreditam que deveriam adotar para se manter em recuperação, sendo que primeiramente referiram-se à importância de ter determinação, no sentido de manter a força de vontade para não beber e também no sentido de nutrir um desejo sincero de mudança: "Só que eu sei também que não é assim, a gente tem que querer de verdade, né?" (Participante nº 1).

Aqui há mais um indício da magnitude do aspecto moral na compreensão do alcoolismo e da racionalidade dominante. Afirmam a importância de conseguir se controlar -e tal controle sendo uma atitude racional e voluntária, que depende de uma decisão moral. Mais que isso, essa decisão deve ser sincera, deve refletir um desejo autêntico de abstinência.

A questão da sinceridade provavelmente está relacionada à ideia de senso comum de que alcoolistas costumam mentir muito. Mesmo entre profissionais da saúde, é comum a ideia de que alcoolistas não desejam sinceramente parar de beber (Vargas, 2010). Apesar da noção de doença, em que se leva em conta a questão da ambivalência, e para a qual se apontam determinantes alheios à vontade do sujeito, mesmo assim, permanece a desconfiança quanto à sinceridade dos sujeitos.

Certamente a determinação é relevante para mudança de comportamento, porém o que se questiona é o caráter de julgamento moral da autenticidade das intenções de recuperação declaradas. A preocupação com a avaliação da sinceridade pode prejudicar a consolidação de um vínculo terapêutico, como no caso de serviços que se tornam fiscais da abstinência, inclusive impondo exames laboratoriais para confirmá-la (Junghanns et al., 2009).

O segundo tipo de estratégia mais frequente foi a restrição das atividades cotidianas, para evitar estímulos ao consumo, como a ida a bares e o contato com amigos que bebem: "É, ficar dentro de casa agora, né? Sair de casa pro serviço, do serviço pra casa e seguir em frente. (...) Se ficar na rua, volto a beber ligeirinho" (Participante nº 10).

Essa é uma estratégia comum nos tratamentos tradicionais, estimulada pelos Grupos de Ajuda Mútua, como os AA. Questiona-se a viabilidade e eficácia dessa estratégia a médio e longo prazos. As restrições de lazeres e vínculos, no intuito de escapar às "tentações", dificilmente se manterão por muito tempo sem causar sofrimento. O abandono de círculos sociais e de atividades gratificantes pode contribuir para a falta de sentido na vida e sensação de solidão, que foram apontadas por esses entrevistados como fatores de risco associados ao retorno ao abuso e confirmadas por outras pesquisas (Alvarez, 2007).

Uma fala é particularmente emblemática das necessidades desses pacientes que extrapolam o alcance dos tratamentos tradicionais. Respondendo sobre o que achava que deveria fazer para se recuperar, um dos pacientes citou a necessidade de reencontrar felicidade em sua vida:

- Tem mais alguma coisa que tu acha importante pra se recuperar? (Entrevistador)

- [longo silêncio, pensativo]. Só ser feliz de novo. [...] Porque quem tá assim, nesse modo, nesse sistema, que eu tô... tu não vê, tu não vê felicidade, tu não acha graça, não... tu não tem amigos... (Participante nº 13).

Evitar estímulos implica restringir as atividades e abandonar amigos e divertimentos; daí a valorização do isolamento, o uso prioritário do hospital em detrimento da rede básica e o desejo de internações mais prolongadas - são medidas necessárias para viabilizar a abstinência por essa via sacrificante, que afasta o sujeito da felicidade almejada.

Essa é uma visão predominante do tratamento do alcoolismo, assumida pelos usuários e encarada como uma luta constante para não beber, desconsiderando questões importantes como os efeitos de contextos e a função da bebida na história do sujeito (Schneider, 2010). A fala acima, assim como os relatos sobre as experiências de recuperação, subvertem o raciocínio que tradicionalmente se aplica ao futuro do alcoolista: considera-se que o sujeito precisa parar de beber para sua vida melhorar; no entanto, é possível que sua vida precise melhorar para que ele consiga parar de beber, pois a compulsão que o lança para o álcool é gestada pelas insatisfações e carências da vida cotidiana.

Muitos entrevistados manifestaram explicitamente o desejo de uma melhora de vida em sentido mais amplo, como ilustrado por estes trechos:

- Ah, normal, né? Poder levar vida normal. (Participante no 2)

- Que é vida normal? (Entrevistador)

- Não beber. Poder voltar a estudar. Trabalhar assim, normal. Sem ter problemas de saúde. (Participante nº 2).

Porque eu tô com 39 anos, e eu me considero que eu tô novo ainda, então eu tenho muito o que viver ainda, e se Deus quiser, viver com qualidade, né? Qualidade de vida, né? (Participante nº 9).

Apenas um participante disse não vislumbrar a quebra dos ciclos de melhoras breves, recaídas e internações. Chama a atenção o fato de esse mesmo participante (nº 2) ter relatado dois períodos de recuperação no passado, em épocas de sua vida em que obteve melhores condições de moradia, afastamento de conflitos familiares e trabalho gratificante. Nesses dois períodos, ele relatou uso moderado (baixas doses e consumo restrito aos finais de semana), melhora importante dos sintomas de ansiedade que o afligiam e satisfação com seu trabalho. Esse relato indica a função da bebida como forma de enfrentamento das dificuldades e afetações provocadas pelo seu contexto psicossocial, sendo que o sujeito não tem background para lidar com a situação a não ser pela fuga do álcool ou do ambiente.

Esse paciente foi o que ilustrou de forma mais explícita e completa os principais pontos de discussão dessa subcategoria: 1) o sujeito desqualifica suas experiências de recuperação se elas não incluíram abstinência, apesar da melhora em vários aspectos da vida com a diminuição do uso; 2) o sujeito não inclui em seu planejamento para o futuro a tentativa de reproduzir contextos ou repetir estratégias que já lhe foram úteis no passado; 3) o sujeito não vislumbra forma de enfrentamento de suas dificuldades em seu contexto psicossocial; 4) o sujeito planeja seu futuro em torno da realização de tratamento e da esperança por abstinência duradoura.

Chama a atenção o contraste entre as manifestações de importância atribuída ao tratamento e os relatos de poucas mudanças percebidas com os tratamentos anteriores, já que os pacientes foram reinternados várias vezes, com uma experiência de fracasso sucessiva na recuperação.

Cabe questionar até que ponto os serviços estão considerando aspectos significativos para a recuperação de seus usuários. Há o incentivo à adesão ao tratamento e o alerta sobre as recaídas; mas o serviço promove outros fatores de recuperação que não a adesão a tratamento e a manutenção da abstinência?

Os participantes relataram também suas perspectivas em outros aspectos da vida, dentre as quais se destacam as projeções sobre o relacionamento familiar, quando explicitaram esperança de recuperação de vínculos rompidos em decorrência do alcoolismo; ou manutenção do vínculo com o familiar que vinha propiciando apoio social. Alguns, no entanto, apontaram perspectiva de distanciamento atual dos familiares, acreditando ser impossível resgatar seus vínculos, devido a desconfianças e ressentimentos.

É importante ressaltar que, nos casos em que havia ao menos um vínculo preservado, esse adquiria uma importância motivacional. Seis participantes se manifestaram nesse sentido, aludindo a vínculos com crianças (filhos, netos e sobrinhos): se recuperar para dar conta de seu papel de responsável (no caso dos pais), ou ao menos para ter a gratificação de estar presente durante seu desenvolvimento (avô e tio). Isso vai ao encontro de resultados de outros estudos, que apontam a presença de vínculo com cônjuge e filhos como fator associado à recuperação (Dawson, Goldstein, & Grant, 2008).

Note-se que é uma motivação que se estabelece na intersubjetividade, pela possibilidade de reinserção familiar. Não se trata de motivação enquanto característica interna do sujeito, que ele nutre apenas com sua conscientização sobre portar uma doença -o sujeito tem motivos para se cuidar porque tem um projeto a realizar. Mas a construção desse futuro deve ser ação concreta no mundo, ou seja, na mediação com outros significativos, refazendo suas relações, que vão abrindo campos de possibilidades onde o sujeito vislumbra sentido para seu ser (Sartre, 1960).

Muitos também fazem planos na dimensão amorosa e interpessoal, como encontrar nova companheira ou manter o círculo de amizades. Em termos de perspectivas futuras, também elaboram metas referentes à dimensão profissional: "Já fiz dois cursos, de pintor e de azulejista pelo Senai/Fiergs." (Participante nº 5); "Eu tenho plano, vou fazer um curso de Teologia, se Deus quiser, o pastor me ofereceu." (Participante nº 9).

O retorno ao trabalho é um plano mais imediato de recuperação. No entanto, para quatro dos nove participantes que se manifestaram sobre trabalho, é uma vaga possibilidade, que depende de sua recuperação completa primeiro. Isso remete à ideia de necessidade de internações prolongadas e de tratamento intensivo e/ou permanente - reflete um entendimento de que o alcoolista precisa acumular certo tempo de abstinência em isolamento ou sob proteção, para só então retomar suas atividades.

Assumindo o papel de doentes, no qual eles podem ser dispensados de certas expectativas e obrigações sociais, desde que se comprometam com o tratamento, muitos alcoolistas deixam de incluir a ocupação em seus planos (Alves, 1993). Cria-se um círculo vicioso: o sujeito decide buscar trabalho apenas após estar recuperado (em abstinência duradoura), sendo que estar trabalhando é fator favorável à recuperação. Acreditando que apenas fazer tratamento e se confinar em estratégias de evitação resultarão em abstinência, e que a abstinência automaticamente melhorará sua vida como um todo, o sujeito não investe em outros fatores de recuperação (estar empregado, por exemplo).

Frente à pergunta "como gostaria que estivesse a sua vida daqui a um ano?", a projetos concretos de futuro (o que implica decisões, escolhas, planos, ações), apontavam a dificuldade ou até impossibilidade de fazer projeções de médio-longo prazo, mostrando que a esperança é vaga e utópica quando confrontada com os caminhos a trilhar para o futuro:

Eu vivo só por hoje, hoje eu não vou beber. [...] Porque eu não posso pensar a longo prazo, porque senão se torna um fardo muito pesado pra mim. [...] Eu imagino minha vida só por 24 horas [...] Entende, eu não posso pensar daqui a dois, três dias, daqui uma semana (Participante nº 3).

Percebe-se a influência da doutrina proferida pelos grupos de AA, que tem como um de seus slogans o "só por hoje", que faz com que o sujeito se volte para o momento atual, produzindo um corte com o futuro, na medida em que pensar nisso pode ser ansiogênico e, assim, lançar o sujeito na compulsão pela droga. Isso pode ser verdade, mas, por outro lado, sem perspectiva de futuro, qual o sentido da recuperação para um sujeito? Para que lutar, cortar certos prazeres, se não há uma perspectiva pela qual valha a pena viver? O sentido de futuro é que faz o sentido da vida de um sujeito (Sartre, 1960). Nos depoimentos, fica claro como a falta de perspectiva de futuro impede a busca por alternativas de recuperação:

A minha vida tá... como vou explicar... tá abalada, minha vida tá abalada. Eu não sei que rumo eu pego. Que nem aquela história do cego no meio do tiroteio, eu não sei pra que lado eu vou. (Participante nº 13).

A dificuldade de fazer projeções pode decorrer do momento crítico que o sujeito está vivenciando, não encontrando motivos e/ou oportunidades de pensar qualquer outro projeto de vida, nem sendo estimulado a isso nos tratamentos por que passa. Já nas falas de alguns participantes, não há dificuldade, e sim uma recusa em fazer projeções. E há ambivalências: o mesmo participante pode descrever, por exemplo, planos para voltar ao trabalho ou envolver-se na criação do filho e, ao mesmo tempo, indicar que irá organizar a vida em torno da manutenção diária da abstinência, sem pensar a médio ou longo prazo em projeto algum além do tratamento.

Isso indica o descompasso entre o imperativo da abstinência como meta única e as questões que dão fundamento para o sentido existencial. A complexidade do processo de reorganização dos projetos de vida e, consequentemente, das identidades dos usuários é pouco considerada na maioria das propostas de tratamento. Os resultados deste estudo reforçam os achados de que as modalidades mais convencionais de tratamento, centradas na noção restrita de doença e na meta única de abstinência, são de eficácia duvidosa (Cutler & Fishbain, 2005).

Além da eficácia questionável, também se verifica um aspecto contraproducente de tais tratamentos (Carballo et al., 2008), no sentido de "penalizarem" o paciente quando ele volta a beber. Com a supervalorização da abstinência, o sujeito é mais vulnerável ao chamado "efeito de violação da abstinência" (Silva & Serra, 2004), ou seja, os sentimentos negativos experimentados ao beber (frustração, culpa, tristeza), que levam o sujeito a concluir que seu esforço é vão, abandonando o empenho em recuperar-se e retornando ao abuso de álcool.

A contribuição da antropologia (Minayo, 2008; Velho, 1999, 2001), da fenomenologia (Sodelli, 2010) e do existencialismo (Sartre, 1960; Schneider, 2011) possibilita buscar o entendimento das razões das recaídas em alcoolistas e, com isso, pensar novas perspectivas para o tratamento. O papel de doente deveria ser flexibilizado, dando espaço para atitudes mais ativas e autônomas, para que outros papéis possam também ser assumidos e para que outras estratégias sejam implementadas.

Segundo Velho (1999), o sujeito constitui sua identidade na articulação de seus projetos pessoais com sua memória, dentro de um campo de possibilidades. O campo de possibilidades é o contexto, abarcando desde as interações sociais imediatas até o contexto cultural. A memória diz respeito à atribuição de sentido às experiências do sujeito em sua história. Para um usuário crônico de substâncias psicoativas, faz-se necessário trabalhar essa memória e seus sentidos, rearticulando projetos pessoais.

Sartre (1960) aprofunda o conceito de projeto, mostrando como o projeto-de-ser de um indivíduo é forjado em seu meio social, caracterizando-se pela busca do sujeito de realizar o seu ser, já que o homem está sempre indo em direção ao seu futuro. Não existe indivíduo sem projeto. Mesmo não ter projeto é ainda um projeto; o homem, ao lançar-se no mundo, persegue um fim, mesmo que não tenha clareza de qual é ele. Em cada posicionamento, em cada comportamento do sujeito, existe uma significação que o transcende. Sendo assim, há que se compreender a função do uso de álcool na vida do sujeito e trabalhar isso em um tratamento dirigido à atenção integral e que tenha como meta a sua qualidade de vida. Daí a importância de resgatar o projeto de ser que o alcoolista não consegue mais vislumbrar, mas que está no fundo de suas afetações, angústias e compulsões, e que o impelem ao consumo intempestivo do álcool, para poder ressignificá-lo.

 

Considerações finais

Uma das principais conclusões que se pode tirar dos resultados deste estudo é que a recaída está relacionada a determinadas formas de significação das experiências (de tratamento, de recaída e de recuperação) que convergem para uma organização identitária do sujeito, em que predominam características passivas, com empobrecimento dos projetos de vida e com a repetição de tratamentos pontuais que não desenvolvem sua autonomia.

Outra conclusão importante é que os tratamentos tradicionais, além de apresentarem eficácia questionável, possuem aspectos contraproducentes, na medida em que enfatizam a abstinência como única meta aceitável para o tratamento. Assim, reforçam certas ideias sobre recuperação que acabam por contribuir para o empobrecimento dos projetos de vida dos alcoolistas: a noção de recuperação que os entrevistados apresentam é restrita, eles desqualificam melhorias de vida que não coincidem com abstinência, e contabilizar períodos de abstinência torna-se sua prioridade. Muitos passam a realizar suas vidas em função dos planos de tratamento, sem vislumbrar outras possibilidades de ação nas condições concretas da realidade que os cerca.

Atividades e interações sociais que poderiam criar condições de recuperação (buscar emprego, retomada de vínculos sociais, familiares e amorosos) são paradoxalmente adiadas, em muitos casos, para depois da recuperação, pois entendem que devem ter a certeza da manutenção da abstinência, sem lapsos e recaídas, o que acaba por gerar um círculo vicioso, pois sabe-se que reestruturar esses vínculos é elemento crucial para a recuperação (Alvarez, 2007), para que o sujeito se experimente integrado em seu contexto e a bebida perca a função de bengala química.

Estas conclusões sugerem que melhorias mais significativas na saúde do alcoolista requerem mudanças nas condições que produzem o fenômeno do alcoolismo, o que implica a adoção de atitudes mais ativas, para além do papel de doente, com o resgate de projetos de vida que envolvam outros tipos de interações sociais e que visem à transformação do contexto em que ele vive.

Os serviços de atenção poderiam melhorar sua eficácia flexibilizando suas próprias concepções sobre o alcoolismo, principalmente quanto à ênfase na abstinência como meta única e na necessidade de tratamento permanente, passando a investir mais naquilo que de melhor podem proporcionar: conscientização mais realista, reinserção social e promoção/resgate de vínculos afetivos significativos para o sujeito, buscando um comprometimento com a viabilização de outros projetos de vida para os alcoolistas.

 

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Endereços para correspondência:
Fábio Becker Pires
fabiobpires@yahoo.com.br

Daniela Ribeiro Schneider
danischneiderpsi@uol.com.br

Submetido em: 12/10/2012
Revisto em: 22/03
Aceito em: 23/03/2013