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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.66 no.1 Rio de Janeiro  2014

 

ARTIGOS

 

A violência a partir das teorias freudianas do social*

 

Violence after Freudian social theories

 

La violencia desde las teorías sociales de Freud

 

 

Fernanda Canavêz

Docente. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Seropédica. Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho discute a violência nas teorias freudianas do social por meio da construção a posteriori da interlocução de Freud com teóricos de outros campos. Demonstra-se, no início do pensamento freudiano, uma perspectiva confiante na regulação dos laços sociais devido à pretensa neutralização da agressividade. Freud estaria em consonância com a aposta da ciência positivista no rumo progressista da civilização. Mas essa não é a única concepção freudiana, pois há o deslocamento para uma visada atenta à crueldade inerente às relações e à constituição subjetiva. Esta leitura reconhece na psicanálise uma crítica à marcha civilizatória, em suas tentativas de imunizar o sujeito do excesso que o constitui, além de demonstrar que o pensamento de Freud extrapola as classificações comumente usadas nas ciências humanas sobre a relação entre sujeito e civilização.

Palavras-chave: Violência; Psicanálise; Freud; Modernidade.


ABSTRACT

This work discusses violence by means of the a posteriori construction of the dialogue between Freud and theorists from other fields of knowledge. We seek, at the onset of Freudian thought, a perspective which is confident as for the regulation of social bonds due to the alleged neutralization of aggressiviness. Thus, Freud would be in line with the bet of positivist science on the progress of civilization. This is not the only Freudian conception on the subject, since there is a change for a sight, more  attentive to the cruelty, that pervades relations and the constitution of the subject. This reading embed psychoanalysis in the wake of criticism addressed to the march of civilization through its attempts to immunize the subject from the oversized dimension that constitutes it, in addition to demonstrate that the Freudian thought extrapolates usual classifications of the social sciences about subject and civilization.

Keywords: Violence; Psychoanalysis; Freud; Modernity.


RESUMEN

En este trabajo se analiza la violencia en las teorías sociales de Freud a través de la construcción a posteriori del diálogo de Freud con teóricos de otras áreas del conocimiento. Buscamos, a principios del pensamiento freudiano, una perspectiva confiable en la regulación de las relaciones sociales debido a la supuesta elusión de agresividad. Así, Freud estaría en línea con la apuesta de la ciencia positivista en el curso progresivo de la civilización. Este no es el único diseño freudiano al respecto, ya que hay un cambio para un objetivo más atento a la crueldad que permea las relaciones y la constitución del sujeto. Esta lectura introduce el psicoanálisis en la estela de las críticas dirigidas a la marcha de la civilización en sus intentos por inmunizar el sujeto  de la dimensión excesiva que lo constituye, además de demostrar que el pensamiento de Freud extrapola las clasificaciones utilizadas en Humanidades para analizar la relación entre el sujeto y la civilización.

Palabras clave: Violencia; Psicoanálisis; Freud; Modernidad.


 

 

Introdução

O assunto violência faz parte das mais variadas disciplinas do campo das ciências humanas, dentre as quais a Antropologia, a Sociologia e a Filosofia, de modo que os discursos erigidos para abordá-la são igualmente múltiplos, não só de acordo com a metodologia e os fundamentos epistemológicos utilizados, mas também no tocante aos objetivos de tais abordagens. A título de exemplificação, cabe apresentar sucintamente a corrente leitura que expõe dois grandes grupos de teóricos, diferenciados de acordo com suas concepções acerca do estado de natureza e, por conseguinte, da origem da violência: os partidários da violência fundadora e os adeptos das interpretações antropológicas para a violência. Essa divisão faz parte de uma perspectiva amplamente difundida, como evidenciam até mesmo os livros didáticos empregados nos mais diferentes segmentos de escolarização, conforme explicita Chauí (2000).

No primeiro grupo podem ser inseridos os que entendem o ser humano a partir de uma pretensa natureza violenta, o que exigiria da civilização a contenda de neutralização das inclinações agressivas, cruéis e destrutivas, de modo a manter afastadas as ameaças de dissolução e de aniquilação da espécie humana. Costuma-se inserir nesse âmbito o discurso do inglês Thomas Hobbes (1983), para quem o Estado possuía o dever de sanção da violência inerente aos homens. Já no segundo grupo são passíveis de serem encontrados autores como o suíço Jean-Jacques Rousseau (1755/1993, 1762/1989), para os quais a violência seria decorrente dos modelos impostos pela sociedade ao homem, naturalmente bom e piedoso.

Um leitor interessado no tema da violência pode se deparar com esse tipo de classificação incontáveis vezes em seu percurso de pesquisa, cuja recorrência, por si só, já justificaria a necessidade de pensar como seria a inclusão do pensamento freudiano - se é que esta seria adequada - nos termos acima aludidos. O interesse pelo tema torna-se ainda mais contundente quando a psicanálise se destaca enquanto discursividade fundada para abordar o sofrimento psíquico, inserindo-a inequivocamente entre as disciplinas afeitas ao tema da violência. É o que atesta a profusão de trabalhos e discussões dedicados à violência ou assuntos a ela relacionados - como mostram os trabalhos de Costa (1986), Birman (2009) e Herzog (2009), apenas para citar autores brasileiros que abordaram o tema.

Cumpre destacar, no entanto, que a violência não adquire os contornos de um conceito no pensamento freudiano, o que não impediu a produção de numerosos trabalhos no movimento psicanalítico que tratam do assunto: das teorias sobre a chamada violência psíquica, rastro inconteste da pulsão de morte circunscrito aos limites de certa abordagem clínica, à aplicação do referencial psicanalítico para compreender o registro da política e de seus impasses, a psicanálise se mostra um instrumental importante no debate sobre a violência. Nos limites deste artigo, a violência será compreendida, por um lado, em sua dimensão excessiva, como expressão da inclinação agressiva do sujeito no cenário social, e, por outro, em sua vertente de transgressão, no que expõe de possibilidade de subverter a ordem instituída.

É oportuno indicar que essa divisão desponta como recurso didático, tendo em vista que o próprio Freud (1921/1976c) lançou luz sobre a problemática expectativa de apartar o que seria individual do que estaria referido ao campo do social: "desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado, mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social" (p. 91). A estratégia didática acolhe então os riscos da fragilidade dessa divisão para enaltecer o potencial transgressivo da violência, no que expressa de ameaça à aposta progressista em um ideal (moderno) de homem civilizado, capaz de conter suas paixões em prol da marcha civilizatória.

Esclarecida a noção de violência aqui utilizada, vale ainda destacar que não há em Freud uma teoria formalmente elaborada e dedicada à investigação da sociedade, muito menos do Estado-nação, alvo dos contratualistas citados. A despeito dessa inexistência, é possível depreender considerações freudianas contundentes sobre o Estado, como será demonstrado adiante, assim como sobre a concepção do sujeito em sua interface com o social, discussão operacionalizada pelo conceito de identificação (Freud, 1921/1976c). É especialmente por meio desse conceito que se pode compreender a subversão freudiana entre as categorias de individual e de social, uma vez que expõe uma perspectiva muito original sobre o sujeito, que contempla o modo como este se constitui.

Segundo Freud, a instância do eu busca se conformar a um modelo, representado pelo ideal do eu, uma modificação de parte do eu em decorrência de identificações abandonadas. Em outras palavras, o ideal do eu é fruto do narcisismo do casal parental, tomado como referência para o eu, irrevogavelmente constituído pela alteridade: "A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram" (Freud, 1914/1974b, p. 108). Ao investigar a relação entre o eu e as massas, Freud apresenta o livre trânsito entre o que seria da ordem da psicologia individual e aquela social, na medida em que afirma a substituição do ideal do eu pela figura do líder, tomado então como modelo para o eu dos membros da massa. É como se o ideal do eu conservasse a característica de uma dupla face que se dirige tanto para o individual quanto para o social, possibilitando as derivações de um campo ao outro ou, para ser ainda mais fiel à originalidade freudiana, subvertendo a lógica que entende esses campos como categorias estanques e impermeáveis.

Sendo assim, este artigo se ocupa do desafio de abordar o tema da violência na obra de Freud a partir de seus chamados textos sociais, ainda que estejamos cientes de que nenhum dos assuntos foi explicitamente abordado pelo fundador da psicanálise. O objetivo é demonstrar que o pensamento freudiano não pode ser inteiramente circunscrito aos grupos anteriormente elencados, uma vez que se opera um deslocamento de uma perspectiva mais confiante na possibilidade de expurgar o mal da violência para outra, de caráter mais trágico, que destaca o imponderável em jogo quando se pensa sobre a inclinação agressiva dos sujeitos.

Para a consecução desse objetivo, será feita uma revisão da leitura de Birman (2010) a respeito de um debate a posteriori entre a obra freudiana e pensadores que compõem a filosofia política, como Rousseau (1755/1993, 1762/1989) e Hobbes (1983), uma vez que a interlocução direta entre eles não se deu à época em que a obra freudiana ganhava corpo. Como hipótese auxiliar, vale reiterar que se espera sustentar a impossibilidade de Freud integrar um dos dois grupos - seja a tradição que considera o caráter natural da violência que deve ser imunizado pela sociedade, seja a que a compreende como decorrente do mal social infligido ao homem - , o que está de acordo com a maneira como o sujeito pode ser compreendido em sua obra, em permanente tensão entre as categorias forjadas de individual e de social.

 

Freud e a imunização da violência

Não parece demasiado repetitivo indicar que o pensamento freudiano não oferece um estatuto conceitual para a violência, mas conceitos e noções a ela relacionados (Herzog, 2009), como a pulsão de morte, o par sadismo/masoquismo e o trauma. Em vez de nortear a argumentação por essa trama conceitual stricto sensu, optar-se-á por seguir os rastros de suas teorias a respeito do social - seja referente à constituição deste ou à sua articulação com os sujeitos. As teorias foram enunciadas no plural, pois não há uma única leitura freudiana sobre a civilização, o que evidencia descontinuidades férteis para a problemática da violência. Assim, aposta-se na potência de uma leitura diacrônica do pensamento freudiano, capaz de destacar os cortes e transformações presentes em sua obra.

As vias de articulação entre sujeito e civilização estiveram presentes desde muito cedo no discurso freudiano, conforme exemplifica o texto Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna (1908/1976a), em que é afirmado um incremento das psiconeuroses devido à submissão à moral moderna exigida dos sujeitos no tocante à sexualidade. A tônica do texto é a incontornável constatação de que as pulsões e o processo civilizatório tomam caminhos opostos, sendo indispensável ao último que o sujeito renuncie ao seu quinhão de satisfação para não se tornar um "outlaw" (Freud, 1908/1976a, p. 192, grifo do autor) apartado da comunidade.

De acordo com Mezan (1985), descortina-se no ensaio em questão o caráter de um projeto político, nos termos de uma aposta em uma espécie de reforma social, embora Freud afirme que não caberia ao médico "propor reformas" (Freud, 1908/1976a, p. 208), o que não anula o tom de denúncia presente em seu trabalho. Tal denúncia dirige-se ao peso da moral sexual que recai sobre os sujeitos e - o que parece ainda mais importante - à descrença por parte da própria civilização em outorgar a referida moral para alcançar seus objetivos.

Ora, trata-se do apontamento da lógica de uma dupla moral que perpassa o espaço social, concernente à exigência de restringir o ato sexual à relação monogâmica para fins de procriação. Em uma época anterior à consolidação dos resultados mais expressivos do movimento feminista, Freud menciona que ao homem seria concedida uma parcela de liberdade sexual, mesmo sob o jugo do mais severo código sexual, enquanto à mulher não seria creditada essa possibilidade. E a moral sexual dupla seria a prova inconteste de que "a própria sociedade não acredita que seus preceitos possam ser obedecidos" (Freud, 1908/1976a, p. 200).

Foi, portanto, em tom de denúncia das premissas modernas que a problemática dos sujeitos e da civilização - em última instância, das relações de poder - apareceu no discurso freudiano. Além de apontar os malefícios das restrições impostas aos sujeitos, também é evidenciado o caráter seletivo com o qual essas imposições são, na prática, colocadas em marcha. Todavia, como uma primeira leitura poderia supor, a questão não é simples, nem tampouco ingênua, dado que a renúncia por parte daqueles que compõem a civilização é indispensável à manutenção desta. Pulsões e civilização são importantes oponentes, o que concorre para que o processo civilizatório não cesse de prescrever a sublimação das primeiras, por mais disparatados e paradoxais que possam ser os métodos empregados nessa tarefa.

Assim sendo, a questão do advento e da manutenção da comunidade dos homens, como Freud a conheceu à época moderna, rapidamente se impôs em sua elaboração, para a qual foi dada uma resposta no tão comentado texto Totem e tabu (Freud, 1913/1974a). Birman (2010) nos auxilia a fazer a passagem dos postulados sobre a civilização encontrados no pensamento freudiano para uma teoria sobre a constituição da sociedade e da democracia na modernidade, qual seja, a interpretação freudiana das "condições de possibilidade para a conjuração da onipotência da força pulsional" (p. 541, grifos do autor). Como seria então operada a passagem da força ao contrato entre os homens? Freud se apoia no mito darwinista das origens, segundo o qual teria existido uma horda primitiva governada por um pai detentor de plenos poderes e, por conseguinte, o único possuidor do livre acesso às fêmeas. Uma vez que um dos irmãos empreendesse a tentativa de desfrutar de suas benesses, por almejar ocupar o lugar do pai e/ou por buscar a satisfação com uma fêmea, seria veementemente retirado de cena pelo pai da horda. Ao se utilizar da interpretação de Charles Darwin (1874), naturalista inglês do século XIX, Freud assume a relação endogâmica como paradigma da sociedade primitiva, ilustrado pelo mito e a correlata interdição das fêmeas aos demais machos, que, desse modo, são violentamente combatidos.

Entretanto, em um dado momento, os irmãos vislumbram a possibilidade de derrubar as exclusividades do pai devido à reunião de suas forças: se o pai era mais forte e, assim, plenamente investido de poderes nesse grupo regulado pela força física, não poderia resistir à união dos mais fracos, que então assassinam o outrora ocupante do lugar da exceção. Contrariando as motivações iniciais dos irmãos, esses se viram reféns do sentimento de culpa por conta do ato parricida que deu cabo do pai, tendo colocado um totem em seu lugar. Aqui Freud vai além da contribuição de Darwin, já que este não teria concebido os primórdios do totemismo e sua correlata ambivalência nos termos da concepção de "um pai violento e ciumento" (Freud, 1913/1974a, p. 169). Ademais, é preciso ainda supor a refeição totêmica desse pai, que, uma vez devorado, seria capaz de transmitir a força invejada pelos irmãos.

"O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo" (Freud, 1913/1974a, p. 171), pois se os filhos satisfizeram os impulsos agressivos a ele dirigidos, a admiração que lhe era direcionada ficava agora marcada na forma do sentimento de culpa. Se a culpa funcionava como veículo da memória do ato criminoso que derrubara o pai, era também o operador da fraternidade de irmãos, pois ficava estabelecido que todo aquele que desejasse o lugar antes ocupado pelo pai conheceria o mesmo destino, a saber, a morte. Pode-se então supor, acompanhando Enriquez (1983), que a memória da violência era garantidora dessa comunidade social, não mais estruturada por obediência à tirania da força patriarcal, mas por um contrato acordado entre pares.

Freud chega assim a sua leitura sobre a constituição da sociedade democrática moderna, caracterizada pela "ruptura violenta com a onipotência da força do um e pela constituição correlata da multiplicidade de forças, que passariam então a se confrontar em posição de igualdade" (Birman, 2010, p. 542, grifos do autor). Se existissem diferenças naturais, a guerra seria pacificada, ao passo que, dada a indiferenciação, todos são inimigos de todos e tendem ao confronto. É interessante notar que a proposição de Birman (2010) coloca em evidência a ideia da instauração de uma guerra decorrente da igualdade, presente, por exemplo, na análise de Michel Foucault sobre o discurso de Hobbes, que seria marcado pela guerra como "efeito imediato de uma não-diferença ou, em todo caso, de diferenças insuficientes" (Foucault, 1997, p. 78, tradução nossa).

Segundo Birman (2010), a aproximação de Freud com o discurso de Hobbes dar-se-ia em momento mais tardio da obra daquele, proposta que será doravante acompanhada para a problematização da inclusão de Freud em uma das tradições teóricas que constam na introdução do presente artigo. Desse modo, quando a investigação da horda primitiva está em pauta, o acento não recai no confronto direto de uns contra os outros, mas na possibilidade de a culpa regular as inclinações agressivas que perpassam a igualdade instaurada com o parricídio (Freud, 1913/1974a).

Essa discussão indica como a inserção de Freud em uma das tradições sobre a origem da violência é problemática. Para sustentar essa afirmativa, é possível basear-nos na proposta de Birman (2010) sobre a descontinuidade do pensamento freudiano entre uma perspectiva confiante na culpa como reguladora social para outra mais afeita à crueldade inerente ao sujeito. É também a proposta de Herzog e Farah (2005) ao comentarem como Freud passa de uma visão normativa da modernidade para uma noção de futuro vinculada à espera trágica, sob o signo da incerteza, no quadro do segundo dualismo pulsional.

Nesse sentido, poder-se-ia tentar incluir um primeiro Freud na tradição da qual faz parte Rousseau (1755/1993, 1762/1989), enquanto um segundo Freud estaria na esteira dos postulados partilhados por Hobbes (1983). Entretanto, o preâmbulo da guerra de todos contra todos que figura na obra de Hobbes (1983) já aparece como indício em Totem e tabu (1913/1974a), de modo que é preciso entender, para além das aproximações de Freud com outros teóricos, que essas podem se dar de modo menos ou mais pregnante, a depender da perspectiva com a qual se interpreta o texto. A proposta está de acordo com o modo como nos apropriamos dos textos freudianos: assim como uma tela bicolor que pode evidenciar mais uma ou outra tinta a depender da posição - e do ponto de vista - de que se observa (Canavêz, 2011). Feita essa pequena digressão, retornemos à perspectiva de Birman (2010).

Conforme antecipado, esse autor supõe, a partir da aposta de Freud (1913/1974a) na culpa como operador da manutenção social, uma aproximação com a teoria do contrato social de Rousseau (1762/1989), principalmente pelo lugar reservado à piedade em suas formulações. Aclamado como o grande teórico da liberdade, Rousseau (1762/1989) é um partidário do estado de natureza, de forma que o mal dos homens seria a sociedade, responsável por aprisionar, colocar a ferros o homem que nasce livre. A selvageria não seria um mal em si, pois "não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a calma das paixões e a ignorância do vício que os impedem [os selvagens] de fazer o mal" (Rousseau, 1755/1993, p. 252).

É importante não perder de vista a distinção entre selvagens e bárbaros, para a qual a contribuição de Foucault (1997) também é profícua: o selvagem repousa sobre o fundo da natureza ao qual pertence, enquanto o fundo que dá consistência ao bárbaro é aquele da civilização, nem que seja para indicar o que desta escapa. De acordo com essa distinção, a piedade - aproximada do selvagem na perspectiva de Rousseau (1755/1993) - faria parte da essência humana, um sentimento natural capaz de assegurar a conservação da espécie, e não algo decorrente de uma lei exterior imposta para sancionar a violência entre os homens, coordenada indispensável ao discurso de Hobbes.

Desse modo, a leitura de Birman (2010) sustenta que a culpa em Freud seria a repercussão da visada inaugurada por Rousseau, que expunha a piedade como operador capaz da neutralização da força e da constituição dos vínculos sociais, premissa que, em termos freudianos, explica a transformação do sadismo originário em masoquismo. Nessa perspectiva, a culpa é positivada enquanto propiciadora da conversão daquilo que inviabilizaria a sociedade. Até esse momento do pensamento freudiano (Freud, 1913/1974a), é possível observar uma atitude mais confiante na mediação dos laços sociais, mesmo após o declínio do poder monárquico e a subsequente instauração da sociedade de inspiração democrática com a multiplicidade que lhe é correlata.

Essa pretensão algo otimista não tarda, entretanto, perder força para um discurso desiludido, como permite exemplificar o discurso de Reflexões para os tempos de guerra e morte (Freud, 1915/1974d), trabalho que reúne dois ensaios freudianos que vieram à tona meses depois da eclosão da Primeira Guerra Mundial. A análise da situação de guerra versa sobre os temas da desilusão e da mudança da atitude frente à morte. Em relação ao primeiro assunto, Freud comenta o desmantelamento da crença na neutralização da força depositada nas sociedades ditas civilizadas, pois a guerra mostrara não apenas que seria um mal necessário, mas também que fora colocada em prática de maneira extremamente cruel, saindo do prumo do curso do "desenvolvimento de relações éticas entre os componentes coletivos da humanidade" (Freud, 1915/1974d, p. 315).

Dessa forma, a realidade evidenciada pela Primeira Guerra mostrou uma crueldade sem precedentes na história da civilização moderna e a "baixa moralidade" (Freud, 1915/1974d, p. 317) atribuída a Estados que antes reservavam para si o título de guardiões da moral e dos bons costumes: "o Estado proíbe ao indivíduo a prática do mal, não porque deseja aboli-la, mas porque deseja monopolizá-la, tal como o sal e o fumo. Um Estado beligerante permite-se todos os malefícios, todos os atos de violência que desgraçariam o indivíduo" (Freud, 1915/1974d, p. 316). Ainda que Freud não tenha tomado o Estado-nação como objeto privilegiado de suas elaborações, essa figura é evocada no texto em pauta como partidária da civilização, manifestando em defesa desta com as sanções impostas às inclinações dos sujeitos que poderiam colocar em xeque o contrato social.

Do mesmo modo, destaca-se uma discussão a respeito da exigência de monopólio de violência por parte do Estado, pois este não poderia abrir mão da violência, "de praticar o mal" (Freud, 1915/1974d, p. 316), sob o risco de se sujeitar aos caprichos de inimigos em potencial. Mas também sublinha-se que os sujeitos estão em desvantagem devido à renúncia de satisfação que lhes é exigida, sem que, com isso, recebam em troca a proteção desse Estado. Nos parâmetros do texto discutido, há a possibilidade de alimentar a ilusão de que aquele poderia funcionar como instância de proteção frente às inclinações agressivas de outrem, sob a condição de que o sujeito se dispusesse a renunciar às suas próprias.

Se Freud (1913/1974a) chegou a se referir à dupla moral quando parecia acreditar na regulação do potencial de destruição e crueldade pelo contrato social, agora a palavra de ordem é a hipocrisia favorecida pela civilização moderna. Longe de se apresentar como um homem civilizado, o moderno não passa de um "hipócrita cultural" (Freud, 1915/1974d, p. 321), que tem no Estado o mais fiel representante de sua hipocrisia: em tempos de paz, preconiza a renúncia da violência, enquanto em tempos de guerra nada mais faz do que incitá-la.

Quanto à atitude para com a morte, Freud identifica uma ruptura entre os civilizados e aqueles povos primitivos dos quais se ocupara anteriormente (Freud, 1913/1974a), sendo que não se trata de evocar os primitivos para colher os louros do progresso civilizatório. Ao contrário, os primitivos demonstravam uma ética diante da morte - ressaltando-se aqui a necessidade de expurgar o contato com a morte dos inimigos em confrontos antes de retornarem à vida em família - que se mostrou enfraquecida na modernidade habitada por Freud. A guerra "estigmatiza estranhos como inimigos, cuja morte deve ser provocada ou desejada; diz-nos que desprezamos a morte daqueles que amamos" (Freud, 1915/1974d, p. 338). Portanto, não poderia restar nada além do fracasso para os que apostavam as fichas no processo civilizatório como imunizador da barbárie.

Percebe-se o deslocamento de um Freud crente na culpa como reguladora dos laços sociais e, como tal, de acordo com Birman (2010), mais próximo de Rousseau, para um Freud de olhar mais atento à crueldade que perpassa as relações e da qual pode se fazer representante o próprio Estado. A leitura do social que Birman (2010) identifica nesse momento do pensamento freudiano rompe com a anteriormente evocada, agora afinada com a teoria política hobbesiana, segundo a qual o homem seria o lobo do homem, homo violens, nos termos de Dadoun (1993), cuja ferocidade deve ser domesticada pelo Leviatã - a coisa pública ou o Estado - , figura que Hobbes (1983) vai buscar no imaginário bíblico: o destemido rei dos soberbos.

Orientado por sua justiça, o Leviatã hobbesiano, chamado homem artificial, prima pelo equilíbrio diante da guerra de todos: é o homem artificial em defesa do homem natural (Hobbes, 1983), em que pese a necessidade de defesa contra a ameaça de guerra civil, o maior dos males para Hobbes, ele próprio francamente atingido pela Guerra Civil Inglesa, ocorrida no século XVII. Entretanto, Hobbes também não desconsidera que o Estado seja conduzido a fazer uso da violência - que, no caso, seria a princípio considerada justa, dada a legitimidade conferida à soberania - , embora tal uso seja uma artimanha perigosa que coloca em risco o próprio Estado.

A violência perpetrada pelo Estado acaba por favorecer a rebelião, na medida em que dá margem ao questionamento da incapacidade estatal em assegurar a paz aos seus protegidos (Limongi, 2009). Coloca-se em pauta o caráter transgressivo que a noção de violência pode assumir: deslocada do monopólio do Estado para as mãos dos demais, a violência o ameaça, impelindo à destruição da ordem formalmente instituída. É assim que o tema da violência do lado do Estado aparece em Hobbes (1983): com ares de precaução que se deve ter diante dos riscos que podem vir a enfraquecê-lo ou diluí-lo.

Segundo Foucault (1997), o pensamento de Hobbes merece destaque no cenário do século XVII por ter inserido a guerra como importante instrumento de análise das relações de poder, cabe dizer, a guerra como ameaça permanente que anima as relações. Frente a essa ameaça impõe-se o Leviatã, aquele imbuído de justiça, responsável por conter o homo violens, de forma que o discurso hobbesiano nada mais é do que aquele do contrato, da soberania, do Estado (Foucault, 1997). Por conseguinte, seu projeto consiste na organização dos homens de forma a impossibilitar o regresso ao estado natural (Monteiro, 2004), aspecto que se configura como alvo de críticas por parte de Rousseau. Em última instância, Hobbes declara propõe a disseminação da guerra para exaltar a potência do Leviatã diante dessa ameaça.

É preciso esclarecer um ponto fundamental a respeito da concepção de estado de natureza em Hobbes e Rousseau, para o qual a afirmação de Ribeiro (2004) se mostra precisa:

em Rousseau o estado de natureza nega a própria sociedade, enquanto em Hobbes nega sobretudo o Estado (que, claro, para ele é condição para haver sociedade). Daí que o homem natural de Rousseau possa ser equilibrado, e seu homem social, depravado - ao passo que em Hobbes é exatamente o contrário: o homem natural é o que perdeu o controle, e com isso se degradou (p. 214).

Assim sendo, a revisão da hipótese de Birman (2010) nos conduziu a traçar as diferenças entre Rousseau e Hobbes, tendo em vista que afirmam pressupostos distintos: no primeiro trata-se da confiança na piedade natural dos homens, que faz recair na sociedade a parcela de violência negativizada que os aprisiona, ao passo que no segundo há a concepção dos homens que correm o risco de se naturalizar, como feras exclusivamente domesticáveis pela assunção do poder em determinados moldes de soberania. De acordo com as leituras de Freud sobre o social, é possível indicar uma aproximação inicial com o pensamento de Rousseau, embora as elaborações alimentadas pelo testemunho freudiano da Primeira Guerra Mundial advoguem a favor de certa predileção pela teoria hobbesiana. Entretanto, esta também deve ser matizada, pois se esses contratualistas revelavam-se otimistas em relação à gestão da sociedade, independentemente dos caminhos que a sustentavam, o discurso freudiano revela-se mais marcado pelo caráter trágico.

Estamos de acordo com a hipótese de Birman (2010), pois se trata de uma inflexão marcante no pensamento de Freud, como corrobora até mesmo o solo teórico do qual começou a lançar mão para construir seus referenciais. É o que exemplifica a chamada virada conceitual de 1920, com a passagem do primeiro para o segundo dualismo pulsional, responsável por trazer importantes interlocutores nos quais Freud parece ter buscado os alicerces para uma perspectiva de cunho mais trágico. Assim, as referências a Arthur Schopenhauer, filósofo alemão tido como pessimista, anteriormente evocadas nos textos freudianos, agora se tornam ainda mais relevantes, devido à consideração da morte como o verdadeiro propósito da vida (Freud, 1920/1976b). Além disso, contribui igualmente para a pertinência de tais teses a constatação de que os laços sociais constituem uma realidade incontornável para a espécie humana, embora não deixem de ser fonte de sofrimento e intolerância, teor trágico ilustrado pelo famoso símile dos porcos-espinhos, tomado de empréstimo de Schopenhauer (Freud, 1921/1976cc).

Também se faz presente a alusão ao filósofo grego Empédocles (Freud, 1937/1975), por conta do destaque conferido à articulação entre amor, responsável pela união dos elementos do universo, e ódio, que os separa, relação muito próxima da descrição freudiana dos modos de funcionamento das pulsões de vida e de morte (Freud, 1920/1976b), que se apresentam sempre amalgamados para gerar todos os fenômenos da vida. A conceituação da pulsão de morte escancara o potencial destrutivo irredutível do psiquismo, de cuja teorização Freud não poderia mais se furtar frente aos horrores de uma guerra em escala mundial.

 

Freud e o imponderável da violência

A hipótese de Birman (2010) é útil para demonstrar como Freud parece se alinhar no início de seu percurso teórico com os que apostam na conjuração da violência - da onipotência da força pulsional, em termos psicanalíticos - , no sentido progressista da passagem do estado de natureza para a cultura. Dessa forma, o autor sugere uma aproximação de Freud com contratualistas como Rousseau e Hobbes, embora essas interlocuções forjadas a posteriori se deem de modos distintos. Enquanto a alusão a Rosseau pode ser evocada no cenário de uma perspectiva evolucionista (Freud, 1913/1974a), Hobbes vem à baila quando os holofotes já estavam direcionados para a irredutível crueldade, para a violência impreterivelmente infiltrada nos laços sociais, compreensão a que se pode chegar pela agressividade irredutível inerente aos homens.

Assim sendo, Freud segue Hobbes em sua afirmação da guerra permanente entre os homens, mas talvez não acompanhe inteiramente a ideia de que o contrato, a soberania e/ou o Estado poderiam assegurar a paz e, mais ainda, de que os sujeitos abririam efetivamente mão de seu quinhão de destrutividade em nome do Estado. É também por esse motivo que Birman (2010) indica que "Freud realizou uma leitura nuançada e crítica de Hobbes" (p. 549). Vale lembrar que não há uma interlocução frontal e explícita de Freud com os autores aqui abordados, o que só reforça a ideia de que em nenhum momento ele assumiu inteiramente as interpretações dos referidos teóricos.

Esse movimento fica claro em Psicologia de grupo e análise do ego (Freud, 1921/1976c), onde Freud retoma expoentes estudos sobre grupos, dentre os quais o do francês Gustave Le Bon, e tem a oportunidade de rever sua teoria anterior sobre o social (Freud, 1913/1974a), agora à luz de suas formulações sobre a pulsão de morte (Freud, 1920/1976b) e tomando como pano de fundo as consequências advindas de seu contato com a realidade da guerra (Freud, 1915/1974d).

Ao retomar as características elencadas por Le Bon (1895/1995) a respeito dos grupos, Freud evidencia aquela do laço com o líder, do qual o grupo exige "força ou mesmo violência" e por quem deseja ser "dirigido, oprimido" (Freud, 1921/1976c, p. 102). O laço social depende daquele com o líder, objeto ideal a ser introjetado para que a identificação com os pares se dê.

Em 1913, Freud apostava na eficácia do totem como lembrança do ato parricida, na introjeção do interdito paterno após sua morte, na memória da violência que deveria ser, desde então, suprimida em favor do convívio social. É como se, em 1921, Freud estivesse afirmando que a figura do pai não se fortaleceu em absoluto com sua morte, assim como os filhos buscam desesperadamente um substituto para o mesmo, por meio do que seria possível empreender laços inibidos em sua finalidade sexual, a identificação.

O homem é "de preferência um animal de horda, uma criatura individual numa horda conduzida por um chefe" (Freud, 1921/1976c, p. 154), e não um animal predisposto ao gregarismo. O diálogo é travado com o inglês Wilfred Trotter, autor do livro afirmativo de um instinto gregário, obra que data de 1916 (Trotter, 1916/1953), segundo o qual os sujeitos conservariam a tendência inata à reunião, à indiferenciação das massas. Segundo Freud (1921/1976c), longe de compor uma massa amorfa, os sujeitos clamam pela figura de um líder que os possa conduzir, até mesmo com violência, e proteger diante da destrutividade que perpassa as relações.

O terreno dessa afirmação tornou-se então propício para que fosse retomado o conceito de narcisismo das pequenas diferenças, chave para a compreensão da hostilidade que faz com que os sujeitos se isolem dos - e rechacem os - demais em nome de diferenças forjadas. Salvo exceção, trata-se de uma atitude que estabelece diferenças entre o grupo do qual se escolhe fazer parte e os demais, atitude a resguardar o próprio narcisismo. Levado ao extremo, o narcisismo das pequenas diferenças concorre para a intolerância em suas versões mais extremas, marca inconteste de sistemas totalitários, como o histórico da engrenagem nazista permite inferir.

Trata-se do auge, no pensamento freudiano, da guerra decorrente da igualdade, como apontara Foucault (1997), guerra que Hobbes entende como perpétua. Assim, o narcisismo das pequenas diferenças é o operador conceitual pelo qual Freud formula sua interpretação a respeito do impasse político inaugurado pelas democracias modernas, qual seja, o da intolerância às diferenças. Birman (2010) sublinha que o imperativo da igualdade - como não deixa esquecer o lema Liberdade, Igualdade, Fraternidade da Revolução Francesa - conduziu à disseminação da guerra diante da diferença, sendo que "o ideário da multiplicidade triunfaria sobre o ideário da unidade" (p. 549, grifos do autor), em que pese o caráter bélico que contamina essa noção de multiplicidade. A vitória sobre a força onipotente do pai da horda, na versão freudiana para a inauguração das democracias modernas (Freud, 1913/1974a), teria dado a largada para a guerra das multiplicidades, as quais podem estar empenhadas em impor a sua versão de tirania frente às demais diferenças.

Do ponto de vista dos processos de subjetivação, Freud faz uma torção que permite incluir a realidade da guerra em seu aparato teórico-clínico: se o sadismo fora enunciado como primário no quadro do primeiro dualismo pulsional (Freud, 1905/1972, 1915/1974c), agora não passa de uma derivação do masoquismo originário (Freud, 1924/1976d), permitindo a Freud confirmar a hipótese indicada desde suas formulações sobre a pulsão de morte (Freud, 1920/1976b). O masoquismo refere-se àquela parcela da pulsão de morte que "não compartilha dessa transposição para fora" (Freud, 1924/1976d, p. 204) característica do sadismo, em que a destruição se dirige aos demais como derivação desse masoquismo originário para deixar de ser impingida ao próprio sujeito.

Antes de prosseguir, cabe fazer uma digressão a respeito das diferentes manifestações da pulsão de morte. Segundo Freud, a pulsão de morte torna-se pulsão de destruição quando é dirigida "para fora, para objetos" (Freud, 1933/1976e, p. 254), embora também o eu possa ser tomado como objeto, no caso da autodestruição. Não raras vezes, os termos pulsão de morte, de destruição e de agressão são evocados de maneira sinonímica, como se observa nos trabalhos do próprio Freud (1937/1975), que nem sempre se ocupou de discerni-los.

Conforme sugestão de Pereira (2006), cabe tomar as pulsões de destruição e de agressão como modos de expressão das pulsões de morte não ligadas, passíveis de serem parcialmente destacadas da função sexual, sendo que o acento no primeiro caso recai na meta de aniquilar o objeto, enquanto a pulsão de agressão ressalta o ataque a este. Cabe recordar que os movimentos de pulsão de vida e de morte se encontram permanentemente fusionados, sendo que há fenômenos onde a ligação predomina, ao passo que outros evidenciam mais o desligamento. As diferenças entre as manifestações da pulsão de morte não serão privilegiadas nesta investigação, pois, mais do que empreender uma discussão da metapsicologia stricto sensu dessa, parece importante extrair as devidas consequências de sua formalização, etapa preliminar para a compreensão de uma possível leitura freudiana sobre a violência.

No que diz respeito ao escopo deste artigo, é importante observar que o masoquismo originário faz par com o narcisismo das pequenas diferenças, na medida em que o último direciona o potencial destrutivo para outrem a fim de não colocar em risco o próprio sujeito. Em seu estudo sobre o masoquismo, Freud (1924/1976d) enuncia ainda outro tipo, o masoquismo moral, em que o laço com a sexualidade se revela deveras frouxo, ao contrário do que ocorre nos masoquismos originário e erógeno.

O masoquismo moral é intimamente associado ao sentimento de culpa que busca satisfação por intermédio da necessidade de punição. A relação entre masoquismo moral e sentimento de culpa permite a Freud entender como a renúncia pulsional pode "resultar em um sentimento de culpa, e como a consciência de uma pessoa se torna mais severa e mais sensível, quanto mais se abstém da agressão contra os outros" (Freud, 1924/1976d, p. 212). Abster-se da destrutividade dirigida a outrem é conceder carta branca para que esta retorne sobre si, fomentando tanto o masoquismo do eu quanto o sadismo do supereu.

Se a pulsão de morte parcialmente voltada para fora é a garantia da manutenção do sujeito, em última análise de sua vida - fio de prumo do sujeito na perspectiva hobbesiana, que abre mão da violência em prol de sua perpetuação (Hobbes, 1983) - , o sentimento de culpa é a garantia da manutenção da civilização. Portanto, os sujeitos tentam se equilibrar nessa corda bamba que concorre para o mal-estar, tema principal de O mal-estar na civilização (Freud, 1930/1974e), um dos mais comentados ensaios freudianos, não só no campo psicanalítico como nas demais áreas das ciências humanas.

Se, na ocasião da formalização da pulsão de morte, o fio norteador era o seu caráter repetitivo (Freud, 1920/1976b), no ensaio sobre o mal-estar na modernidade a agressividade e a destruição roubam a cena (Freud, 1930/1974e). Esse texto evidencia como Freud pode ser aproximado do discurso de Hobbes, embora fique claro que não aposta inteiramente na eficácia da renúncia pulsional em prol do Estado ou do que quer que seja, conforme anteriormente demonstrado. Do mesmo modo, a afinidade com o tema da função da piedade para Rousseau parece cada vez mais distante, embora o sentimento de culpa seja novamente evocado, agora com respeito à manutenção da civilização. O mal-estar é colocado em pauta nos termos do resultado do permanente antagonismo entre sujeito e civilização, pois esta preconiza a renúncia pulsional jamais atingida inteiramente pelos sujeitos. Há uma espécie de "natureza inconquistável" (Freud, 1930/1974e, p. 105), um quinhão de destruição impossível de abdicar, como o movimento pendular entre as possibilidades de autodestruição e de destruição do próximo permite inferir.

Desta feita, o homem civilizado esbarra em três obstáculos principais na sua busca por felicidade: o sofrimento advindo do desgaste do corpo, aquele decorrente das intempéries do mundo externo e, o mais penoso deles, o derivado dos relacionamentos. Para fugir do último, o sujeito teria que se colocar à mercê dos outros dois, pois não poderia contar com o auxílio dos demais em sua luta pela vida, sendo que também faz parte dessa luta a expulsão da parcela de pulsão de morte que, de outra forma, poderia voltar-se contra si mesmo.

Dessa maneira, o homem civilizado é um equilibrista social, na corda bamba entre a defesa de si e a defesa do grupo, que, em última instância, não deixa de vir em auxílio de sua própria defesa. Freud afirma que o "homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança" (1930/1974e, p. 137), cabendo à civilização protegê-lo contra a natureza e regular os relacionamentos. Perda de felicidade e incremento do sentimento de culpa: trata-se do preço a pagar pelo "avanço" do processo civilizatório.

O que fica em evidência nessas pinceladas trágicas presentes no discurso freudiano é a impossibilidade de dominar totalmente o colorido destrutivo com o qual os sujeitos são pintados. O mandamento "Amarás a teu próximo como a ti mesmo" não parece crível para um Freud cuja leitura se afina à perspectiva hobbesiana, mas absolutamente descrente em relação a uma instância que pudesse expurgar a agressividade que se manifesta como violência no cenário social: "Que poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade!" (Freud, 1930/1974e, p. 137). Assim, embora a culpa seja apresentada como indispensável para a manutenção da civilização, está longe de ser considerada natural e eficaz na promessa de que os sujeitos não matarão uns aos outros.

Diferente da piedade tal como Rousseau a compreendia, o sentimento de culpa na perspectiva freudiana é resultado do medo da autoridade parental que preconiza a renúncia pulsional e, por conseguinte, do medo do supereu que introjeta sua autoridade. No primeiro caso teme-se a agressão passível de ser sofrida devido a uma transgressão, bem como a perda do amor que equivale à proteção diante da ameaça de punição; enquanto no segundo caso trata-se do medo internalizado, germe da consciência moral (Freud, 1930/1974e). A culpa, dessa forma, está longe de ser natural; ao contrário, trata-se de fonte de mal-estar colocada a serviço de Eros como arma frente à ameaça de desintegração atualizada pelo movimento da pulsão de morte, este sim primordial.

Com efeito, a questão que de fato importa à espécie humana é aquela de saber até que ponto seria possível apostar no desenvolvimento da civilização para domesticar o imponderável da violência, a perturbação da vida em sociedade causada pela pulsão de "agressão e autodestruição" (Freud, 1930/1974e, p. 170). No que concerne ao paradoxo de ponderar o imponderável, Freud, ao contrário de Rousseau e de Hobbes, não encontra uma resposta definitiva, pois não é possível "prever com que sucesso e com que resultado" (Freud, 1930/1974e, p. 171) Eros findará em sua tarefa de dominar o apelo vociferado à destruição atrelado à pulsão de morte.

Essa perspectiva freudiana foi consolidada com o diálogo sobre a guerra travado com Einstein a pedido do Comitê Permanente para a Literatura e as Artes da Liga das Nações, organismo internacional criado após o fim da Primeira Guerra Mundial com o objetivo de manter a paz e substituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) após a Segunda Guerra Mundial (Freud, 1933/1976e). Einstein escolhera Freud para falar sobre os motivos que levariam à guerra e, mais especificamente, sobre um método capaz de eliminá-la do processo civilizatório, ou seja, sobre a possibilidade de exorcizar o mal da violência evidenciado pela cruel realidade da guerra.

Nas questões endereçadas a Freud, Einstein supõe a existência de uma inclinação dos sujeitos para a destruição e se mostra incrédulo quanto à possibilidade de colocar freios à guerra, pois as nações teriam que abrir mão de sua soberania em favor da segurança internacional, questão cuja pertinência está longe de ser superada ainda hoje. Desse modo, Freud é convidado a falar dos aspectos subjetivos implicados nas dificuldades para a obtenção da paz mundial.

Antes de passar aos pontos elencados pelo importante físico, Freud propõe que o termo poder seja substituído por violência, uma "palavra mais nua e crua" (1933/1976e, Freud, p. 246), no intuito de ressaltar que a esfera do direito e aquela da violência não são tão heterogêneas como se poderia supor. Freud concede sua versão sobre a passagem da força bruta à lei, da sociedade regulada pela força bruta àquela em que os interesses do conjunto podem se sobrepor à força do sujeito na consecução de seus interesses exclusivos. A lei surge, portanto, como força da comunidade, mas: "Ainda é violência, pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se lhe oponha" (Freud, 1933/1976e, p. 247).

Se, no primeiro trabalho dedicado à problemática da guerra, Freud (1915/1974d) ainda parecia conservar certa separação entre os registros desta e da política, agora esses campos encontram-se embaralhados, tomados sempre em uma linha contínua: a política, a paz e a lei nada mais são do que manifestações latentes - e resultados - da guerra. Desse modo, o discurso freudiano mais tardio se aproxima da leitura empreendida posteriormente por Foucault (1997) sobre a sociedade moderna, que evidenciou como a política é uma guerra continuada por outros meios. Vale destacar, portanto, não só que as fronteiras que antes separavam bárbaros de civilizados foram implodidas no pensamento freudiano, mas também a correlata separação estanque entre guerra e política.

Segundo essa visada, é possível evocar o ensaio anterior sobre grupos, em que Freud ressaltara o papel dos laços inibidos em sua finalidade, as identificações, na manutenção da sociedade (Freud, 1921/1976c). Na resposta a Einstein, ele salienta a força de coerção da violência para a consecução desse objetivo. Descarta-se a possibilidade de imunizar o direito, as leis ou a soberania (seja lá qual for a forma assumida por esta) do mal da violência. Aliás, associar a violência a um mal é oportuno para a discussão da referida carta, pois Freud explica a Einstein sua teoria das pulsões à luz do segundo dualismo pulsional e faz questão de invalidar os esforços na tentativa de classificar as duas classes de pulsões conforme os juízos "de bem e de mal" (Freud, 1933/1976e, p. 252). Como vimos, ambas se apresentam amalgamadas e são fundamentais para a realização de todos os fenômenos da vida: enquanto Eros une, Thanatos ocupa-se do desligamento, da desfusão, tão essencial quanto o primeiro movimento.

Contrariando as expectativas da carta remetida por Einstein (Freud, 1933/1976), Freud nada mais fez do que demonstrar o imponderável da violência e sepultar o anseio pela paz definitiva entre os povos e, em última instância, entre os sujeitos. Mas isso não é suficiente para relegar sua teoria aos recônditos do pessimismo, pois Freud afirma-se um pacifista, exatamente como Einstein, a engrossar os grupos que se revoltam "tão violentamente contra guerra" (Freud, 1933/1976e, p. 256), embora a vitória no embate não seja garantida.

Em contrapartida, há a indicação da impossibilidade de eliminar em absoluto a ameaça de uma nova guerra, bem como livrar os laços sociais do estado de guerra no qual estão ancorados. Cai por terra também a ilusão de uma figura capaz de se tornar depositária da segurança dos homens, abalando a fortaleza da soberania tão marcante à época de Freud. Na guerra contra a destruição não há métodos eficazes, muito menos heróis, mas apenas "atalhos" (Freud, 1933/1976e, p. 259) pelos quais os homens se aventuram tragicamente frente ao imponderável.

Nesse sentido, inserir Freud em um dos dois grupos de teóricos citados - os que defendem a natureza violenta do homem e os que entendem a sociedade como o mal do homem, que o faz violento - também não passaria de um mero atalho, um recurso argumentativo apressado capaz de silenciar as especificidades de um paradoxo produtivo que confere ao pensamento freudiano um movimento pendular entre a expectativa de imunização da violência e a constatação de uma inclinação agressiva irredutível, que fomenta as manifestações violentas no social.

Desse modo, a despeito da pertinente descontinuidade ilustrada por Birman (2010) a partir da aproximação de Freud com os pensamentos de Rousseau e de Hobbes, não é possível circunscrever sua obra no quadro da classificação a respeito das teorias sobre a origem da violência, tão corrente no campo das ciências humanas. Essa impossibilidade também ressoa no próprio modo como Freud compreende o sujeito, marcado que é pela alteridade desde sua constituição e, como tal, muito distante da proposta que o toma como fundamento apartado daquele da sociedade. Indivíduo e sociedade não seriam campos distintos passíveis de serem eleitos para identificar a origem da violência. Ao contrário, a concepção psicanalítica de sujeito subverte essas categorias e, no que diz respeito ao tema proposto neste artigo, evidencia a dimensão excessiva pronta a implodir qualquer ordem: seja a que se convencionou chamar de social, seja a que se denomina individual.

 

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Endereço para correspondência:
Fernanda Canavêz
fernandacanavez@gmail.com

Submetido em: 15/02/2013
Revisto em: 30/09/2013
Aceito em: 20/11/2013

 

 

* Artigo referido à tese da autora, "Violência, trauma e resistência: sobre o múltiplo na psicanálise", orientada pela Profa Dra Regina Herzog, no PPG Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), defendida em 2012, com o apoio da CAPES.