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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.65 no.1 Rio de Janeiro June 2013

 

ARTIGOS

 

Ensino da psicanálise na universidade brasileira: retorno à proposta freudianai

 

Teaching Psychoanalysis in Brazilian university: return to Freud's proposal

 

La enseñanza del psicoanálisis en la universidad brasileña: retorno a la propuesta freudiana

 

 

Denise Maria Barreto CoutinhoI; André Santana MattosII; Camila Fonteles d'Almeida MonteiroIII; Pedro Andrade das VirgensIV; Naomar Monteiro de Almeida FilhoV

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador. Bahia. Brasil
IIMestrando (Bolsista CAPES). Filosofia. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Universidade Federal de São Carlos. São Carlos. São Paulo. Brasil
IIIDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal da Bahia. (UFBA). Salvador. Bahia. Brasil
IVGraduando. Curso de Psicologia. Instituto de Psicologia. Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador. Bahia. Brasil
VDocente. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade. Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador. Bahia. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

A psicanálise apresenta uma ruptura no pensamento moderno, fundando uma nova forma de pensar e, eventualmente, de fazer ciência. Esses posicionamentos perpassam ensino, pesquisa e transmissão, incidindo sobre a produção de conhecimento realizada tradicionalmente na universidade. Este artigo tem como objetivo discutir o ensino da psicanálise na universidade de acordo com os pressupostos de Freud e a partir de uma revisão de literatura sobre o tema em indexadores brasileiros como o Banco de Teses da CAPES e as bibliotecas virtuais de periódicos SciELO e LILACS. Os textos encontrados foram analisados segundo eixos temáticos. A universidade é discutida como possível locus de ensino e pesquisa em psicanálise, destacando-se a especificidade de seu modelo de transmissão, que considera o sujeito e seu desejo como inseparáveis do ato de ensinar e de pesquisar.

Palavras-chave: Ensino da psicanálise; Estudos sobre universidade; Transmissão; Sigmund Freud.


ABSTRACT

Psychoanalysis brings a rupture in modern thought while founding a new way of thinking and possibly of doing science. These positions run through teaching, research and transmission, focusing on the production of knowledge carried on in the traditional university. This paper aims to conduct a discussion on teaching psychoanalysis in the university based on literature review, according to the assumptions of Freud. A search was carried out in CAPES thesis database and SciELO and LILACS indexes. Texts were analyzed according to themes. The University is discussed as a possible locus of teaching and research in psychoanalysis, emphasizing the specificity of its transmission model, which considers the subject and his desire as inseparable from the act of teaching and of research.

Keywords: Teaching psychoanalysis; University studies; Transmission; Sigmund Freud.


RESUMEN

El psicoanálisis presenta una ruptura en el pensamiento moderno, fundando una nueva forma de pensar y, posiblemente, de hacer ciencia. Estas posiciones ocurren a través de la enseñanza, la investigación y transmisión, einciden en la producción de conocimiento, celebrado tradicionalmente en la Universidad. Este trabajo tiene como objetivo llevar a cabo una discusión sobre la enseñanza del psicoanálisis en la universidad, según las hipótesis de Freud y a partir de una revisión bibliográfica sobre el tema en la base de datos de tesis de CAPES y de las bibliotecas virtuales de publicaciones científicas SciELO y LILACS. Los textos se analizaron de acuerdo a los temas. La Universidad se discute como un posible locus de la enseñanza y la investigación en psicoanálisis, destacando la especificidad de su modelo de transmisión que considera el sujeto y su deseo como inseparables del acto de enseñar y de investigar.

Palabras-clave: Enseñanza del psicoanálisis; Estudios sobre la universidad; Transmisión; Sigmund Freud.


 

 

Introdução

Desejamos que o emprego da psicanálise na educação cumpra as esperanças que educadores e médicos nela colocam justificadamente (Freud, 1913/2010d, p. 343).

O ensino da psicanálise na universidade tem sido objeto de grande polêmica, suscitando questionamentos clínicos e acadêmicos. Por um lado, instituições psicanalíticas e seus agentes levantam críticas a partir de posicionamentos divergentes e, por vezes, conflitantes. A formação psicanalítica padrão, ao considerar o tripé análise pessoal, supervisão clínica e estudo teórico como forma necessária de transmissão, tende a ignorar e, por vezes, desmerecer o lugar que a psicanálise ocupa, desde a época de Freud, na universidade. Do lado da instituição universitária, as controvérsias não são menores. Nesse polo, a estruturação tradicional do ensino universitário, fragmentado e burocratizado, deixa pouca margem para inserir outras lógicas de formação, nas quais a experiência e o desejo do sujeito possam ser considerados rigorosamente. Essa polaridade nos leva a questionar se é possível um ensino fora do modelo preconizado pelas instituições universitárias, exaustivamente criticadas pela excessiva rigidez, convencionalismo e afastamento dos demais campos de conhecimento (Almeida-Filho, 2007).

Este artigo tem como objetivo realizar uma discussão sobre o ensino da psicanálise na universidade brasileira, a partir de uma revisão da literatura publicada no Brasil sobre o tema. Para isso, traçaremos brevemente um panorama histórico sobre como vem se configurando o campo psicanalítico na sua relação com a universidade desde a proposta de Freud de introduzir a psicanálise no ensino universitário. Em seguida, apresentaremos uma revisão de conteúdo e argumentos de publicações nacionais sobre essa polêmica questão, explicitando os procedimentos metodológicos que balizaram essa revisão sistemática. O exame dos artigos encontrados servirá como base para algumas reflexões e desdobramentos teóricos a partir do confronto entre os argumentos e posições da literatura e as formulações de Freud sobre o ensino da psicanálise na universidade.

Ao considerar a universidade como um locus para o saber psicanalítico, embora não tendo a função (ou a pretensão) de formação de analistas, buscamos contribuir para o debate sobre que tipo de abordagem da psicanálise é possível na universidade e como ela é transmitida nesse meio. Para abordar essa questão, o texto de Freud (1919/2010h) Deve-se ensinar a psicanálise nas universidades? foi o nosso guia.

 

Psicologia, medicina, educação e psicanálise: encruzilhada freudiana

De início, tomamos como pressuposto a psicanálise como campo de conhecimento autônomo e, portanto, não contido nos campos da psicologia ou da medicina (Althusser, 1996; Foucault, 1966/2007). Essa explicitação é necessária, porque sabemos que Freud considerou, durante todo o tempo de construção de sua obra, a psicanálise como um novo tipo de psicologia. A despeito de reconhecer a psicologia e a psiquiatria de sua época como campos disciplinares tradicionais, ele propunha a psicanálise como uma ciência nova ou, pelo menos, advogava uma compreensão mais ampla de ciência:

[A psicanálise] está sempre incompleta, sempre disposta a ajustar ou modificar suas teorias. Tal como a física e a química, ela tolera muito bem que seus principais conceitos sejam vagos e seus pressupostos sejam provisórios, e espera uma maior precisão deles como resultado de trabalho futuro (Freud, 1923/2011, p. 301).

No texto Uma dificuldade da Psicanálise, Freud (1917/2010f) dirige-se ao leitor leigo para explicitar claramente os objetivos e desafios da psicanálise, visando ao esclarecimento das diferenças entre psicologia, psiquiatria e psicanálise. Especificamente em relação ao ensino, ele diz: "A psicologia, tal como é ensinada entre nós, dá respostas muito pouco satisfatórias, quando questionada acerca dos problemas da vida psíquica" (Freud, 1917/2010f, p. 241). Esse é um texto no qual Freud distingue com bastante precisão os campos, sobretudo a psicologia e a psicanálise. Todavia, não encontramos sempre tal distinção sob a pena de Freud. Muito são os momentos em que ele aborda a psicanálise como sendo uma nova psicologia ou uma psicologia profunda. Relativamente ao campo psiquiátrico, Freud comenta o desdém que caracterizava a psiquiatria de sua época, em contraposição ao acolhimento que a psicanálise dá às diversas manifestações do sofrimento psíquico, no ambiente pesquisa/ensino: "A psiquiatria [...] limita-se a dizer, dando de ombros: 'Degeneração, disposição hereditária, inferioridade constitucional!'. A psicanálise procura esclarecer essas inquietantes doenças; ela empreende pesquisas longas e acuradas, produz conceitos auxiliares e construções científicas" (Freud, 1917/2010f, p. 248).

Alguns anos antes, Freud escrevera um prefácio para o livro O método psicanalítico, do pastor Oskar Pfister (Freud, 1913/2010d). Ele começa o texto dizendo que "A psicanálise nasceu no terreno da medicina (...). Mas ela se aprofunda bem mais na estrutura do mecanismo psíquico e busca obter influências duradouras e mudanças firmes nos seus objetos" (p. 340). Como se tratava de uma obra dirigida a educadores, Freud vai traçando paralelos entre os trabalhos do médico, do educador, do pastor e do psicanalista com a sua invulgar abertura de espírito. No final, ele considera que a responsabilidade do educador é superior à do médico, em função da possibilidade que o primeiro tem de encontrar um "material plástico, sensível a toda impressão" (p. 343). Mas, nesse ponto, ele aproxima as funções do educador às de um psicanalista, dizendo que o educador "deve impor-se a obrigação de não formar a jovem psique de acordo com seus ideais próprios, mas sim conforme as predisposições e possibilidades inerentes ao objeto" (p. 343). Poucos anos depois, ele diria:

[...] haverá ocasião em que o médico [no caso, psicanalista] é obrigado a atuar como educador e conselheiro. Mas isso deve ocorrer com grande cuidado, e o doente não deve ser educado para se assemelhar a nós, mas para liberar e consumar sua própria natureza (Freud, 1919/2010g, p. 289).

A proposta de Freud para a sua "jovem ciência" (Freud, 1933/2010j, p. 126) compreende os seguintes elementos integrados: modelo de pesquisa e de tratamento, método e rede conceitual e de vocabulário. Ainda que expressamente recusasse a utilização da psicanálise de modo generalizado, como uma Weltanschauung (Freud, 1933/2010j), ele toma partido da introdução da psicanálise na formação universitária, levando em consideração sua crença na ciência, na psicanálise como ciência e no papel potencialmente transformador da transmissão e do ensino. É o que também nos diz Lacan1 (1998), em seu texto A psicanálise e seu ensino:

Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno desse nome só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação que podemos pretender transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um estilo (Lacan, 1998, p. 460).

Como modelo de tratamento, que deriva de um método e de uma ética, usamos o exemplo de O uso da interpretação dos sonhos na Psicanálise (Freud, 1911/2010a), no qual ele distingue com precisão uma "arte da interpretação", por oposição à mera técnica: "nunca é óbvia, na psicanálise, a resposta a questões técnicas" (Freud, 1911/2010a, p. 123). Nesse mesmo texto, escreve:

A semelhante técnica deve-se contrapor a regra de que, para o tratamento, é da maior importância conhecer a todo momento a superfície psíquica do doente [...]. Dificilmente será lícito descuidar esse objetivo terapêutico em favor do interesse na interpretação dos sonhos (Freud, 1911/2010a, p. 124).

Em O início do tratamento (Freud, 1913/2010c), encontramos: "A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos anímicos e a riqueza de fatores determinantes resistem à mecanização da técnica" (Freud, 1913/2010c, p. 164).

Em relação ao novo modo de produção teórico-conceitual, tomemos afirmações presentes em Introdução ao Narcisismo (Freud, 1914/2010e). Freud diz que uma demanda de resposta definida a uma questão "deve suscitar em todo psicanalista um perceptível mal-estar" (Freud, 1914/2010e, p. 19), contrapondo uma teoria especulativa a "uma ciência edificada sobre a interpretação da empiria", que não invejará daquela "o privilégio de uma fundamentação limpa, logicamente inatacável, mas de bom grado se contentará com pensamentos básicos nebulosos, dificilmente imagináveis" (Freud, 1914/2010e, p. 19), de modo que o valor dos conceitos está em derivarem da clínica.

Quanto à pesquisa, em Recomendações ao médico que pratica a psicanálise (Freud, 1912/2010b), adverte o psicanalista para não selecionar dados no material clínico, porque ao fazer tal seleção "seguimos nossas expectativas ou inclinações. Justamente isso não podemos fazer; seguindo nossas expectativas, corremos o perigo de nunca achar senão o que já sabemos; seguindo nossas inclinações, com certeza falsearemos o que é possível perceber" (Freud, 1912/2010b, p. 149). Mais adiante, afirma: "deve-se ter em mente que protocolos exatos, num caso clínico psicanalítico, ajudam menos do que se poderia esperar. A rigor, ostentam a pseudo exatidão de que a 'moderna' psiquiatria nos oferece exemplos notórios" (Freud, 1912/2010b, p. 152). E, assim, conclui: "Um dos méritos que a psicanálise reivindica para si é o fato de nela coincidirem pesquisa e tratamento; mas a técnica que serve a uma contradiz, a partir de certo ponto, o outro" (Freud, 1912/2010b, p. 153).

As Conferências Introdutórias à Psicanálise (Freud, 1916-17/1973) foram proferidas nos semestres letivos de 1915/16 e 1916/17 numa sala da Clínica Psicanalítica de Viena, em aulas de duas horas de duração, segundo Freud, "para uma platéia de ouvintes de todas as Faculdades" (Freud, 1933/2010j, p. 124). No prólogo à edição hebraica, escrito em 1930, Freud sublinha o caráter inovador e inaugural da psicanálise, pedindo aos leitores que, "após as primeiras sensações de crítica e desagrado, não se precipitem numa reação de recusa total", porque "A psicanálise traz tantas coisas novas, e, dentre elas, tantas que contradizem as convicções tradicionais e que ofendem os sentimentos mais profundamente arraigados, que inevitavelmente suscitará oposição" (Freud, 1916-17/1973, p. 2124, tradução nossa).

Ao retomá-las, já em 1933, lembra que o conjunto delas pouco acrescentaria aos psicanalistas:

[...] dirigindo-se ao grande número de pessoas cultas às quais atribuímos um interesse benévolo, ainda que reservado, pelas peculiaridades e as conquistas da jovem ciência. Mas também nisso a intenção que me guiou foi nada sacrificar a uma aparência de simplicidade, completude e unidade, não ocultar problemas, não negar a existência de lacunas e incertezas. Em nenhum outro campo de trabalho científico alguém poderia se gabar de propósitos assim tão sóbrios e modestos (Freud, 1933/2010j, p. 125, grifo nosso).

Nesse prefácio ainda, compara os achados da "jovem ciência" com a astronomia, dizendo que "nenhum leitor de astronomia se sentirá decepcionado nem desdenhará a ciência, se lhe forem mostrados os limites em que nosso conhecimento do universo se desfaz em névoas" (p. 125), mas que em psicanálise "todo problema não resolvido, toda incerteza confessa é transformada em recriminação a ela". Finaliza com as seguintes palavras: "Quem ama a ciência da vida psíquica terá de aceitar também essas durezas" (p. 126).

Em relação ao ensino da psicanálise, a possibilidade de que poderia ocorrer na universidade foi considerada por Freud em 1919. Num pequeno editorial publicado numa revista médica húngara, Freud (1919/2010h) articula uma série de comentários preliminares que tomam a escola médica como referência. Apesar de curto e objetivo, trata-se de um texto bastante sistemático. Abre afirmando que essa questão deve ser "considerada de dois pontos de vista, o da psicanálise e o da universidade" (p. 378).

O primeiro ponto é rapidamente resolvido num parágrafo seco. Para Freud, parece claro que seria inadequado promover a formação psicanalítica num curso universitário. A possibilidade de gratificação individual ou o atendimento ao desejo pessoal de tornar-se um analista não caberiam numa formação curricular universitária. Por outro lado, tomar a psicanálise pela via da explicitação conceitual e em suas articulações com a cultura seria possível e quiçá necessário para uma formação geral universitária.

Com mais cuidado, com relação ao segundo ponto de vista, o da universidade, Freud (1919/2010h) pergunta "se as universidades estariam dispostas a atribuir algum valor à psicanálise na formação de médicos e cientistas" (p. 378). Em caso positivo, ele propõe desdobrar a resposta em três possibilidades de inserção: a) a psicanálise pode ser instrumentalizada para o ensino da psicologia médica; b) a psicanálise como propedêutica da psiquiatria; c) a psicanálise como um novo método de pesquisa clínica, diverso da psicologia médica até então presente no currículo universitário, e restrita à "psicologia acadêmica" e à "psicologia experimental" (p. 379).

Na opinião de Freud, a universidade, e particularmente a escola médica, só teriam a ganhar com a inclusão do ensino da psicanálise em seu currículo. O ensino da psicanálise não se restringiria aos "distúrbios psíquicos", mas se estenderia aos campos da arte, filosofia e religião, já tendo esclarecido questões, segundo ele, da "história da literatura, mitologia, história das civilizações e filosofia da religião" (Freud, 1919/2010h, p. 380). A presença da psicanálise, portanto, se daria com aulas teóricas que permitiriam uma abordagem crítica muito restrita, "pois quase não haveria oportunidade para experimentos ou demonstrações práticas" (p. 381). Freud imaginou um efeito fertilizante do pensamento psicanalítico sobre vários campos do conhecimento, capaz de criar entre eles uma ligação mais estreita. A indicação seria, portanto, oferecer a psicanálise como curso geral e introdutório tanto para as ciências quanto para as artes e as humanidades, "no sentido de uma universitas literarum" (p. 381).

Bem ao seu estilo, Freud conclui analisando uma objeção: cabe discutir que, desse apropriado. "Isto é verdadeiro se pensamos no efetivo exercício da Psicanálise", ou seja, em sua prática real como dispositivo terapêutico. Mas, para a finalidade restrita de formação universitária geral e para a educação médica de modo específico, será suficiente que o estudante "aprenda algo sobre e com a psicanálise" (Freud, 1919/2010h, p. 381, grifos do autor).

Essa disposição positiva em relação à universidade de certo modo contrasta com sua história pessoal, pois Sigmund Freud foi rejeitado em sua postulação de tornar-se professor universitário e o ensino de suas ideias foi praticamente banido da Faculdade de Medicina. Peter Gay descreve os passos iniciais de Freud em sua carreira médica e docente:

(...) a escada de promoções na carreira médica austríaca era íngreme e tinha muitos degraus. Freud começou na posição mais subalterna possível que havia no Hospital Geral [de Viena]: a de Aspirant, uma espécie de assistente clínico, e ascendeu a Sekundararzt em maio de 1883, quando entrou para a clínica psiquiátrica de Theodor Meynert. Tinha que galgar outros degraus; em julho de 1884, tornou Sekundararzt Superior, e mais de um ano depois alcançou, após alguns contratempos, o cobiçado nível de Privatdozent [em setembro de 1885]. Era uma posição que conferia prestígio, mas não um salário, desejável principalmente como um primeiro vislumbre da cátedra que o esperava num futuro distante (Gay, 1989, p. 54).

No sistema universitário germânico, o título de Docente Livre - em alemão, privatdozent (ou PD) - era concedido aos aprovados num exame de habilitação que servia tão somente para credenciar profissionais que se candidatavam a ensinar na universidade como professores voluntários, sem soldo e sem responsabilidades. Na universidade austro-germânica, durante todo o século passado, antes da Reforma de Bolonha (1999-2010), o PD se posicionava como postulante independente à espera de vacância dos cargos de Catedrático. Os que esperavam por muito tempo, sem lograr sucesso, eram desdenhosamente chamados de ewige privatdozent [eterno livre-docente]. Pelo contrário, em vez de submeter-se à humilhante espera, Freud usou essa posição, com brilho e competência, mas não sem controvérsias, para consolidar sua credibilidade como médico na Viena da Belle Époque. Na mesma época, solicitou uma bolsa de estudos à universidade para fazer um estágio de seis meses na Salpêtrière com Charcot (Rodrigué, 2000).

A "tortuosa história da promoção acadêmica de Freud", como Gay (1989, p. 138) a descreve, porém, não lhe entregará a referida cátedra, senão 17 anos depois, tempo que raramente um professor teria de esperar na época 2 . A promoção para Ausserordentlicher Professor (Professor Extraordinário), cujo valor também residia principalmente no seu prestígio, já que também não envolvia salário, estava ligada especialmente à proteção pessoal para professores eminentes, sendo que a nomeação era feita pelo Ministério da Educação. Sua indicação havia sido aprovada pelo corpo docente da Faculdade de Medicina em 1897, mas Freud, fiando-se apenas no próprio mérito, aguardou a nomeação pelo Ministério por quatro anos, sem resultados. Por fim, decidiu deixar de lado sua resignação e recorrer aos meios usuais da proteção e da influência política, o que teve resultados rápidos, mas não sem obstáculos, tendo tido o seu título decretado pelo imperador em fevereiro de 1902. As circunstâncias especiais que sobredeterminaram essa história têm, certamente, dois fatores que mais incisivamente contribuíram na demora da promoção de Freud. Um deles era o antissemitismo presente em Viena à época; o segundo, as posições polêmicas de Freud sobre a etiologia sexual das neuroses. Freud chegou a ser ridicularizado pelo catedrático Theodor Meynert, eminente neurologista da época, que desconfiava do potencial subversivo das ideias protopsicanalíticas.

Em seu artigo sobre a história do movimento psicanalítico, Freud nos lembra: "em 1909, na cátedra de uma universidade norte-americana [a Clark University], tive pela primeira vez a oportunidade de dar uma conferência pública sobre a psicanálise" (Freud, 1914/1992, p. 7). Trata-se das Cinco conferências sobre psicanálise, proferidas na Clark University, a convite de G. Stanley Hall.

Em Meu contato com Josef Popper-Lynkeus, Freud (1932/2010i) ainda em Viena, mas sofrendo com a presença do nazismo e, por outro lado, com o desdém e a resistência que suas ideias ainda provocavam nos cientistas tradicionais, escreveu:

Minhas inovações em psicologia haviam afastado de mim os contemporâneos [...] ao me aproximar de um homem que eu reverenciava à distancia, vi-me como que repelido por sua falta de compreensão pelo que, para mim, era já o conteúdo de minha existência (Freud, 1932/2010i, p. 416).

Vemos aí o desânimo de Freud, a essa altura um reconhecido cientista tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, que buscou durante toda a sua vida afirmar a cientificidade da psicanálise e dialogar com e na universidade.

 

A psicanálise na universidade brasileira

No Brasil, do ponto de vista formal curricular, a psicanálise entra na universidade a partir da década de 1950. Encontramos, contudo, em momento bem anterior a essa data, relações não institucionalizadas, apesar de intensas, entre psicanálise e universidade.

Sagawa (s/d), ao retomar a história do movimento psicanalítico no Brasil, relata que as ideias psicanalíticas já eram estudadas e divulgadas desde o final do século XIX e início do XX, através de psiquiatras em escolas médicas. Em 1899, na Faculdade de Medicina da Bahia, Juliano Moreira citava artigos de Freud em suas conferências. A primeira tese sobre psicanálise data de 1914, escrita pelo médico Genserico de Souza Pinto e defendida na Faculdade Nacional de Medicina no Rio de Janeiro. O título da tese é Psicanálise - a sexualidade nas neuroses (Sagawa, s/d), sendo considerado o primeiro trabalho psicanalítico em português.

A divulgação da psicanálise no Rio de Janeiro tem como grande incentivador Júlio Pires Porto-Carrero, desde 1919, que inicia sua clínica em 1923 na Liga Brasileira de Higiene Mental. Em 1927, é fundada a primeira Sociedade no Rio de Janeiro, tendo como presidente Juliano Moreira (Oliveira, 2002).

Em São Paulo, a psicanálise foi divulgada na Faculdade de Medicina inicialmente por Franco da Rocha, seguido de Durval Marcondes, que viria a ser um dos grandes responsáveis pelo estabelecimento da psicanálise no Brasil. Franco da Rocha lança em 1920 o livro A doutrina pansexualista de Freud. Ele é considerado precursor das ideias psicanalíticas nesse Estado e o maior expoente da escola paulista de psiquiatria. É no âmbito acadêmico que, juntamente com Lourenço Filho e Durval Marcondes, entre outros, funda em 1927 a Sociedade Brasileira de Psicanálise (Soares, 2010).

De acordo com Mancebo (s/d, s/p), "O curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) teve início em 1953, sendo apontado como o primeiro desse gênero no país". Assim, é também a primeira universidade brasileira a formar psicólogos a partir de um referencial psicanalítico, tendo em seu quadro de professores psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro e de São Paulo (Figueiredo, 2008). O mestrado em psicologia da PUC-RJ foi o primeiro do país, tendo seu início em 1966 e contemplando trabalhos em psicanálise em suas linhas de pesquisa, sobretudo após a década de 1970, em que professores psicanalistas passaram a integrar o Programa de Pós-Graduação. Em 1982, o programa implanta uma linha específica em psicanálise (Féres-Carneiro, 2007).

A partir da década de 1960, temas psicanalíticos foram incluídos na formação psiquiátrica em escolas médicas e em cursos de graduação em psicologia recémcriados e regulamentados e, posteriormente, na década de 1980, em diferentes cursos de pós-graduação no campo da saúde mental (Mezan, 1998).

Na década de 1970 foi criado um curso de especialização em Psicologia Clínica na PUC-RJ com o objeto de formar psicólogos "psicanalistas", visto que a IPA (Associação Internacional de Psicanálise) não permitia naquela época a formação e a entrada de psicólogos em seu meio, o que só vai ocorrer a partir da década de 1980. A universidade exerce então a função de formar esses profissionais, embora não reconhecidos como psicanalistas. Com a aceitação dos psicólogos pela IPA, a psicanálise começa a ser redefinida e a universidade não é mais considerada como lugar de formação (Figueiredo, 2008).

Nos anos 2000, período em que a pós-graduação de fato ganha grande impulso nas universidades brasileiras, a presença de psicanalistas nas universidades em cursos de graduação e pós-graduação tornou-se uma realidade. Vemos também um expressivo incremento da produção acadêmica em psicanálise, proveniente da qualificação de psicanalistas no nível de doutorado, tanto em universidades brasileiras quanto estrangeiras.

Atualmente, o ensino e a pesquisa em psicanálise não se limitam aos cursos de psicologia, mas figuram em outros campos de conhecimento e formação, tais como direito, medicina, saúde coletiva, educação, sociologia, letras, filosofia, entre outros. Nesses contextos, tem-se debatido intensamente as relações entre pesquisa, ensino e transmissão da psicanálise, assim como seu estatuto científico, destacando-se uma série de questionamentos acerca da possibilidade de sua integração à formação universitária. De fato, por muito tempo, a conjugação docente-psicanalista não era bem aceita pelas instituições formadoras, que reprovavam o ensino da psicanálise nas universidades brasileiras, a partir de posicionamentos subsidiados sobretudo pelas influentes formulações de Lacan referidas ao discurso universitário.

 

Na "oficina da ciência"

Com o objetivo de analisar de modo sistemático a literatura nacional sobre o ensino da psicanálise no Brasil, realizamos um levantamento bibliográfico a partir dos descritores "ensino", "psicanálise" e "universidade", no campo "Assunto", no Banco de Teses da CAPES e nas bibliotecas virtuais de periódicos SciELO e LILACS.

No Banco de Teses da CAPES, encontramos um total de 65 trabalhos. Desses, apenas 13 tratam efetivamente da questão como objeto central. São oito dissertações e cinco teses. O período de defesa compreende dez anos: 1999 (1); 2001 (2); 2002 (2); 2004 (1); 2005 (1); 2006 (2); 2008 (2) e 2009 (2). Quatro são do Rio de Janeiro, três de Florianópolis, duas de Campinas, duas do Rio Grande do Sul, uma de Fortaleza e uma de São Paulo. Dos 13 trabalhos, apenas três receberam bolsa CAPES e um de uma fundação local.

Quanto ao tipo de estudo, dez dos trabalhos caracterizam-se como pesquisa bibliográfica, dois são análises documentais e um deles é uma aplicação da pesquisa-ação e do método clínico à prática pedagógica. Duas dissertações trabalham diretamente com estudo de caso em instituições de ensino superior brasileiras, e uma trata especificamente do trabalho da clínica-escola. Apenas uma dissertação concentra-se diretamente sobre o texto de Freud Deve-se ensinar psicanálise nas universidades?.

Das 13 teses, apenas três foram realizadas em PPG (Programas de Pós-Graduação) de psicanálise, cinco em psicologia e cinco em educação aplicada à saúde ou educação em ciências. Seis desses estudos explicitam e/ou concentram suas análises nos cinco discursos propostos por Lacan: da histeria, do mestre, universitário, do analista e do capitalista.

Para avaliar o posicionamento dessa produção acadêmica no quadro dos diversos campos de conhecimento, tal como organizados na rede institucional de pósgraduação no Brasil, devemos explorar o conjunto de definições de áreas e subáreas da CAPES. De acordo com a Tabela de Áreas do Conhecimento:

A classificação das Áreas do Conhecimento tem finalidade eminentemente prática, objetivando proporcionar aos órgãos que atuam em ciência e tecnologia uma maneira ágil e funcional de agregar suas informações. [...] A classificação original das Áreas do Conhecimento apresentou uma hierarquização em quatro níveis, que vão do mais geral aos mais específicos, abrangendo 08 grandes áreas, 76 áreas e 340 subáreas do conhecimento (CAPES, 2012, s/p).

A divisão se dá em quatro níveis:

• 1º nível - Grande Área: aglomeração de diversas áreas do conhecimento em virtude da afinidade de seus objetos, métodos cognitivos e recursos instrumentais refletindo contextos sociopolíticos específicos.

• 2º nível - Área: conjunto de conhecimentos inter-relacionados, coletivamente construído, reunido segundo a natureza do objeto de investigação com finalidades de ensino, pesquisa e aplicações práticas.

• 3º nível - Subárea: segmentação da área do conhecimento estabelecida em função do objeto de estudo e de procedimentos metodológicos reconhecidos e amplamente utilizados.

• 4º nível - Especialidade: caracterização temática da atividade de pesquisa e ensino. Uma mesma especialidade pode ser enquadrada em diferentes grandes áreas, áreas e subáreas (CAPES, 2012, s/p).

Considerando o campo da Psicologia e de acordo com Relatório de avaliação 2007-2009 Trienal 2010 (CAPES, 2010), havia no triénio 64 Programas de Pós-Graduaçao (PPGs) em Psicologia no país. A agência localiza a Psicologia na Grande Área denominada Ciências Humanas. A Área Psicologia, por sua vez, conta com 45 diferentes subáreas. Curiosamente, não há qualquer ocorrência do termo psicanálise, nem dentro nem fora da psicologia, embora haja três PPGs específicos de psicanálise no país reconhecidos pela CAPES. Dois deles, o PPG em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, criado em 1988, e o PPG em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, fundado em 1998, são avaliados na Área da Psicologia. Já o PPG em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, IES (Instituição de Ensino Superior) de cunho privado, mantém o único mestrado profissional do campo Psi no país e vem sendo avaliado na Grande Área Multidisciplinar, Área Interdisciplinar e Subárea Sociais e Humanidades. No ano de 2012, teve seu doutorado aprovado pela mesma Área da CAPES.

O conjunto de artigos aqui analisados compreende 18 3, trabalhos que resultam de busca no SciELO, além de mais dois artigos que provêm do banco do LILACS. Os artigos, em geral, apresentam discussões da relação entre psicanálise e universidade, onde os autores dialogam com alguma bibliografia sobre o tema e apresentam seus posicionamentos. Apenas sete artigos têm como tema principal, especificamente, o ensino da psicanálise na universidade; porém, como todos os artigos, em suas discussões, referem também a questão do ensino, julgamos adequado incluí-los. Desse corpo de artigos, 11 fazem parte de um mesmo número da revista Psicologia USP, de 2001, que contém um dossiê intitulado Psicanálise e Universidade.

 

Atualidade da psicanálise na universidade brasileira

Os artigos compilados no presente estudo tratam da questão do ensino da psicanálise na universidade a partir de diferentes eixos temáticos: 1. o conceito de formação; 2. o locus institucional; 3. diferentes níveis de ensino universitário.

1. o tripé da formação: seis artigos reconhecem na análise pessoal o ponto crucial da formação. A análise de conteúdo dos textos mostra, de modo panorâmico, a visão de diversos autores a respeito da temática. Autores como Souza (2001) constatam que muitos estudantes de psicologia que prosseguem seus estudos em psicanálise, através dos cursos de mestrado e doutorado, fazem sua análise pessoal e complementam sua formação com supervisões e grupos de estudos informais sem vinculação com instituições formadoras extra-universitárias. Portanto, na visão do autor, e considerando o tripé supervisão, análise pessoal e estudo teórico como necessário para a formação do analista, a universidade colabora com tal formação, embora as instituições psicanalíticas tenham papel preponderante.

De acordo com uma visão lacaniana, o ensino nas universidades ou mesmo nas instituições psicanalíticas deve estar pautado na transferência de trabalho compatível com as vicissitudes da transmissão. O ensino é transmitido através da transferência que pode ocorrer em uma universidade, porém sem substituir a instituição psicanalítica (Alberti, 2004). Concordando com esse pensamento, Miller (1999, citado por Freire & Bastos, 2010) distingue ensino e saber, afirmando que este último ocorre pela via da transmissão, tendo em vista a dimensão da falta, do que escapa. O ensino da psicanálise deve apontar para o saber, rompendo com o ideal universalizante da ciência.

No entanto, a lógica do discurso universitário tradicional pressupõe um saber universal e possível de ser alcançado, insistindo sobre um conhecimento independente do sujeito que o produz e, consequentemente, do desejo que o comanda. Os professores assumem o lugar do saber, autorizam-se dos autores e da bibliografia para reproduzir um saber totalizante e sem sujeito (Ferrari, 2010).

2. o locus institucional da formação: pode-se considerar um consenso que a formação de analistas deve dar-se nas instituições psicanalíticas, e vemos esta posição afirmada na maioria dos artigos, embora alguns autores ponham em xeque tal posicionamento. Permanece bastante ativa e calorosa a discussão sobre qual o lugar adequado para o ensino e transmissão da psicanálise e para a formação do analista: se apenas nas instituições psicanalíticas ou se essa formação é possível também nas universidades.

Alberti (2010) pontua que a universidade é um lugar para subverter as estruturas discursivas, de forma que o analista possa fazer valer o sujeito na contramão do discurso universitário. A autora (Alberti, 2004) ressalta que, nas instituições psicanalíticas, o discurso universitário também pode fazer-se presente, como, por exemplo, nas análises didáticas e na obrigatoriedade de o analista possuir um título outorgado por uma instituição, o que Lacan combateu em sua época. Portanto, o discurso do analista é aquele que inclui o sujeito de desejo nas articulações com o saber, presente na transmissão.

3. a psicanálise nos diferentes níveis de ensino universitário: graduação, especialização, mestrado e doutorado, com especial ênfase para esse último nível, no qual haveria, como é de se esperar nos demais campos, uma produção mais autoral.

Destacamos que essa transmissão ocorre de forma diferente nos diversos níveis da universidade (Coutinho, Almeida-Filho, Mattos, & Virgens, 2011). Nos cursos de graduação, só é possível ensinar um saber sobre a psicanálise. O professor ministra aulas sobre a psicanálise, imerso no discurso universitário. Contudo, há dispositivos de formação em pesquisa, como programas de Iniciação Científica (CNPq ou Fundações de Apoio à Pesquisa) ou bolsas de formação e extensão, nos quais é possível integrar ensino, pesquisa e extensão em serviços clínicos, sob supervisão de um docente-psicanalista. Já nos cursos de mestrado e doutorado, em que se exige a produção de dissertação ou tese, o sujeito se coloca em cena como autor. Temos então uma autoria a partir da psicanálise, do percurso de cada um, marcando seu estilo e uma passagem para o discurso do analista (Figueiredo, 2008).

Apesar dessas diferenças, Souza (2001) discute os impasses da psicanálise no nível da pós-graduação, sobretudo no que diz respeito ao desmembramento entre a teoria e a prática clínica no ensino da psicanálise. Considerando a natureza das pesquisas psicanalíticas, que se relacionam com a clínica, essa articulação deveria estar mais presente nas instituições. No entanto, quando a clínica é incluída nas pesquisas de mestrado ou doutorado, geralmente é exercida fora do ambiente acadêmico.

Outro impasse apontado pelo autor é quanto ao modelo seguido para as teses e dissertações quando o que se visa é a transmissão da experiência clínica propriamente dita. Ele defende, portanto, que cabe à psicanálise reconhecer a universidade como um dos lugares em que a psicanálise pode habitar, ressaltando as particularidades de seu método e de seus parâmetros de rigor científico que estão relacionados à sua especificidade. No conjunto de produtos acadêmicos analisados, dois argumentos centrais são trazidos como justificativa para as distintas posições: a) distinção entre ensino e transmissão; b) especificidade epistêmica da psicanálise. Quanto à distinção entre ensino e transmissão, três artigos discutem esse eixo, sendo que todos ratificam tal distinção. Como aponta Figueiredo (2008), o termo transmissão deve ser entendido a partir dos pressupostos lacanianos. O que se pode transmitir é um desejo de saber que toma diferentes vias para cada sujeito.

No que diz respeito à especificidade epistêmica da psicanálise frente a outros campos, a maior parte ressalta a singularidade do método, da clínica e da pesquisa em psicanálise. Na psicanálise existe uma relação intrínseca entre saber teórico e prática clínica, sendo esta o locus privilegiado da pesquisa, dimensão essencial da prática analítica (Rinaldi & Alberti, 2009). A direção da pesquisa psicanalítica passa pela experiência clínica; portanto, o caso clínico é um instrumento na construção do método e da pesquisa em psicanálise.

No cenário brasileiro neste início do século XXI, tanto o campo psicanalítico quanto o contexto das universidades apresentam mudanças diversas e profundas em relação à época das discussões freudianas e lacanianas. Não obstante, apesar de transcorrido quase um século desde as primeiras reflexões sobre psicanálise e universidade, os embates entre as instituições formadoras universitárias e não universitárias continuam vigentes.

 

Primeiras conclusões

Parece-nos que, em geral, textos (artigos e teses) que discutem a presença da psicanálise na universidade brasileira tratam basicamente de duas questões: 1. Como tem sido proposta, apresentada e realizada a relação entre psicanálise e universidade, no contexto brasileiro; e 2. O papel da universidade brasileira na formação dos psicanalistas e na realização da prática discursiva e terapêutica da psicanálise.

Sobre a primeira questão, parece existir uma ênfase em discutir a universidade como possível locus de ensino da psicanálise e a educação superior como instrumento ou dispositivo tático para legitimação do campo pela via da identidade institucional. Trata-se, então, de perguntar o que a universidade pode trazer para o campo psicanalítico. Nós fazemos a interrogação reversa: que tipo de contribuição o ensino da psicanálise na universidade poderia trazer para a formação universitária, reintroduzindo a pergunta freudiana "Deve-se ensinar psicanálise nas universidades?" e, na medida do possível, reafirmando-a.

Sobre a segunda questão, abrem-se múltiplas vertentes. Por exemplo: a partir da psicanálise, como diferenciar transmissão e ensino na universidade, tomando a ideia de aprendizagem ativa, na qual o sujeito aprendente seria o protagonista. Outra possibilidade é traçar diferenças e eventuais semelhanças entre o sistema universitário francês e o brasileiro para compreender, sem pressupostos universalizantes, o que leva Lacan a dizer que os estudantes universitários são equiparados a mais ou menos créditos: "Vocês vêm aqui [em Vincennes] tornar-se créditos. Saem daqui etiquetados como créditos, unidades de valor" (Lacan, 1992). Lacan se refere à universidade francesa, no contexto de maio de 1968, justamente quando as velhas faculdades soberanas e provincianas, dominadas por catedráticos, estão em xeque, quadro bem distante da Universidade de Pesquisa atual.

Os resultados deste trabalho nos levam a acreditar que não devemos tomar por perene a desiludida observação de Freud (1932/2010i) sobre a distância que o separava de seus contemporâneos em função de suas "inovações em psicologia", acima citada. Ainda que em muitos ambientes acadêmicos universitários a psicanálise seja vista com desdém, temos encontrado inúmeros esforços no sentido de ultrapassar a posição dualista que busca opor uma cultura dita científica, porque fundamentada em pressupostos cartesiano-positivistas, detentora do saber verdadeiramente universitário, e aquela concepção igualmente atrasada que imputa às humanidades e artes o papel de saberes menores, não científicos, na universidade. Num levantamento por nós realizado em 2012, foi possível encontrar 992 ocorrências de teses em psicanálise defendidas em diferentes PPGs brasileiros. Mais da metade delas foi defendida em PPGs de psicologia e de psicanálise. Contudo, foram encontradas teses em psicanálise em 22 diferentes áreas do conhecimento. É curioso também notar que muitos conceitos e termos psicanalíticos atravessam as produções discursivas das ciências humanas contemporâneas, sem que os devidos créditos a Freud sejam reconhecidos. Conceitos freudianos acompanham as obras de Michel Foucault, Jacques Derrida, Pierre Bourdieu, Richard Rorty, apenas para ficar com figuras mais contemporâneas da cena filosófico-cultural ocidental.

Em todas as frentes do debate intelectual contemporâneo, o cartesianismo vulgar é ainda acreditado apenas pelo discurso leigo ou por quem rejeita qualquer formulação crítico-epistemológica ao tratar da psicanálise, pois nenhum póskuhniano esclarecido pressupõe saber científico uno, neutro e imparcial. A compreensão dos modelos de universidade herdeiros da Reforma Cabanis e da Reforma Humboldt, consolidados respectivamente pela regulamentação bonapartista e pelo programa pedagógico flexneriano (Almeida-Filho, 2010), e dos vetores sociopolíticos do Maio de 1968 (Badiou, 2009/2012), permite considerar os contextos de fundação e aggiornamento da psicanálise em seus vínculos conflitivos com a institucionalidade acadêmica. Se as universidades antigas mereciam descrédito e distância do pensamento psicanalítico-crítico, sua superação e renovação, em termos filosóficos, políticos, pedagógicos e tecnológicos, em curso em vários contextos intelectuais no mundo (apesar do atraso na universidade brasileira), possibilitam a abertura de espaços novos de incorporação criativa de saberes e práticas orientados pelas categorias e conceitos do saber psicanalítico.

A psicanálise, diz Freud (1913/2012b), "reivindica o interesse de outros profissionais além dos psiquiatras, pois toca em vários outros âmbitos da ciência e estabelece inesperadas relações entre estes e a patologia da vida psíquica" (p. 330). Nesse mesmo texto, Freud critica a psicologia da sua época, dizendo: "Podese dizer que o estudo psicanalítico dos sonhos nos descortinou a primeira visão de uma psicologia da profundeza de que até agora não se suspeitava. Serão necessárias mudanças radicais na psicologia normal para sintonizá-la com esses novos conhecimentos" (p. 338, grifo do autor). Embora pouco estudado, esse texto é muito ilustrativo da visão interdisciplinar de Freud. Aí, ele nos apresenta o interesse potencial da psicanálise para outros campos, as "ciências não psicológicas"; ele as enumera e comenta cada uma delas: ciência da linguagem, filosofia, biologia, história da evolução (e que hoje poderíamos aproximar das neurociências), história da civilização (uma espécie de antropologia histórica), estética, sociologia e pedagogia. Ao final do texto, nos leva a acreditar que a psicanálise "pode interessar a muitos âmbitos do conhecimento e que extensos laços começa a estabelecer entre eles" (p. 363).

Tal como preconizou Freud em 1913 e 1919, consideramos relevantes e atuais as discussões trazidas pela psicanálise à universidade. Por um lado, visando à construção de novas ciências com características exemplarmente demonstradas por Freud: dialogia, interdisciplinaridade, complexidade. Tal perspectiva impõe que se reintroduza a questão sobre a presença do sujeito e seu desejo como inseparáveis do ato de ensinar e de pesquisar. Por outro lado, o ensino da psicanálise demonstra-se atual e relevante, tanto como parte da formação geral universitária, oferecendo possibilidades de uma compreensão mais integral do funcionamento psíquico humano, como em etapas propedêuticas para a formação profissional em Ciências, Humanidades, Artes, Saúde e Educação. Afinal, concordando com o dito de Freud (1933/2010j), "As coisas não parecem tão ruins na oficina da ciência" (p. 344).

 

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Endereços para correspondência:
Denise Maria Barreto Coutinho
denisecoutinho1@gmail.com

André Santana Mattos
and_mat@hotmail.com

Camila Fonteles d'Almeida Monteiro
camilafonteles@hotmail.com

Pedro Andrade das Virgens
pavirgens@hotmail.com

Naomar Monteiro de Almeida Filho
naomaralmeida@gmail.com

Submetido em: 13/11/2012
Revisto em: 23/04/2013
Aceito em: 24/04/2013

 

 

i Texto referido à pesquisa com apoio CNPq, FAPESB e CAPES..
1 As importantes e agudas contribuições de Lacan especificamente sobre ensino da psicanálise e relações entre psicanálise e ciência demandam um outro artigo. Contudo, consideramos que ao menos essa referência não poderia deixar de ser mencionada.
2 Sobre as informações que se seguem, ver Gay (1989). Notemos também que o desejo de tornar-se professor extraordinarius, inclusive, motivou um dos sonhos de Freud analisados em A interpretação dos sonhos. No sonho, são condensadas as imagens do seu amigo R. e do seu tio (cf. Freud, 1900/2012a, pp. 158-163).
3 Retiramos os dois artigos de Fernando Aguiar, que falam da relação entre Psicologia Clínica e Psicanálise na França, de um ponto de vista histórico.