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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.65 no.2 Rio de Janeiro  2013

 

ARTIGOS

 

Práticas sacrificiais na atualidade: o paradigmático exemplo da segregação

 

Sacrificial practices nowadays: the paradigmatic example of the segregation.

 

Prácticas sacrificiales en la actualidad: el ejemplo paradigmático de la segregación

 

 

Alexandre Dutra Gomes da CruzI; Ilka Franco FerrariII

IDoutorando. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Belo Horizonte. Minas Gerais. Brasil
IIDocente. Coordenadora. Programa de Pós-graduação. Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Belo Horizonte. Minas Gerais. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda a segregação como exemplo paradigmático de prática sacrificial na atualidade, época marcada pelo declínio do pai e pela escalada de um real que corrói o laço social. Freud e Lacan dão o norte das ideias desenvolvidas, mas, em ocasiões oportunas, consideram-se contribuições de outros campos de saber: a antropologia e a filosofia. A partir do caminho traçado, diferenciam-se duas modalidades de sacrifício. Aquele que, pela via da dialética do desejo, permite o fortalecimento da aliança entre seus praticantes, e o sacrifício que coloca em cena o campo inegociável do gozo, onde a oferenda sacrificial instiga a ferocidade do deus obscuro, espectro maligno do grande Outro. Conclui-se que, nesta época governada pela parceria entre o capitalismo e as tecnociências, as práticas sacrificiais se dessacralizaram, não servindo mais aos propósitos da comunhão entre seus membros, nem ao desejado enlace com o Outro.

Palavras-chave: Práticas sacrificiais; Segregação; Psicanálise.


ABSTRACT

The paper discusses the segregation as a paradigmatic example of sacrificial practice in the current era, marked by the decline of the father and the escalation of a real that erodes the social bond. Freud and Lacan give the north to the developed ideas, but, in some occasions contributions from other fields of science, such as anthropology and philosophy, are considered. Following this path, two modalities of sacrifice were approached. The one that, through the dialectic of desire, allow the strengthening alliance among its practitioners, and the sacrifice that puts into play the non-negotiable field of jouissance, in which the sacrificial offering instigates the ferocity of the obscure god, evil specter of the big Other. It is concluded that, in the current era, ruled by the partnership between capitalism and techno-sciences, sacrificial practices are desacralized, no longer serving to the purposes of fellowship among its members, neither to the desired bond with the Other.

Keywords: Sacrificial practices; Segregation; Psychoanalysis.


RESUMEN

El artículo aborda la segregación como un ejemplo paradigmático de práctica sacrificial en la actualidad, época marcada por la declinación del padre y por la intensificación de un real que corroe el vínculo social. Freud y Lacan dictan el norte de las ideas desarrolladas, pero en las ocasiones apropiadas se consideran las contribuciones de otros campos del saber: de la antropología y de la filosofía. A partir del camino trazado, se diferencian dos modalidades de sacrificios. Aquél que, por la vía de la dialéctica del deseo, permite el fortalecimiento de la alianza entre sus practicantes, y el del sacrificio que coloca en escena el campo innegociable del goce, donde la ofrenda sacrificial instiga la ferocidad del dios oscuro, espectro maligno del Otro. Se concluye que, en esta época gobernada por la colaboración entre el capitalismo y la tecno ciencia, las prácticas sacrificiales se desacralizaron, dejando de servir a los propósitos de comunión entre sus miembros, o a la vinculación deseada con el Otro. 

Palabras clave: Prácticas sacrificiales; Segregación; Psicoanálisis.


 

 

Os interessados em se dedicar ao estudo aprofundado de tema que diga respeito ao sacrifício, e orientados pela psicanálise, constatarão que Freud e Lacan não construíram uma teoria do sacrifício. E isso é o que também assegura Gerez-Ambertín (2009), psicanalista argentina, para a qual o que encontramos nesses autores é uma "teoria sobre os paradoxos inerentes aos Nomes-do-Pai, do qual o sacrifício é somente uma de suas consequências" (p. 25).

Apesar de não ter formalizado uma teoria sobre o sacrifício, Freud o aborda em vários momentos de sua obra, no âmbito de importantes formalizações teóricas. Naquelas que buscam estender a validade da psicanálise para o campo social, tais como A psicopatologia da vida cotidiana (1906/1987a), Totem e tabu (1913/1987c), Mal-estar na civilização (1930/2010d) e Psicologia das massas e análise do eu (1921/2010c). Em outras, em âmbito de ricas formalizações de casos clínicos, casos paradigmáticos, a exemplo do sacrifício do Homem dos ratos (Freud, 1909/1987b) no campo de batalha, pagando com a própria vida sua dívida, e o martírio sacrificial de Daniel Paul Schreber em benefício de seu deus obscuro (Freud, 1911/2010a). É, ainda, o caso da paciente que, após tropeçar na calçada e bater com o rosto no muro de uma casa, machucando-se bastante, já que não tentou protegê-lo, até temeu a perda da visão (Freud, 1906/1987a, 165). Para Freud, aquele foi um ato sacrificial, forma de autopunição por um aborto feito tempos atrás. Vale também mencionar o texto Luto e melancolia (1917/2010b), no qual o sacrifício assume sua forma mais letal na via do autoextermínio.

Nos textos mencionados acima há alguns bastante voltados para reflexões sobre a civilização e outros muito clínicos, referentes a casos tratados. No entanto, é importante observar, que se Freud, acreditando numa psicologia científica, partiu do mental, e sua referência era a biologia, por meio de sua consideração sobre o aparelho psíquico chegou ao grupo, ao coletivo, ao social (Miller, 2005). É o que se constata, por exemplo, em Psicologia das massas e análise do eu (Freud, 1921/2010c). Nesse texto afirma expressamente que não há como separar o campo da psicologia individual do campo da psicologia social, bem como os registros individual e coletivo dos fenômenos psíquicos. Mesmo nos consultórios particulares, os sujeitos que ali chegam trazem a marca da cultura.

Nessa seleção de artigos freudianos o objeto sacrificial possui uma homologia estrutural com o estatuto contingente do objeto da pulsão: vai desde perda de objetos valiosos ou aparentemente desvestidos de valor, até afetações corporais, perda da própria vida e da vida de outros. Neles as práticas sacrificiais apontam para um leque amplo de fenômenos ligados à violência: condutas de risco, martirização, vitimização, automutilações, ferimentos autoinfligidos, assassinatos e suicídios, entre outros. Ainda que haja intencionalidade consciente implicada no ato sacrificial, neles Freud (1906/1987a) reafirma o valor do inconsciente: "Mesmo a intenção consciente de cometer suicídio escolhe sua época, seus meios e sua oportunidade; e é perfeitamente consonante com isso que a intenção inconsciente aguarde uma ocasião que possa tomar a seu encargo parte da causação..." (p. 163).

Do ponto de vista freudiano, tais fenômenos podem se constituir como desfechos trágicos do conflito psíquico que tem raiz na "tendência à autopunição, que está constantemente à espreita e comumente se expressa na autocensura" (Freud, 1906/1987a, p. 161). Por isso só de início se surpreendeu diante da "notável serenidade" com que os pacientes encaravam "o suposto acidente" (p. 161), diante dele não manifestando expressões de dor nem se queixando ou indignando.

A partir dessas considerações, é possível articular a serenidade diante do sofrimento, advindo da ação sacrificial, ao sofrimento dos heróis e mártires, referência presente nas narrativas míticas e religiosas. No caso do sacrifício cristão, a Bíblia metaforiza essa serenidade na figura do cordeiro, que, diferentemente dos bois ou dos porcos, vai silenciosamente para o matadouro. Tal aproximação sempre é evocada ao se falar do martírio de Jesus, que, diante de um sofrimento extremo e da morte, "foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca" (Isaías, 53:7, Versão Almeida Revista e Atualizada). Há, portanto, uma cumplicidade do sujeito com o nefasto destino que o abate.

De acordo com Lacan (1988b,), que, diferentemente de Freud, desde o início considera o social em suas articulações, seguindo a trilha de Durkheim (Miller, 2005), Freud dirigiu a essas práticas um "olhar corajoso" (p. 259). Nelas reconheceu a implicação do sujeito e, advertido, não sucumbiu ao fascínio que delas emana. Um exemplo disso Freud (1906/1987a) mesmo menciona, de forma até meio chistosa: "Quando um membro de minha família se queixa de ter mordido a língua, imprensado um dedo etc., não recebe de mim a compaixão esperada, mas sim a pergunta: 'Por que você fez isso?'" (p. 162).

Em Lacan é possível dizer que há dois momentos fundamentais na abordagem do sacrifício. No momento inicial de seu ensino ele coloca em questão a reciprocidade entre o sacrificante e seu deus, bem como a suposta função pacificadora e homeostática do sacrifício, tese defendida pelo filósofo e historiador francês René Girard, em seu livro A violência e o sagrado (1998). O sacrifício, segundo Girard (1998), constitui-se como "instrumento de prevenção na luta contra a violência" (p. 30), tendo por função "apaziguar as violências intestinas e impedir a explosão de conflitos" (p. 26).

Posteriormente, a oferenda sacrificial cede espaço à libra de carne (Lacan, 2005a) e ao "Deus obscuro" (Lacan,1988b, p. 259). Essa mudança de ênfase é tributária dos avanços feitos na concepção lacaniana do objeto pulsional como objeto a, ponto opaco, não especularizável, fonte de um fascínio mesclado de horror - horror sagrado. Trata-se do momento em que Lacan começará a considerar a supremacia da dimensão do gozo, em detrimento da aliança proporcionada pela dialética do desejo. De outra forma, como dar conta das manifestações coletivas mais selvagens do processo sacrificial, a exemplo das novas formas de segregação orquestradas pelo discurso da ciência e da "miséria psicológica das massas" (Freud, 1930/2010d, p. 53)?

Na primeira abordagem lacaniana do sacrifício, a operação sacrificial cumpre a função de um memorial que celebra a castração, deixando como resultante um menos, significado como dívida por aquilo que se recebeu como um dom do Outro. Se ao Outro falta algo, abre-se a possibilidade para um laço com ele. Situa-se aí o fundamento da dívida simbólica, no circuito da dialética do desejo, marcado pela castração. É nesse contexto que Lacan (1992a), no Seminário sobre a transferência, situa o dom agalmático como isca, armadilha para capturar o desejo dos deuses. Trata-se de encher os olhos desse Outro, mediante o brilho do objeto agalmático, barrando esse Outro ao torná-lo faltoso e desejante. Instala-se para o sujeito, assim, o enigma sobre aquilo que o Outro dele espera. Como afirma Ambertín (2009), nesse momento da teorização lacaniana, o sacrifício "é uma tentativa de restaurar o circuito dos intercâmbios simbólicos (sempre ameaçados de ruptura), mas também uma tentativa de capturar o desejo do Outro, de seduzir o Outro, e por este caminho, conseguir seu amparo" (p. 67).

Nesse momento Lacan se aproxima das pesquisas antropológicas de Marcel Mauss (2003) e Claude Lévi-Strauss (1989), autores que situam o sacrifício como uma aliança, um intercâmbio que o sujeito estabelece com o Outro divino, mediante a oferenda dos seus dons. Vale dizer que a interlocução da psicanálise com outros campos de saber está presente desde Freud, não é primazia de Lacan. Totem e tabu (1913/1987c) até permite afirmar que Freud foi um estudioso do campo da antropologia. Conforme ele próprio afirmava (1911/2010a) "logo será o momento de ampliar uma tese que nós, psicanalistas, enunciamos há muito tempo, de juntar ao seu conteúdo individual, ontogeneticamente compreendido, a complementação antropológica, a ser apreendida filogeneticamente" (p. 70).

No seminário sobre a angústia, Lacan (2005a) se ocupa da formalização do objeto a, o que acarretará significativas mudanças em seu percurso, e pode-se afirmar que esse Seminário tem o caráter de divisor de águas em suas considerações acerca do sacrifício. Ao retomar o tema, nele inclui o que antes havia ficado de fora: o corpo enquanto libra de carne, com o qual se busca apaziguar a ferocidade do Outro: "... sempre há no corpo, em virtude desse engajamento na dialética significante, algo de separado, algo de sacrificado, algo de inerte, que é a libra de carne" (p. 242). São então traçados os primeiros contornos da concepção do sacrifício, para além do dom agalmático, evocando a Bíblia hebraica para dizer que a relação com Deus circula por fora do circuito da troca de bens e da dádiva divina. Surge a versão maligna de Deus, que não aceita negociação. O shofar "... soa o encontro com o lado implacável da relação com Deus, com a maldade divina em função da qual é sempre com nossa carne que temos de saldar a dívida" (p. 242). Foi, no entanto, no seminário interrompido sobre os Nomes-do-Pai (Lacan, 2005b) que Lacan claramente situou o sacrifício como modalidade de enlaçamento dos registros RSI, recorrendo à Akedah (ligadura), tal como apresentada no sacrifício de Abraão. E aí surge, de forma clara, a formalização desse enlace inaugural que coloca em jogo a dimensão de gozo, de algo para além do princípio do prazer, que é inerente a essa forma de ato.

Ambertín (2009) comenta, e este fato é mesmo facilmente constatado, que, à medida que Lacan avança em sua teorização, haverá um distanciamento progressivo das teorias antropológicas de Mauss (2003) e Lévi-Strauss (1989). Nessa perspectiva, ainda que a prática sacrificial busque estabelecer um pacto que apazigue a violência decorrente do aumento das tensões imaginárias do grupo, ela acaba potencializando essas tensões, gerando ainda mais violência e reforço da segregação. Torna-se fundamental, portanto, repensar a lógica do sacrifício no contexto do segundo momento da teorização de Lacan, que permite estabelecer uma originalidade com relação às referidas teorias antropológicas.

Não por acaso, ao se referir ao extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, Lacan (1988b) discute a ineficácia da dialética hegeliana-marxista em dar conta do problema da ressurgência das práticas sacrificiais, mistério que sempre permaneceu "mascarado pela crítica da história" (p. 259). O holocausto nazista, exemplo paradigmático do sacrifício em massa, revela que o lugar de vítima sacrificial pode ser ocupado não apenas por um animal totêmico ou uma pessoa, mas por toda a extensão de uma margem da sociedade. Nesse contexto, verifica-se que, com Lacan (1988b), o sacrifício traça seus contornos de horror por trás de um véu de fascinação, "captura monstruosa" (p. 259), despida de suas vestes de divindade, à qual poucos conseguem resistir. O Deus-amor, monoteísta, sai de cena para ceder espaço ao múltiplo anônimo, deuses obscuros, que não desejam nada e não respeitam pactos; são movidos por uma cega vontade de gozo, que não se apazigua mediante as oferendas sacrificiais, que só fazem instigar ainda mais sua sede de gozo: "...o sacrifício significa que, no objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo desse Outro que eu chamo aqui o 'Deus obscuro'" (p. 259). Insinua-se aí uma dimensão escamoteada, que nenhum discurso foi capaz de olhar de frente. E que outro discurso, que não o psicanalítico, poderia abrir caminho nessa trilha habitada pelo paradoxo do horror que fascina?

Uma implicação direta desse reposicionamento do sacrifício na economia libidinal das massas leva a considerar que seu fundamento não é a dádiva e a dimensão desejante que ela instaura, mas um gozo masoquista irredutível, que não se liga a nenhuma ancoragem simbólica, a nenhum sistema de intercâmbio social. No cerne da racionalidade ocidental, que perdeu seus deuses na "grande feira civilizadora" (Lacan, 2005a, p. 302), assiste-se ao espectro de sua ressurgência, no que eles têm de pior.

 

O pior chamado segregação

A segregação é temática de preocupação freudiana. Por exemplo, ao discutir o mal-estar na civilização, Freud (1930/2010d) afirma que o laço social constituinte dos grupos se fundamenta não apenas no amor que liga o sujeito ao semelhante no qual se reconhece, mas também na agressividade. E essa deve ser canalizada para fora do grupo: "Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade. Dei a isso o nome de narcisismo das pequenas diferenças" (p. 51-52). O narcisismo das pequenas diferenças permite entender que o laço social construído a partir de um ideal favorece a sensação de pertencimento ao grupo, e só pode se fortalecer na medida em que a cota de hostilidade amalgamada nas identificações seja canalizada para fora.

Calcada no eixo imaginário do narcisismo, essa lógica que rege a estruturação dos grupos e comunidades acarreta, ao lado da fascinação pelos ideais ou pelo líder do grupo, um horror à diferença, que se torna signo de uma ameaça à coesão grupal. E Freud (Freud, 1930/2010d) alertava para o perigo que esse regime de funcionamento dos coletivos representa: "a miséria psicológica da massa" (p. 53) e a "sede de obediência" (p. 21), consequências de um regime baseado no apagamento das diferenças e na identificação coletivizadora entre seus membros.

A problemática do sacrifício, tal como colocada pela psicanálise, permite esclarecer por que a segregação é um fenômeno que, a despeito de apresentar uma variação nas suas formas de manifestação, é estrutural em qualquer formação coletiva. A questão sacrificial nunca deixa de estar vinculada à segregação, uma vez que é por intermédio desta que se destaca do rebanho um sujeito que será consagrado como vítima sacrificial. Essa função de bode expiatório pode ser representada por um indivíduo, mas também por um grupo, destacado a partir de um traço identificatório que dá consistência e confere nomeação a ele. Trata-se, nesse caso, de um grupo nomeado para o sacrifício.

O mecanismo da segregação encontra seu fundamento na vítima expiatória, figura emblemática na constituição e fortalecimento dos grupos sociais, encarregada de purificar e assegurar a coesão interna do grupo. E pode-se detectar a presença desse personagem marginal desde tempos imemoriais, desde as mais primitivas organizações sociais, conforme o atestam os trabalhos antropológicos de James Jorge Frazer (1922/1982), William Robertson Smith (1894/1927) e Mauss & Hubert (2005). Ver-se-á, mais adiante, como esses autores situaram a função da vítima expiatória no ritual sacrificial.

O termo segregação, de etimologia latina, segregare, tem o prefixo se que significa a ação de separar, apartar, afastar, isolar, enquanto a outra parte da palavra provém de grex, que significa grei, rebanho. Trata-se da mesma etimologia que compõe o termo "instinto gregário", discutido por Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1921/2010c, p. 59). Se inicialmente o termo era utilizado para designar a separação de um animal do seu bando, segundo Ferrari (2007), a partir do século XIV "o termo passou a ser aplicado a fenômenos humanos, em diferentes situações culturais" (p. 275).

Segregar não é o mesmo que banir ou expulsar; a segregação é uma forma de exclusão interna, ou seja, o objeto segregado vive em uma zona territorial demarcada, nomeada, mantendo-se sempre próximo. É, no sentido freudiano, tornar próximo, com toda a carga de significação que esse termo evoca.

Se o semelhante é aquele no qual o sujeito se reconhece mediante a identificação entre iguais, o próximo é o estrangeiro, lugar estrutural do Nebenmensch, figura da alteridade hostil, que Lacan (1988a) ensina a distinguir no texto freudiano a partir de Das Ding: "O Ding como Fremde, estranho e podendo mesmo ser hostil num dado momento, em todo caso como o primeiro exterior, é em torno do que se orienta todo o encaminhamento do sujeito" (p. 67). O próximo constitui um elemento paradoxal, não apenas na constituição do sujeito, como também na estruturação dos grupos, ocupando aí o lugar de depositário da diferença, que ameaça sua coesão.

 

A segregação: efeito reverso dos ideais coletivos pautados pelo discurso da ciência

Pensar a segregação como efeito de linguagem implica postulá-la como estrutural, e não como um sinal dos tempos. Além das coordenadas imaginárias da segregação, delineadas por Freud em torno do eixo do narcisismo, Lacan (1992b) enfatiza suas coordenadas simbólicas, estruturais, cujas manifestações podem mudar com a época, mas nunca deixam de existir: "Nunca se terminou completamente com a segregação. Posso dizer a vocês que ela vai sempre reaparecer com mais força", na medida em que "ela é efeito da linguagem" (p. 170).

Se a segregação é estrutural, tributária do efeito da linguagem sobre a estruturação do laço social, pode-se afirmar que não há sistema simbólico que não opere sem a mediação da segregação. Segregar é também discriminar, classificar, categorizar, princípios que estão na origem da razão e do conhecimento ocidental, seja ele jurídico, filosófico ou científico. Sendo assim, ela é inerente ao próprio funcionamento dos discursos ordenadores do laço social, tal como afirma Legendre (1983), jurista e psicanalista francês, ao dizer da montagem de sistemas classificatórios que operam a partir da criação de categorias, estabelecidas pelo texto jurídico.

O texto jurídico não procede de outro modo em seus avanços sucessivos, no seu perpétuo esforço para reinventar a segregação. [...] É preciso alimentar a instituição em classificações, em permitir à grande maquinaria operar sua obra de diferenciar por meio de uma lógica (p. 183).

Com o advento da globalização, impulsionada pelo avanço das tecnologias da informação, a temática da segregação ganha novo impulso. Poder-se-ia pensar que o apagamento das fronteiras de mercado no mundo globalizado celebraria o fim da segregação. Isso não ocorreu, e os psicanalistas que conhecem o texto lacaniano sabem que Lacan advertia que a universalização, resultante do avanço do discurso capitalista, em parceria com as tecnociências, provocaria um agravo nos processos de segregação, ao estabelecer a lógica do mercado globalizado como novo campo das trocas sociais. A psicanálise permite esclarecer que esse regime de funcionamento homogeneizador e massificador nada mais faz do que recrudescer os processos de segregação. Quanto mais se apela para o global, para o universal, maior se torna a margem de excluídos.

A história se encarregou de ensinar que os regimes totalitários, baseados no reforço selvagem da identificação com um ideal unificador, legitimado pela ciência, precisaram constituir espaços cada vez mais vastos para os excluídos. Isso pode ser constatado, por exemplo, na criação de campos de concentração pelo regime nazista. Ao se referir aos campos de concentração, Lacan (2003) os qualificou de precursores do que se desenvolveria de forma cada vez mais proeminente: as novas formas de segregação. Formas que são consequência "do remanejamento dos grupos sociais pela ciência e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz", com os mercados comuns encontrando "seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação" (p. 263).

Sendo assim, ao invés da sonhada aldeia global, temos a pulverização das grandes massas em pequenas comunidades, que partilham seu gozo nos guetos de suas identificações horizontais. Ressurge daí o narcisismo das pequenas diferenças, efeito típico das modernas sociedades capitalistas homogeneizadas. Se a diferença como tal não pode ser reconhecida, resta a esses pequenos grupos literalmente escavar um traço que permita restabelecê-la. Tal fenômeno pode ser constatado na atualidade, a exemplo da rivalidade entre as gangues urbanas e da formação de comunidades virtuais.

No lugar dos grandes ideais amalgamadores das massas, surge essa nova forma de culto do Um, organizado em pequenas comunidades agrupadas em torno do compartilhamento dos modos de gozo. Brousse (2007) comenta que o que está em jogo nesses fenômenos é uma autossegregação, na qual cada um elege seu próprio campo de concentração, dentro do qual se situa, "isolado junto, isolado do resto" (Lacan, 1992b, p. 107). Essa forma moderna de segregação, segundo a autora, é típica das sociedades de controle, que sucederam as sociedades autoritárias.

A partir da psicanálise, pode-se afirmar que as modernas formas de segregação, típicas das sociedades de controle, são tributárias da pluralização dos Nomes-do-Pai, consequência da "evaporação do pai 1" (Lacan, 1969, citado por Freijomil, 2010, p. 93, tradução nossa). Evaporação que diz de um declínio do Nome-do-Pai como instância ordenadora do laço social e pacificadora das paixões narcísicas.

Cremos que o universalismo, a comunicação de nossa civilização homogeneíza as relações entre os homens. Penso, ao contrário, que aquilo que caracteriza nosso século, e não podemos deixar de percebê-lo, é uma segregação ramificada, reforçada, coincidente em todos os níveis, que não faz mais do que multiplicar as barreiras, dando testemunho da esterilidade assombrosa de tudo o que possa ocorrer em um campo (Lacan, 1969, citado por Freijomil, 2010, tradução nossa) 2.

Tais formas de segregação, diferentemente daquela que se testemunhou nos grandes campos de concentração nazistas, se caracterizam por serem ramificadas, capilares. A Lei do Nome-do-Pai, barreira humanizadora, se esfuma, cedendo espaço a uma atomização dos Nomes-do-Pai, que já não servem como referência ordenadora. Em tal regime de funcionamento discursivo, a instância interditora perde sua efetividade enquanto transmissora da interdição e do desejo, tornando-se uma instância de empuxo ao gozo.

O declínio do pai, conforme afirma Lacan (2008), é tributário do progresso científico e social, cujos efeitos se voltam contra os indivíduos. A partir da teoria lacaniana dos discursos, pode-se afirmar que o discurso do mestre vem sofrendo mutação. O domínio de S1, interditor do gozo e regulador do laço social, declina em favor da ascensão do objeto mais de gozar (a), característico do discurso do capitalista; o objeto a se presentifica de forma cada vez mais marcante no espaço urbano, na forma de vozes e imagens veiculadas através de dispositivos tecnológicos e midiáticos. Por aí estão, por exemplo, as câmeras de vigilância nas ruas, os reality shows e os dispositivos portáteis de comunicação oferecidos ao consumo pelas modernas tecnologias de informação.

Lacadée (2012) afirma que a função do pai instaura uma exceção fundadora que permite o reconhecimento de outras exceções. Para ele, em regime de crescente homogeneização, e pautado pelo imperativo 'todos iguais', como é o de nossa época, restam as alternativas de "apelo cada vez mais frequente ao aspecto jurídico como garantia de uma distribuição igualitária do gozo", e a " exclusão/segregação" (p. 112).

No tocante à primeira alternativa, percebe-se a ascensão dos grupos minoritários que reivindicam sua legitimidade junto às instâncias jurídicas, recusando-se a serem apartados do ordenamento social como uma categoria à parte, desprovida de direitos e reconhecimento jurídico. É o caso da reivindicação feita pelos homossexuais quanto à legitimação de sua união conjugal, com todos os direitos e deveres aí implicados, sancionados pelo Estado. No caso dos homossexuais masculinos, por exemplo, Ferrari & Andrade (2011) afirmam que casar, filiar e procriar estão entre suas principais reivindicações. Percebe-se que tais reivindicações vêm sendo atendidas, atestando que a pluralização da referência normativa foi benéfica no sentido do reconhecimento das diferentes configurações dos modos de gozo.

A segunda alternativa encaminha-se rumo à criação de uma margem que passará a abrigar os dejetos que não puderam ser integrados no sistema normativo. Essa alternativa implica a multiplicação de guetos constituídos por minicomunidades de gozo, fechadas em si mesmas, funcionando segundo o regime do narcisismo das pequenas diferenças.

 

Ordem de ferro: segregação, nomeação e extermínio de sujeitos descartáveis

O fenômeno da segregação revela seu lado mais dramático e maligno quando assume a forma de uma prática sacrificial. Ramírez (2007) é um psicanalista colombiano que aborda as práticas sacrificiais na atualidade e suas manifestações sombrias, nelas incluindo segregação e violência. Não deixa de recordar, com Lacan (s/d), que nessas condições assiste-se à reconstituição do Pai no campo social, sob a forma de uma ordem de ferro, a partir do poder para nomear.

Ramírez articula as ordens de ferro com o surgimento de fenômenos sociais que são típicos em seu país, mas que não deixam de ter muito em comum com o que ocorre no Brasil. Como exemplo, ele fala dos grupos de extermínio e limpeza social, que na Colômbia surgiram com o propósito de eliminar sujeitos indigentes, nômades e sem lar, que foram circunscritos em uma nova categoria social construída a partir do discurso capitalista: descartáveis. A partir dessa nomeação, esses sujeitos foram alvo de implacável perseguição, com o objetivo de eliminá-los.

O princípio de funcionamento dessas ordens de ferro se baseia em uma segregação radical, que encontra suas raízes no processo de degradação das instituições sociais tais como a família, a escola e o Estado. Na medida em que declina o Nome-do-Pai, como instância normativa responsável pelo enlace do desejo com a Lei, no lugar do seu desaparecimento surge uma ditadura do gozo, que impele e fustiga os sujeitos rumo à fascinação sacrificial. Na Colômbia, segundo Sanchez Ocampo (1993, citado por Ramírez, 2001)3, "um 'descartável' é um mártir, um Cristo moderno. Toda a sociedade se vê no direito a dele abusar, todos o menosprezam" (p. 150, tradução nossa). Tais sujeitos, exilados da condição de cidadãos, perdem sua identidade política e assumem o lugar de depositários da mácula social, tornando-se objeto das selvagens práticas sacrificiais contemporâneas. A partir do que afirma Ramírez, fica claro como a segregação produz nomeações que circunscrevem margens cada vez mais amplas de indivíduos e grupos que são marcados com o estigma de descartáveis, 'matáveis' para o filósofo italiano Giorgio Agamben" (2002, p.131). Isso porque esses sujeitos estão situados em uma zona de anomia, onde não é a lei que vigora, mas uma ordem de ferro, sob os auspícios de uma sanção arbitrária que não é a lei, mas que assume a sua força.

A partir do momento em que são nomeados, esses sujeitos perdem sua condição de cidadãos, tornando-se vítimas expiatórias das práticas sacrificiais contemporâneas, que corporificam, em ato, a exortação impossível do imperativo insensato e anômico do supereu. Para Agamben (2002), esses mártires modernos são reedições desse personagem marginal do Direito romano, o homo sacer, estigmatizado a um só tempo como sagrado e maldito. Tal ambivalência não é, contudo, o elemento mais importante no contexto da análise que faz Agamben, na busca para situar o próprio fundamento ordenador das modernas democracias ocidentais nesse personagem. A partir dessa zona de anomia, de exclusão interna, erige-se o sistema do ordenamento jurídico e civilizador das sociedades laicizadas contemporâneas, confirmando, assim, o célebre adágio de que a exceção constitui a regra: "Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nessa esfera" (Agamben, 2002, p. 91). O homosacer, para ele , é "insacrificável" em sua "matabilidade" (p. 90), o que quer dizer que, diferentemente do que acontecia nas antigas práticas sacrificiais, seu extermínio prescinde dos tradicionais rituais consagradores. Enfim, ele é morto sem cerimônia, impunemente.

 

A significação do sacrifício a partir do fenômeno do bode expiatório

Em sua origem, o sacrifício é um ato religioso que visa estabelecer uma ligação com a transcendência divina, daí a etimologia latina do termo sacer, que significa sacro, e de facere, fazer, portanto, tornar sagrado. Segundo Mauss & Hubert (2005), o sacrifício consiste em estabelecer uma ligação com o domínio divino mediante a consagração de um objeto, alçando-o do domínio comum ao domínio sagrado. Na medida em que se torna sagrado, o objeto se torna indisponível para o uso humano, assumindo as propriedades de um tabu; torna-se então intocável, revestido de uma aura mística que oscila entre o divino e o abjeto, entre o sagrado e o profano.

Ao estudar as práticas sacrificiais em culturas e épocas diversas, Mauss & Hubert (2005) afirmam que, apesar da sua diversidade, é possível estabelecer um padrão que permita agrupá-las em torno de um mecanismo geral. Esse mecanismo comporta tempos sucessivos, que são escalonados por uma entrada e uma saída. A entrada marca os rituais de consagração do objeto ou vítima, enquanto a saída possui um caráter simétrico, mas invertido. Trata-se, nesse momento, dos ritos de saída que marcam a purificação daqueles que presidiram a cerimônia sacrificial. O que está em jogo no sacrifício é a sacralização de um objeto para que, após a sua consagração, seja possível separar-se dele. Mauss & Hubert (2005, p. 46) falam também da importância dos rituais no mecanismo sacrificial, afirmando que esses cumprem uma função limitadora e ordenadora nesse processo: "os direitos do sacrificante sobre a parte da vítima que lhe era entregue eram limitados pelo ritual". O ritual sacraliza a vítima, ao mesmo passo em que protege o sacrificante do horror sagrado que ela passa a representar. Se o sacrifício cumpre uma função expiatória e catártica no interior da comunidade onde ocorre, isso só é possível mediante uma estrita observância aos rituais, que revestem e protegem a comunidade do potencial ameaçador que o envolve.

Robertson Smith (1894/1927), teólogo escocês que foi referência fundamental para Freud, indica que a significação do sacrifício sofreu uma mudança com o passar do tempo. Segundo ele, o sacrifício envolvendo vítimas animais tinha originalmente a significação de um ato de confraternização entre a deidade e seus seguidores: "A ênfase colocada no sacrifício animal nos antigos rituais corresponde à ênfase em um tipo de sacrifício que não consiste meramente no pagamento de um tributo, mas sim em um ato social de comunhão entre a divindade e seus adoradores" (p.224, tradução nossa)4. Sendo assim, a vítima sacrificial não representava nada mais, segundo esse autor, que alimento dos deuses, podendo ser livremente compartilhado entre os homens (profano) e os deuses (sagrado).

Com o passar do tempo, o sacrifício entre os hebreus foi assumindo uma significação distinta. Se inicialmente tinha um significado de comunhão entre o sacrificante e seu deus (Robertson Smith se refere a essa modalidade como zèbah), após a Lei Levítica, o sacrifício passa a assumir a função de oferenda ao deus, da qual o sacrificante não deve tomar parte (a essa modalidade, ele nomeia minha). A refeição sacrificial deixa de ser uma ocasião de confraternização para se tornar um despojo, uma oferenda que não deve ser tocada ou comida por nenhum integrante da comunidade sacrificial, a não ser pelos sacerdotes, os únicos autorizados a fazê-lo. Após a oferenda da vítima, seus despojos devem ser comidos pelos sacerdotes ou devem ser queimados e oferecidos em holocausto, assinalando seu desaparecimento. Em suma, Robertson Smith (1894/1927) frisa que a significação do sacrifício, na primeira modalidade mencionada, é um ato de comunhão, enquanto que, na segunda, assume significação de uma dívida, de um tributo a ser pago aos deuses (p. 240)5.

A função da vítima expiatória, no ato sacrificial, permite aproximar os fenômenos da segregação e da exclusão social como formas de consagração maligna, na qual a vítima é destacada do grupo e alçada a uma zona de exceção. Ali seus direitos são suspensos, e ela é revestida do caráter sagrado, como objeto de oferenda aos deuses. Vale lembrar, no entanto, que as práticas sacrificiais não ocorriam apenas em sociedades primitivas e tribais. Os estudos de Frazer (1922/1982), eminente antropólogo escocês, já apontavam que, mesmo em uma sociedade organizada em torno do logos, como a antiga polis grega, as práticas sacrificiais também estavam presentes. Nesse contexto, o sacrifício da vítima expiatória era praticado enquanto um ritual purificatório: "quando uma cidade sofria de peste, fome ou qualquer outra calamidade pública, uma pessoa feia ou deformada era escolhida para assumir os males que afligiam a comunidade" (p. 455).

Recorrendo aos textos de Platão, Jacques Derrida (2005), filósofo francês, procede a uma minuciosa análise gramatológica/semântica do termo pharmakon, indicando o feixe de significações que tal termo aponta. Enquanto que pharmakon pode assumir significações antitéticas conforme o contexto em que emerge (pode significar remédio, como também veneno, conforme sua medida), seu derivado pharmakós designa o personagem do feiticeiro, mágico, envenenador, podendo também ser usado para designar a vítima expiatória. A prática sacrificial, conforme afirma o autor, tinha um caráter de purificação, destinada a aplacar a cólera dos deuses, quando essa se manifestava sob a forma de catástrofe (peste, fome etc.). O sacrifício constituía então um pharmakon, um "remédio para os sofrimentos da cidade" (p. 79-80).

O julgamento, seguido da condenação de Sócrates, constitui um exemplo ilustrativo das práticas sacrificiais na antiga Grécia. O logos socrático foi considerado como um pharmakon, veneno insidioso, corruptor da juventude e das leis da cidade. Como pharmakós, Sócrates foi condenado à morte mediante a ingestão do pharmakon (cicuta). Conforme afirma Derrida (2005), o pharmakós constituía-se como um cerimonial que acontecia na fronteira que demarcava os limites dentro/fora. Traz consigo, portanto, a mesma ambivalência semântica que o termo sacer, tornando-se encarregado de representar a figura da alteridade maléfica, que ameaça contagiar o grupo.

 

Aviltamento das práticas sacrificiais na atualidade

Em seu livro Violência e o sagrado, Girard (1998) afirma que a emergência do sistema judiciário atrofiou o sacrifício, pois "sua razão de ser desaparece" (p. 31). Tal razão de ser é, segundo o autor, conter a violência originária, fenômeno universal presente em qualquer ordenamento coletivo. Caso a violência não receba expiação, ela tende a se repetir sob a forma de vendetta, vingança infinita. Dessa forma, Girard (1998) destaca o papel crucial do sacrifício, nas sociedades primitivas, diferentemente das sociedades contemporâneas, que o subestimam: "É nas sociedades desprovidas de sistema judiciário, e por isso mesmo ameaçadas pela vingança, que o sacrifício e o rito em geral devem desempenhar um papel essencial" (p. 31). Nas sociedades contemporâneas, a função sacrificial fica aos encargos do sistema judiciário, que constitui, por si mesmo, os rituais expiatórios segundo a liturgia do texto jurídico. A vítima sacrificial cede espaço ao culpado, que deve responder individualmente pelo ato criminoso.

Ao contrário do que afirma Girard (1998), no entanto, as práticas sacrificiais não se extinguem com a emergência do ordenamento jurídico e o surgimento da figura do culpado. Nessas sociedades secularizadas, nas quais a religião cede lugar ao Estado como instância reguladora, essas práticas continuam, ainda que desconectadas dos rituais e do discurso religioso.

A questão do estatuto das práticas sacrificiais, em sociedades nas quais o laço religioso e genealógico perdeu espaço para o discurso da ciência, não é ignorada na psicanálise. Ambertín, por exemplo, afirma que as práticas sacrificiais da atualidade, em seu aviltamento, recolhem apenas resíduos da tradição, tornando-se ineficazes no sentido de instituir o laço comunitário. É possível pensar, a partir disso, que o caráter insacrificável do homo sacer, tal como apontado por Agamben (2002), pode ser situado como correlato da modificação que a economia do sacrifício sofreu nas sociedades ocidentais contemporâneas:

À medida que as sociedades foram se tornando mais complexas, o sacrifício foi perdendo o nexo com a instituição religiosa e passou a ser uma oferenda, um simples autodespojo em benefício de alguma divindade criada pelos homens segundo o modelo de pai ideal e o seu avesso, o pai maligno (Ambertín, 2009, p. 51).

Sendo assim, no regime discursivo atual há modificação da economia do sacrifício, que se faz acompanhar das novas formas de segregação. A psicanálise ensina que há uma estrita relação entre o declínio simbólico da autoridade paterna e o caráter selvagem e dessacralizado das práticas sacrificiais contemporâneas.

Laurent, em um seminário conjunto com Miller (2005), comenta que as sociedades utilitaristas contemporâneas "reservam uma zona obscura de convite ao sacrifício, que permanece fora da praça pública" (p. 147, tradução nossa)6. Daí as duas caras de Deus, que permite a distinção entre o Deus-razão dos filósofos, que se apresenta em praça pública, e o deus obscuro, que em seu gozo desmesurado se situa fora da razão e fora do laço social. E isso não surpreende, já que no regime discursivo que marca a contemporaneidade a instância dos ideais e os valores tradicionais, que serviam como significantes mestres para a civilização, cedem espaço para os imperativos de gozo que desconectam o sujeito do laço social.

Ao falar sobre a uniformização imposta pelas sociedades contemporâneas, Soler (1998) comenta que fenômenos tais como a segregação, a exclusão e o ostracismo podem ser entendidos como processos sacrificiais, que permitem aos sujeitos jogar sua partida com o Outro, apostando a vida. Segundo a autora, "quanto mais uma civilização elide o Outro barrado, mais empurra os sujeitos para a via do sacrifício" (p. 62, tradução nossa)7. Na medida em que esse Outro se torna pleno e consistente, o fascínio pelo sacrifício arrasta os sujeitos para a dimensão mortífera do gozo.

Referindo-se às sociedades de consumo contemporâneas, Legendre (2008a) assegura que em tais sociedades não se fala de sacrifícios e sacrificados, fala-se de problemas sociais, indicando que, para essas sociedades, "o sacrifício humano de massas adquiriu o estatuto de uma simples prática gestionária" (p. 24)8. Dessa forma, a segregação e o que ele chama de "sacrifícios ultramodernos" (p. 28) são escamoteados, camuflados sob a ideia da inevitabilidade de efeitos colaterais inerentes ao progresso social.

Legendre (2008b) também afirma que aqueles que advogam a ideia de uma perda de referências se equivocam, uma vez que os referentes dissolvidos cedem espaço a outros, ao custo de "sacrifícios humanos desmesurados" (p. 60). Por essa via, as sociedades de consumo, (des)governadas pelo discurso do capitalista, sabotam a juventude em seu direito em receber um limite, recriando em seus mecanismos homogeneizadores novas formas de intolerância, cada vez mais selvagens: "Em nossas sociedades industrialistas são necessários os holocaustos ou exploração de grupos, às vezes reduzidos ao estado de sub-humanidade, para que a questão sacrificial volte a aflorar no discurso" (Legendre, 1996, p. 61)9.

A partir da psicanálise é possível reconhecer essa função do sacrifício ligada ao objeto a, que assume formas variadas conforme o caso considerado. Despido de suas vestimentas agalmáticas e dos rituais que deveriam ordenar sua inscrição no laço social, ele ressurge de forma cada vez mais feroz, seja na libra de carne oferecida como saldo da impagável dívida simbólica, seja na eleição de um grupo nomeado para o sacrifício. Em ambos os casos, o objeto a se configura como a-bjeto, rebotalho do gozo, excedente das operações de nomeação, expiação e purificação, constituindo o cerne da dimensão mascarada pela crítica da história, referida anteriormente.

O percurso realizado leva à reflexão de que o horror diante da diferença, do diferente, e o empuxo à homogeneização constituem-se como elementos causais das práticas sacrificiais contemporâneas, dessacralizadas, em seu violento ressurgimento. Tais práticas, a exemplo da segregação, caracterizam-se pela intolerância, intransigência e selvageria, que brotam no cerne de um ordenamento político pautado pela razão.

Em sociedades globalizadas e homogeneizadas, constata-se que a diferença é escamoteada. Em seu lugar surge o que passou a ser chamado de pequena diferença, já que as diferenças existem. Mas elas nada mais são do que o traço que comanda os processos de segregação, celebrando o gozo da identificação e da constituição do Outro sem falhas. E o que está em jogo, nas práticas sacrificiais, é justamente conferir consistência a esse Outro, mediante o apagamento da barra que o descompleta.

 

Referências 

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 Endereço para correspondência:
Alexandre Dutra Gomes da Cruz
alexgomescruz@terra.com.br
Ilka Franco Ferrari
francoferrari@terra.com.br

Submetido em: 24/03/2013
Revisto em: 13/07/2013
Aceito em: 15/07/2013

 

 

1 No original: "Evaporación del padre".
2 No original: "Creemos que el universalismo, la comunicación de nuestra civilización homogeneiza las relaciones entre los hombres. Pienso, por el contrario, que aquello que caracteriza nuestro siglo, y no podemos no percibirlo, es una segregación ramificada, reforzada, coincidente en todos los niveles que no hace más que multiplicar las barreras, dando cuenta de la esterilidad asombrosa de todo lo que puede ocurrir em un campo".
3 No original: "En Colombia un desechable es un mártir, un Cristo moderno. Toda la sociedad se cree con derecho a abusar de él, todo el mundo lo menosprecia".
4 No original: "The predominance assigned inancient ritual to animal sacrifice corresponds to the predominance of the type of sacrifice which is not a mere payment of tribute but an act of social fellowship between the deity and his worshippers".
5 No original: "In short, while the zèbah turns on an act of communion between the deity and his worshippers, the minha (as its name denotes) is simply a tribute".
6 No original: "Reservan toda uma zona oscura de invitación al sacrifício que queda fuera de la plaza pública".
7 No original: "Mientras más uma civilización elide al Outro tachado, más empujan los sujetos en la vía del sacrifício".
8 No original: "El sacrificio humano de masas adquirió estatus de simple práctica gestionária.
9 No original: "En nuestras sociedades industrialistas son necesarios los holocaustos o la explotación de grupos reducidos a veces al estado de subhumanidad para que la cuestión sacrificial vuelva a aflorar en el discurso".