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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.65 no.1 Rio de Janeiro jun. 2013

 

ARTIGOS

 

Corpo em pedaços: a potência do fragmentoi

 

Body in pieces: the power of the fragment

 

Cuerpo en pedazos: el poder del fragmento

 

 

Maria Isabel de Andrade Fortes

Pós-Doutoranda Sênior (FAPERJ). Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo busca demonstrar que o desenvolvimento teórico acerca da temática do corpo na obra freudiana se faz desde uma valorização do corpo como fragmento, centrando-se no regime da parcialidade como a via por excelência pela qual se constrói o corpo erógeno, a partir das noções de zona erógena, sexualidade perversa polimorfa e prazer de órgão. Apresenta-se uma perspectiva histórica do desmembramento do corpo e das mutações no olhar sobre o corpo nos campos da ciência e da arte que levaram à percepção e à valorização do corpo desmembrado. De um lado, expõe-se como a dissecação de cadáveres ofereceu visibilidade ao corpo, tornando-o objeto de observação e pesquisa; de outro lado, demonstra-se como a constituição corporal em Freud, ao mesmo tempo em que é herdeira da anatomia clínica, subverte esse campo ao reincluir no corpo despedaçado as dimensões de desejo e prazer que haviam sido eliminadas no modelo do corpo-cadáver.

Palavras-chave: Dissecação de cadáveres; Corpo erógeno; Psicanálise; Poética do fragmento.


ABSTRACT

This article aims to show that theoretical development of the theme of the body in Freud's work is done from an appreciation of the body as a fragment focusing on the regime of parciality. The fragment is regarded as one approach to build the erogenous body, from the notions of erogenous zone, perverse polymorphic sexuality and organ pleasure. A historic perspective is presented concerning bodily dismemberment and the changes in point of view about the body in the fields of science and art that raised the worth of the fragment. Dissection of corpses gave bodies visibility and made them subjects of observation and research. A demonstration is given that bodily constitution in Freud follows, on the one hand, from clinical anatomy, though, on the other hand, it subverts that field by reinstating into the body in pieces the aspects of desire and pleasure.

Keywords: Dissection of corpses; Erogenous body; Psychoanalysis; Poetic of the fragment.


RESUMEN

Este artículo pretende demostrar que el desarrollo teórico sobre el tema del cuerpo en la obra de Freud se hace a partir de la apreciación del cuerpo como un fragmento, centrándose en el régimen de la parcialidad como la vía por excelencia a través de la cual se construye el cuerpo erógeno, a partir de los conceptos de zona erógena, sexualidad perversa polimorfa y placer de órgano. Se presenta una perspectiva histórica del desmembramiento del cuerpo y de los cambios de la mirada sobre el cuerpo en los campos del arte y de la ciencia, que llevaron a la valoración del cuerpo disecado. Por un lado, se expone cómo la disección de cadáveres le ofreció visibilidad al cuerpo transformándolo en objeto de observación e investigación y por otro, se muestra cómo la constitución del cuerpo en Freud, al mismo tiempo que heredera de la anatomía clínica, también subvierte este campo, al volver a incluir en el cuerpo en pedazos, las dimensiones de deseo y placer que se habían eliminado en el modelo del cuerpo-cadáver.

Palabras-clave: Disección de cadáveres; Cuerpo erógeno; Psicoanálisis; Poética del fragmento.


 

 

Considerações iniciais

O presente artigo tem como finalidade investigar de que modo a dimensão do corpo na teoria freudiana é concebida muito mais a partir do fragmento do que de uma totalização. Nosso intuito é demonstrar como a dispersão e a parcialidade circunscrevem-se não apenas como características da sexualidade, mas definiriam também a natureza do corpo em psicanálise, entendido eminentemente como corpo erógeno. Nesse contexto teórico, ressaltamos a importância da parte na constituição corporal. A teoria freudiana não se esquiva da tematização do corpo em sua unidade, mas o entendimento do corpo como fragmento ocupa a frente da cena, a nosso ver, nas teorizações freudianas acerca da constituição corporal. A busca da unidade corporal encontra sua razão de ser em sua relação com o narcisismo e com a formação do eu, mas a construção do corpo erógeno coloca em destaque o regime da parcialidade corporal. O corpo erógeno constitui-se pelos seus órgãos, zonas e partes. A percepção do desmembramento do corpo pode levar a uma experiência angustiante de estranheza e de perda de si mesmo, quando não há a assunção do corpo próprio, mas pode também, por outro lado, conduzir ao processo de erogeneização que oferece os contornos do corpo-prazer.

 

O corpo fragmentado da ciência e da arte

A medicina moderna inaugurou-se no final do século XVIII e início do século XIX, com a dissecação dos cadáveres, que nessa época passou a ser consentida pela Igreja. Ocorreu com esse novo paradigma a mudança da percepção e do olhar sobre o corpo, já que este deixou de ser concebido a partir de uma visão divina do mundo. O corpo unificado da religião se transformou em corpo fragmentado, excluído de vitalidade e de desejo, representado pelo 'corpo-cadáver', que se tornou objeto privilegiado de observação e pesquisa.

Foucault, em Nascimento da clínica (1980/1998), mostra como a partir do cadáver a doença se inscreve na clínica. O modelo da clínica no campo dos saberes tem origem na dissecação, tendo sido esse o solo que permitiu o surgimento da percepção anátomo-clínica. Assim, a possibilidade de um saber sobre o particular no campo da medicina, um saber clínico, é tributária do cadáver. A clínica instaurou-se a partir de uma experiência concomitante de desilusão e desencantamento do mundo, pela qual se vivenciava a perda do divino como sentido último para as coisas.

Assim, o cadáver passou a ser o modelo de corpo para o saber científico, que se pautou na dissecação para esquadrinhar, investigar e pesquisar o espaço corpóreo. O desmembramento foi se acentuando cada vez mais, levando à perda da unidade e da invisibilidade que caracterizavam o saber religioso sobre o corpo, como sinaliza Piera Aulagnier:

Antes que o olhar do homem de ciência se fixasse sobre o corpo, o único objeto de observação era um corpo visível e um corpo unificado, enquanto o interior lhe era invisível, preservando assim o enigma de seu funcionamento. O sábio como o leigo não tinham como criar senão corpos inteiros. [...] Enquanto a Igreja pôde impedir a dissecação e essa proibição foi respeitada, o olhar encontrava-se protegido do encontro com um corpo que o teria confrontado com um interior feito de partes, de órgãos, de pedaços (Aulagnier, 2001, p. 112, grifos do autor).

Portanto, a dissecação desvelou o interior do corpo, o que teve como consequência o apagamento de sua aura de invisibilidade, de enigma e de mistério. Nessa perspectiva, podemos dizer que a abertura dos cadáveres eliminou do corpo sua dimensão fantasmática, outrora tão cara à imaginação alquímica, esvaziando-o de sua mística e de seus mistérios. A visibilidade dos órgãos propiciada pela dissecação fez com que o corpo não tivesse mais nada a esconder, sendo agora todos os seus órgãos visíveis, inventariados e nomeados.

Dessa maneira, desencanta-se o corpo sagrado e possuído de desejo que pertencia ao domínio da religião, não mais sendo visto sob a forma da semelhança com Deus, não mais o símile daquele corpo primeiro unificado que se conectava diretamente com a criação divina e que, por isso mesmo, podia ser percebido como uma totalidade (Aulagnier, 2001; Fédida, 1971).

O esvaziamento da dimensão fantasmática do corpo pela anatomia clínica realizou uma operação de retraimento que consiste, no fundo, em uma experiência de desilusão. Até então associado à loucura, aos martírios e ao êxtase, o corpo é obrigado a se afastar de seus mistérios. Fédida (1971) mostra como a retração da atividade fantasmática no olhar que se tem sobre o corpo pode ser aproximada ao discurso melancólico: "o anatomista dos tempos modernos é um melancólico. A melancolia do anatomista é compreendida, após o Renascimento, como a experiência da desilusão" (p. 110).

Assim, o corpo fragmentado é fruto da representação que a medicina moderna moldou assentada na anatomia clínica. A relação que se tem com o corpo se desloca na medida em que este passa a ser objeto do discurso científico, objeto de conhecimento que se oferece para a investigação de quem o conhece.

É interessante notar que não apenas no domínio da ciência, mas também na arte, o corpo passa a ocupar lugar central como objeto de pesquisa. Como mostra Coli (2003), o deslocamento do lugar do humano que ocorreu com o advento da modernidade transformou o olhar da arte sobre o corpo. A presença cada vez maior do sofrimento corporal nas telas sinaliza não só a assunção da fragilidade humana em um mundo ausente de Deus, mas também o declínio da veneração à unidade do corpo, este não mais sendo representado como imagem divina, não mais sendo reverenciado pela sua proximidade e semelhança com Deus.

Se a época iluminista trouxe para a ciência o desencantamento do corpo e sua desmontagem em várias partes, assiste-se simultaneamente na arte à entrada de pedaços do corpo, a partir de um duplo movimento que se situa nas fronteiras entre arte e ciência. As partes surgem com leis próprias em sua isenção de significados religiosos ou humanistas:

A revolução iluminista trouxe, ao contrário, a postura científica e metódica que pressupõe a desmontagem do corpo em partes, para a compreensão do todo. [...] Agora, pela visão científica, as partes, organizadas e em função, produzem o todo. Assiste-se, paralelamente, ao adentrar pela cultura dos últimos dois séculos, a um fascínio pelo humano que se desmembra. Isso pode ocorrer de modo difuso ou específico. Cria-se, por assim dizer, uma poética do fragmento (Coli, 2003, p. 300).

A arte, então, acompanha os rumos tomados pela ciência (ou vice-versa?) quando o cadáver é inserido nas novas sensibilidades do final do século XVIII e início do século XIX. A pintura neoclássica é reveladora da força do elemento que se impõe sobre o todo, agora despojado de seu caráter sagrado e religioso. Ingres é ilustrativo dessa transformação no olhar que a arte tem sobre o corpo, pois seus quadros demonstram como as partes se tornaram determinantes sobre o todo, que vai ser agora obrigado a se reordenar a partir da primazia daquelas. Ingres foi um pintor francês neoclássico do século XIX que subverteu o classicismo ao ajuntar as partes do corpo sem atender aos rigores da escola neoclássica, o que leva Coli (2010) a inseri-lo em um "neoclassicismo perverso" (Coli, 2010, p. 135). O estudo aprofundado da anatomia para garantir a unidade coerente dos corpos era fundamental para a corrente do neoclassicismo. Ingres ignora essa exigência ao trabalhar minuciosamente as partes sem o compromisso com as regras da unidade anatômica. As partes, em seus quadros, sugerem não apenas formas, mas tratamentos distintos, que apresentam deformações e justaposições que fogem a um sistema unificador. Essa forma de valorizar obsessivamente os estudos parciais do corpo em um modo de pintura que lembra uma colagem fez com que Ingres se tornasse mais tarde o "patrono de Picasso" (Coli, 2010, 135).

Outro exemplo interessante desse mesmo deslocamento do olhar acerca do corpo ocorreu no campo da arqueologia. Anteriormente, as esculturas quebradas descobertas em escavações eram recompostas. Juntavam-se partes diferentes de várias peças para reconstituir uma nova, de modo que a inteireza da peça pudesse ser restaurada. A partir da arqueologia moderna, passou-se a valorizar a peça danificada. Os procedimentos anteriores de reconstituição foram vistos como um modo de profanação da estátua original, sendo o fragmento descoberto admirado como portador de beleza por si mesmo.

Desse modo, a "poética do fragmento" (Coli, 2003, p. 300) reconhece a importância das partes do corpo não no sentido de buscar a reconstituição do mesmo, mas para demonstrar a beleza que os fragmentos contêm em si mesmos, sem haver a necessidade de reencontrar a unidade das obras. Portanto, podemos observar como tanto no domínio da arte quanto no campo da ciência ocorreu o movimento paralelo de valorização do corpo desmembrado. A questão corpórea centrou-se na dicotomia que se forjou entre a unidade e o fragmento, este último ganhando um valor que antes não possuía.

 

O corpo erógeno da psicanálise

A tensão entre a unidade e o fragmento encontra-se também nas teorizações psicanalíticas acerca do corpo. Desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1972), a noção de zonas erógenas já apontava para a ideia de um corpo fragmentado, composto por "zonas", órgãos e partes que são investidas libidinalmente e independentemente umas das outras. A zona erógena é definida como "o órgão cuja excitação empresta à pulsão um caráter sexual" (Freud, 1905/1972, p. 171). A parte do corpo sexualmente estimulável transporta a excitação para o circuito da pulsão sexual. A ideia da sexualidade como sendo ao mesmo tempo polimorfa e perversa, condensada na noção de sexualidade perversa polimorfa, associa-se à construção do corpo erógeno, a partir da afirmação de que qualquer parte do corpo pode se tornar uma zona erógena. O fato de não haver um objeto fixo que satisfaça a pulsão faz com que qualquer objeto possa se transformar naquele que traz satisfação. No domínio da constituição do corpo próprio ocorre a mesma relação; entende-se que qualquer parte do corpo é erotizável, não havendo o privilégio de uma zona específica em detrimento de outras. Certa parte do corpo torna-se fonte de sensações e de excitação sexual exatamente como acontece com os órgãos genitais. Portanto, a indeterminação do sexual diz respeito tanto ao mundo dos objetos quanto ao próprio corpo.

É sob essa perspectiva que Leclaire (1979) propõe que a concepção de corpo erógeno na perspectiva psicanalítica deve ser entendida como um conjunto de elementos não hierarquizados. Essa não hierarquização se baseia no fato de que qualquer ponto do conjunto erógeno possui a mesma função, podendo ser considerado um lugar de excitabilidade sexual, surgindo o caráter erógeno de maneira indiscriminada neste ou naquele ponto da superfície corporal. Tal acento dado à equivalência das partes é importante, pois denuncia que "este tipo de conjunto desconhece a unidade" (Leclaire, 1979, p. 60), já que o sentimento de unidade pressuporia determinada ordem hierarquizada.

Portanto, o corpo erógeno consistiria justamente em um conjunto que ignora a totalidade, que desconhece aquilo que seria da "ordem do Um totalizante, do Um articulador, desconhece um processo de globalização que mantenha um todo único bem articulado" (Leclaire, 1979, p. 60). Esse modo de entender o corpo o inscreve na ordem da dispersão e da anarquia, pois que descentrado e não remissível ao domínio de uma totalização.

Com efeito, essa descrição do corpo erógeno coaduna perfeitamente com a forma com que Freud apresentou, no artigo Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1972), a sexualidade infantil como sendo perversopolimorfa. Nosso intuito neste artigo é mostrar como a dispersão e a anarquia, para usar os mesmos termos de Leclaire, indicariam não apenas uma característica da sexualidade, mas definiriam também a natureza do corpo em psicanálise, entendido eminentemente como corpo erógeno. Nesse contexto teórico, ressaltamos a importância da parte na constituição corporal.

Por isso, entendemos que a noção de sexualidade perversa polimorfa é fundamental para a constituição do corpo erógeno nas teorizações freudianas. Com efeito, o discurso freudiano sobre a sexualidade se inaugura com o conceito de pulsão, apresentado pela primeira vez em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1972), sendo descrito como radicalmente diferente do instinto. Essa distinção conduziu à formulação, na época considerada um verdadeiro escândalo, de que a finalidade da sexualidade não seria a procriação, mas o prazer (Freud, 1905/1972; Neri, 2005). Estabelecia-se, assim, o campo erógeno para além das finalidades biológicas, ao mesmo tempo em que se desenhava um corpo de prazer para além da primazia dos genitais. Esse duplo delineamento situa a sexualidade no domínio do perverso-polimorfo e formula que no corpo erógeno não há qualquer espécie de centramento dado pela função genital. Nada na sexualidade humana pode ser previamente encaminhado, já que a pulsão sexual investe nos mais diferentes objetos que sejam fonte de prazer. A pulsão sexual é "variável, múltipla, dissociada da genitalidade e da reprodução" (Neri, 2005, p. 174). A plasticidade e a variabilidade da pulsão sexual oferecem ao corpo uma possibilidade múltipla de prazer, em uma espécie de abertura infindável para o mundo dos objetos e para a experiência de satisfação no próprio corpo.

Outra noção fundamental para compreendermos a erogeneidade corporal é o que Freud denomina "prazer de órgão" (Freud, 1915/1974), Organlust, modo de satisfação das pulsões parciais que emanam de diversos lugares e regiões do corpo. Pelo "prazer de órgão" a zona erógena encontra o caminho da satisfação no próprio lugar onde ocorre a excitabilidade, de maneira independente das outras zonas. Tal noção amplia o modo como compreendemos a sexualidade, na medida em que se contrapõe à função vital, já que esta última se encontraria necessariamente associada a uma região corporal específica. Em Os instintos e suas vicissitudes, a variabilidade da pulsão sexual é reafirmada pelo fato de as pulsões serem numerosas, nascerem de variadas fontes orgânicas e encontrarem sua satisfação através do prazer de órgão (Freud, 1915/1974a). Tal noção encontra-se entrelaçada à parcialidade das pulsões e à distância destas em relação aos instintos. É nesse sentido que Assoun comenta que as pulsões parciais que emergem das localidades corporais encontram no prazer de órgão um modo de satisfação que é "desfinalizada" (Assoun, 2009, p. 120), em relação a uma função sexual integrada ligada à atividade genital. Entende-se aqui que o prazer genital seria nada mais do que um prazer de órgão, que, no caso, encontra-se associado às atividades genitais. Esse ponto de vista difere, vale dizer, da compreensão de que a pulsão alcançaria uma síntese quando a serviço da função reprodutora. Mesmo no caso desta última, a formulação de Leclaire (1979) aponta no sentido de que não há qualquer espécie de centramento possível para as partes não hierarquizadas do corpo erógeno.

Assoun denomina "organologia freudiana" (Assoun, 2009, p. 129) a premissa de que os órgãos, de modo geral, podem adquirir valor sexual tanto quanto os órgãos genitais. As zonas erógenas são independentes da função genital e ganham significação sexual ao serem enredadas aos fantasmas originários. A parcialidade aqui em jogo é o que torna possível a erotização do órgão, retomado na psicanálise em sua singularidade e em sua literalidade. O "órgão parcial" teria um regime próprio, segundo o autor, quando reenvia a experiência de satisfação aos registros do 'prazer do órgão', da 'excitação do órgão' e da 'libido do órgão', termos também empregados por Freud no que concerne à satisfação proveniente das partes do corpo. Esse regime é a própria condição da pulsão, que só é possível porque há a excitação do órgão, fonte por excelência do processo pulsional, que encontra satisfação em um corpo que se torna erógeno pela variabilidade das suas partes. Segundo o autor, o registro do órgão na teoria freudiana liga-se às dimensões de prazer e excitação, indicando que o órgão é portador de excitabilidade, sendo este o caráter que interessa quando investigamos o registro do órgão na psicanálise. Portanto, vemos como o órgão envolve diretamente a dimensão da excitabilidade e como esta engloba como condição de sua existência a parcialidade das pulsões.

Uma questão relevante nesta discussão que aqui empreendemos é o quanto a pulsão fica ligada a determinada zona erógena ou o quanto atravessa todos os órgãos, sem haver a necessidade de sustentação em uma função vital específica. Há no campo da psicanálise aqueles que defendem o primeiro caminho e os que se partidarizam mais com a segunda proposta. De acordo com a teoria do apoio, apresentada em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1972), ao mesmo tempo em que há a satisfação das necessidades, ocorre também satisfação sexual decorrente da erogeneização da zona ou do órgão em contato com o objeto, gerando o prazer que se estende para além da satisfação orgânica, mas que tem sua origem nesta última. O termo apoio designa a relação que as pulsões sexuais originalmente mantêm com as funções vitais que lhes fornecem uma fonte orgânica, uma direção e um objeto específicos, sustentandose, portanto, no corpo. O que inicialmente advém da satisfação das necessidades orgânicas se desdobra e se transforma em satisfação sexual.

Por exemplo, a zona labial teria como alvo a função vital da nutrição, o que acarreta na erogeneização da boca que leva ao prazer oral. A pele seria vista como uma zona erógena privilegiada, e alguns órgãos são especialmente destinados à excitabilidade, mas, como dissemos, qualquer parte do corpo pode assumir essa função. A energia pulsional tem sua fonte em um órgão ou parte do corpo que tome para si as propriedades de uma zona erógena, dando origem dessa forma às pulsões parciais.

A pulsão de autoconservação guarda forte ligação com o que é da ordem da vida, da necessidade, tendo como o seu protótipo a fome. Assim, observa-se que, na primeira mamada do bebê, o objeto específico não é o seio, mas o leite que sacia a fome. A sucção tem a finalidade de obter o alimento que satisfaz o estado de necessidade orgânica, mas, paralelamente, dá-se também um processo de natureza sexual: a excitação dos lábios e da língua pelo seio, produzindo uma satisfação que não se reduz à saciedade alimentar, tratando-se antes de uma satisfação sexual que ganha autonomia sobre aquela.

Por outro lado, a ênfase na noção de apoio foi questionada por Lacan (1985), ao mostrar como as localidades corporais são independentes entre si em seus esforços para a obtenção de prazer. Como emanam de uma grande variedade de fontes orgânicas, as pulsões parciais são numerosas e, embora sejam inteiramente determinadas por sua origem em uma fonte somática, na vida psíquica nós as conhecemos pela pressão que exercem no sentido de sua satisfação. No ensaio Os instintos e suas vicissitudes (Freud, 1915/1974), a força [Drang] da pulsão é vista como o que veicula as estimulações da fonte corporal, ao exercer um impacto constante no psiquismo, exigindo deste último um permanente trabalho psíquico que permita o escoamento necessário face à pressão pulsional.

O fato de serem numerosas permite pensar as pulsões parciais desde essa descontinuidade entre a relação primitiva da sexualidade e a conservação da vida, que, ao mesmo tempo, revela a distância entre a função conservadora e a pulsão sexual. A variabilidade e a parcialidade do objeto da pulsão evidenciam esse hiato com relação ao instinto, pois este último implicaria padrões fixos: objeto específico e objetivos restritos à conservação da espécie. O objeto da pulsão, ao contrário, é aquilo através do qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade -a obtenção da satisfação -, sendo o que há de mais variável na pulsão e, não estando a ela ligado originalmente, só lhe sendo destinado por ser peculiar e parcialmente propício a tornar possível a satisfação. "É provável que, de início, a pulsão sexual seja independente de seu objeto, e tampouco deve ela sua origem aos encantos deste" (Freud, 1905/1972, p. 139).

A ideia, presente em Freud, de que há uma independência da pulsão em relação ao objeto é a premissa da elaboração sobre a separação entre a sexualidade e o campo do biológico. A crítica à noção de apoio levou Lacan a privilegiar a noção de "estado de urgência da vida" (Lacan, 1988, p. 62). Tal refutação do apoio pode ser compreendida epistemologicamente pelo fato de a teoria lacaniana dar maior ênfase à linguagem e às identificações no que diz respeito à constituição do campo do sexual, acentuando de maneira mais radical a descontinuidade entre o biológico e o sexual. A noção de apoio atrelaria a sexualidade ao biológico, ao especificar determinadas funções vitais com o mapeamento do corpo erógeno. Nessa perspectiva, é levada às últimas consequências a compreensão de que qualquer parte do corpo pode se tornar uma zona erógena.

Assim, a referência orgânica articula-se ao estado de urgência da vida, o qual impõe necessariamente a parcialidade às pulsões, uma vez que o campo pulsional não constitui uma totalidade biológica, chamando atenção para a não adaptação radical do ser humano. A ligação ao orgânico é importante não para estipular uma continuidade entre o orgânico e o sexual, mas para reforçar que a premência de satisfação que vem primariamente do orgânico encontra seu alvo de maneira indeterminada. Não há aqui qualquer correlação direta entre o campo das necessidades e a constituição das zonas erógenas, já que a pulsão encontra-se apartada de qualquer função biológica, podendo atingir a satisfação exclusivamente desde a sua parcialidade:

Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação a uma totalização biológica da função, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é que ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é outra coisa senão esse retorno em circuito (Lacan, 1985, p. 170).

O alvo circunscreve-se a um movimento em circuito que se dá indistintamente pelas bordas do corpo, e não por se conectar com esta ou aquela zona específica. A pulsão é demonstrada pela dialética do arco e flecha, como ilustra a figura da "boca que se beijaria a si mesma" (Lacan, 1985, p. 170), mostrando que o fundamental no nível de cada pulsão é o circuito de vaivém que ela percorre pelas bordas do corpo, não importando aqui a função vital em questão (Lacan, 1985).

O Not des Lebens é, assim, o fato da urgência da vida que traz a premência da satisfação: "alguma coisa que quer" (Lacan, 1988, p. 62). Trata-se da necessidade em geral, e não da simultaneidade da pulsão a um objeto, pois nenhum objeto da necessidade pode satisfazer a pulsão. Não é pelo alimento que a boca se satisfaz, mas pelo prazer da boca, que não poderia ser reduzido à mera função de adaptação. Distinguir-se-ia, portanto, no começo da dialética da pulsão, a ordem da necessidade do campo da exigência pulsional. Não é necessariamente no ato mesmo de satisfação de uma necessidade que se inaugura o desejo, que surgiria a partir do apoio no fisiológico. Isso pode ocorrer independentemente do campo das funções vitais.

 

A tensão entre a parte e o todo

Cabe ressaltar que, quando dizemos que o corpo erógeno só pode ser descrito desde as suas partes, isso não significa dizer que a totalização não tenha aí também o seu lugar. A busca da unidade na constituição corporal é tematizada marcadamente nas teorizações acerca do narcisismo (Freud, 1914/1974b). Apesar de Freud não desenvolver exatamente uma teoria da formação do corpo próprio, como podemos encontrar, por exemplo, em Lacan (1966), com a ideia de especularidade (e mesmo aí há sempre a fragilidade da imagem face à deiscência, isto é, à possibilidade de despedaçamento do corpo), pode-se entrever na teoria freudiana a percepção da unidade corporal desde o eixo narcísico, com a formação do eu narcísico. Quando o eu toma a si mesmo, e o seu próprio corpo, como objeto de amor, é o ego em sua totalidade que é investido libidinalmente. Com isso, evidentemente, o corpo é também apreendido em sua totalidade, já que não podemos esquecer que uma das formulações básicas apresentadas sobre a formação do ego no texto O ego e o id (Freud, 1923/1976) é que o ego é antes de tudo corporal; o ego é primariamente corporal porque é um ser de superfície. A operação narcísica permitiria, portanto, uma unificação no campo da pulsão sexual, quando uma nova ação psíquica -o movimento de retirar o investimento do mundo exterior e conduzir a libido em direção ao ego - oferece ao eu o sentimento de unidade narcísica, resultado da estase libidinal no eu. Mas o ponto que queremos aqui destacar é o fato de que essa unificação é frágil e sempre ameaçada pelo aspecto anárquico da pulsão sexual e pela possibilidade de advir a percepção do despedaçamento corporal. A busca da unidade é importante no que concerne ao narcisismo do eu, mas a iminência do despedaçamento é característica da constituição do corpo próprio, o que faz dele fonte permanente de angústia e estranhamentos.

 

Conclusão

Buscamos no presente artigo demonstrar que o desenvolvimento teórico sobre a constituição do corpo na teoria freudiana potencializa a dimensão do fragmento. Tal constituição encontra-se associada ao campo da pulsão sexual, a partir da circunscrição corpórea das zonas erógenas e da sexualidade perverso-polimorfa.

Historicamente, vimos como a dissecação dos cadáveres inaugurou a anatomia moderna e marcou profundamente as mudanças no olhar que se tem sobre o corpo, tanto no campo da ciência quanto no domínio da arte.

Podemos dizer, efetivamente, que Freud, quando trata o corpo a partir dos pedaços, é herdeiro da tradição da anatomia clínica. Todavia, essa herança é subvertida quando observamos que, em vez de promover uma continuidade em relação à medicina, Freud rompe com a mesma, ao inserir o desejo e a erogeneidade no corpo desmembrado que outrora fora atribuído ao cadáver. De certo modo, Freud devolve ao corpo amortecido da medicina a dimensão fantasmática que foi dele subtraída. Ele se mantém fiel à tradição do desmembramento do corpo, mas, por outro lado, afasta-se do corpo-cadáver quando oferece a construção de um corpo atravessado pelos fantasmas, pelo desejo, pelo prazer e pelos mistérios do inconsciente. O lugar do corpo em Freud é designado pela sua constituição enquanto corpo erógeno.

Portanto, se o corpo em pedaços pode conduzir às experiências de estranheza, angústia e perda do sentimento de unidade de si, pode propiciar também, paradoxalmente, que adentremos na região do erotismo do corpo. Quando investigamos a construção do corpo erógeno na teoria freudiana, encontramo-nos aqui, mais uma vez, nesta linha tênue a que pertence o campo do erótico ao se situar nas fronteiras entre o sexo e a morte.

 

Referências

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Endereços para correspondência:
Maria Isabel de Andrade Fortes
mariaisabelfortes@gmail.com

Submetido em: 20/11/2012
Revisto em: 08/03/2013
Aceito em: 09/03/2013

 

 

i Este artigo é fruto de pesquisa de Pós-doutorado Sênior realizada com Bolsa da FAPERJ no PPGTP/UFRJ.