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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.65 no.1 Rio de Janeiro jun. 2013

 

ARTIGOS

 

Configurações sociofamiliares de crianças com múltiplos acolhimentos institucionaisi

 

Social and familiar setting of children who have gone through multiple shelter placements

 

Configuraciones socio-familiares de niños en instituciones de acogida

 

 

Cláudia Cristina FukudaI; Maria Aparecida PensoII; Benedito Rodrigues dos SantosIII

IDocente. Programa de Mestrado em Psicologia. Universidade Católica de Brasília (UCB). Brasília. Distrito Federal. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Católica de Brasília (UCB). Brasília. Distrito Federal. Brasil
IIIDocente. Programa de Mestrado em Psicologia. Universidade Católica de Brasília (UCB). Brasília. Distrito Federal. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta o perfil sociofamiliar de crianças e adolescentes em situação de múltiplos acolhimentos institucionais em Brasília/DF, entre janeiro de 2007 e agosto de 2009. Trata-se de uma análise documental quantitativa das Pastas Especiais que tramitavam na Promotoria da Infância e Juventude. Os resultados apontaram para uma predominância de crianças e adolescentes do sexo masculino, com média de três acolhimentos, de famílias com mais de uma criança/adolescente acolhida com idade inferior a 11 anos, vítimas de maus tratos, negligência ou situação de rua, sob a responsabilidade legal das mães, sendo a figura paterna praticamente ausente nos processos judiciais. O perfil das mães registrou acentuado grau de vulnerabilidade social. O tempo de acolhimento demonstrou a violação dos princípios da brevidade e excepcionalidade da medida de acolhimento, apontando para a ineficácia das políticas sociais de proteção e assistência às famílias em situação de vulnerabilidade social.

Palavras-chave: Acolhimento institucional; Vulnerabilidade social; Políticas sociais; Crianças acolhidas.


ABSTRACT

This article presents the social and-familiar profile of children and adolescents who have gone through multiple shelter placements in Brasilia, DF, from Jan./2007 to Aug./ 2009. The research methodology was a quantitative one that analyzes the data gathered from the "special files" processed by the State Prosecutor for Childhood and Youth. The results showed that children-adolescents, who were predominantly male, had an average of three placements in shelters; had first been placed under 11 years old; came from families in which more than one sibling had also been placed as well. Most of them were victims of abuse, neglected or homelessness, who were living under the legal custody of mothers since there was often no contact between the state and the parents. The mothers showed social vulnerability. The length of the placement violates the principles of brevity and exceptionality of this protective measure and that demonstrates the ineffectiveness of the social policies for protecting and providing assistance to families living in contexts of social vulnerability.

Keywords: Shelter placements; Social vulnerability; Social politics; Shelter child.


RESUMEN

Este artículo presenta el perfil socio-familiar de niños y adolescentes en varias situaciones de paso por instituciones de acogida en Brasilia, DF, entre enero de 2007 y agosto de 2009. Es un análisis cuantitativo de los documentos de sus historiales que se encuentran en tramitación en la Fiscalía de la Niñez y la Juventud. Los resultados señalaron a un predominio de niños y adolescentes varones, con un promedio de pasaje por tres instituciones de acogida, con edad inferior a los 11 años, víctimas de maltrato infantil, negligencia o en situación de calle, bajo la responsabilidad legal de las madres, siendo el padre una figura prácticamente ausente en los procesos judiciales. El perfil de las madres registró fuerte grado de vulnerabilidad social. El tiempo de acogida identificado demostró la violación de los principios de la brevedad y excepcionalidad de la medida de acogida y señala hacia la ineficacia de las políticas sociales de protección y asistencia a las familias en situación de vulnerabilidad social.

Palabras-clave: Acogimiento institucional; Vulnerabilidad social; Políticas sociales; Niños protegidos.


 

 

Esta pesquisa teve como objetivo descrever o perfil sociofamiliar de crianças e adolescentes em situação de múltiplos acolhimentos institucionais no Distrito Federal no período de janeiro de 2007 a agosto de 2009, após a aprovação do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2006). Especificamente, seu objetivo foi traçar um perfil dessas crianças e adolescentes quanto ao sexo, faixa etária, número de acolhimentos, motivo do acolhimento, existência de grupos de irmãos acolhidos, trajetória de rua, situação e duração dos processos, bem como as condições da família para exercer os cuidados parentais.

Será apresentada inicialmente uma análise histórica do cuidado com crianças e adolescentes privados da convivência familiar no Brasil, a contextualização da condição de acolhimento no Brasil e no Distrito Federal antes da aprovação do Plano Nacional e a análise crítica desse plano.

 

Aspectos históricos da proteção às crianças e aos adolescentes em situação de risco no Brasil

A atenção às crianças pobres, desde o Brasil Colônia até a República, sempre foi um grande desafio, principalmente no que diz respeito à divisão de responsabilidades sobre o seu cuidado. Para Faleiros (1995b), crianças pobres eram "jogadas de uns para outros", sendo que alguns achavam que estavam fazendo muito, outros que o que faziam de nada adiantava ou que era melhor não fazer nada. Assim, a responsabilização pelo cuidado e desenvolvimento dessas crianças e adolescentes ocorria por uma combinação de ações privadas e públicas de assistência e repressão. As instituições de acolhimento, foco deste estudo, tanto na Europa como no Brasil, tiveram seu surgimento marcado pela exclusão e segregação de parcela da população não aproveitada pelo capitalismo nascente e reinante, considerada pária, vadia, vagabunda e desocupada (Souza Neto, 2002). Foram as instituições religiosas que tomaram para si o cuidado com essa população. Desde então e até a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), proliferaram instituições de caráter filantrópico que, apesar das boas intenções, prevaleciam com "a concepção do 'menor' como um ser sem desejos e vontades, objeto de ações religiosas e políticas" (Souza Neto, 2002, p. 94).

Somente no início do século XX, iniciou-se no Brasil a discussão sobre a implantação de uma política de "assistência e proteção aos menores abandonados e delinquentes" (1902), ancorada na meta de construção da nação republicana, visando a um melhor aparelhamento institucional capaz de "salvar" a infância brasileira (Irene Rizzini & Irma Rizzini, 2004). Iniciou-se um período de forte presença do Estado no planejamento e na implementação das políticas de atendimento às crianças e adolescentes inseridos na categoria dos menores e designou-se um campo de atuação profissional e um conjunto de políticas para as crianças e os adolescentes das camadas populares (Pinheiro, 2006).

O primeiro Código de Menores, de 1927, trouxe, ao mesmo tempo, o cuidado com questões ligadas à higiene na infância até aquelas relacionadas à delinquência juvenil, estabelecendo a vigilância pública sobre as crianças e os adolescentes e possibilitando a retirada do pátrio poder (Faleiros, 1995a). Sob a vigência desse código foram criadas as delegacias de menores, com a principal função de lutar contra as "criadeiras", mulheres que cuidavam de crianças e que eram consideradas causadoras de doenças, pela pobreza e falta de condições higiênicas; o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), ligado ao Ministério da Justiça, equivalente do Sistema Penitenciário para a população menor de 18 anos, com enfoque tipicamente correcional-repressivo; e a Legião Brasileira de Assistência (LBA), com o objetivo de dar apoio aos combatentes da II Guerra Mundial e a suas famílias, tendo depois se estabelecido como instituição de assistência suplementar para a sociedade civil. Em 1964 foi lançada a Política Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM) e criada a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM), com o objetivo de dar um caráter nacional à política de bem-estar de crianças e adolescentes (Silva & Mello, 2004; Faleiros, 1995a, 1995b).

Em 1979, entrou em vigor o novo Código de Menores, momento em que a sociedade brasileira estava assustada com o aumento de crianças e adolescentes carentes e a delinquência juvenil, e, portanto, sua ênfase recaiu nos dispositivos de castigo para os menores infratores pobres (Pinheiro, 2006). Aumentou-se a carga discriminatória sobre a categoria menor, contrapondo um segmento populacional em situação irregular aos demais e dirigindo a força regulatória sobre as camadas populares. O poder do juiz era absoluto, incidia sobre os destinos das crianças e dos adolescentes, decidindo sobre sua internação, colocação em instituição de acolhimento, adoção ou punição dos pais ou responsáveis, e se constituía em um único conjunto de medidas destinadas, indiferentemente, aos menores de 18 anos autores de ato infracional, carentes ou abandonados (Faleiros, 1995a, 1995b). Esse controle sobre a vida do outro revelava o tratamento de objeto e de lugar de não direito que era dado às crianças e aos adolescentes (Batista, 1998).

A abertura democrática da década de 1980, o surgimento do movimento de meninos e meninas de rua, entre outros acontecimentos sociais e políticos, vieram questionar essas práticas repressivas do Código de Menores e sua ineficácia, possibilitando surgir uma nova visão sobre crianças e adolescentes que os considerava sujeitos de sua história. Em 1988, a nova Constituição Federal representou um marco na garantia de direitos básicos, introduzindo no sistema legal brasileiro o conceito de seguridade social, que agrupou as políticas de assistência, previdência social e saúde, contemplando a proteção integral a crianças e adolescentes.

No Brasil, em 1990, em decorrência de discussões em âmbito nacional, foi aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei n. 8069/90) (Brasil, 1990), que coroou a doutrina da proteção integral e reafirmou a compreensão da criança e do adolescente como uma questão pública, permitindo ao poder público interferir no pátrio poder e nas questões privadas da família para garantir seus direitos como cidadãos (Faleiros, 1995a). O ECA também garantiu, a todas as crianças e adolescentes, direitos universais, independentemente da classe social. Pressupôs, ainda, o respeito à diferença, a peculiaridade de seu desenvolvimento, deu-lhes prioridade absoluta nas políticas públicas de saúde, educação e assistência social, abrangendo para eles outros direitos, além daqueles reconhecidos para todos os seres humanos.

Em 1993, a Lei Orgânica da Assistência Social LOAS (Lei 8.742/93) veio reforçar os preceitos do ECA, ao garantir o acesso universal às políticas públicas, com um conjunto de estratégias articuladas para trabalhar o fortalecimento das relações de cidadania, autonomia e identidade. Uma dessas estratégias foi a implementação de direitos mínimos de cidadania, fundamentais para uma articulação entre assistência e combate à violência, à negligência e à exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes.

No entanto, a globalização e a consequente penetração do modelo neoliberal, nos anos 1990, que apregoavam políticas de privatização de serviços básicos, como os de saúde, educação e assistência social, vieram prejudicar o cumprimento dos preceitos do ECA, uma vez que a implementação das políticas públicas necessárias para garantir os direitos assegurados em seu texto demandavam investimentos públicos no campo social não compatíveis com o neoliberalismo, que pregava um Estado mínimo ou Estado fraco. Como colocam Lonardoni, Gimenes, Santos e Nozabielli (2006), nesse modelo neoliberal, as políticas sociais assumiram características seletivas e compensatórias e deflagraram um movimento de desresponsabilização do Estado na gestão das necessidades e demandas dos cidadãos.

Nesse processo, os serviços destinados ao atendimento social de crianças e adolescentes ficaram prejudicados e só avançaram com a criação do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), em 2004, e a consequente elaboração de planos de ação nas diversas áreas de atendimento às crianças e aos adolescentes.

Marco importante foi, também, a promulgação da Lei n. 12.010, de 3 de agosto de 2009 (Brasil, 2009), que alterou dispositivos do ECA, entre eles a nomenclatura da medida de proteção prevista no artigo 101, inciso VII, de "abrigo em entidade" para "acolhimento institucional". Essa novidade terminológica propôs um novo paradigma para as instituições, comprometendo-as com a preservação dos vínculos familiares, com a reintegração familiar e com a convivência comunitária das crianças e dos adolescentes sob sua responsabilidade.

Além disso, a lei, ao invés de privilegiar o instituto da adoção, estabelece a obrigatoriedade de se preservarem os vínculos familiares junto à família natural, determinando que a intervenção estatal seja prioritariamente voltada à orientação, apoio e promoção social da família natural, considerada o melhor ambiente para o desenvolvimento da criança ou adolescente (Rossato & Lépore, 2009). Isso significa que, somente ao se constatar a impossibilidade de manutenção na família natural, a criança/adolescente deve ser colocada em família substituta, tendo preferência para recebê-la sua família extensa ou ampliada. Havendo também impossibilidade da família extensa, é facultada a adoção por terceiros nacionais e residentes no Brasil, seguindo-se, em ordem de preferência, a adoção internacional e, como última opção, a manutenção da criança/adolescente em instituições de acolhimento.

Os avanços históricos e sociais descritos anteriormente, no que diz respeito ao cuidado de crianças e adolescentes, permitiram a passagem do modelo assistencial filantrópico para o modelo de política pública, baseado nos direitos fundamentais. Vários indicadores sociais apresentaram mudanças significativas durante os 20 anos de vigência do ECA, como a redução da parcela da população brasileira vivendo em extrema pobreza e da mortalidade infantil, além do aumento do número de matrículas no ensino fundamental e médio (Brasil, 2010). Houve ainda a implantação de Conselhos Tutelares e Conselhos dos Direitos nas cidades brasileiras, a criação de Juizados da Infância e da Juventude, dos Núcleos Especializados no Ministério Público e Defensoria Pública, além de delegacias especializadas. Contudo, apesar de todos esses avanços, muito ainda há que ser feito, principalmente em relação à adequação das unidades de acolhimento à Lei 12.010, de 2009. Como afirma Glens (2010): "o Estatuto ainda não teve a força esperada na modificação do quadro histórico de atendimento em abrigos [...]" (p. 68).

Ressalte-se, porém, que considerar crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, responsabilidade de todos, pessoas em desenvolvimento e prioridade absoluta, ainda não transita no senso comum, fazendo com que os cuidados e serviços, muitas vezes, estejam fundamentados na doutrina da situação irregular. O Estado, por sua vez, não cumpre as políticas sociais básicas de assistência às famílias que, sem condições de sobrevivência, não conseguem cuidar e proteger suas crianças e seus adolescentes, que são entregues a instituições, muitas vezes inadequadas, perpetuando-se um ciclo de descuido com a infância e a adolescência.

É inegável que muitos progressos ocorreram, mas também muito há por fazer, como pode ser constatado a seguir, na apresentação da situação do acolhimento institucional no Brasil e também no Distrito Federal, onde ocorreu este estudo.

 

O acolhimento institucional de crianças e adolescentes no Brasil e no DF

O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, 2006) embasou-se no Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede de Serviços de Ação Continuada (Rede SAC), realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2003, e coordenado por Silva (2004).

Esse levantamento permitiu construir o perfil das 589 instituições de acolhimento beneficiadas com recursos do governo federal, componentes da Rede SAC, abrangendo 19.373 crianças e adolescentes, que também tiveram seu perfil construído. Vale ressaltar que as instituições de acolhimento do Distrito Federal não recebem recursos da Rede SAC/Abrigos, e as informações a seu respeito serão apresentadas posteriormente, com base no diagnóstico realizado por uma Comissão Intersetorial, que elaborou o Plano Estadual de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (Distrito Federal, 2008).

Resumidamente, o Levantamento Nacional apresentou os seguintes resultados sobre as instituições de acolhimento: 66,9% atendiam a até 25 crianças e adolescentes, sendo que 64,2% funcionavam com lotação abaixo de sua capacidade; 68,3% eram não governamentais; 67,2% possuíam vínculo ou orientação religiosa; 50% foram fundadas depois da promulgação do ECA; a maioria atendia no regime misto de coeducação (acolhimento de crianças e adolescentes de ambos os sexos), trabalhando com faixa etária ampliada, apontando para a diversificação da convivência nos abrigos, possibilitando também o princípio de não desmembramento de grupos de irmãos previsto no ECA. A maior parte não oferecia atendimento especializado, recebendo qualquer criança ou adolescente em situação de risco social ou pessoal, sem distinção quanto às peculiaridades individuais, como necessidades especiais ou doenças, ou quanto ao tipo de problema que tenha culminado no acolhimento institucional.

Quanto às ações voltadas à preservação dos vínculos familiares, 79,8% das instituições mantinham informações sistematizadas sobre as famílias; 65,9% promoviam visitas das crianças e dos adolescentes aos lares de suas famílias; 41,4% permitiam a visitação livre das famílias, sem datas e horários preestabelecidos; 63,8% afirmaram priorizar a manutenção ou a reconstituição de grupos de irmãos; porém apenas 14,1 % ofereciam apoio às famílias no processo de reestruturação familiar, realizando visitas domiciliares, fazendo acompanhamento social ou mesmo encaminhando para a inserção em programas de auxílio/proteção à família; 22,1 % incentivavam a convivência das crianças e dos adolescentes acolhidos com outras famílias, favorecendo a colocação em família substituta, utilizando programas de apadrinhamento e enviando relatórios periódicos para a Justiça; e 8% tinham semelhança residencial, quer pela estrutura física, quer por prestar atendimento em pequenos grupos (Silva, 2004).

Quanto ao perfil das crianças e dos adolescentes que viviam nas instituições, por ocasião do levantamento citado, os resultados apontaram que eles eram, em sua maioria, meninos, afrodescendentes, com idades entre 7 e 15 anos, estavam institucionalizados entre dois e cinco anos; possuíam família, sendo que mais da metade mantinha vínculos familiares e apenas uma pequena parcela estava impedida judicialmente de contato com seus familiares, era órfã ou tinha família desaparecida. O principal motivo de acolhimento das crianças e dos adolescentes foi a pobreza, seguido por situações de abandono, violência doméstica, dependência química e/ou alcoolismo dos pais ou responsáveis, vivência de rua e orfandade (Silva & Aquino, 2005; Silva, 2004).

A análise desses dados revela que a causa mais frequente de ingresso de crianças e adolescentes em instituições de acolhimento relaciona-se ao trinômio pobreza/abandono/violência, em evidente violação ao ECA, no qual está previsto que, na falta de recursos materiais, a família deve ser incluída em programas oficiais de auxílio, garantindo-se assim a manutenção da criança ou do adolescente em sua família de origem; e ainda: em caso de presença de violência, os pais devem ser incluídos em programas de atendimento psicossocial.

Todos os dados apresentados referem-se à situação nacional, mas não incluem o Distrito Federal, os dados sobre a situação do acolhimento institucional de crianças e adolescentes no Distrito Federal são aqueles levantados pela Comissão Intersetorial, na época da elaboração do Plano Estadual de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, em 2008 (Distrito Federal, 2008). Os dados abrangeram 21 instituições de acolhimento, das 23 existentes no Distrito Federal, e demonstraram que 35% das instituições estavam localizadas na cidade de Brasília (Plano Piloto), 30% em Taguatinga e 15% em Sobradinho; 71 % possuíam vinculação religiosa. Quanto à faixa etária de atendimento, 62 % atendiam a crianças e adolescentes de 0 a 18 anos, no entanto 38% restringiam sua demanda a certas faixas etárias; 76% acolhiam crianças e adolescentes de ambos os sexos.

No que se refere à manutenção das entidades de acolhimento do Distrito Federal, somente a metade recebia recursos diretamente do governo. Mas esses recursos eram insuficientes, fazendo com que as próprias instituições precisassem arcar com 50% dos custos de manutenção de seu sistema de atendimento. Quanto aos profissionais que cuidavam diretamente da criança e do adolescente acolhido, em 66 % das instituições eles residiam na instituição e estas declararam oferecer-lhes apoio técnico, como "orientação com psicólogo, assistente social ou pedagogo" (48%), "reunião com técnicos" (14%) e cursos de capacitação (9,5%). Em 48% das instituições a proporção entre esses profissionais e as crianças e os adolescentes atendidos era de pelo menos um profissional para cada dez crianças/adolescentes, conforme recomendação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Quanto à promoção da convivência familiar e comunitária, 76% das instituições de acolhimento do Distrito Federal declararam que não recebiam auxílio específico para promover a reintegração familiar. No entanto, 86 % delas informaram que, para incentivar a convivência da criança com seus familiares, "priorizavam/favoreciam a manutenção de grupo de irmãos", tendo sido essa a ação declarada como a mais utilizada no incentivo da convivência. Além disso, 62% dos serviços de acolhimento disseram que promoviam visita da criança a sua família, 52% declararam que "incentivavam contatos telefônicos" e "visitas das famílias em horários e dias livres" e 48 % informaram que "utilizavam serviço de identificação da família", sendo que alguns abrigos declararam realizar mais de uma dessas ações.

 

O papel dos Planos Nacional e Estadual de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária

A elaboração de planos para a definição de estratégias eficazes de garantia do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes configura-se como importante marco histórico na mudança de compreensão da sociedade e do poder público brasileiro quanto às crianças e aos adolescentes acolhidos institucionalmente. Essa mudança mostrou-se necessária diante do quadro revelado pelo Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes, especialmente com relação aos longos períodos de institucionalização. No âmbito federal, o Plano Nacional resultou de um processo participativo de elaboração conjunta e, embora reconheça a importância da decisão judicial no afastamento da criança ou do adolescente de sua família de origem, estabelece como pressuposto dessa decisão judicial um estudo diagnóstico, a ser realizado por equipe técnica qualificada, em articulação com a Justiça da Infância e da Juventude (JIJ) e com o Ministério Público. Indica o caráter interdisciplinar que deve compor uma decisão judicial de afastamento de criança ou adolescente de sua família, ensejando, além de uma análise jurídica da situação, análises psicossociais. Uma das ações do Plano Nacional fala especificamente dessa integração: "estimular a integração entre o trabalho das equipes técnicas da Justiça da Infância e da Juventude, do Ministério Público e dos Grupos de Apoio à Adoção (GAA) nos municípios" (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, 2006, p. 95). Por isso, não se pode perder de vista que o sistema de Justiça não atua isolado, mas integrado com outros órgãos, serviços e equipamentos. Com esse enfoque agregador, portanto, é que devem ser consideradas as ações previstas no Plano Nacional a serem adotadas pelo sistema de Justiça (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, 2006).

Por sua vez, o Plano Estadual propõe a criação das condições necessárias ao efetivo exercício dos direitos propostos pelo Plano Nacional, inserindo o Distrito Federal nesse movimento de mudança de paradigma, reconhecendo a responsabilidade do Estado na formulação de políticas públicas que considerem a centralidade da família, sua variedade de arranjos, suas competências e deficiências. Isso significa priorizar estratégias e ações preventivas que fortaleçam os vínculos familiares, na perspectiva de proteção integral preconizada pelo ECA, qualificando o atendimento institucional existente, transformando as instituições de acolhimento em espaços de proteção, possibilitando também o investimento para o retorno das crianças e dos adolescentes acolhidos à convivência familiar. Esse plano também propõe a articulação e o fortalecimento dos setores envolvidos no processo de acolhimento institucional.

Em resumo, os planos Nacional e Estadual reivindicam a implementação de estratégias que diminuam o tempo de acolhimento institucional de crianças e adolescentes, seja pela adoção de critérios mais rigorosos na aplicação da medida, seja pela busca de medidas de reintegração familiar, seja pelo aperfeiçoamento do sistema de colocação em família substituta, seja pelo aprimoramento dos serviços de acolhimento institucional, garantindo-se que as crianças e os adolescentes tenham todos os seus direitos resguardados, mesmo quando privados do convívio com sua família.

 

Método

Para responder ao objetivo proposto pela pesquisa, que foi descrever o perfil sociofamiliar de crianças e adolescentes em situação de múltiplos acolhimentos institucionais no Distrito Federal, foi realizada uma análise documental das pastas especiais que tramitavam na Promotoria da Infância e Juventude do Distrito Federal (PIJ/DF), no período de janeiro de 2007 a agosto de 2009, conforme descrito a seguir. Trata-se de estudo quantitativo, descritivo, com método transversal.

Amostra

Foram identificadas 154 (28,3%) pastas especiais com histórico de mais de um acolhimento institucional (reacolhimento), em um universo de 545 pastas que tramitavam na PIJ/DF no período de janeiro de 2007 a agosto de 2009, com um total de 1.002 crianças e adolescentes em acolhimento institucional. Sendo que 45,5% das pastas com múltiplos acolhimentos incluíam grupos de irmãos, a variação de crianças ou adolescentes por pasta foi de 1a 11, totalizando 338 (33,7%) crianças e adolescentes com múltiplas medidas de acolhimento. O número de medidas de acolhimento variou de 2 a 25 medidas por pasta especial, sendo que mais da metade dos casos (51,3%) referia-se a 2 medidas de acolhimentos, 23,4% a 3, 11,7% a 4 e 13,4% a mais de 4.

Instrumento

Foi utilizado um roteiro de análise documental, elaborado pelos pesquisadores, com apoio da PIJ/DF. O roteiro buscou identificar o perfil das crianças e dos adolescentes e suas famílias quanto ao sexo, idade, número de acolhimentos, motivo do acolhimento, existência de grupos de irmãos acolhidos, trajetória de rua, situação (arquivado ou em andamento) e duração dos processos.

Procedimentos de coleta de dados

Importante ressaltar que o procedimento descrito a seguir é aquele da pesquisa maior na qual os dados foram coletados e da qual o recorte deste artigo foi feito, qual seja: crianças e adolescentes com mais de um acolhimento institucional. Acrescente-se que esse recorte foi aprovado pelo Conselho de Ética em Pesquisa da Universidade Católica de Brasília (CEP/UCB 056/2010).

A coleta dos dados, utilizando análise documental, foi realizada no espaço da PIJ/DF, demandando uma intensa colaboração dos promotores de Justiça atuantes na referida promotoria, para requisição das pastas que ficavam arquivadas na Vara de Infância e Juventude do Distrito Federal (VIJ/DF) e também para solicitação de informações sobre as crianças e os adolescentes junto às instituições de acolhimento.

Inicialmente, foi solicitado pela PIJ/DF a todas as instituições de acolhimento do Distrito Federal uma listagem das crianças e dos adolescentes que estiveram ou estavam acolhidos desde 2007. A partir da resposta, foi verificado no sistema do Tribunal de Justiça (TJDF)/VIJ a situação de cada processo, ou seja, se ele estava arquivado ou em andamento, e ainda se correspondia, de fato, a processo cível de crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional. A partir dessas informações, foi elaborada a lista das Pastas Especiais de interesse.

A PIJ solicitou ao juiz da 1ª VIJ/DF a colaboração para a realização da pesquisa, ele respondeu prontamente à solicitação e designou uma técnica para atender às solicitações de processos da Promotoria. Os processos, denominados de Pastas Especiais, foram paulatinamente solicitados, de acordo com a capacidade de análise da equipe de pesquisadores. A técnica designada pelo juiz separava as Pastas Especiais de acordo com listas que lhe eram remetidas e as encaminhava à PIJ. No mesmo dia em que eram recebidas, as pastas eram analisadas e devolvidas e outra listagem era encaminhada à técnica. Além disso, as pastas com tramitação no período que, pelo seu andamento normal, chegavam à PIJ eram encaminhadas para análise documental antes de retornarem à VIJ.

Posteriormente, a partir do roteiro de análise documental preenchido, selecionaram-se os casos de interesse, crianças e adolescentes que haviam passado mais de uma vez pelo acolhimento institucional. As informações obtidas desses casos foram analisadas por meio de estatísticas descritivas e inferenciais.

 

Resultados

Os resultados foram agrupados em três categorias: a) descrição dos processos judiciais e motivos das múltiplas medidas de acolhimento institucional; b) características sociobiográficas das crianças e dos adolescentes; e c) situação do pai, mãe ou responsável.

Descrição dos processos e motivos das múltiplas medidas de acolhimento O ano de abertura das pastas especiais analisadas variou de 1978 a 2008, e apenas 31 pastas (20,1%) haviam sido arquivadas na época da coleta dos dados. O tempo entre a abertura e o arquivamento dessas pastas variou de 6 meses a 8 anos, com média de 1,8 ano (± 1,7). Em mais da metade das pastas especiais (52,2%) esse tempo foi de até um ano. Porém, o tempo de atividade das pastas especiais que não foram arquivadas na época da coleta dos dados foi significativamente maior (M = 3,3 anos; DP = 4,2) (t = 3,06; p < 0,05). Das pastas especiais ativas, 47,4% tinham um ano ou menos de atividade, 18,1 % tinham acima de 1 ano até 3 anos, 11,3% tinham acima de 3 a 5 anos, 10,4% tinham mais de 5 a 7 anos e as demais (13%) tinham de 7 a 30 anos de atividade. Não foi possível identificar a situação de atividade de 7 pastas. O autor da primeira comunicação ao juiz sobre a situação da criança ou do adolescente foi a própria instituição de acolhimento (37,7%), seguida pelo Conselho Tutelar (18,2%), pelos serviços de assistência social (CREAS, CRAS, SOS, CDS) (11,7%) e pela Delegacia de Crianças e Adolescentes (DPCA) (11%). Os demais casos foram encaminhados pelo Ministério Público (7,1%), serviços de saúde (4,5%), delegacias de polícia (4,5%), varas judiciais (1,9%) e outros (5,1%).

Verificou-se, ainda, correlação entre o tempo de atividade e a quantidade de crianças e adolescentes citados nas pastas (r = 0,58)1, evidenciando que a maior quantidade de sujeitos em uma pasta estava relacionada a maior tempo de atividade.

Foram identificados 248 motivos para o acolhimento institucional, e os que ocorreram com maior incidência foram: maus tratos (19,8%), vivência de rua (18,5%) e negligência (17,7%), perfazendo mais da metade dos motivos. Outros motivos foram: abandono pelos pais ou responsáveis (8,1%), falta de condições materiais (7,7%), pais ou responsáveis alcoolistas ou dependentes químicos (5,6%), abuso, exploração ou suspeita de abuso/exploração sexual (4%), exploração do trabalho infanto-juvenil pelo tráfico ou mendicância (2%). Motivos que ocorreram com uma incidência menor que 2% foram: entrega voluntária nas instituições de acolhimento, pais ou responsáveis sem condições para cuidar de criança/adolescente com dependência química, entregue para adoção, acolhida para pedido de guarda, pais ou responsáveis com HIV/AIDS, morte dos pais ou responsáveis, pais com deficiência, pais detidos ou presidiários, pais ou responsáveis sem condições para cuidar de adolescente grávida e pais ou responsáveis sem condições para cuidar de criança/adolescente com HIV/AIDS. Também foram citados motivos como recambiamento entre abrigos, criança ou adolescente vigiando carro à noite, criança ou adolescente com comportamento agressivo em relação aos pais ou responsáveis, delinquência, evasão da DCA e residir em habitação irregular.

É importante ressaltar que o grande número de motivos descritos deve-se ao fato de não haver padronização sobre tal questão, ficando a descrição do motivo a cargo da interpretação do profissional que recebe a criança ou adolescente.

Ressalte-se, no entanto, que 53,9% das pastas especiais descreviam crianças e adolescentes em situação de rua e 17,5% em conflito com a lei, mesmo que tais situações não fossem o motivo relatado no momento do acolhimento institucional. Isso aponta para o fato de que, independentemente do motivo do acolhimento, mais da metade das famílias tinha membros em situação de rua no momento de abertura da pasta ou que foram para a rua durante o período de sua tramitação.

Características sociobiográficas das crianças e dos adolescentes

Houve maior incidência de criança ou adolescente do sexo masculino (53,4%) em relação ao feminino (46,3%). Foi identificada a idade que 323 crianças e adolescentes tinham na abertura da Pasta Especial, sendo que 49 (16%) ainda não tinham nascido no ano de abertura da pasta, que inicialmente se referia aos seus irmãos mais velhos. Considerando-se apenas as crianças que eram nascidas na abertura da pasta especial (274), verificou-se que as idades, no momento de abertura da pasta especial, variaram de menos de 1 ano (14 crianças) a 18 anos (4 crianças), sendo que 26,3% tinham menos de 6 anos, 36,9% tinham entre 6 e 11 anos, 35,4% tinham entre 12 e 17 anos e 1,5% já eram maior de idade. A média de idade quando a pasta foi aberta era de 8,9 anos (DP = 4,7). Foi possível identificar o local de moradia de 117 famílias. A maioria (72,7%) das famílias morava em cidades-satélites (o que em outros Estados são chamados de bairros) do Distrito Federal, principalmente Ceilândia (16%), Planaltina (16%), Taguatinga (15%), Sobradinho (14%), Paranoá (11%) e Recanto das Emas (10%); aproximadamente 13% moravam em cidades do entorno do Distrito Federal (cidades de Goiás, próximas ao DF); 3,9% em outros Estados; apenas duas famílias moravam em Brasília; 6,5% moravam em rua sem identificação da cidade; e para 2,6% não foi identificado o local de moradia. Ressalte-se que é nas cidadessatélites que se encontram os maiores índices de pobreza e desigualdades sociais.

Situação dos pais, mães e responsáveis

A mãe constava como responsável pela criança ou adolescente em 42,8% das pastas; seguida de responsabilidade compartilhada entre mãe e pai (12,3%); adulto da família extensa (11,7%); outras pessoas (9,0%); Estado (9,0%); e por último o pai (7,1%). Em cinco casos o próprio adolescente era o responsável (3,2%), e em 13 (8,4%) pastas não foi possível identificar o responsável. Quanto à situação psicossocial da mãe, verificou-se que em 27 casos a única informação na Pasta Especial era de que ela estava viva e em 11 não foi identificada nenhuma informação sobre sua situação. Nos casos em que foi possível identificar a situação em que a mãe se encontrava, registraram-se 148 situações (Tabela 1). Houve prevalência das seguintes situações: mãe desempregada, usuária de drogas e desaparecida ou desconhecida. Em apenas 11,5% das situações constava que a mãe estava empregada ou trabalhando como autônoma. Em menor quantidade a mãe era falecida, possuía problema de saúde ou residia fora do Distrito Federal. Identificou-se que três mães eram moradoras de rua e uma era presidiária.

 

 

Em relação ao pai, do total de 154 pastas, em 39 (25,3%) não foi possível identificar sua situação e em 18 (11,7%) a única informação era de que estava vivo. Para as pastas especiais que tinham informação sobre o pai, foi possível identificar 122 situações. Houve maior prevalência de situação em que o pai era desconhecido ou estava desaparecido, seguida de usuário de drogas ou álcool. Por outro lado, houve um índice um pouco maior, em comparação com a situação da mãe, de pais empregados ou autônomos. Identificou-se, ainda, uma incidência maior daqueles falecidos, desempregados e presidiários quando comparados à situação da mãe. Já em relação a pais que apresentavam problemas de saúde e moravam fora do Distrito Federal ou entorno, a incidência foi menor (Tabela 1).

 

Discussão

Os resultados apresentados aqui dizem respeito às crianças e aos adolescentes que foram acolhidos mais de uma vez, o que pressupõe que as tentativas de reinserção familiar ou inserção em família substituta foram mal sucedidas, levando a novo acolhimento. Considera-se que, quando uma criança ou um adolescente é devolvido à convivência familiar e volta a ser acolhido, independentemente do motivo do novo acolhimento, tal fato representa uma falha no processo de reinserção familiar, e os motivos dessa falha devem ser considerados em caso de nova tentativa. A compreensão é que, nos casos de múltiplas medidas de acolhimento, o Estado foi omisso no sentido da promoção social da família, da criança ou do adolescente, o que envolve apoio material, orientação no sentido de construção emocional e psíquica da responsabilidade parental e apoio psicossocial à criança ou ao adolescente e sua família no momento de reintegração familiar.

Outro dado de interesse é que a maioria das crianças e dos adolescentes acolhidos institucionalmente tinha menos de 11 anos na ocasião da abertura da pasta especial (63,2%), o que nos leva a inferir que muitos acolhimentos ocorreram em uma fase importante para o desenvolvimento psicossocial das crianças. Tal situação é agravada pelo fato de que 34% dos processos tinham mais de três anos de atividade, período muito longo para que uma criança ou adolescente permaneça afastado do convívio familiar e comunitário, o que pode trazer sérios comprometimentos para o seu desenvolvimento psicossocial (Cavalcante, Magalhães, & Pontes, 2007). Tal situação de longos períodos de acolhimento pode fragilizar os laços familiares, diminuindo as chances de reintegração familiar ou de colocação em família substituta e impactar negativamente no desenvolvimento da criança ou do adolescente.

Outra questão que pode ser levantada é que um número significativo (36,9%) das crianças tinha entre 6 e 11 anos, ou seja, estava em idade escolar, na qual uma maior autonomia e independência são conquistadas e a criança já consegue relatar de forma mais organizada o que está acontecendo com ela. Além disso, a escola constitui-se como um lugar onde a criança entra em contato com outras pessoas, além daquelas de seu núcleo familiar, e pode ser referência para uma relação de confiança e, consequentemente, de proteção e denúncia de situações em que a criança esteja sendo vítima de diferentes formas de maus tratos, abandono e negligência (Libâneo, 2009; L. A. M. Naiff, Pereira de Sá, & D. G. M. Naiff, 2008; Sousa & Durand, 2002).

Chama atenção, também, o dado de que 45,5% das pastas analisadas envolviam grupos de irmãos e em 16% houve nascimento de crianças durante a atividade da pasta. Ao nos questionar sobre o que esses dados poderiam representar em termos do papel do Estado e das políticas públicas de Saúde, Educação e Assistência Social junto às famílias envolvidas, surgiram algumas perguntas: ao terem sua primeira criança acolhida institucionalmente, as famílias receberam os encaminhamentos e orientações necessárias sobre planejamento familiar, reais necessidades de crianças e adolescentes e o que significa a paternidade e a maternidade? Ou, mesmo antes de terem seus filhos acolhidos, esses pais e mães tiveram acesso a políticas de saúde voltadas para a questão da saúde sexual e saúde reprodutiva, ou mesmo sobre a saúde de forma geral? Vale lembrar que esse é um direito de todos os cidadãos, previsto na Lei n. 9.263/1996, conhecida como "Lei do Planejamento Familiar" (Brasil, 1996), que estabelece normas, diretrizes, condições e punições (para os serviços de saúde) sobre a realização do planejamento familiar.

A ausência do Estado também pode ser percebida pela quantidade de mães desempregadas e sem renda para cuidar dos filhos. Vale lembrar que em 42,8% dos casos as mães apareceram como as únicas responsáveis pela criança ou pelo adolescente, significando que era delas a obrigação de prover as condições de sobrevivência de sua prole. São mães sozinhas, sem trabalho e formação profissional adequada. O pai apareceu como desconhecido ou desaparecido, sem registro ou com a única informação de que estava vivo em 71,4% das pastas. Tal dado demonstra a ausência do pai na vida dessas crianças e desses adolescentes. Considera-se necessária uma melhor compreensão desse fenômeno social, visto que tal resultado também foi encontrado por Silva (2004) e Fávero, Vitale e Baptista (2008).

Além disso, boa parte dos motivos do acolhimento estavam relacionados à pobreza, tais como residência em local irregular, vigiar carro à noite, falta de condições para cuidar de adolescente grávida, adolescente com HIV, falta de condições materiais, exploração do trabalho, somando 26,1 % dos casos. Resultados semelhantes foram encontrados por Fávero et al. (2008), em pesquisa para conhecer as famílias que têm crianças e adolescentes acolhidos institucionalmente na cidade de São Paulo, na qual concluíram que as famílias em questão são aquelas que na divisão social do trabalho se situam na condição mais precária. As autoras destacam, ainda, ser possível afirmar que, historicamente, os maiores índices relativos aos motivos de acolhimento de crianças e adolescentes relacionam-se a impossibilidades materiais da família.

Importante lembrar que a pobreza não deve ser critério para o afastamento da criança do convívio familiar, conforme previsto no Plano Nacional. A recomendação é que devem ser implantados nos Estados, municípios e no DF programas de apoio sociofamiliar, priorizando a superação da vulnerabilidade social decorrente da pobreza, incluindo condições de habitabilidade, segurança alimentar, trabalho e geração de renda; e a articulação com as diferentes políticas sociais básicas, em especial de Saúde, Assistência Social e Educação.

Três outros motivos para o acolhimento institucional aparecem de forma significativa nesta pesquisa: maus tratos, vivência de rua e negligência. Esses motivos são muito semelhantes aos encontrados por Silva (2004) e Fávero et al. (2008). Contudo, é importante refletir sobre a relação entre o descuido intencional do familiar e a precariedade socioeconômica que pode contribuir para a falta de cuidados necessários para as crianças e os adolescentes (Cruz, 2007). Obviamente não se trata aqui de uma correlação linear entre essas situações, pois isso poderia impedir a investigação mais profunda da negligência familiar e seus fatores associados, para além da questão socioeconômica. De acordo com Cruz (2007), é preciso refletir sobre a culpabilização atribuída às famílias pobres, pelas dificuldades dos filhos, eximindo o Estado de sua responsabilidade. Penso, Ramos e Gusmão (2004), aos estudarem famílias de crianças e adolescentes acolhidos institucionalmente no DF, também questionaram sobre as reais condições dessas famílias para cuidar dos filhos, uma vez que vivem, cotidianamente, situações de exclusão, desemprego e dificuldade de acesso às políticas públicas elementares.

Ainda quanto à condição das famílias, chama atenção a quantidade de mães e pais usuários de álcool/drogas, o que pode estar associado a situações sociais desfavoráveis e à fragilidade das políticas públicas de saúde para tal problemática.

Outro dado importante é a correlação entre o tempo de atividade do processo e a quantidade de crianças e adolescentes citados nas pastas. Isso levanta a hipótese de que se trata de famílias cuja complexidade de situações vividas e ausência de suporte e orientação do Estado levam ao acolhimento de muitas de suas crianças e seus adolescentes. Por outro lado, o fato de serem várias crianças acolhidas também pode ser um entrave para a reinserção familiar.

 

Considerações finais

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, a família é considerada a base da sociedade e, portanto, deveria ter proteção especial do Estado. O ECA garante o direito de convivência familiar e comunitária a todas as crianças e adolescentes. Porém, somente após o ano de 2006, quando o Plano Nacional foi aprovado, tal política passou a ser implementada mais sistematicamente. Esta pesquisa pretendeu descrever a situação sociofamiliar de crianças e adolescentes com história de múltiplas medidas de acolhimento no Distrito Federal após a aprovação desse plano.

Identificou-se que as crianças e os adolescentes com múltiplas medidas de acolhimento, em sua maioria, eram do sexo masculino, receberam a primeira medida com menos de 11 anos de idade, moravam em cidades-satélites do Distrito Federal, tinham vivência de rua e possuíam irmãos também em medida de acolhimento. As medidas de acolhimento tiveram duração média de três anos. Sendo que, quanto maior o número de crianças acolhidas de uma mesma família, maior o tempo de duração da medida. Os principais motivos para acolhimento foram maus tratos na família, vivência de rua e negligência.

A mãe foi a principal responsável pela criança ou pelo adolescente, e sua condição psicossocial caracterizava-se por desemprego e uso de drogas, porém houve também forte incidência de mães ausentes (desaparecidas, desconhecidas ou falecidas). Quanto ao pai, na maioria dos casos, estava ausente ou, quando conhecido, era caracterizado principalmente como usuário de drogas.

Tais resultados demonstram que a fragilidade familiar e social caracterizou as múltiplas medidas de acolhimento. Referem-se a crianças e adolescentes provenientes de famílias abandonadas pelo Estado, sem condições para cuidar e proteger seus filhos, que são entregues a instituições de acolhimento, muitas vezes, em razão de violência e falta de recursos financeiros dos pais. O acolhimento institucional faz com que os laços com a família e a comunidade se fragilizem, dificultando uma possível reinserção familiar. Por outro lado, as famílias não são assistidas adequadamente pelo Estado, mantendo-se nas mesmas condições do primeiro acolhimento, apontando assim para sérias violações de direito no que diz respeito a essa parcela da população.

Compreende-se que a ineficácia na implantação das políticas sociais de proteção e assistência às famílias em situação de vulnerabilidade social faz com que estas permaneçam à mercê de ações isoladas, incapazes de garantir os direitos de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária. Tal situação faz com que a relação entre as desigualdades sociais, políticas públicas ineficientes e violação de direitos de parte da população pareça definitiva e sem perspectivas de transformação.

Considerando que esta pesquisa é um estudo quantitativo com método transversal, que possibilitou uma descrição ampla da problemática da reinserção familiar, sugere-se, para melhor compreensão dessa problemática, o desenvolvimento de estudos em profundidade das situações psicossociais e familiares de crianças e adolescentes com múltiplas medidas de acolhimento.

Além disso, considera-se que a pesquisa proposta contribui para a conscientização de que a medida de acolhimento institucional, para ser efetiva, necessita ser acompanhada de um conjunto de políticas que fortaleçam tanto os laços familiares e a rede social das famílias quanto a própria rede de proteção das crianças e dos adolescentes.

 

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Endereços para correspondência:
Cláudia Cristina Fukuda
fukuda@ucb.br

Maria Aparecida Penso
penso@ucb.br

Benedito Rodrigues dos Santos
benedito.santos.br@gmail.com

Submetido em: 16/07/2012
Revisto em: 04/03/2013
Aceito em: 07/03/2013

 

 

i Este artigo é resultado da pesquisa "Crianças e adolescentes em acolhimento institucional no Distrito Federal: Estudo das condições familiares, institucionais e sociais" desenvolvida com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo no. 400692/2010-4.
1 Para a análise da correlação foram excluídos dois casos por serem considerados outliers univariados, visto que citavam 10 e 11 crianças/jovens nas pastas especiais.