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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.65 no.3 Rio de Janeiro  2013

 

Por uma Psicologia Social não perspectivista: contribuições de Annemarie Mol*

 

For a nonperspectivist Social Psychology : contributions of Annemarie Mol

 

Por una Psicología Social no perspectivista: contribuciones de Annemarie Mol

 

 

Mariana Prioli CordeiroI; Mary Jane Paris SpinkII

IPós-doutoranda (Bolsista CNPq). Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo. Brasil
IIDocente. Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo. São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, buscamos discutir as contribuições da obra da filósofa holandesa Annemarie Mol para a Psicologia Social. Para isso, apresentamos algumas de suas reflexões centrais, como a abordagem não perspectivista da realidade e as noções de multiplicidade e política ontológica. Ao propor tal discussão, procuramos chamar a atenção para a possibilidade de ordenar e de coordenar a realidade de diferentes modos, bem como de reconhecer que um fenômeno é formado por múltiplos atores. Pretendemos, portanto, defender uma Psicologia Social que se aproxime das propostas da teoria ator-rede, ao buscar conexões complexas, que articulem humanos e não humanos e que façam existir múltiplas realidades. Uma Psicologia Social que fuja do realismo que caracteriza grande parte das pesquisas científicas e que não pressuponha, portanto, uma realidade anterior e independente de nossas ações, mas que tome como ponto de partida uma realidade que se torna real por meio de nossas práticas.

Palavras-chave: Psicologia Social; Multiplicidade; Política Ontológica; Teoria ator-rede.


ABSTRACT

In this article,we discuss the contributions of the work of the Dutch philosopher Annemarie Mol to Social Psychology. To do so, we present some of her main reflections, such as the nonperspectivist approach of reality and the concepts of multiplicity and ontological politics. In doing so, we aimed to call attention to the possibility of ordering and coordinating the reality in different ways and of recognizing that a phenomenon is formed by multiple actors. Therefore, we aimed to stand for a Social Psychology that follows the actor-network theory approach, as it searches complex relations, which articulate humans and nonhumans and perform multiple realities. A Social Psychology that escapes from the realism that characterizes most scientific investigations and that doesn´t presuppose a reality that is previous and independent of our actions. A Social Psychology that takes as a starting point a reality that becomes real through our practices.

Key words: Social Psychology; Multiplicity; Ontological politics; Actor-network theory.


RESUMEN

En este texto, buscamos discutir las contribuciones de la obra de Annemarie Mol a la Psicología Social. Para hacerlo, presentamos algunas de sus reflexiones centrales, tales como el abordaje no perspectivista de la realidad y las nociones de multiplicidad y política ontológica. Al proponer esta discusión, queremos llamar la atención para la posibilidad de ordenar y coordinar la realidad de diferentes maneras, así como también reconocer que un fenómeno está formado por múltiples y diversos actores. Buscamos, por lo tanto, defender una Psicología Social que se acerca de la Teoría del Actor-Red, al buscar conexiones complejas, que articulen humanos a no humanos y que performen diversas realidades. Una Psicología Social que huya del realismo que caracteriza gran parte de las investigaciones científicas y, por lo tanto, que no presuponga una realidad anterior e independiente de nuestras acciones, sino una realidad que se vuelva real por intermedio de nuestras prácticas.

Palabras clave: Psicología Social; Multiplicidad; Política ontológica; Teoría del actor-red.


 

 

Os métodos de pesquisa que aprendemos em mais de um século de Ciências Sociais tendem a sustentar que o mundo pode ser adequadamente compreendido como um conjunto de processos específicos, determinados e mais ou menos identificáveis, cabendo às Ciências Sociais descobrir o que há de mais importante nesses processos. Mas, para John Law (2008), a tarefa das Ciências Sociais - e aqui poderíamos incluir a Psicologia Social - é outra: é imaginar métodos que não mais procurem o definido, o repetível, o mais ou menos estável. Influenciado por reflexões ensejadas por autores da filosofia da ciência, do romantismo filosófico e do pós-estruturalismo, Law sugere que pensemos o mundo como um fluxo - ao mesmo tempo amorfo e generativo - de forças e relações. Ou seja, que não o pensemos como uma estrutura passível de ser mapeada por meio dos gráficos e diagramas das Ciências Sociais, mas como um turbilhão, repleto de correntes, redemoinhos, vórtices, mudanças imprevisíveis, tempestades e momentos de calmaria.

Mas quais seriam as implicações dessa concepção de mundo para a Psicologia Social? Dito de outro modo: é possível pensarmos em uma Psicologia Social que não parta de noções e fenômenos estáveis e predefinidos, mas que busque compreender turbilhões de fenômenos psicossociais? E mais: dizer que os fenômenos que estudamos são indefinidos e apenas parcialmente estáveis significa dizer que eles são múltiplos? Essas são as questões que guiarão a discussão que propomos neste trabalho. Para tentar respondê-las, recorreremos às reflexões de autores e autoras da teoria ator-rede (TAR), sobretudo ao livro The body multiple: ontology in medical practices, de autoria da filósofa/etnógrafa holandesa Annemarie Mol (2002). Teoria ator-rede é uma etiqueta utilizada para se referir a um conjunto de princípios metodológicos, epistemológicos e trabalhos de campo que há mais de duas décadas vêm questionando o pensamento social tradicional. Também conhecida como antropologia simétrica, sociologia das associações e sociologia da tradução, essa teoria surgiu a partir de discussões ensejadas no campo dos estudos da ciência e tecnologia (Tirado-Serrano & Domènech-Argemí, 2005).

Em sua obra, Mol (2002) discorre sobre as várias arterioscleroses que fazem parte do dia a dia de um hospital, argumentando que essa doença não é um objeto dado de antemão, mas é algo que depende das mais diversas práticas empregadas dentro do ambiente hospitalar. Ao fazer isso, a autora torna complexa a realidade estudada, trazendo novos atores à cena, desestabilizando certezas, transformando momentos de calmaria em imprevisíveis tempestades. Neste ensaio, retomaremos alguns dos pontos centrais da obra de Mol para, em seguida, discutirmos suas possíveis contribuições para a Psicologia Social. Comecemos pela proposta de uma postura não perspectivista da realidade.

 

Não perspectivismo

Geralmente, quando pensamos no objeto de estudo de uma ciência, logo imaginamos algo singular e definido. Dizemos, por exemplo, que a Psicologia Social tem como foco a relação indivíduo-sociedade (Günther, 2011; Lane, 2006; Resolução 005/2003), como se, de fato, essa relação pudesse servir de base para os mais diversos estudos psicossociais. Falamos de processos de influência grupal, de obediência à autoridade, de conscientização, de mobilização social, de formação identitária etc., como se todos esses fenômenos fossem aspectos ou perspectivas de um mesmo objeto, de uma mesma relação indivíduo-sociedade. No entanto, para entendermos um objeto de estudo como um fenômeno complexo, não basta considerarmos que ele pode ser visto de diferentes ângulos e perspectivas. Afinal, a relação indivíduo-sociedade que um psicólogo social cognitivista estuda não é a mesma relação abordada por uma pesquisadora que segue a linha sócio-histórica. Se eles partem de noções de cultura e de ser humano distintas, se usam teorias e metodologias conflitantes, se possuem objetivos e posicionamentos éticos diversos, como poderiam se referir a um mesmo objeto? Cada um desses pesquisadores constrói, faz existir (enact) uma relação indivíduo-sociedade diferente.

Segundo Mol (1999, 2002), o perspectivismo teve o mérito de fugir da versão monopolista de verdade, uma vez que admite que diferentes saberes (verdadeiros) podem ser construídos acerca de um mesmo objeto. Em suas palavras, o perspectivismo "multiplicou os olhares dos observadores. Fez com que cada par de olhos olhando através de sua própria perspectiva se tornasse uma alternativa a outros olhos." (p. 76, tradução nossa1). No entanto, não multiplicou a realidade. O que fez foi criar uma versão pluralista do mundo, admitindo a existência de diferentes perspectivas - que se excluem mutuamente ou que convivem lado a lado - , sem, contudo, multiplicar o objeto. Este, por sua vez, permanece olhado "como se estivesse no meio de um círculo. Uma multidão de rostos silenciosos agrupados em sua volta. Eles parecem conhecer o objeto por meio somente de seus olhos. Talvez tenham ouvidos que ouvem. Mas ninguém nunca toca o objeto." (Mol, 2002, p. 12, tradução nossa2).

Para fugir do perspectivismo, Mol (2002) afirma que devemos colocar em primeiro plano as materialidades, eventos e práticas que fazem um objeto existir. Em seu estudo sobre o diagnóstico e tratamento de arteriosclerose em um hospital holandês, que ela chama de "Hospital Z" (p. 1), a autora faz isso por meio de diferentes métodos: acompanha consultas e exames clínicos, conversa com médicos e técnicos, lê textos acadêmicos, participa de conferências sobre o tema, entrevista pacientes etc. Ela percorre diferentes setores do hospital, pois uma doença como a arteriosclerose não envolve uma única pessoa, em um só lugar. Afinal, para fazer um diagnóstico, não basta haver um médico, é preciso que haja também um paciente disposto a colaborar com o médico, dizer onde dói, quando dói. É preciso fazer exame clínico, medir pulsação, temperatura, oxigenação... Ou seja, diversas pessoas e coisas possibilitam que eventos ocorram: palavras, papéis, salas, sistemas de saúde etc. Há uma lista infindável de elementos heterogêneos que o pesquisador, dependendo de seus objetivos, pode destacar ou deixar em segundo plano. Um exemplo da importância dessa rede de materiais heterogêneos é dado por Mol (2002) quando ela descreve a fala de um patologista residente ao analisar uma perna amputada:

"Você vê, aquilo é uma veia, isso aqui, não é exatamente um círculo, mas quase"... Ele moveu o ponteiro para o centro do círculo. "Aquilo é o lúmen. Há células sanguíneas dentro dele, você vê. Isso só acontece quando um lúmen é pequeno. Caso contrário, elas vão embora ao serem lavadas durante a preparação. E aqui, em volta do lúmen, esta primeira camada de células, isto é o íntima. Está grosso. Oh, wow, não está grosso?... Veja. Agora é sua arteriosclerose. Aqui está. Um espessamento do íntima. Isso é realmente o que ela é". E então ele complementa, após uma pequena pausa: "sob um microscópio". (p. 30, tradução nossa3).

Ao dizer "sob um microscópio", o patologista residente indica que o espessamento do íntima não existe por si só, ele existe somente através de um microscópio. Esse pequeno complemento - provavelmente não intencional - poderia facilmente ser esquecido por outro pesquisador que estivesse investigando a doença. Mas, na proposta de Mol, ele é fundamental: sua estratégia metodológica depende "da arte de nunca esquecer-se de microscópios. De persistentemente considerar sua relevância e sempre incluí-los em histórias sobre fisicalidades" (p. 31, tradução nossa4). Assim, as histórias que Mol conta em seu livro são histórias sobre pessoas, instrumentos, instituições, documentos, pacientes, cirurgias, artérias entupidas. São histórias sobre diagnósticos e tratamentos da arteriosclerose. São histórias sobre práticas. Ela faz, portanto, uma praxiologia.

Essa forma de fazer pesquisa vem ganhando cada vez mais espaço no campo psicossocial brasileiro. Hoje, temos diversos estudos que falam das práticas que fazem existir os mais diversos objetos - como, por exemplo, a deficiência visual (Moraes, 2010; Moraes & Arendt, 2010; Moraes & Monteiro, 2010), a pobreza (Curado, 2012), a própria Psicologia (Cordeiro, 2012; Arendt, 2010; Ferreira, 2011; Spink, 2010a), os brinquedos (Melo, 2007), a violência (Bonamigo, 2008), o trabalho de agentes comunitárias (Freire, 2010), a dança contemporânea (Galindo, Milioli, & Mello, 2013), entre outros. Além de enfocar práticas que criam realidades, esses trabalhos têm em comum o fato de considerar que as materialidades também têm agência; ou seja, de considerar que, assim como o microscópio do laboratório de patologia que Mol (2002) visitou, os não humanos relacionados aos nossos objetos de pesquisa produzem diferenças, desvios, transformações.

Talvez a Psicologia desses pesquisadores não seja social, no sentido mais usual do termo, já que não fala somente de pessoas, grupos ou sociedades. Mas ela é social em um sentido mais amplo, o de associações. Em outras palavras, nela ser social não significa analisar, descrever ou intervir em um domínio da realidade específico, mas falar das associações, das mediações, dos vínculos que fazem nossos objetos de pesquisa existirem. Nessa Psicologia Social, o que nos mantém unidos é o que está além de nossa carne. Mesclado com o linguístico, com o político, com o ideológico... Em outras palavras, [nela] o social não é o que nos mantém juntos, mas o que é mantido. Além disso, se algo caracteriza nossos marcos de interação é o fato de eles não constituírem algo claramente demarcado e definido, de frequentemente serem redes convulsas repletas de diversos dados, lugares, artefatos, símbolos e pessoas. São, definitivamente, multiplicidades absolutas. Sendo assim,

[...] o social é um assunto performativo. É impossível estabelecer a priori propriedades que sejam peculiares à vida em sociedade, ainda que na prática se faça isso. Os elementos que compõem o social são muito variados, e o laço social tem propriedades extrassociais e heterogêneas; e são os atores que executam a sociedade que definem in situ o que é social e o que não é (Tirado, 2011, p. 4, tradução nossa5).

 

A realidade é múltipla

Diante do exposto, podemos afirmar que o social, a arteriosclerose, a pobreza, a deficiência visual e a própria Psicologia Social são construções, são efeitos de práticas que envolvem uma série de elementos heterogêneos. No entanto, dizer que objetos como esses existem por meio de práticas não significa dizer que eles sejam passivos - afinal, eles agem e, ao mesmo tempo, são alvos da ação dos outros. Além disso, pensar que diferentes práticas fazem existir (enact) diferentes versões de objetos implica admitir que eles também agem de diferentes maneiras. E, uma vez mais, eles agem, mas não agem sozinhos: objetos só agem se houver outras entidades (instituições, pessoas, instrumentos etc.) colaborando com eles (Law & Mol, 2008).

Nessa maneira de pensar, os objetos não são simplesmente construções históricas, mas possuem, também, um presente complexo - um presente no qual suas identidades são frágeis e podem variar de um lugar ao outro. Para exemplificar essa complexidade, Mol (2002) afirma que as práticas que fazem a arteriosclerose no consultório clínico e no laboratório de patologia são diferentes. E mais, elas são incompatíveis. No primeiro, o médico sente pulsações, ouve relatos dos pacientes, mede temperatura dos pés... No laboratório, não há pulsação, não há reclamações de dor, nem temperatura para ser medida. O que há é um pé com alguns centímetros de perna, cuja artéria deve ser cortada e colocada sob um microscópio. Se o lúmen estiver demasiadamente grosso, se dirá que o paciente de fato tem arteriosclerose. Da mesma forma que o patologista não pode utilizar procedimentos clínicos para fazer o diagnóstico, o clínico não pode simplesmente cortar um pedaço da perna do paciente para ver o que ele tem.

Entretanto, essa incompatibilidade não é resultado de uma dificuldade de traduzir palavras de um departamento para o outro - cirurgiões e patologistas tendem a se entender muito bem. Tampouco é uma questão de olhar a partir de diferentes perspectivas. Cirurgiões sabem olhar através de microscópios, e patologistas aprenderam como conversar com pacientes vivos. A incompatibilidade é uma questão prática: refere-se a pacientes que falam ou a partes do corpo seccionadas; a reclamações de dor ou a estimativas sobre o tamanho das células.

Diferentes práticas fazem, portanto, diferentes arterioscleroses existirem: na clínica, ela é um relato de dor ao caminhar, enquanto que, no laboratório de patologia, é uma artéria entupida. Mas, a despeito dessa diversidade, muitas vezes desconsideramos as práticas envolvidas e tratamos a arteriosclerose como se ela fosse um objeto singular. Se conversarmos com um médico, ele provavelmente dirá que a arteriosclerose é uma doença - que pode ser identificada por meio de diferentes exames (duplex, angioplastia, exame patológico etc.) e ter diferentes formas de tratamento (cirurgia, amputação, caminhadas etc.). Falará de uma doença da qual o paciente padece antes de vir procurá-lo e que, com técnicas e tecnologias adequadas, pode ser corretamente diagnosticada e tratada. Esse médico, provavelmente, tratará a arteriosclerose como se ela tivesse uma realidade em si mesma, como se fosse uma única doença, que está localizada dentro do corpo, mais precisamente nas artérias. Ao fazer isso, ele relaciona um relato de dor com uma artéria entupida, referindo-se a ambos como um objeto comum - o primeiro seria o sintoma que aflora à superfície, e o segundo seria a causa oculta.

No entanto, de acordo com Mol (2002), se não desconsideramos as praticidades e especificidades que fazem a realidade ser tal como é, o quadro muda drasticamente. Se não ficamos "dentro dos confinamentos do corpo, mas [seguimos] por todo o hospital as várias práticas nas quais a arteriosclerose é feita [enacted], a topografia da relação entre patologia e clínica parece ser completamente diferente." (p. 37, tradução nossa6). A patologia deixa de ser vista como aquilo que está por detrás das doenças e passa a ser vista como algo ulterior - afinal, só se sabe que o lúmen da artéria está espesso depois de o médico ter feito o diagnóstico, de a cirurgia ter sido realizada, de um pedaço do corpo do paciente ter sido seccionado e enviado ao departamento de patologia para ser analisado sob um microscópio. Na realidade do hospital, a clínica vem antes, é o começo e o que permite todo o resto.

Algumas vezes, os objetos da patologia e da clínica podem coincidir, como nos casos em que um paciente que reclama de fortes dores ao caminhar é diagnosticado como tendo arteriosclerose, tem a perna amputada e as análises patológicas mostram que o lúmen estava mais espesso do que o normal. Mas, outras vezes, os objetos não coincidem. Pode acontecer, por exemplo, de um paciente não sentir dor alguma e morrer e, após exames post mortem, patologistas descobrirem que todas as suas artérias estavam calcificadas. Neste caso, os objetos da clínica e do laboratório não se sobrepõem e entram em conflito: uma arteriosclerose é severa e poderia ter sido razão para tratamento, enquanto a outra não é grave e ninguém nunca se preocupou com ela. Nas palavras de Mol (2002): "nesses casos, os objetos da patologia e da clínica não podem ser aspectos de uma mesma entidade: eles simplesmente não são a mesma coisa. Eles são objetos diferentes" (p. 46, tradução nossa7).

No entanto, dizer que a arteriosclerose não é um objeto coerente e singular não significa dizer que suas diferentes versões não estejam relacionadas; mas que ela é um objeto fractal, ou seja, que é mais do que uma, ao mesmo tempo em que é menos do que muitas. Em outras palavras, significa dizer que ela não está totalmente fragmentada e que suas várias versões mantêm alguma relação. E, mais, significa dizer que essa singularidade não é dada a priori, mas é o resultado de todo um trabalho de co-ordenação8.

É justamente esse trabalho de co-ordenação que Mol (2002) focaliza em sua obra. Durante boa parte do livro, a autora descreve as práticas que articulam e ordenam as diferentes versões da arteriosclerose. Algumas dessas práticas são, segundo Law (2008), mais perspectivistas, uma vez que buscam reconciliar diferentes arterioscleroses e chegar a uma doença única e estável. Já outras mantêm o compromisso com a singularidade ontológica sem criar objetos singulares. Em suas palavras,

há muitas maneiras de reconciliar diferenças e evitar multiplicidade. Algumas são perspectivistas, e outras não. Juntas, entretanto, elas trabalham para tirar a multiplicidade da pauta... [No entanto,] se nos atentamos às práticas, tendemos a descobrir multiplicidade... Descobrimos multiplicidade, mas não pluralismo. Pois a ausência de singularidade não implica que vivemos em um mundo composto por um número indefinido de corpos, arterioscleroses, departamentos hospitalares ou decisões políticas diferentes e desconectadas. Ela não implica que a realidade está fragmentada. Ao invés disso, implica algo muito mais complexo. Implica que diferentes realidades se sobrepõem e interferem umas com as outras. Suas relações, parcialmente coordenadas, são complexas e bagunçadas [messy]. (p. 61, tradução nossa9).

Entender os modos de co-ordenação das diferentes versões de um objeto tem sido, nos últimos anos, o objetivo principal de algumas pesquisas realizadas por psicólogos sociais brasileiros. Moraes e Arendt (2010), por exemplo, têm se dedicado a estudar "os modos por meio dos quais a deficiência existe e é feita em certos arranjos sociomateriais locais, situados, ou seja... [eles têm se dedicado a] seguir os diferentes modos de ordenamento da deficiência visual" (p. 54). Já Cordeiro (2012) vem discutindo as práticas que fazem com que a Psicologia Social brasileira seja, ao mesmo tempo, mais do que uma e menos do que muitas. Curado (2012), por sua vez, tem pesquisado as várias versões de pobreza nas políticas públicas nacionais.

 

Política ontológica

Esses estudos têm, portanto, em comum o pressuposto de que a ontologia é múltipla. Mas se há várias versões da realidade, poderíamos nos perguntar: qual(is) delas queremos tornar mais real(is) por meio de nossas práticas como psicólogos e psicólogas sociais? E o que está em jogo quando fazemos essas escolhas? Onde e em quais situações podemos escolher? Essas questões têm a ver com o que Annemarie Mol (1998, 1999, 2002, 2006), influenciada pelas reflexões de Michel Foucault, chama de política ontológica. Ou seja, têm a ver com o modo em que o real está implicado no político e vice-versa.

Política ontológica é um termo composto: fala tanto de política quanto de ontologia. A segunda palavra refere-se à definição do que pertence ao real, às condições de possibilidade com as quais vivemos. Assim,

se o termo 'ontologia' é combinado com 'política', isso sugere que as condições de possibilidade não estão dadas. Que a realidade não precede as práticas mundanas por meio das quais nós interagimos com ela; mas é, ao invés disso, modelada no interior destas práticas. Então, o termo política serve para sublinhar esse modo ativo, este processo de modelagem e o fato de que seu caráter é tanto aberto quanto contestado. (Mol, 1999, p. 75, tradução nossa10).

De acordo com Mol (1999), a realidade nunca foi considerada algo totalmente imutável. A tecnologia e a política, por exemplo, sempre trabalharam com a ideia de que o mundo pode ser controlado, dominado, modificado. De que, no futuro, as coisas podem ser diferentes. Mas, ao mesmo tempo, consideravam que os tijolos que constroem a realidade são permanentes e passíveis de serem revelados por meio de investigação científica.

No entanto, nas últimas décadas, as divisões entre presente e futuro, entre o que está consolidado e o que ainda está em processo de formação, entre os tijolos que constroem a realidade e os modos de ajustá-los, passaram a ser duramente criticadas. Diversos autores - tais como Foucault (1978)  , Hacking (1999) e Gergen (1985)  - começaram a afirmar que os elementos que compõem a realidade não são dados a priori, nem são estáveis ou universais; mas são histórica, cultural e materialmente localizados. E mais: se são localizados, são também múltiplos (Mol, 1999).

Como dissemos anteriormente, para falarmos de multiplicidade, é preciso que nossas investigações deixem de analisar objetos a partir de diferentes perspectivas e passem a segui-los nas práticas que os fazem existir (enact). Consequentemente, não faz mais sentido perguntar-nos sobre os modos como as ciências representam. Agora, devemos questionar-nos acerca de como elas intervêm. A ênfase, portanto, muda: "ao invés dos olhos do observador, as mãos do prático tornam-se o foco da teorização." (Mol, 2002, p. 152, tradução nossa11).

O trabalho de Mol (1998, 1999, 2002, 2006) contribui, assim, com um posicionamento filosófico e político que reivindica que o conhecimento não seja mais tratado apenas como um conjunto de afirmações sobre a realidade, mas como uma prática que interfere em outras práticas e que, portanto, participa da realidade. Reivindica, também, que os métodos científicos não sejam mais considerados mecanismos para acessar o real, mas algo que possui efeitos, produz diferenças, constrói realidades e ajuda a criar aquilo que descobre (Law & Urry, 2003).

No entanto, para Law e Urry (2003), dizer que nossas práticas de pesquisa produzem realidades não significa dizer que não existam realidades, que a verdade não possa ser descoberta ou que nossos instrumentos de investigação sejam inerentemente inadequados. Para os autores, essa postura é demasiadamente romântica e cientificista - é romântica, pois implica que nunca podemos conhecer a realidade de forma satisfatória, e é cientificista, pois parte do pressuposto de que há uma verdade última, ainda que ela esteja fora de nosso alcance. Para evitar essa polaridade, sugerem que consideremos que existem realidades, mas que elas não são dadas a priori: elas são produzidas dentro de relações. As teorias e métodos científicos seriam, assim, protocolos de questionamento e investigação que, ao interagirem com outros atores, produziriam realidades. Mas isso não significa que a realidade seja arbitrária: "o argumento não é nem relativista nem realista. Mas que o real é inteiramente produzido de formas não arbitrárias, em conjuntos densos e extensos de relações" (p. 5, tradução nossa12). Desse modo, a questão que agora precisamos nos colocar não é mais: como podemos descobrir ou iluminar o real?; mas sim: qual realidade queremos tornar mais real por meio de nossas práticas de pesquisa?.

Isto significa que a realidade... não mais pode exercer o papel que a filosofia lhe atribuía há alguns séculos, o papel de algo para entrar em contato. O papel de algo para compreender. Para se agarrar. Para ter certeza sobre. A questão filosófica crucial concernente à realidade era: como podemos ter certeza? Agora, depois do giro para a prática, nos confrontamos com outra questão: como viver com a dúvida?... Se a questão o que fazer não mais depende do que é real, então, o que mais pode estar relacionado com isto? (Mol, 2002, p. 165, tradução nossa13).

Mol (2002) sugere que, se não mais podemos encontrar segurança ao perguntar "esse conhecimento é verdadeiro para esse objeto?" (p. 165, tradução nossa14), passa a ser mais relevante perguntar "esta prática é boa para os atores (humanos e não humanos) nela envolvidos?" (p. 165, tradução nossa15). Assim,

ao invés de verdade, benefício [goodness] passa a estar no centro do palco Ou melhor, não benefício, como se existisse apenas uma versão dele, mas benefícios [goodnesses]. Uma vez que aceitamos que a realidade é múltipla e sempre nos deixa em dúvida, torna-se ainda mais urgente dedicar-se aos modos e modalidades de buscar, negligenciar, celebrar, lutar e, também, de viver o bem neste, naquele ou em outro de seus muitos aspectos (p. 165-166, tradução nossa16).

Em certa medida, fazer o bem é o télos de muitos psicólogos e psicólogas sociais - tanto que diversos textos que apresentam a disciplina (tal como em Strey et al., 2001) destacam a importância de esses(as) profissionais se comprometerem com a transformação da realidade da população com a qual trabalham. Mas que benefícios essa transformação social deve promover? Quem define quais mudanças são desejáveis e como elas devem ser implementadas?

Ao analisar os serviços de saúde holandeses, Mol (1999, 2002, 2006) observa que, cada vez mais, cresce o apelo para que pacientes sejam os principais responsáveis por essa decisão. Podemos observar movimento similar na Psicologia brasileira - sobretudo nas vertentes sociais e/ou comunitárias. Afinal, diversos(as) autores(as) - como, por exemplo, Montero (2008); Gonçalves e Portugal (2012); P. Guareschi (2001); Rasera e Issa (2007); e Freitas (1998) - argumentam que os objetivos e métodos de intervenção psicológica não devem mais ser definidos apenas pelos(as) profissionais, mas devem ser pensados, discutidos e formulados também por aqueles(as) que dela se beneficiarão.

De acordo com Mol (2002), há duas versões diferentes desse movimento ou, em suas palavras, dessa política-do-quem (politics-of-who): uma segue um modelo mercadológico, e a outra, um modelo cívico. Na primeira, os pacientes são tratados como clientes que devem escolher um produto dentre uma série de opções que lhes são ofertadas. Na segunda, são tratados como cidadãos que merecem ter jurisdição sobre as intervenções que são feitas em seus corpos e vidas. No entanto, a despeito de sustentar que as decisões têm de ser baseadas na especificidade de cada caso - e que o paciente deve ser capaz de posicionar-se civilmente a favor de um tratamento ou de outro - , a metáfora cívica "não necessariamente defende a escolha individual. Afinal, a intervenção em uma vida também influencia outras vidas... Intervenções são entendidas como um modo de organizar não somente a vida individual, mas a de toda a polis, a do corpo político." (Mol, 2002, pp. 167 -168, tradução nossa17).

A despeito de trazer questionamentos importantes, essa política-do-quem apresenta alguns problemas. O primeiro deles é que, apesar de proteger o consumidor ou o cidadão contra os malefícios do capitalismo, contra o poder do Estado etc., ela parte do pressuposto de que seus desejos são claros e predeterminados. Assim, cabe ao analista - médico, psicólogo, assistente social etc. - assumir o papel de advogado e dar voz aos desejos silenciados de pacientes ou membros comunitários.

Mas a posição de advogado não é a única possibilidade. E se o analista assumir a posição do paciente? Provavelmente, outras questões tornar-se-iam importantes. Por exemplo, "como podemos ganhar o direito de decidir?" poderia ser substituída pela questão no mínimo tão urgente "o que deveria ser feito?" O que pode ser bom fazer? O que ser bom pode significar aqui e agora, neste caso e no outro? O problema, então, é que, ao tentar dar voz "ao paciente", a política-do-quem permanece em silêncio a respeito do que um paciente poderia falar no momento crucial. (Mol, 2002, p. 169, tradução nossa18).

Um segundo aspecto problemático da política-do-quem é que, segundo Mol (2002), ela tende a isolar os momentos em que escolhas são feitas, desconsiderando, assim, uma série de histórias que contribuíram para a constituição do problema. Quando, por exemplo, um médico diz a um paciente qual é a sua patologia e lhe apresenta as vantagens e desvantagens de uma cirurgia, ele provavelmente deixa de abordar uma série de fatores que também influem na decisão de realizar ou não a operação, tais como a possibilidade de terapias alternativas, o custo para os cofres públicos de cada tipo de tratamento, o fato de que, para muitos idosos, sentir dor ao caminhar faz parte do processo de envelhecimento etc.

Um terceiro problema da política-do-quem é que, apesar de ter sido pensada para diminuir o poder de profissionais e dar aos clientes e cidadãos a possibilidade de decidirem sobre os aspectos relevantes de suas vidas, na prática, ela tem dificuldades de fugir do profissionalismo. Afinal, são os médicos, psicólogos e assistentes sociais que oferecem os fatos. São eles que fazem diagnósticos e apresentam soluções. E, por mais que busquem parecer neutros, a maneira em que apresentam os fatos sempre fará diferença no modo em que eles serão avaliados. Ao problematizar a política-do-quem, Mol (2002) não propõe que profissionais deveriam voltar a ter o poder de decidir acerca das intervenções que fazem. Tampouco diz que as decisões deveriam ser tomadas unicamente por leigos. Mas sugere que paremos de mudar a fronteira entre os domínios do profissional e do leigo e passemos a buscar novas formas de governar esses territórios conjuntamente.

De acordo com a autora, no dia-a-dia do hospital, perguntas sobre quem decide frequentemente são ofuscadas por questões sobre o que fazer. Em outras palavras, políticas-do-quem são ofuscadas por políticas-do-que (politics-of-what). Apesar de a Medicina ter sempre considerado a dimensão normativa envolvida na questão o que fazer?, "sua autorreflexão não estava direcionada aos seus objetivos centrais: adiar a morte e melhorar a saúde" (Mol, 2002, p. 173, tradução nossa19). Se, por exemplo, um tratamento quimioterápico aumentasse em seis meses a expectativa de vida de um paciente, o benefício (goodness) de sua prescrição seria indiscutível. Ou, ainda, se sabíamos que fumar é prejudicial à saúde, seria nosso dever lembrar a população de seus malefícios imprimindo imagens assustadoras em pacotes de cigarro.

Mas, hoje, muitos pacientes e profissionais começam a pensar que os objetivos centrais da Medicina talvez não sejam tão claros como pareciam ser. Que aumentar a expectativa de vida e promover saúde talvez não seja a única forma de fazer o bem. Afinal, viver seis meses a mais, entrando e saindo do hospital, sentindo fortes dores e vendo seu corpo desintegrar-se aos poucos, pode causar mais sofrimento que alívio (Mol, 2002). Ou, para um fumante, o consumo de tabaco pode representar um prazer, uma transgressão, uma forma de afirmação pessoal, uma estratégia para ser aceito pelo grupo (Spink, 2010b). Mesmo sabendo dos males que o tabaco pode causar à saúde, muitos fumantes reivindicam o direito e fumar, de poder escolher o que fazer com seus corpos. Para eles, o bem não é necessariamente um pulmão mais puro, ele pode ser também um momento de relaxamento, a possibilidade de encontrar os colegas de trabalho no fumódromo, uma sensação de segurança...

Para Mol (2002), deixar de avaliar a ação médica somente a partir de parâmetros físicos e começar a levar em conta o impacto do tratamento na qualidade de vida das pessoas foi um importante passo em direção a uma política-do-que, mas ainda há um longo caminho pela frente. É preciso, por exemplo, mudar o modo em que são estruturados muitos estudos quantitativistas sobre qualidade de vida. Afinal, muitos deles não consideram que essa é uma noção contestável e, consequentemente, política. Eles registram opiniões individuais, atribuem diferentes pesos a elas e as usam como base para sofisticados cálculos estatísticos. Fazem, portanto, com que qualidade se torne quantidade; com que valores se tornem fatos - fatos sociais. Apagam, assim, qualquer controvérsia sobre o que é viver bem. Além disso, é preciso que esses estudos não mais busquem identificar as diferenças entre médicos e pacientes, mas busquem explorar as diferenças entre os vários modos de fazer existir (enact) uma doença específica. Engajar-se em um política-do-que implica, assim, assumir que diferentes práticas envolvem diferentes ontologias e diferentes formas de fazer o bem.

Como a ontologia, o bem é inevitavelmente múltiplo: há mais de um dele. Por essa razão, para uma política-do-que, o termo política é, de fato, apropriado. Por muito tempo, e em muitos lugares, a ciência mantinha (ou continua a manter) a promessa de fechamento por meio da descoberta de fatos. Na ética, a promessa de fechamento, ou ao menos de consenso temporário, por meio da racionalização é amplamente compartilhada. Na tentativa de romper com essas promessas, pode ser útil chamar "o que fazer?" de uma questão política. O termo política ressoa abertura, indeterminação. Ele ajuda a sublinhar que a questão "o que fazer" não pode ser fechada por fatos nem por argumentos. Que ela sempre será permeada de tensões - ou dúvidas. Em uma cosmologia política, "o que fazer" não é algo dado, mas precisa ser estabelecido. Fazer o bem não é resultado de descobertas, mas é uma questão de, de fato, fazer. (Mol, 2002, p. 177, tradução nossa20).

Dizer que o bem é múltiplo sugere que há (ou deveria haver) a possibilidade de escolher entre suas diferentes versões. No entanto, para Mol (1999), muitas condições de possibilidades não estão, de modo algum, estruturadas como resultados de decisões. Ou seja, muitas vezes argumentamos a favor de uma determinada versão da realidade usando justificativas que fazem crer que nosso posicionamento não se baseia em decisões, mas em fatos. Dizemos, por exemplo, que a Psicologia Social é a subárea da Psicologia que busca a transformação social, desconsiderando que esse não é o papel natural, inevitável, único, dessa área do conhecimento, mas sim o resultado de uma série de negociações, interesses, acontecimentos históricos etc. Entretanto, para a autora, fazer política ontológica não é meramente explicitar as opções.

Precisamos investigar melhor as implicações intelectuais e práticas disto. O que é viver as coisas como opções. Quais são os benefícios e os malefícios desta forma de vida. E quais podem ser os seus limites práticos. Porque pode acontecer de os argumentos que são mobilizados na tomada de decisão mudarem as opções "reais" para outros lugares, e depois, de novo, para locais cada vez mais distantes. De não haver um último recurso, mas "opções" por todo lado. (Mol, 1999, p. 8021).

Assim, não basta dizer que, aqui, a Psicologia Social estuda a relação indivíduo-sociedade; ali, ela visa propor ações no âmbito social; acolá, produz conhecimento científico; e que cabe a nós elegermos uma dessas versões - isso apenas faz com que as opções pareçam sempre estar em lados opostos. O que está em jogo na política ontológica é o reconhecimento de que nossas escolhas possuem efeito de realidade, ou seja, que elas fazem diferença no modo em que objetos são tornados reais (enacted).

Além de fazer com que as opções pareçam estar sempre distantes, outro efeito indesejável da concepção de política como eleição refere-se ao fato de o efeito de realidade de nossas práticas não se restringir a um único objeto. Uma psicóloga social, por exemplo, não faz existir somente a Psicologia Social, mas interfere, também, em várias outras realidades relacionadas a essa área do conhecimento. Se ela busca transformação social, possivelmente suas práticas envolvam comunidades carentes, movimentos sociais, líderes comunitários, livros sobre o compromisso político da Psicologia, políticas públicas, diários de campo etc. Podemos, portanto, avaliar um determinado objeto alinhando argumentos sobre seus benefícios e malefícios, mas se optamos por considerar também os argumentos acerca de objetos relacionados, a análise torna-se demasiadamente complexa.

De fato, este contrabalanceamento nunca chegará a um termo estável, pois há elementos demais. O que implica que é pouco provável que a política ontológica estabilize, uma vez concluídas as descrições que dela sejam feitas - pois elas jamais serão concluídas. (Mol, 1999, p. 83, tradução nossa22).

Além disso, muitas vezes realidades diferentes incluem-se mutuamente. A Psicologia Social acadêmica, por exemplo, frequentemente inclui aquela que ocorre nas comunidades, e vice-versa. As práticas que fazem a primeira envolvem escrever artigos acadêmicos, produzir relatórios, ministrar aulas etc.; enquanto que a segunda é feita quando o profissional vai a campo, conversa com os membros da comunidade, identifica demandas, propõe estratégias de enfrentamento... São, portanto, Psicologias Sociais distintas, mas que estão intimamente relacionadas: muitos dos textos acadêmicos se propõem justamente a refletir sobre experiências em comunidades, ao passo que, na maioria das vezes, a intervenção está fortemente embasada em um referencial teórico-metodológico. Mas, se admitimos que essas duas realidades estão tão relacionadas que chegam a incluir-se mutuamente, como pensar a possibilidade de escolha? Se opto por fazer Psicologia Social em uma comunidade, minhas práticas não estarão fazendo também uma versão acadêmica da Psicologia Social?

Para Mol (1999), talvez escolha não seja a melhor palavra para se referir ao que políticas ontológicas fazem. Afinal, admitir que a realidade é múltipla (e não plural) implica assumir que, a despeito de haver tensões entre diferentes psicologias sociais, elas

não estão simplesmente em oposição umas em relação às outras, ou no exterior umas das outras. Cada uma pode suceder a outra, aparecer em vez da outra e - será talvez a imagem mais surpreendente - incluir a outra. Isto significa que o que é "outro" também está dentro. As realidades alternativas não coexistem simplesmente lado a lado, mas também se encontram dentro umas das outras. Mas esta é uma situação que não se encaixa facilmente em nossas noções tradicionais de política. O que significa que novas concepções de política precisam ser construídas. Mas quais? (Mol, 1999, p. 85, tradução nossa23).

Mol (1999, 2002) não responde a essa pergunta, ela simplesmente problematiza a concepção de política que fala em escolhas e, sobretudo, chama a atenção para o fato de que nossas práticas de pesquisa ajudam a criar realidades. Em suas palavras,

por enquanto, o ponto é este. Em contraste com os sonhos universalizantes que assombram a tradição filosófica acadêmica, o mundo no qual vivemos não é um: há muitas maneiras de viver. Elas vêm com diferentes ontologias e diferentes formas de classificar [grading] o bem. Elas são políticas na medida em que suas diferenças são de um tipo irredutível. Mas elas não são exclusivas. E não há um nós que permanece fora ou sobre elas, capaz de controlá-las ou escolher entre elas: nós estamos implicados. Ação, como todo o resto, é, também feita [enacted]. (Mol, 2002, p. 181, tradução nossa24).

Sendo assim, ao abordarmos um fenômeno psicossocial, não estamos simplesmente descrevendo-o, mas estamos, também, fazendo-o. Nosso método e nossa narrativa têm, portanto, implicações políticas que devem ser consideradas durante todo o processo de investigação.

 

Considerações finais

Neste ensaio, buscamos discutir a possibilidade de pensarmos uma Psicologia Social que fuja do realismo que caracteriza grande parte das pesquisas científicas. Uma Psicologia Social que não fale de uma realidade exterior, que antecede e que independe de nossas ações, mas que fale de uma realidade que se torna real por meio de nossas práticas. Uma Psicologia Social que aceite que a realidade pode ser múltipla, complexa e instável. Desse modo, assim como no trabalho de Moraes (2010),

o que fervilha entre estas linhas é a afirmação de um multiverso, isto é, um mundo livre das unificações prematuras..., mundo comum porque múltiplo e heterogêneo. A composição deste mundo comum nos engaja na difícil tarefa de produzi-lo, a cada dia, em nossas práticas de pesquisa, nos momentos em que decidimos o que conta ou não como "dado" de pesquisa, no momento em que nos engajamos na prática de relatar aquilo que nós pesquisamos. Pesquisar é, neste sentido, engajar-se numa política ontológica que, em última instância, produz o mundo em que vivemos (p. 46).

Neste ensaio, discutimos, portanto, a possibilidade de seguir os caminhos trilhados por alguns filósofos, etnógrafos, sociólogos e psicólogos sociais, e engajarmo-nos não apenas em uma política de pesquisa, mas também em uma política de realidade (Law, 2003). De engajarmo-nos em um compromisso com um multiverso - ou, como diria Law (2011), com um fractiverso (fractiverse) - no qual a realidade não passa de um efeito de relações contingenciais e heterogêneas.

Dissemos que não estamos sozinhas nessa discussão. Que, nos últimos anos, as reflexões de Mol e de outros autores da teoria ator-rede vêm direcionando uma série de pesquisas em Psicologia Social. No Rio de Janeiro, por exemplo, professores vinculados(as) aos programas de pós-graduação em Psicologia da UFRJ, UERJ e UFF - tais como Arendt, Moraes, Pedro e Ferreira - vêm desenvolvendo pesquisas e orientando teses e dissertações sobre diversos tipos de redes heterogêneas e trazendo interessantes discussões sobre como esses arranjos sociotécnicos produzem subjetividades (Ferreira & Moraes, 2010; Arendt, 2010; Ferreira, 2011). No Rio Grande do Sul e em Alagoas, Guareschi e Hüning têm articulado os pensamentos de Foucault e de Latour para pensar novas formas de fazer Psicologia (Guareschi & Hüning, 2010; Hüning & Guareschi, 2011). Em São Paulo, o Núcleo de Pesquisa e Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano da PUC-SP, coordenado por Spink tem recorrido à obra de Mol para discutir as noções de complexidade, multiplicidade, política ontológica e cuidado em saúde (Spink, 2009, 2010a; Spink, & Cordeiro, 2009; Cordeiro, 2012; Curado, 2012). Além disso, os pesquisadores e pesquisadoras desse Núcleo têm contribuído para um movimento de reconstrução dos construcionismos sociais, ao indicarem os limites da ênfase discursiva (Galindo, Millioli, & Mello, 2013) e ao incluírem as materialidades nas histórias sobre produção de realidades.

Juntamente com esses pesquisadores, buscamos fazer uma diferença (ainda que pequena) no campo da Psicologia Social. Buscamos chamar a atenção para a possibilidade de ordenar e de coordenar a realidade de diferentes modos. De reconhecer que, nessa área do conhecimento, cabem múltiplos atores. De fazer uma Psicologia Social que busque conexões complexas, que articule materialidades e pessoalidades e que faça existir (enact) múltiplas realidades.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Mariana Prioli Cordeiro
mpriolicordeiro@gmail.com
Mary Jane Paris Spink
mjspink@pucsp.br

Submetido em: 14/02/2013
Revisto em: 21/05/2013
Aceito em: 13/06/2013

 

 

* Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
1 No original: "it multiplied the eyes of the beholders. It turned each pair of eyes looking from its own perspective into an alternative to other eyes."
2 No original: "As if it were in the middle of a circle. A crowd of silent faces assembles around it. They seem to get to know the object by their eyes only. Maybe they have ears that listen. But no one ever touches the object."
3 No original: "You see, there´s a vessel, this here, it´s not quite a circle, but almost"... He shifted the pointer to the middle of the circle. "That´s the lumen. There´s blood cells inside it, you see. That only happens when a lumen is small. Otherwise it´s washed out during the preparation. And here, around the lumen, this first layer of cells, that´s the intima. It´s thick. Oh, wow, isn´t it thick! It goes all the way from here, to here. Look. Now there´s your atherosclerosis. That´s it. A thickening of the intima. That´s really what it is." And then He adds, after a little pause: "Under a microscope."
4 No original: - "on the art of never forgetting about microscopes. Of persistently attending to their relevance and always including them in stories about psysicalities."
5 No original: "Lo que nos sostiene unidos es lo que está más allá de nuestra carne. Mezclado con  lo lingüístico, con lo político e ideológico... En otras palabras, lo social no es lo que nos sostiene juntos, sino lo que es sostenido. Además, si algo caracteriza nuestros marcos de interacción es que no constituyen algo claramente demarcado y definido, suelen ser convulsas redes preñadas de diversos datos, lugares, artefactos, símbolos y personas. Son, en definitiva, absolutas multiplicidades. Según esto, [...] lo social es un asunto performativo. Es imposible establecer propiedades a priori que sean particulares de la vida en sociedad, aunque en la práctica se haga. Los elementos que componen lo social son de una gran variedad y el lazo social tiene propiedades extra-sociales y heterogéneas; y son los actores que ejecutan la sociedad los que definen in situ qué es lo social y qué no".
6 No original: "within the confinements of the body, but follows the various practices in which the atherosclerosis is enacted throughout the hospital, the topography of the relation between pathology and clinic appears to be completely different."
7 No original: "In such instances the objects of pathology and clinic cannot aspects of the same entity: their natures are simply not the same. They are different objects."
8 Esse termo refere-se a modos de ordenação da realidade que se dão sempre coletivamente e o uso do hífen tem por objetivo ressaltar esse aspecto.
9 No original: "There are many ways of reconciling difference and avoiding multiplicity. Some are more perspectival, and others are not. Together, however, the work to push the possibility of multiplicity off the agenda.... if we attend to practice we tend to discover multiplicity... We discover multiplicity, but not pluralism. For the absence of singularity does not imply that we live in a world composed of an indefinite number of different and disconnected bodies and atheroscleroses, hospital departments, or political decisions. It does not imply that reality is fragmented. Instead it implies something much more complex. It implies that different realities overlap and interfere with one another. Their relations, partially co-ordinated, are complex and messy."
10 No original: "If the term 'ontology' is combined with that of 'politics' then this suggests that the conditions of possibility are not given. That reality does not precede the mundane practices in which we interact with it, but is rather shaped within these practices. So the term politics works to underline this active mode, this process of shaping and the fact that its character is both open and contested."
11 No original: "Instead of the observer´s eyes, the practitioner´s hands become the focus point of theorizing."
12 No original: "The argument is neither relativist nor realist. Instead, it is that the real is produced in thoroughly non-arbitrary ways, in dense and extended sets of relations."
13 No original: "That means that reality... no longer play the role philosophy cast for it a few centuries ago, the role of something to get in touch with. The role of something to grasp. To hold on to. To be sure about. The crucial philosophical question pertaining to reality was: how can we be sure?... If the question what to do no longer depends on what is real, then what else might it be linked up with?"
14 No original: "is this knowledge true to its object?"  
15 No original: "is this practice good for  the subjects (human or otherwise) involved in it?"
16 No original: "instead of truth, goodness comes to the center of the stage. Or rather, not goodness, as if there were only one version of it, but goodnesses. Once we accept that ontology is multiple and reality leaves us in doubt, it becomes all the more urgent to attend to modes and modalities of seeking, neglecting, celebrating, fighting, and otherwise living the good in this, or the other of its many guises."
17 No original: "doesn´t necessarily argue for individual choice. Intervening in one life, after all, also influences others.... Interventions are understood as a way of organizing not just individual life, but that of the entire polis, the body politic".
18 No original: "But the position of the lawyer is not the only possibility. What if the analyst takes the position of the patient himself or herself? Then it may well be that other matters become important. For instance, "how might we gain the right to decide" may be displaced by the at least equally urgent question "what should be done?" What might it be good to do? What might the good be, here and now, in this case or that other? The problem, then, is that in trying to give "the patient" a say, a politics-of-who remains silent about what, if one is a patient, one might actually say at the crucial moment".
19 No original: "But its self reflection was not direct at its central goals: postponing death and improving health."
20 No original: "Like ontology, the good is inevitably multiple: there is more than one of it. That is why for a politics-of-what the term politics is indeed  appropriate. For a long time, and in many places, science held (or continues to hold) the promise of closure through fact-finding. In ethics, the promise of closure, or at least temporary consensus, through reasoning is widely shared. In an attempt to disrupt these promises, it may help to call "what to do?" a political question. The term politics resonates openness, indeterminacy. It helps   to underline that the question "what to do" can be closed neither by facts nor arguments. That it will forever come with tensions - or doubt. In a political cosmology "what to do" is not given in the order of things, but needs to be established. Doing good does not follow on finding out about it, but is a matter of, indeed, doing."
21 No original: "We need to better investigate what this would imply, intellectually and practically. What is to live things as options. What the goods and bad of this way of living are. And what its practical limits might be. For it might happen that arguments that are mobilized in decision making shift the 'real' options to other sites, and the on again to further and more distant locations. That there is no last resort but instead there are 'options' everywhere."
22 No original: "Indeed, such balance will never find a stable end point, there are too many elements. Which implies that ontological politics is unlikely to come at rest once the accounts are closed - because they won´t be closed."
23 No original: "There are not simply opposed to, or outside, one another. One may follow the other, stand in for the other, and the most surprising image, one may include the other. This means that what is 'other' is also within. Alternative realities don´t simply coexist side by side, but also found inside one another. But this is a situation that does not easily fit our traditional notions of politics. Which means that new conceptions of politics need to be crafted. But which ones?"
24 No original: "For now, the point is this. In contrast with the universalistic dreams that haunt the academic philosophical tradition, the world we live in is not one: there are a lot of ways to live. They come with different ontologies and different ways of grading the good. They are political in that the differences between them are of an irreducible kind. But they are not exclusive. And there is no we to stand outside or above them, able to master them or choose between them: we are implied. Action, like everything else, is enacted, too."