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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.66 no.1 Rio de Janeiro  2014

 

ARTIGOS

 

Construção da imagem de si, desestabilização e adolescência

 

Self-image construction, destabilization and adolescence

 

La construcción de la imagen de sí mismo, la adolescencia y la desestabilización

 

 

Gisele Falbo Kosovski

Docente. Departamento de Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tendo como balizas teóricas a obra de Freud e o ensino de Lacan, o presente escrito toma como problema a edificação da imagem de si e as desestabilizações da imagem que acompanham o adolescer. Partindo do princípio de que o Eu não se desenvolve naturalmente, tem fronteiras maleáveis e se constrói na relação com o Outro, examinamos o processo de edificação da imagem. Com esse objetivo, nos valemos das reflexões freudianas acerca do narcisismo conjugadas às contribuições de Lacan sobre o esquema ótico e o estádio do espelho, em sua articulação com a castração e a subjetivação da falta. Para finalizar, trazemos uma breve análise do diálogo travado entre Wendla e sua mãe, na primeira cena da peça "O despertar da primavera", de Wedekind, de modo a localizar a desestabilização da imagem na adolescência como decorrência do desarranjo entre a imagem virtual e a imagem real em relação ao olhar do Outro.

Palavras-chave: Psicanálise; Corpo; Imagem; Adolescência.


ABSTRACT

Having as its theoretical basis Freud's work and Lacan's teaching, this paper brings, as main issue, the self-image construction process and the destabilizations of the image which, often, comes along with the onset of adolescence. Assuming that the function of the I doesn't develop on its own, has permeable borders and is built upon its relation to the Other, we examine the self-image construction process through freudian reflections about narcissism, added to Lacan's contributions over the optical scheme and the Mirror Stage in its interaction with castration and the subjectivity of the absence. Finally, we present a brief analysis of the dialogue between Wendla and her mother, in the first scene of the Wedekind´s major play "Spring Awakening", in order to situate the image's destabilization in adolescence as a result of the breakdown between the virtual image and the real image in relation to the Other's gaze.

Keywords: Psychoanalysis; Body; Image; Adolescence.


RESUMEN

Utilizando como fundamento teórico la obra de Freud y las enseñanzas de Lacan, este artículo toma como problema la construcción de la imagen de sí mismo y las desestabilizaciones de la imagen que, muy a menudo, acompañan a la adolescencia. Partiendo de la premisa de que el Yo no se desarrolla naturalmente, que tiene fronteras flexibles y se construye en su relación con el Otro, examinamos el proceso de construcción de la imagen de sí mismo como un cuerpo unificado. Para ello, utilizamos las reflexiones de Freud sobre el narcisismo, combinadas con las contribuciones de Lacan sobre el estadio del espejo y el esquema óptico, en su articulación con la castración y con la subjetivación de la falta. Por último, se presenta un breve análisis del diálogo entre Wendla y su madre en la primera escena de la obra "El despertar de la primavera" de Wedekind, con el fin de situar la desestabilización de la imagen en la adolescencia como resultado de la ruptura entre la imagen virtual y la imagen real en relación a la mirada del Otro.

Palabras clave: Psicoanálisis; Cuerpo; Imagen; Adolescencia.


 

 

Construção da imagem de si, desestabilização e adolescência

Tendo como balizas teóricas a obra de Freud e o ensino de Lacan, o presente escrito toma como problema a construção da imagem de si e as desestabilizações que acompanham o adolescer. Partindo do princípio de que o eu não se desenvolve naturalmente, tem fronteiras maleáveis e se constrói na relação com o Outro, examinamos o processo de edificação da imagem de si através das reflexões freudianas acerca do narcisismo, lidas à luz das contribuições de Lacan sobre o esquema ótico e o estádio do espelho. Dando prosseguimento, através da reflexão em torno da transmissão de um desejo que não seja anônimo, discutimos o processo de subjetivação da falta em articulação com a operação de castração.

Desse modo, concluímos que a estabilização da imagem de si e o controle sobre o corpo próprio dependem da acomodação de dois planos da imagem: a imagem real e a imagem especular, enquadramento que se compõe a partir do olhar e da autenticação do Outro. Para finalizar, nos remetemos ao diálogo travado entre as personagens de Wedekind (1891/1973), Wendla e sua mãe, por ocasião da confecção de um novo vestido para a menina que completa 14 anos. Esse pequeno recorte da peça nos servirá para arrematar nossa reflexão acerca da desestabilização da imagem no adolescer e dos impasses que se colocam a partir da emergência da porção do corpo não recoberta pela imagem edificada sob a égide do falo imaginário.

 

Adolescência e claudicações da imagem

A travessia que constitui o adolescer só se desdobra a partir da escolha que o sujeito precisa fazer ao ser deslocado da posição inerente à criança: sujeito inicialmente localizado no lugar de objeto - dos cuidados, atenção e proteção do Outro. Na neurose, tal empreitada exige um trabalho de luto intrínseco à desidentificação ao elemento que imaginariamente sustentaria a relação, que não existe, entre o casal parental: o Um (pai) e o Outro (mãe). Nessa trilha em direção à vida dita "adulta", será imperativo o esforço de transcrever os traços com os quais se teceu a tela que sustentava a criança no lugar de sintoma parental, permitindo, então, a reconstrução de sua versão fantasmática norteada pela impressão deixada pelo fantasma do Outro, de modo a poder responder como ser sexuado.

Além de não ter acesso ao ato sexual, a especificidade da "criança" - na perspectiva da psicanálise - é recortar um tempo lógico no qual o sujeito está inicialmente situado na posição de objeto. Essa localização é consequência do estado de prematuração e desamparo que caracteriza o rebento humano. Conforme veremos, estar investido nesse lugar é propiciador da construção de uma primeira versão de si mesmo: uma imagem significante (S1) que o represente como sujeito frente ao Outro (S2), constituindo um laço social.

A edificação do discurso - laço social - é o que estrutura o mundo e implica necessariamente uma perda de gozo, um resto - marcado nos matemas lacanianos pela letra a. No plano recortado por Lacan (2003b) através do termo falasser, termo que estabelece articulação entre o sujeito e o gozo, o conceito de masoquismo originário responde - na obra de Freud (1924/1974) - por esse resíduo no eu, aderência a um gozo que resulta do enlace entre Eros e Tânatos. Essa porção opaca do eu permanece como ponto não especularizável e concerne à ausência de satisfação total inerente ao humano, animal mordido pelo verbo.

A inexistência de satisfação plena sobre a qual se estruturam o discurso e as relações de objeto fica simultaneamente velada e enquadrada pela imagem que não se limita apenas ao nível especular. Através das reflexões de Lacan em A angústia (2005), evidencia-se que o processo em torno do qual se constrói a imagem de si é correlativo ao enquadramento de dois planos: da imagem virtual e da imagem real. No que concerne à edificação do eu, há, portanto, uma projeção virtual de si e um resto - sombra não dialetizada pela ação do significante. Esses diferentes planos do eu se acomodam pelo enquadramento e autenticação que lhe oferece o olhar do Outro. Como decorrência das mudanças impostas pela puberdade, contudo, esse primeiro arranjo está necessariamente fadado a sofrer certa desestabilização.

Com o retorno da sexualidade adormecida durante o período de latência, o sexual ressurge afetando a imagem corporal, que claudica em face ao estranho que habita o corpo próprio. Não se trata aqui de uma mudança de ordem biológica, mas das consequências psíquicas da entrada em cena desse real que desarranja e desestabiliza a imagem de si que se projeta como corpo. A construção de outro enquadramento que viabilize uma nova estabilização, diverso do sustentado na condição da criança, é, portanto, correlativa a uma mudança no laço social suportada pelo olhar do Outro.

Dito de outro modo, trata-se, nesse momento, da entrada em cena do a antes velado pela imagem fálica da criança. Os pelos que brotam sobre a pele imaculada, as espinhas, os seios que se apontam e a voz que desafina são mudanças corporais que podem funcionar - psiquicamente - como índices da irrupção do objeto que desarruma a Gestalt montada a partir da imagem cunhada pela operação do espelho (Lacadée, 2011) - vestimenta com a qual inicialmente se recobriu o despedaçamento do corpo pulsional inerente ao autoerotismo. Antes de nos determos mais cuidadosamente sobre sua porção não especularizável, é necessário tecer algumas considerações sobre as relações entre a edificação da imagem e o narcisismo.

 

A função da recuperação narcísica na construção da imagem do corpo

Seguindo a leitura que Lacan faz de Freud, através da recuperação do narcisismo perdido dos pais, pela identificação com a imagem do corpo unificado que o representa frente ao Outro - nova ação psíquica que possibilita a passagem do autoerotismo ao narcisismo - , antecipa-se o controle do corpo (Lacan, 1998). Frente ao estado de prematuração em que nasce o bebê humano, esse controle é inicialmente apenas uma projeção ilusória. Destacamos que a identificação à imagem especular é a chave para a subsequente aquisição de domínio sobre o corpo, e também para o posterior desenvolvimento das funções do eu no período nomeado infância.

Para além do velamento introduzido por esse arranjo que configura a projeção de uma superfície aparentemente unitária, jaz, no entanto, a fragmentação intrínseca à dispersão talhada pelas zonas erógenas inscritas pelos cuidados do Outro materno. E, a despeito do progressivo desenvolvimento das funções do eu que virão a lhe conferir certo sentimento de autonomia, conserva-se a dispersão própria ao corpo pulsional. Como marcado por Lacan (1992) em sua teorização dos discursos, o sentimento de ser idêntico a si mesmo e alheio à divisão é apenas um mito ultrarreduzido alentado pela mestria do senhor (S1), capa passível de ser desestabilizada.

Com os solavancos da vida, a projeção de si como unidade esférica e imaculada engendrará nostalgia. Como decorrência dos abalos sofridos pela onipotência infantil, o sujeito se vê obrigado a afastar-se da identificação à ideia de perfeição. Desse modo, ele se distancia da imagem ideal, que passa, então, a ser alvo do amor de si nutrido na infância. O abandono da satisfação narcísica antes fruída pelo eu que se supunha ideal - como sempre acontece quando a libido está envolvida - é tênue. Tênue, uma vez que o sujeito resiste a abrir mão da satisfação outrora desfrutada, não estando disposto a renunciar à suposta perfeição narcisista de sua infância (Freud, 1914/1974, p. 112). Dentre os recursos de que dispõe para reaver o amor de si, a chegada de um filho pode funcionar como ensejo para a recuperação do narcisismo perdido.

De acordo com Freud, o anseio pela excelência perdida se evidencia na atitude de alguns pais que se acham "sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho - o que a observação sóbria não permitiria - e a ocultar e esquecer todas as deficiências dele" (Freud, 1914/1974, p. 108). Se depender de seu empenho, as restrições à vontade da criança "não a atingirão, as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas a seu favor, ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação - sua Majestade o bebê, como outrora nós nos imaginávamos" (Freud, 1914/1974, p. 108). Nota-se que a exigência de completude engendrada pelo narcisismo despreza "as leis da natureza e da sociedade" (Freud, 1914/1974, p. 108) e é correlativa, no plano pulsional, a uma satisfação que se quer toda.

Situado no lugar de sua Majestade, o bebê se constitui não apenas como um sujeito inicialmente situado na posição de objeto, mas também como suporte sobre o qual se projeta a ilusão de completude e excelência, veiculando inicialmente, conforme explicitado, a recuperação da satisfação narcísica abandonada pelos pais. Nas palavras de Freud: "Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, teremos que reconhecer que ela é uma revivência de seu próprio narcisismo que há muito abandonaram" (Freud, 1914/1974, p. 107).

Imantada como elemento que resgata os desejos não realizados pelos pais, a criança reativa a busca da perfeição e satisfação - desde sempre perdidas - e funciona como depositário das aspirações parentais. E, correlativamente, tem acesso às suas falhas e carências, o que estabelece uma homologia entre o significante mestre (S1) e o objeto (a). Tal homologia se refere à posição que o elemento a ocupa no discurso do mestre, como mais de gozar, localização na qual o a indica uma ausência de satisfação que se quer ganho ou gozo suposto a ser restituído. Conforme apresentaremos a seguir, a apreensão da falta pelo infans e a tentativa de recuperação da satisfação narcísica dos pais são operações estruturantes no processo de constituição subjetiva.

 

Narcisismo, castração e apreensão da falta como constitutiva

Com relação à apreensão da falta, retomando as reflexões freudianas sobre a feminilidade, Lacan pondera: "a criança só intervém como substituto, como compensação [...] numa referência, qualquer que seja, ao que falta essencialmente à mulher" (Lacan, 1995, p. 247). É através do que falta imaginariamente à mulher que, pouco a pouco, a mãe - como Outro materno - vai sendo situada e apreendida pela criança como marcada por uma falta fundamental. Falta que a criança procurará complementar. Nota-se que a "mãe" se coloca como uma função fálica, elidindo a mulher, dado que supõe seu complemento: o filho. De acordo com Lacan, esse jogo de engodo fálico é constitutivo:

[...] trata-se de que a criança inclua a si mesma na relação como objeto do amor dos pais; de que ela apreenda que traz prazer à mãe. Esta é uma das experiências fundamentais da criança, a saber, que sua presença requer, por menos que seja, a presença que lhe é necessária (Lacan, 1995, p. 229).

De onde se conclui que, de algum modo, ser amado - estar na posição de objeto do desejo - é estruturante. A partir daí se coloca a questão: mas como a criança pode apreender o que ela é para a mãe? De modo independente das contingências da história, em graus diferentes conforme o caso a caso, a mãe conserva o Penis-neid. Lacan observa que, nesse ponto de vista, trata-se da função que o bebê tem para a mãe. A pergunta a ser formulada, do lado materno, é se a criança se situa como metáfora ou metonímia do falo como objeto do desejo, tendo em vista que não é a mesma coisa "o fato da criança ser, por exemplo, a metáfora do amor pelo pai ou a metonímia de seu desejo pelo falo que ela não tem e não terá jamais" (Lacan, 1995, p. 248).

É importante notar que, para que a falta seja constitutiva, o importante não é ser o falo materno - dado que se trata do atravessamento da linguagem nas figuras da metáfora ou da metonímia. Para além da suposição de ocupar ou não o lugar indicado pela inveja do pênis, o fundamental é que a questão se coloque para o sujeito: ele preenche ou não esse lugar? Isso porque a formulação da referida pergunta já é, em si, indicativa de que a criança não está só como a mãe, estabelecendo o esboço da dimensão simbólica através da construção de uma primeira tríade: a mãe, o desejo da mãe e a criança. Nesse caso, embora ainda de modo frágil, o pai já se faz presente através do desejo que descompleta a dualidade imaginária. Vale reiterar que essa trinca é composta por perspectivas disjuntas que não se complementam: a inveja do pênis para a mãe e a descoberta da mãe fálica pela criança, o que nos envia ao problema posto pela castração.

 

A subjetivação da falta

O ensino de Lacan nos esclarece que, em Freud, "a experiência da castração gira em torno da referência ao real" (Lacan, 1995, p. 224). Se a função do desejo requer a apreensão da falta, tal apreensão se faz primeiramente através de sua incidência no plano real, ou seja, como privação - falta real. Mas como situar a experiência da "castração" no real, se por definição o real é pleno? De acordo com Lacan, "o furo real da privação é justamente uma coisa que não existe" (Lacan, 1995, p. 225) e que, portanto, só pode ser imaginada. Por conseguinte, para se imaginar que algo falta no real, é preciso que já se tenha simbolizado um bocado: pois indicar que alguma coisa não está ali é supor sua presença possível, é introduzir no real, para recobri-lo e perfurá-lo, a simples ordem simbólica (Lacan, 1995, p. 224).

A subjetivação da falta real - privação - só se dá na medida em que o pênis que a mulher não tem é situado como simbólico, como objeto de dom. Algo que se dá em estado simbólico: "o falo, a mulher não o tem, simbolicamente. Mas não ter o falo, simbolicamente, é dele participar a título de ausência, logo, é tê-lo de alguma forma" (Lacan, 1995, p. 154). Dito de outro modo, somente sob a égide da primazia do falo é que se pode dizer que a mulher não o tem. O dom fálico cria a abertura para que ela possa tê-lo, simbolicamente, sendo essa a promessa que empurra a menina a entrar no complexo de Édipo. É por intermédio da relação ao falo que as mulheres ingressam na cadeia de trocas simbólicas e que tomam seu valor: "a do falo que elas recebem simbolicamente, em troca do que elas dão essa criança, que assume para elas função de Ersatz, de substituto, de equivalente do falo [...]" (Lacan, 1995, p. 156).

A apreensão da privação requer, assim, uma operação que edifica a equação simbólica bebê = falo; falo como objeto imaginário, dado que, conforme já explicitado, as mulheres não o têm. Essa equivalência torna o falo presente e ausente e estabelece a não relação entre a criança e a mãe. De acordo com o que foi visto, como ao real não falta nada, a castração - entendida como falta simbólica - só entra em jogo na medida em que incide sobre um objeto imaginário. Esta toma por base a apreensão, no real, da ausência de pênis na mulher. E é por essa via - daquilo que se supõe faltar à mulher - que a mãe poderá transmitir "a marca de um interesse particularizado" (Lacan, 2003, p. 369). Lembramos que, tanto para aqueles que se situam na partilha dos sexos do lado masculino quanto do feminino, a falta de objeto está colocada.

Ainda que a falta seja inerente à estrutura do discurso, a irredutibilidade da transmissão do desejo - de modo diverso do campo das necessidades - implica que este não seja anônimo. Para tanto, nele devem se conjugar as marcas inscritas pelas faltas do Outro materno relativizadas pela incidência do pai, "na medida em que seu nome é o vetor da Lei do desejo" (Lacan, 2003a, p. 369). A metaforização do desejo materno pela incidência do desejo do pai é uma operação que viabiliza que a criança não se estabeleça como objeto diretamente correlato da fantasia materna.

Desse modo, cria-se a distância necessária entre a identificação ao ideal do eu e o papel assumido pelo desejo materno, livrando a criança das capturas fantasísticas que a localizariam como objeto que sutura e extravia o desejo da mãe. Tal mediação simbólica é assegurada pela função do pai.

 

Construção e desestabilização da imagem de si

Conforme desenvolvemos anteriormente, para que a criança possa ter acesso à significação fálica - à significação da falta no Outro - , faz-se necessária a atualização da castração nos pais: da mãe que não reintegrará seu produto e do pai que - no Édipo - é o autor da lei; um legislador que, "como todos, não pode garanti-la, pois também sofre da barra que faz dele, na medida em que é o pai real, um pai castrado" (Lacan, 1989, p. 106). Pela ação do pai, frente à falta - a negativização do falo - configurar-se-á um lugar simbólico ao qual a criança poderá vir a responder.

Assim, brincando de ocupar os diferentes lugares indicados imaginariamente pelo falo como significante da falta, a criança vai construindo seu eu como cemitério dos laços amorosos abandonados. O sentimento do eu no adulto é resultado, portanto, de uma construção. E, a despeito das fantasias de solidez e integridade, os contornos do eu são maleáveis e suscetíveis a instabilidades. Muito embora, no sentido exterior, o eu pareça manter linhas de demarcação claras e nítidas, Freud nos adverte:

O ego nos aparece como algo autônomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais. Ser essa aparência enganadora - apesar de que, pelo contrário, o ego seja continuado por dentro, sem qualquer delimitação, por uma entidade mental inconsciente que designamos como id, à qual o ego serve de fachada - configurou uma descoberta efetuada pela primeira vez através da pesquisa psicanalítica [...] (Freud, 1930/1974, p. 83).

Como testemunho de que "as fronteiras do ego não são permanentes" (Freud, 1930/1974, p. 84), Freud nos remete não apenas às situações consideradas patológicas - à inflação do eu característica dos quadros de megalomania; às alterações verificadas na hipocondria; e aos quadros de despersonalização que muitas vezes precedem as aberturas de surtos psicóticos - , mas também ao auge do amor, no qual os limites entre o eu e o objeto amado parecem se diluir. Sendo assim, o semblante fálico de si é uma ficção e pode vir a ser desarrumado e desestabilizado frente a situações que devem ser examinadas caso a caso.

Ao longo da vida, contudo, há momentos mais propícios à claudicação do plano das identificações nos quais a dimensão de semblante inerente à unidade atribuída ao eu se evidencia. Dentre eles, destacamos as desestabilizações promovidas pela puberdade. As mudanças corporais abruptas e a possibilidade do ato sexual, bem como a sexualidade que então se torna genital, interrogam frontalmente a unidade da imagem edificada sob a égide do falo imaginário e questionam a identificação do sujeito ao lugar marcado pelo falo, ponto sobre o qual ilusoriamente repousava o olhar do Outro.

Correlativamente à vacilação da imagem significante, nesse momento da constituição subjetiva, atualiza-se novamente a perda de controle sobre o corpo próprio. No nível dos fenômenos, esta pode ser lida na figura do adolescente "estabanado"; ou ainda nas roupas usadas por muitos jovens, numa sobreposição de peças descontinuadas, formando um mosaico que pode ser tomado como metáfora da criação de um novo tecido - atualizando e dando tratamento ao corpo fragmentado e estranho a si mesmo (Lacan, 2005).

Conforme foi visto, ao longo do processo de desenvolvimento próprio à infância, a ilusão inicialmente acalentada pelo bebê de estar situado no centro do universo familiar pouco a pouco vacila, como decorrência da entrada em cena de outros elementos. Com a irrupção das modificações impostas pela puberdade, o sujeito é frontalmente deslocado do "Cosmo" (Lacan, 2005), no qual cada coisa tinha seu lugar marcado pela hierarquia erigida sob a égide do falo. Esse solavanco força um trabalho de luto não apenas da autoridade paterna (Freud, 1905/1974), mas também do lugar que ele antes habitava como criança e que, a partir de então, se torna insustentável.

Entendemos que a diferença entre os questionamentos que relativizam a ilusão de mestria de "Sua Majestade" - na infância - e a radical entrada em cena do estranho a si em si mesmo, invasão que na puberdade precipita a travessia do adolescer, se situa no nível das consequências da irrupção do gozo não recoberto pelo falo (Lacan, 1985).

Embora menos estrondosa, a aparição do estranho em si mesmo também pode ocorrer na infância. Como exemplo, podemos citar a "perda dos dentes de leite e o crescimento dos dentes definitivos" (Rassial, 1999, p. 202) ou, como nos indica a leitura que Lacan (1995) faz de Hans, a emergência do pênis que se agita. Na adolescência, contudo, tal irrupção impõe ao sujeito a tarefa de inventar uma resposta singular "para gerir a alteridade radical do Outro sexo" (Lacadée, 2011, p. 77). Isso porque, com a puberdade, os deslocamentos em relação ao falo encontram ressonância irremediável no corpo próprio - pelo sexual que ressurge após o período de latência e que produz satisfações inéditas, que exigem a construção de novos trilhamentos.

De acordo com Capena e Vocaro (2012), a potência desse excedente pulsional embaraça o sujeito, fazendo buraco no simbólico. Em face à desestabilização que o encontro com o real provoca, e aceitando a exigência de trabalho que se impõe ao psiquismo como decorrência de sua ligação ao corpo que se modifica, caberá ao púbere desinvestir as figuras parentais rumo à edificação de um novo laço social (Lacadée, 2011). Esse trabalho psíquico implica a construção de novas vias de escoamento para o mal-estar provocado pela emergência do pulsional.

A chama da juventude reside, assim, na intensidade renovada que brota do pulsional e da expectativa do encontro que se coloca a partir da possibilidade do ato sexual. No entanto, vendo-se desprovido dos pequenos objetos - os brinquedinhos - com os quais cativava as outras crianças e estabelecia suas parcerias, o adolescente se confronta com o fosso que o separa daqueles que antes facilmente se colocavam como semelhantes. Com a queda do véu que recobria o desencontro com o Outro, torna-se inevitável encarar o impossível da relação sexual e o mal-estar do sexo.

Esse despertar dos sonhos que embalavam o período de latência é o tema do clássico de Wedekind (1891/1973), O despertar da primavera, no qual o autor narra impasses e descaminhos enfrentados pelos sujeitos na travessia do adolescer. Muitas são as questões que podem ser trabalhadas através desse texto que é referência indispensável para os psicanalistas que se debruçam sobre os enigmas colocados por essa "delicada transição" (Lacadée, 2011).

Para finalizar nossa argumentação, recortamos apenas o diálogo inicial travado entre Wendla e sua mãe - Sra. Bergmann - em torno da tentativa materna de confeccionar um novo vestido para a jovem que ganha corpo. Parece-nos bastante significativo que o dramaturgo tenha escolhido, como abertura da trama, essa conversa entre mãe e filha, pois entendemos que esse diálogo alude tanto às mudanças corporais do púbere quanto ao deslocamento deste em relação ao olhar do Outro; além de indicar o inevitável desacerto e insuficiência do Outro materno em dar tratamento e nova roupagem para a porção do corpo que se aponta para além da cobertura fálica da criança.

Acreditamos, portanto, não ser por acaso que Wedekind inicia a ação dramática da peça precisamente com essa cena. E consideramos que ela metaforiza com poesia e bastante clareza o que estamos chamando de desestabilização da imagem na adolescência: o desarranjo entre a imagem real e a imagem especular em sua articulação com o olhar do Outro. Conforme pretendemos marcar, através das respostas de Wendla, é possível verificar que o engodo fálico entre a mãe e a filha já se evidencia como uma ficção que encontra seus limites.

Sabemos que uma das tarefas que mais exige esforço e investimento maternos em face ao infans, como marca Jerusalinski (1999), é verter o peito em dom, a merda em presente, a voz em chamado e o olhar em interpelação. Esse empenho visa recobrir e tentar cerzir o que incessantemente aparece como abertura: "a insuficiência (normal) de sua criança, a queda incessante dos buracos que no corpo se oferecem e a chamam para serem preenchidos" (Jerusalinski, 1999, pp. 26-27). Esses orifícios, lugares de entrada e saída, portarão as marcas simbólicas inscritas pelo Outro e ajudarão a desenhar a borda do objeto que, na neurose, oferecerá seu lugar à busca que o desejo inaugura.

Com a irrupção da puberdade, no entanto, os esforços maternos em conferir significação e cobertura ao corpo que se transforma se mostram inquestionavelmente insuficientes e caducos. Pois o "corpo tomado como semblante fálico, ou seja, como substituto do que falta à mulher e equivalente do desejo do que lhe falta, se encontra perturbado pela irrupção do gozo" (Lacadée, 2011, p. 77). E, como decorrência, o enlace da imagem do corpo com o corpo pulsional, que até então sustentara o corpo simbólico da criança, se modifica. Nessas condições, o laço social que amarra o sujeito no discurso precisará se recolocar. Tal operação exige, portanto, um novo arranjo entre os elementos que compõem a estrutura, provocando desestabilizações na imagem de si.

Essa desestabilização da imagem correlativa à emergência do pulsional exige, do sujeito, trabalho psíquico, de modo que ele possa construir recursos para se deslocar da posição de objeto - dos cuidados, da afeição, do desejo do Outro parental - rumo a um novo laço que o situe, à luz do olhar do Outro, como sujeito desejante. No contexto recortado por nosso trabalho, portanto, o diálogo inicial entre Wendla e sua mãe nos permite dar corpo ao problema da desestabilização da imagem inerente ao adolescer.

Como dissemos, o contexto cênico em questão enquadra a prova do novo vestido que a mãe tenta confeccionar para a filha que completa 14 anos. Apesar do esforço da Sra. Bergman em tentar talhar uma indumentária sob medida, é evidente o desconforto de Wendla dentro da nova roupa. Ela não lhe veste bem, é muito comprida, nas palavras da personagem: "[...] se eu usar este vestido agora, vou tropeçar na bainha!" (Wedekind, 1990, s/p) - fala que alude à desestabilização e indica que a menina, em seu corpo real, está muito aquém da projeção materna. O que nos permite situar a desestabilização da imagem em função do desarranjo entre a imagem real (o corpo da menina) e a imagem especular (aquilo que se projeta como imagem do corpo metaforizada na figura do vestido), em face do olhar da Sra. Bergman (na função de Outro materno).

Frente ao desencontro entre o que se projeta como imagem e o real do corpo, Wendla sugere guardar a roupa nova para o ano seguinte. Proposta que abre espaço para que a mãe confesse sua dificuldade em abrir mão de seu complemento fálico: "[...] filha, eu bem gostaria de te guardar tal e qual como estás agora" (Wedekind, 1891/1973, p. 38). E, na busca de ainda compartilhar com a filha a fabulação da feição que esta poderia vir a ter quando crescesse, pergunta: "Quem sabe como virás a ser quando as outras se desenvolverem?" Pergunta que faz com que a mãe se confronte com um vazio que surge do lado da menina: "Quem sabe? Talvez eu nem exista [...]" (Wedekind, 1891/1973, p. 38).

Essa frase de Wendla, presentificando algo do real, faz com que a mãe retroceda: "Você venceu! Vai, guarda o vestido novo e veste o velho"1. Não sem, contudo, adverti-la para a possibilidade de "descer um pouco a bainha", de maneira que a roupa continuasse a recobrir o corpo não mais tão infantil, de modo a sustentar, por algum tempo ainda, o semblante fálico da criança.

Disfarçando o embaraço frente ao sexual que já se aponta para além da dimensão fálica que situava sua menina no lugar de "tesouro da mamãe" - termo tomado como equivalente a "Sua Majestade" em Freud - a Sra. Bergmann se refere à necessidade de reformar a antiga roupa com a desculpa de que sua filha "acabe pegando um resfriado". Argumento ao qual a menina responde com ironia, lembrando-a da concessão que lhe faz ao sustentar, ainda por algum tempo, o engodo fálico: "Mamãe, nem as crianças pegam resfriado nos joelhos. [...] Na minha idade as pessoas não sentem frio, muito menos nas pernas! Ou a senhora prefere que eu morra de calor? Mamãe, a senhora tem que dar graças a Deus por sua filha, seu tesouro, voltar sempre cedo para casa...". Entendemos que a ironia de Wendla é indicativa de que ela já se deslocou do lugar de criança.

No contexto deste artigo, consideramos, portanto, que a fala de Wendla marca não apenas o deslocamento da personagem do lugar de objeto de resgate narcísico da mãe - deslocamento da posição de "tesouro" da mãe, seu "único bem" - , mas também a indicação da presença de algo mortífero que decorre da insistência ou permanência nessa posição, e que pode ser lida na frase: "Ou a senhora prefere que eu morra de calor?". Concluindo, podemos dizer que, através dessa pequena passagem, Wedekind nos possibilita situar a desestabilização da imagem como inerente ao despertar do sexual. E nos ensina que, embora sofrida ou arriscada, essa claudicação da imagem faz parte da necessária travessia do sujeito rumo a uma posição desejante.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Gisele Falbo Kosovski
gifalbo@centroin.com.br

Submetido em: 02/03/2013
Revisto em: 08/02/2013
Aceito em: 23/02/2014

 

 

1 Ato 1, Cena 1, extraída da versão livre UNIRIO (Wedekind, 1891/1990, s/p). Com o objetivo de tornar a leitura mais fluida, as citações que se seguem são referentes ao mesmo trecho da obra, na versão livre cedida pela biblioteca da UNIRIO.