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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.66 no.1 Rio de Janeiro  2014

 

ARTIGOS

 

O sujeito da psicanálise não é sem corpo*

 

The subject of psychoanalysis is not disembodied

 

El sujeto del psicoanálisis no es sin cuerpo

 

 

Andréa VilanovaI; Marcus André VieiraII

IDocente. Especialização em Clínica Psicanalítica. Instituto de Psiquiatria (IPUB). Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O parentesco da psicanálise com a ciência encontra-se a partir de Lacan ancorado em uma forma de pertencimento definida em termos de exclusão interna, uma pertença topológica. O sujeito que opera no discurso psicanalítico é o sujeito advindo como efeito do discurso da ciência, cuja operação de literalização da natureza faz emergir o próprio sujeito, mas como elemento foracluído de sua operação. Verifica-se com Lacan que, quando se trata do real, a linguagem não é capaz de recobri-lo, há sempre um resto, com o qual Lacan escreverá o objeto a, suporte da presença do sujeito no mundo que define a experiência psicanalítica como uma prática que transcende os limites da lógica significante.

Palavras-chave: Ciência; Sujeito; Objeto a; Corpo.


ABSTRACT

Lacan's teaching brings the idea that psychoanalysis is related to science in terms of an internal exclusion, in a kind of topologic form of belonging. The subject in discourse is the subject that emerges as an effect of the discourse of science that, with its effect of making nature literal, gives rise to the subject as a precluded element of its operation. Through the notion of "real," Lacan points to what remains necessarily uncovered by language, an indivisible remains that Lacan writes as the object petit a, support of the subject in the world that defines the psychoanalytic experience as a practice that transcends the limits of the logic of the signifier.

Keywords: Science; Subject; Object petit a; Body.


RESUMEN

La relación entre el psicoanálisis y la ciencia  se encuentra, a partir de Lacan, anclada en una forma de pertenencia que se define en términos de exclusión interna, una pertenencia topológica. El sujeto que opera en el discurso psicoanalítico es el sujeto que adviene como un efecto del discurso de la ciencia, cuya operación de literalización de la naturaleza emerge el sujeto en sí mismo, pero como un elemento forcluido de su funcionamiento.  Con  Lacan, se puede verificar que cuando se trata de lo real el lenguaje no es capaz de recubrirlo, siempre hay un resto con el cual Lacan escribirá el objeto a, soporte de la presencia del sujeto en el mundo que define la experiencia psicoanalítica  como una práctica  que trasciende los límites de la lógica significante.

Palabras clave: Ciencia; Sujeto; Objeto a; Cuerpo.


 

 

Com efeito, se uma experiência científica - como Galileu tão bem exprimiu - constitui uma pergunta formulada à natureza, é claro que a atividade cujo resultado é a formulação dessa pergunta é função da elaboração da linguagem na qual essa atividade se exprime (Koyré, 1991, p. 272)

 

Introduzindo nosso argumento

Esse artigo visa revisitar em Lacan as referências em que se apoia para constituir sua teoria do sujeito atrelada à linguagem, considerando que não podemos reduzi-lo a um constructo linguístico. Veremos como essa mesma determinação que funda o sujeito como efeito discursivo encontrará no ensino de Lacan a exigência de reformulações fundamentais para comportar o que excede aos contornos da própria linguagem. Como nos orienta Miller (2000), trata-se em Lacan de uma insistência em promover a articulação dessa determinação engendrada pela linguagem em termos discursivos, mas sem negligenciar a perspectiva da satisfação revelada pela leitura introduzida por Freud na clínica. A articulação entre a lógica do sujeito e a evidência da satisfação compõe em Lacan um fio condutor da trajetória de seu ensino, considerando que não há nada de linear nesse percurso marcado por descontinuidades1.

O campo de intervenção e de investigação que a descoberta freudiana inaugura, com suas exigências éticas e metodológicas, não cessa de nos interrogar e de nos convidar ao trabalho. Com Lacan, guiados por seu estilo particularmente inquietante, propomos retomar algumas de suas referências, buscando dialogar com algumas das teses que orientam o campo que se compõe entre o sujeito e sua satisfação. Situaremos, portanto, nosso artigo entre o momento estruturalista de Lacan e a introdução do objeto a. Para tanto, percorreremos os passos de Lacan em sua discussão acerca das relações da psicanálise com a ciência moderna, localizando aí o fundamento de sua concepção de sujeito. Pretendemos ainda circunscrever a torção que seu ensino sofre para permitir dar lugar à satisfação dentro dessa concepção.

 

O parentesco da psicanálise com a ciência

O campo da experiência humana não pode ser pensado fora da perspectiva de que estamos num universo discursivo. Essa é uma afirmação que ganha valor de verdade ao apoiarmos nossa discussão sobre as bases do que se denomina o corte epistemológico entre a episteme antiga e a moderna. Essa via de elaboração, dentro da orientação lacaniana, encontra em Koyré uma referência submetida por Lacan a "fins que lhe são alheios", como afirma Milner (1996, p. 9). O eixo fundamental do pensamento de Koyré que orienta a démarche lacaniana é o corte epistemológico que estabelece o advento do discurso da ciência como científico e como moderno. A ruptura com o conhecimento antigo baseado na imaginarização do universo, concebido em termos de modelos mentais desde Aristóteles, dá lugar a uma hipótese fundamental que orientará a ciência a partir de então: a natureza pode ser lida como um texto escrito. Como efeito de uma reorientação fundamental da leitura do mundo, a física-matemática produziu a possibilidade de uma abertura do mundo e de seus fenômenos às equações matemáticas, com uma consequente exigência de leitura que se liga ao significante separado de toda significação imaginária. Isso resume o que se constitui como o efeito de uma inversão fundamental que exclui a perspectiva de um acesso ao saber a partir de propriedades sensíveis (Koyré, 1991).

Koyré (1991) designa a Galileu, a partir da matematização da física que promove, o papel de protagonista dessa ruptura que instaura um modo inédito de apreensão do real. Uma vez que a matematização dos fenômenos da natureza revelaria suas leis de funcionamento, permitindo uma leitura do mundo, não se trata mais de tomar modelos ideais e eternos, de um mundo fechado. Do mundo esférico, finito, concebido dentro de uma composição fixa, a partir de imagens rígidas, ao universo infinito, calculável, estamos diante de uma ruptura introduzida por Galileu com sua hipótese de escrita da natureza forjada em caracteres matemáticos. No livro em que a própria natureza se converte, aberto a quem souber ler e desvendar, encontra-se o saber suposto habitar o próprio mundo convertido nessa escrita prévia. A ciência moderna é, portanto, fruto da renúncia à atribuição de significação imaginária ao movimento dos corpos celestes. A descoberta da linguagem falada pela natureza, a matemática, conduz a uma desimaginarização do universo que instaura um novo modo de interrogar a própria natureza.

A experiência do mundo obedecerá, a partir de então, às exigências de uma matriz discursiva que prescreverá modos de leitura das cifras que encarnam a própria linguagem dos fenômenos naturais. Koyré (1991) situa o pensamento científico moderno através de seus traços fundamentais: a substituição de um espaço homogêneo e abstrato por outro concretamente calculável, geometricamente concebido, rompendo com a concepção de um cosmo fechado e abrindo-o para o infinito que a física-matemática permite entrever. "Galileu talvez seja o primeiro espírito a acreditar que as formas matemáticas eram efetivamente realizadas no mundo. Tudo o que existe no mundo está submetido à forma geométrica; todos os movimentos são submetidos a leis matemáticas" (Koyré, 1991, p. 54, grifado no original).

Ao estabelecer a fórmula como matriz da própria escrita do mundo, Galileu converte o mundo em escrita, abrindo caminho para o modo próprio de concepção do real presente na ciência. Se na época clássica a forma primava sobre a fórmula, a física matematizada promove uma conversão de perspectiva. A ciência moderna fez operar leis que prescindem dos corpos celestes. Trata-se de tomar esse discurso pela perspectiva de uma eficácia do número, na medida em que a realidade é tomada como já dada, restando ao homem de ciência a tarefa de revelar o que já está na natureza ao modo de uma escrita, e não sob a forma de imagens cristalizadas.

Dizer que as leis que regem os fenômenos são extraídas do real faz notar que a ciência moderna prescreve uma certa posição diante do próprio real da experiência, o que não corresponde a pensar em uma superposição da fórmula sobre a natureza. A matematização do universo é a face do próprio real. Trata-se, na verdade, de "substituir o mundo real da experiência quotidiana por um mundo geométrico hipostasiado" (Koyré, 1991, p. 184). A inteligibilidade que está em jogo adquire, através do número, a base que instaura a própria potência operativa da ciência formulada enquanto discurso.

O número, a cifra matemática, se apresenta como o elemento fundamental dessa escrita que se permite legível nas fórmulas que se podem compor. Pode-se dizer que toda operação de leitura está vinculada ao número, que figura como a presença de significantes no real, tomando a matemática como a linguagem universal que oferece ao discurso científico o seu alcance infinito, tanto pela possibilidade infinita do cálculo quanto pela ausência de barreiras culturais para sua transmissão, já que estamos diante de uma linguagem universal.

A operatividade que a ciência consegue realizar através da matemática repousa em última instância na íntima correspondência ou no copertencimento entre número e ente objetivado, e a única condição é que o ente objetivado seja idêntico a si mesmo, seja o ente cujas diferenças qualitativas sejam reduzidas à indiferença quantitativa. Só como idêntico a si mesmo o ente pode ser objeto de cálculo (Focchi, 2012, p. 197).

Estamos num plano em que a fórmula falaria por si mesma se os planetas falassem. Segundo Lacan (1998c), a operatividade que está em questão na ciência, apoiada em seu modo de tomar o número como o próprio real, desconhece qualquer singularidade, pois o que está em jogo é a própria verdade suposta existir em estado latente nos fenômenos: a fórmula seria a transcrição sem resto do que já está escrito e não depende de ninguém. Mas Lacan, ao reintroduzir a discussão aberta por Freud quanto ao lugar da psicanálise na ciência, o faz abrindo uma via inédita. Lacan empreende o seu projeto de leitura de Freud a partir de suportes que lhe permitirão estabelecer um modo de acesso ao pensamento freudiano, resguardando seu caráter de ineditismo e restaurando a dimensão radical em jogo nesse campo que inaugurou, separando-o de qualquer perspectiva humanística, diversamente de outras iniciativas pós-freudianas.

Desde a Antiguidade existem artes da língua: gramática, filologia, tradução, retórica, história, etc. A tradição freudiana lhes concede importância. Não só porque dizem algo sobre seu objeto, mas também porque constituem, em seu acréscimo e articulação, o que ainda hoje se dá ao chamá-la cultura humanística. Sabe-se quanto valor assinalava Freud a esta última. Lacan não esteve menos marcado por ela. Mas justamente devido a isto, toma como inútil voltar-se sobre estas artes e estas técnicas: sua pertinência cai de madura [...] (Milner, 2003, p. 143).

O retorno de Lacan a Freud sustenta-se num modo de articulação da psicanálise à ciência fundada na perspectiva de que a matematização da ciência não se sustenta na medida, mas na literalização. A perspectiva da fórmula, da cifra matemática, introduz um modo de acesso próprio ao mundo das coisas que não se limita a tomá-lo pela medida, mas pelo que está em jogo na própria escritura do mundo, tomado enquanto tal. E esse requisito fundamental da ciência moderna não exclui a ciência linguística, que será para Lacan a base para suas extrações e proposições, no aparelhamento de seu ensino. Mas, na medida em que efetua, a seu modo, o enlace entre psicanálise e linguística, sustenta-se numa ruptura com a própria linguística, como destaca Milner (2003), pois Lacan situaria suas referências num campo que escapa à própria linguística.

O parentesco da psicanálise com a ciência encontra-se, a partir de Lacan, ancorado em uma forma de pertencimento definida em termos de exclusão interna (Lacan, 1985), uma pertença topológica. Vemos aí um modo de apreender a própria possibilidade de formalização do saber que se constitui na invenção freudiana a partir de pressupostos que vão além das coordenadas sobre as quais se fundam as condições de possibilidade para o advento da ciência. Ao mesmo tempo, trata-se de uma operação que não prescinde dessas coordenadas. Como nos apresenta Milner (2003), trata-se, em Lacan, de um modo próprio de "apreender a estrutura como ponto de enodamento entre a psicanálise e a ciência moderna" (Milner, 2003, p. 152).

A doutrina do significante que nasce sob a pena de Lacan, a partir de sua incursão pelas veredas do estruturalismo, encontra na concepção do sujeito a designação de seu ponto de disjunção com o discurso que o instaura. Afirmar que o sujeito que opera o discurso é o sujeito advindo como efeito do discurso da ciência, cujo efeito de literalização da natureza o promove como elemento foracluído de sua operação, nos leva a destacar que a própria definição do significante deve incluir a emergência do sujeito, pois, como sustenta Lacan, o significante representa o sujeito para outro significante. Assim, a matriz fundamental definida por Lacan é o desenvolvimento analítico da própria noção de significante no que ela se ancora no sujeito como elemento fundamental, este elemento que encarna o vazio produzido pelo efeito da literalização do mundo.

Verifica-se com Lacan que, quando se trata do real, a linguagem não é capaz de recobri-lo. Será como um resto foracluído de sua própria operação que a ciência engendrará o sujeito no mesmo ponto em que o rechaça. Isso, pela impossibilidade de ordená-lo dentro das coordenadas de um discurso que se pretende completo, sem furo. Como vemos na clínica, os efeitos da introdução de um discurso de natureza científica no campo do saber sobre a vida e a morte deixam de fora o que Lacan destaca como aquilo que faz do corpo algo vivo. E é exatamente o que não pode ser circunscrito por um saber acabado. Com Lacan, partimos fundamentalmente da premissa de que a linguagem inaugura uma ruptura intransponível ao designar o mundo das coisas pela palavra, já que o referente não pode ser tocado pela palavra que o mata. Tomando o efeito de discurso que a ciência inaugura ao conceber o universo como uma escrita cifrada, Lacan nos conduzirá pelos desvios próprios ao seu modo de transmitir aquilo de que se trata na psicanálise, fazendo recurso à formalização como um modo de recolher o que se escreve pelo efeito da própria operação analítica, a partir de seu recurso à lógica.

[...] só existe questão lógica a partir do escrito, na medida em que o escrito não é a linguagem. Foi nesse sentido que enunciei que não existe metalinguagem. O próprio escrito, na medida em que se distingue da linguagem, está aí para nos mostrar que, se é do escrito que se interroga a linguagem, é justamente porque o escrito não é linguagem, mas se constrói, só se fabrica por sua referência à linguagem (Lacan, 2009, p. 62).

O modo de acesso ao real que inaugura a modernidade introduz no campo da experiência um modo de apreensão da própria experiência, baseado na perspectiva de um recobrimento do próprio real pela lógica matemática, assentada numa escrita à espera de decifração. No entanto, Lacan (2009) parece introduzir algo distinto ao estabelecer que o "escrito não é a linguagem" (p. 62), algo se introduz pela perspectiva de Lacan que convoca a uma torção quanto aos parâmetros de uma concepção de sujeito concebida dentro da lógica da linguagem. O sujeito concebido como vazio lógico estaria fora da vida, mas o que a linguagem promove através do escrito é outra incidência da própria linguagem que convoca a introdução do corpo. Na psicanálise não estamos às voltas com um sujeito sem corpo, ainda que se trate de estabelecer de que corpo se trata.

O discurso da ciência revela um mundo onde as representações se encarnariam, numa perspectiva linear, na escrita da natureza, sem qualquer desvio, o que levou Lacan a defini-la propriamente como "uma ideologia da supressão do sujeito" (Lacan, 2003a, p. 436). Quando Lacan afirma que a psicanálise não seria possível antes do advento do discurso da ciência, estabelece que a dimensão do sujeito constitui-se como ponto de interseção, entre campos cuja solidariedade não exclui a própria impossibilidade de se tomar um pelo outro (Lacan, 1998c). Lacan vai afirmar o significante como o "único ponto pelo qual o discurso analítico tem que se ligar à ciência" (Lacan, 2003b, p. 556), que progride pela via do "tapar buracos" (Lacan, 2003b, p. 551).

 

O sujeito do inconsciente: um novo estatuto para o saber

Com o horizonte aberto por Lacan, podemos extrair consequências inéditas diante do que estaria em jogo no campo científico. A maquinaria significante opera a cópula entre as letras, no funcionamento entre simbólico e imaginário, e conduz à produção de sentido: pensamos com palavras, falamos através de imagens. Mas tudo se dá a partir da própria experiência que se funda por uma presença que se sustenta no corpo, para além do próprio corpo anatômico.

Mas quem pensa, quem fala? Essa interrogação nos permite tocar no ponto de junção-disjunção entre psicanálise e ciência, como elaborado por Lacan (1998a) ao introduzir um modo radicalmente novo de conceber o sujeito, como o produto de uma operação que concerne estritamente ao saber, para daí nos apresentar o sujeito barrado da psicanálise. Tal hipótese implica dizer que a ciência moderna determina um modo específico de constituição do sujeito. E é com Descartes, a partir de sua formulação do Cogito, que esse sujeito emerge nessa nova concepção, não como conceituação, mas como negatividade alçada a conceito em Lacan. Frente à operação engendrada pela matematização galileana do universo, encontramos em Descartes seu correspondente filosófico, na medida em que seu discurso do método opera a inscrição nesse campo de uma consciência como pressuposto à operação da qual emerge o saber como produto do próprio método.

O "penso, logo sou", axioma fundamental em Descartes (2004/1647) resultado de uma experiência de despojamento frente ao saber, encontra na dúvida, tomada como método, o questionamento de todas as ideias estabelecidas, interrogando inclusive a própria existência. Encontrando o suporte para a existência em sua formulação do Cogito, onde se ancora a disjunção entre a res cogitans e a res extensa, entre pensamento e corpo, Descartes verifica, como demonstra Lacan (1985), que o ato de pensar dá testemunho da existência do sujeito no simbólico, pois a própria existência se afirma a partir do ato de pensar.

O pensamento se erige como existência e se contrapõe a qualquer tentativa de encarná-lo em alguém que pensa. É preciso o pensamento para que a própria dúvida possa se formular. Descartes promove uma articulação em que o simbólico anuncia o engendramento do existente enquanto ser pensante, separado do corpo.

Com Lacan, por outro lado, a partir de Freud, vemos engendrar-se outro modo de conceber o existente. Presa das malhas do discurso, o sujeito é pensado, não pensa. Mais precisamente, na medida em que isso fala e, ao falar, evidencia um isso falha, há um sujeito que se define exatamente por sua posição de exclusão à cadeia significante, seu apagamento. E é nisso que se pode reconhecer a operação significante incidindo sobre o vivente, deixando seus rastros de cifrações, enigmas, fenômenos que dão ao saber inconsciente esse caráter de saber cifrado. Será nessas manifestações que poderemos reconhecer o sujeito que emerge como ruptura, deixando entrever a posição em jogo diante da alienação aos significantes fundamentais que marcam uma existência.

Vemos que, para efeito de formalização, Lacan (1985) extrai da operação cartesiana o fundamento do sujeito da psicanálise, processando ao longo do seu ensino o que fica de fora dessa formulação e que não pode ser excluído daquilo que se lê na clínica. É importante destacar que Descartes não funda no Cogito a identidade do eu. O sujeito cartesiano é muito diferente do eu síntese da psicologia. A identidade específica aí em questão é diferente de qualquer representação da esfera psíquica. Como propõe Lacan (1985), o Cogito é correlativo a um momento muito destacado, surge como resíduo ineliminável de uma operação de esvaziamento da esfera psíquica, esvaziamento do universo das representações, o que o leva a afirmar que é nesse ponto que Freud se encontra com a tradição cartesiana.

O encaminhamento de Freud é cartesiano - no sentido de que parte do fundamento do sujeito da certeza. Trata-se daquilo de que se pode estar certo. Para este fim, a primeira coisa a fazer é superar o que conta tudo o que seja do conteúdo do inconsciente - especialmente quando se trata de fazê-lo emergir da experiência do sonho - , superar o que flutua por toda a parte, o que pontua, macula, põe nódoas no texto de qualquer comunicação de sonho. Não estou certo, tenho dúvidas.

E quem não duvidaria a propósito da transferência do sonho, quando, com efeito, o abismo é manifesto entre o que foi vivido e o que é reportado? Ora - é aí que Freud enfatiza com toda sua força - , a dúvida é apoio de sua certeza (Lacan, 1985, p. 38).

Trata-se de um sujeito que em seu ponto de emergência não é de modo algum uma substância material, seu estatuto não é ôntico. É a evidência de um sujeito esvaziado, que existe como simples ponto evanescente entre o ser que ele não é e o pensar que o funda. Se o sujeito freudiano não é outro senão o sujeito cartesiano, Freud nos oferece sua evidência naquilo que recolhe como furo do próprio discurso.

Como sublinha Milner (1996), a geometrização galileana do universo e a aplicação metódica da dúvida cartesiana trouxeram como consequência a produção de objetos desprovidos das qualidades sensíveis. O próprio sujeito, reduzido à equação "penso, logo sou", se torna um sujeito sem qualidades. Ao tomar o Cogito como referência para sua definição de sujeito da ciência e, portanto, também da psicanálise, Lacan (1985) destaca o papel fundamental da dimensão simbólica e, ao questionar o campo da verdade, a dúvida metódica introduz uma falta no campo do saber, que fica então reduzido a proposições lógico-matemáticas. "Com Freud o sujeito está dividido, a certeza, Freud é quem a tem" (Lacan, 1985, p. 49). O que Lacan extrai do Cogito é a noção da divisão subjetiva, em que o sujeito marcado por um saber surpreende-se com a aparição de um saber não sabido.

Foi Freud quem nos revelou a incidência de um saber tal que, ao se subtrair à consciência, nem por isso deixa de se denotar estruturado, digo eu, como uma linguagem; mas articulado a partir de onde? Talvez de parte alguma em que seja articulável, já que é apenas um ponto de falta, impensável de outra maneira que não através dos efeitos pelos quais é marcado, e que torna precário que alguém se entenda dele (Lacan, 2003a, p. 423).

A psicanálise, ao fazer do ser um outro, que sempre escapa, inscreve o saber como inconsciente, presentificando a própria linguagem como um Outro, uma alteridade para o sujeito. Introduz-se uma disjunção fundamental entre o ser e o discurso. Enquanto o ser ex-siste é que se pode postular um saber sem sujeito, já que se trata de um sujeito que se funda numa suposição.

É Lacan que nos introduz na dimensão propriamente estruturalista do pensamento freudiano formulado avant la lettre. Ele destaca que, apesar de não ter tido contato com as formulações de Ferdinand De Saussure, em torno do signo, e de Roman Jakobson, em torno da metáfora e da metonímia, Freud foi capaz de elaborar as bases do processo primário a operar no inconsciente de forma homóloga aos mecanismos linguísticos (Lacan, 1998c). E mais: ao nos permitir, a partir do inconsciente, designar o sujeito vazio da enunciação, mantém a interrogação acerca do que daria significação a esse sujeito; é isso que estamos interrogando ao longo de nossa elaboração neste artigo.

A leitura que realiza do texto freudiano o leva a recolocar, exagerando nas tintas, por razões óbvias, a descoberta do inconsciente enquanto um texto que fala no sujeito a partir de certos pontos fixados ao longo de uma experiência, cujos traços não vêm sem o corpo, não podem ser tocados fora de uma conjunção do próprio saber com o corpo. Em outras palavras, trata-se das experiências de satisfação que, ao mesmo tempo em que registram certo modo de encontro com determinada manifestação do objeto, constituem uma ossatura que dá suporte ao próprio sujeito.

 

O objeto encarna o campo do vivo

Como podemos constatar, a própria categoria de sujeito é bastante complexa, comportando até certa ambiguidade, que pode ser verificada na montagem que Lacan (1985) propõe em seu seminário, ao designá-lo como efeito da dupla operação que o determina: alienação-separação. Por um lado, é como efeito da alienação ao significante, subsumido entre os significantes da cadeia no discurso, no campo do Outro, que encontramos esse sujeito que é vazio, sem substância. Por outro, a separação constitui o tempo em que, entre o sujeito e o campo do Outro, se engendra um modo de presença sustentado pela dimensão do objeto localizada por Freud e elaborada por Lacan nos termos de um objeto inédito capaz de funcionar como suporte, encarnando no mundo a presença do próprio sujeito.

O sujeito do inconsciente se erige, portanto, sobre as bases de uma indeterminação subjetiva que opera a partir de coordenadas que, transcendendo a determinação significante, não se estabelecem sem "o campo do vivo" (Lacan, 1985, p. 194), de onde o sujeito se extrai. Afinal, onde estariam as marcas deixadas pelo encontro com os significantes fundamentais em uma existência? E é nisso que Lacan vai sustentar o que propõe em termos de homologia entre o inconsciente, através dos furos, falhas por onde recolhemos as manifestações do sujeito, com os furos do corpo, as zonas erógenas, pontos que denotam a ruptura da unidade da imagem do corpo. Trata-se de pontos privilegiados na superfície do corpo que, em ruptura com a unidade da imagem, franqueiam, através de objetos eleitos, o acesso ao vasto e incalculável campo da satisfação humana.

Como afirma Milner (1996), a teoria do sujeito, aos olhos de Lacan, só pode escapar da metafísica articulando-se com uma teoria da estrutura, mas acrescentamos que se trata de afirmar que aí incide a dimensão de uma substância, apesar de todas as "tentativas de análise 'pura' de uma estrutura despojada da menor substância particular" (Milner, 1996, p. 149). A formulação de uma solidariedade, digamos, pelo avesso, entre a psicanálise e a ciência instaura-se sobre as bases de um modo de conceber o universo discursivo que comporta uma ruptura com qualquer tradição filosófica, ainda que Lacan tenha se servido de muitas. Logo, a psicanálise não pode ser inscrita em nenhum saber pré-existente, ainda que não possa ser pensada antes da operação que faz incidir sobre a natureza a dimensão de uma escrita do mundo.

O advento do discurso da ciência, ao introduzir a escrita no mundo, subverte a relação do homem com seu corpo, como nos apresenta Foucault (2008), ao elaborar o nascimento da clínica médica dentro das coordenadas estabelecidas a partir do surgimento de um discurso que ergue as coordenadas de leitura que orientarão o olhar na medicina e o estabelecimento do método anatomopatológico. Temos, ao mesmo tempo, a introdução do corpo como materialidade anatômica, sua dessacralização, e o que poderíamos chamar de sua reinvenção como organismo anatomizável no discurso, uma herança cartesiana. Assim, podemos afirmar que o desconhecimento constitutivo da formulação de Descartes, que o leva a produzir uma redução da materialidade corporal a um sistema de funcionamento maquinal, está atrelado a uma operação de subtração da própria vida do corpo.

Vemos, portanto, o efeito da introdução de um saber de natureza discursiva sobre a própria vida que, cadaverizando o corpo, permite o advento da medicina como científica. Como nos apresenta Miller (2004), as consequências dessa disjunção nos conduziram à definição da biologia no século XX como um estudo dos algoritmos do corpo, que há muito deixara de ser a sede da vida, como se pode encontrar na origem da clínica moderna, quando a morte vem responder ao enigma da vida, oferecendo ao olhar o cofre negro dos corpos, desvelado pela anatomia. Mas, como vemos, esse olhar ganhou proporções que o fizeram prescindir do apoio nos corpos. Já não se trata mais do corpo como uma materialidade sobre a qual o saber médico precisa se apoiar. A virtualização, efeito do encontro do saber com a tecnologia, num campo em que há muito deixara para trás sua vocação primeira, transpõe a matéria e inaugura o sem limites do olhar que faz da miragem produzida por ondas ecográficas esse simulacro esfacelado, o corpo que se revela no encontro com o saber médico.

São as manifestações avessas aos protocolos da ciência que, recolhidas por Freud, permitirão relançar o enigma num campo em que o saber obediente ao método eclipsava a complexidade que implica uma existência corpórea apoiada na linguagem. O saber que se revela a partir da leitura que Freud propõe, ao inscrever o corpo na relação com a linguagem para além da mortificação que o discurso instaura sobre a vida dos corpos, designa ao vivente um corpo que se encontra atravessado por outra ordem de saber, que opera pelo que não revela, pelo que se furta e tinge de vivo a mestria do conhecimento na clínica. O corpo que o discurso oferece a partir da leitura que o psicanalista engendra com seu modo de operar é um corpo que não se sabe e não se pensa, é um corpo que se satisfaz e cuja satisfação materializa o próprio corpo para um sujeito.

Pela abordagem que lhes preparamos, reconheçam na metáfora do retorno ao inanimado, do qual Freud reveste todo o corpo vivo, a margem para-além da vida que a linguagem assegura ao ser pelo fato de ele falar, e que é justamente aquela em que esse ser investe na posição de significante não somente o que se presta a isso em seu corpo, mas esse próprio corpo. Onde se evidencia então que a relação do objeto com o corpo não se define, de modo algum, como sendo uma identificação parcial que devesse totalizar-se nele, uma vez que, ao contrário, esse objeto é o protótipo da dotação de sentido do corpo como pivô do ser (Lacan, 1998a, p. 817).

A categoria de sujeito, tal como Lacan propõe, um efeito de discurso, configura-se no seu ensino como uma formulação que, portanto, não vem sozinha. O sujeito representado por um significante para outro significante é veiculado em seu ensino como uma formalização necessária para reencontrar o rigor que sua leitura atribui ao texto de Freud. Se a formalização ocupa em Lacan esse lugar privilegiado, não menos importante será o esforço para contemplar no seu ensino aquilo que não cabe dentro de uma formalização, nos moldes que o discurso científico prescreve. É a dimensão do objeto que vem pontuar, de diferentes maneiras, o percurso de Lacan. Vale destacar que a própria concepção do sujeito do inconsciente, esse sujeito definido como falta-a-ser, encontra na postulação do objeto pequeno a seu correlato no campo da experiência, na medida em que, desde Freud, a dimensão do objeto constitui o elemento de transição, ponto que inaugura um espaço-tempo que comporta o traço fundamental da experiência para um sujeito na sua relação com o corpo, com o mundo.

Esse carretel não é a mãe reduzida a uma bobina por não sei que jogo digno dos Jivaros - é alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele, que ele ainda segura. [...] Se é verdade que o significante é a primeira marca do sujeito, como não reconhecer aqui - só pelo fato de esse jogo se acompanhar de uma das primeiras aparições a surgirem - que o objeto ao qual essa oposição se aplica em ato, é ali que devemos designar o sujeito (Lacan, 1985, p. 63).

Lacan circunscreverá, portanto, o próprio surgimento do sujeito atrelado à experiência de satisfação que o traz ao mundo, que permite sua emergência como sujeito separado do Outro, disjunção que se desenha na interface entre o lugar do Outro e seu lugar no Outro, alteridade que, encarnada, suporta com seu desejo a própria possibilidade de entrada do vivente no mundo. E é nesse viés que o objeto a constituirá o próprio índice dessa inefável existência que coloca o sujeito em conexão com o enigma de sua própria existência, encarnado nos ditos que pautarão uma história. Podemos reconhecer que a marca do inconsciente estruturado como linguagem, petitio principii remetida a Freud e que percorrerá todo o ensino de Lacan, encontrará modos de demonstração a partir dos deslocamentos internos que nos permitem cernir, a cada vez, o enlace que compõe o ser falante, a partir do encontro das palavras com o corpo (Lacan, 1998d).

 

A psicanálise vai além da leitura na clínica

Podemos afirmar que a possibilidade de formalização que a escrita científica instaura é corroborada por uma operação de leitura aparelhada pela produção de sentido, pela lógica que orienta o modo como se recolhem os elementos aí depositados, quer sejam tomados como já escritos ou como depositados no próprio ato de leitura, no que este comporta de uma escrita. Trata-se de uma distinção entre os modos de leitura da ciência e da psicanálise, como pretendemos desenvolver ao longo deste trabalho. Vale introduzir a perspectiva de que a formalização não corresponde a uma exigência de sentido, mas de transmissão. De sua álgebra fundada nos matemas, passando pelos grafos até a composição do nó borromeano, encontramos em Lacan um esforço de sustentação de um ponto de incompletude como via para a própria transmissão do real em jogo na experiência psicanalítica. É como limite à ideia de uma transmissão integral que Lacan nos levará de um suporte a outro, com seu recurso à matemática, em suas diversas modalidades de escrita, de certa forma passando por uma desilusão quanto à concepção do matema na perspectiva de uma possibilidade de transmissão integral (Miller, 1988).

O que Freud nos oferece, como subversão da lógica que instaura dentro do discurso na clínica, é a concepção de um modo de registro que opera a partir da existência corpórea e que se faz no encontro com o semelhante, num universo de linguagem. Se a escrita do mundo se faz a partir da presença do número no real, da cifra, sua leitura se dá pela operação de articulação que engendra a dimensão significante e permite, a partir da psicanálise, decantar na dimensão da letra aquilo que resiste ao sentido, mas que não está fora da linguagem. Mas a função do escrito indica, a partir de Lacan, que se trata de pensar aí num outro modo do falante na linguagem, pois a leitura engendrada pela psicanálise se fará a partir das marcas de uma escrita que se deposita numa superfície, como nos ensina Lacan, a superfície do discurso, a se compor entre o corpo e o saber inconsciente.

Como operação discursiva, a ciência prescreve um modo de operar que prescinde da experiência empírica para formular seus axiomas e crê apoiar-se na materialidade da carne para dar conta do corpo. Mas trata-se de uma carne que em nada pode ser remetida ao vivo. Vemos que o discurso médico transcrito pelo discurso científico funda-se na leitura dos signos do mundo, leitura dos signos do corpo, tomado como campo de manifestações e intervenções que prescrevem ao próprio corpo leis de funcionamento geral. O mal-estar e o sofrimento ganham uma matriz de leitura que permite o cálculo da intervenção, na formulação de protocolos reprodutíveis na infinidade dos casos. No entanto, essa leitura apoiada na escrita da natureza, concebida como uma escrita prévia à experiência, não permite o acesso ao que escapa à montagem do quadro clínico tomado enquanto matriz a prescrever aos corpos modos de funcionamento.

Com Lacan, a lógica interna que ordena os efeitos do encontro do humano com a linguagem permite estabelecer que, em termos de escrita, trata-se de outro registro, sob a leitura da psicanálise. Considerando que aquilo que não se pode transmitir pelo sentido se escreve e nos informa sobre esse outro modo de apreensão do saber, nos orientamos a partir das teses que se podem depreender do ensino de Lacan, em seus distintos momentos teóricos, para circunscrever esse outro registro da escrita, efeito da própria experiência. Se as fórmulas da ciência prescindem dos corpos para operar, na psicanálise, por outro lado, a formalização não pode operar sem levar em conta a presença do corpo, uma experiência que evidencia que o acesso ao real não se faz sem um véu: o fato do corpo tomado no discurso. O que a psicanálise nos permite ler é, portanto, um sujeito ancorado num corpo que se encarna a partir do objeto, uma experiência que lhe concede toda a sua realidade possível.

Lacan (2001), falando aos médicos em uma conferência no Collège de Médecine, na Salpetrière, designará uma hiância que se produz dentro do próprio efeito do discurso científico no campo da clínica médica. Tratará como uma falha no saber aquilo que resulta na experiência clínica como efeito do progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo. A falha epistemo-somática vem, portanto, indicar o que fica excluído do discurso da medicina sobre o corpo e que faz seu retorno sob as formas idiopáticas na clínica médica, nos quadros inclassificáveis dentro de um registro purificado da leitura do corpo a partir de uma matriz fixa e mesmo nos quadros clínicos em que intervém uma dimensão que excede o próprio enquadre, onde algo, digamos, mais subjetivo, o que não significa subjetivado, interfere nos protocolos de tratamento.

Na falha que se instaura pela condição mesma do advento da ciência no campo da clínica, a psicanálise inscreve a perspectiva de um novo método, outra leitura para o sintoma na clínica. Freud, interrogando a dimensão do sentido que reconhece no sintoma, para cada sujeito, o situará exatamente na falha do saber. É na esteira de um saber não sabido que Freud situa um modo de leitura da clínica onde aquilo que se ouve exige novos fundamentos para fenômenos mórbidos que não comportam o substrato anatômico, ainda que não prescindam do corpo. Podemos afirmar que, com Freud, é o próprio modo de leitura que instaura um novo campo de intervenção (Allouch, 1995).

No que concerne à psicanálise, sua operação a singulariza e a coloca em outro plano em relação às ciências que se mostram passíveis de inscrição em registros metodológicos que as agrupam. O fato evidenciado por Freud é que, ainda que só possamos abordar o saber a partir do discurso, a experiência demonstra que aquilo com que a psicanálise lida não cabe inteiramente no universo da representação. Ao privilegiar o relato, Freud introduz um modo original de acesso ao que se apresenta como subtraído na base do que se pode formular em termos de uma lógica da satisfação humana. Seu método, a associação livre, dará acesso, através do amor de transferência, àquilo que se destaca no que se deposita da fala, permitindo entrever o modo como cada sujeito tenta dar conta de uma existência, através de seu sintoma.

Podemos reconhecer na leitura freudiana do sintoma essa dimensão que comporta uma conexão entre o que se manifesta na superfície do próprio discurso, na psicopatologia da vida cotidiana, e o excesso que, transbordando a própria vida do sujeito, se impõe com efeitos que capturam o corpo, seja em sua superfície ou no pensamento. Trata-se de uma formação de compromisso que articula campos profundamente heterogêneos: o real da satisfação pulsional e o campo entre simbólico e imaginário das representações. Estamos diante de uma relação impossível que dará à concepção de sintoma, a partir da leitura da psicanálise, um caráter próprio, pois circunscrevê-lo será efeito da captura do próprio analista no encontro que a análise constitui.

O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por esse efeito, ele não é causa dele mesmo, mas traz em si o germe da causa que o cinde. Pois sua causa é o significante sem o qual não haveria nenhum sujeito no real. Mas esse sujeito é o que o significante representa, e este não pode representar nada senão para um outro significante: ao que se reduz, por conseguinte, o sujeito que escuta (Lacan, 1998b, p. 849).

Podemos dizer que a mágica que Freud opera em sua leitura do sintoma permite a leitura de todo um campo inaudito da experiência humana, até então, mas isso não se faz sem a inscrição do próprio analista em seu campo de intervenção. Não há atitude metodológica precedente que se aproxime do ato de Freud, que, sobretudo, soube extrair as consequências de seu próprio ato, inaugurando mais do que um novo método de tratamento, uma nova perspectiva ética no campo da clínica. Para além das recomendações aos que exercem a psicanálise, Freud deixou como maior herança seu próprio confronto com a experiência de que também era objeto, depositada no saber que não pode ser totalmente escrito pela teoria e que depende do que cada analista coloque de seu, quer seja nas análises que conduz, quer seja no que se escreve em sua própria experiência de analisante.

O que faz o saber da psicanálise é o depósito de verdades transitórias, a sedimentação de efeitos de verdade na experiência da análise, onde a matéria-prima do saber está, portanto, do lado do analisando. No limite, pode-se afirmar com Lacan que a verdade conjuga-se com o desejo do próprio Freud. Lacan (1985) põe, portanto, esse desejo não em uma posição de subjetividade original, mas identificado a uma posição de objeto, objeto causa, a operar na transferência, engendrando a própria operação analítica. No contexto de elaboração da pulsão como um circuito que se desenha em torno do vazio do objeto, Lacan (1985) destaca o registro fundamental para o pensamento de Freud, o lugar do objeto perdido, formulando-o como causa da própria posição do sujeito, subordinada pela fantasia, como algo que terá todo o seu valor de operador fundamental para a prática analítica.

Percorrer o traçado do corte que a experiência analítica permite ler na clínica é uma tarefa que dependerá, de saída, de tomadas de posição que determinarão o caminho a percorrer. O que a psicanálise nos permite ler é, portanto, um sujeito ancorado num corpo que se encarna a partir do objeto - do falo freudiano ao objeto a lacaniano - , uma experiência que lhe concede toda a sua realidade possível. A perspectiva do objeto lança luz sobre a dimensão recolhida por Freud, como resto do discurso da ciência. Não é possível pensar o sujeito como produto da operação discursiva que o instaura sem considerar os efeitos do próprio discurso no que ele produz como efeito de transcrição da relação do sujeito com o mundo das coisas, que o próprio discurso instaura. O objeto advém no discurso analítico com o vigor de um operador fundamental, que, transcendendo a natureza, determina todo um outro universo dentro do qual girará o próprio sujeito para além das coordenadas de sua determinação lógica.

De Freud a Lacan, a teoria do objeto sofrerá vicissitudes que o reinscreverão em consonância com os desdobramentos que promoverão a passagem de uma leitura apoiada numa perspectiva mais imaginária à perspectiva engendrada pelo real (Miller, 2000). Lacan nos oferece, com as versões de seu esquema óptico, o corpo introduzido a partir da perspectiva do imaginário, mas não sem suas correlações com o simbólico e o real. Mas será como um ossobjeto, ousaríamos dizer, parafraseando o poeta, como a carnadura concreta engendrada pela palavra2, que encontraremos o objeto em sua dimensão, digamos, mais material, localizável fora de qualquer querer dizer (Lacan, 2005).

Uma vez que é o próprio significante que instaura o lugar do sujeito como um lugar vazio, puro efeito lógico, também é a partir do significante que uma dimensão de excesso, no sentido de uma insistência, impossível de ser absorvido pelos usos da palavra, tomará lugar. Freud extrai de seu encontro com as palavras, para além de seu sentido, no discurso de seus pacientes, um além do mundo das representações que, escapando ao sentido, não escapam a uma lógica que formulará em termos de inconsciente, como resto a pontuar esse discurso. Dessa operação resultará, portanto, um ponto que insistirá em seu percurso, impulsionando-o no confronto com algo que excede à própria operação e que lhe permitirá conceber o tratamento como decifração de uma mensagem cifrada, mas não sem ter que confrontar-se com o que não cabe na mensagem.

A dimensão da escrita nos permite reencontrar o sujeito determinado pela linguagem dentro dos contornos em que outra incidência da linguagem nos permite ter acesso à sua corporeidade. Com Lacan, a escrita se faz a partir da suspensão do sentido, verificável na operação do analista, cujas manobras permitem revirar os ditos, isolando significantes, suspendendo seu sentido, ato que promove a precipitação de um saber como letra, fora do sentido. Se, de saída, poderíamos parear a psicanálise com a ciência, a partir da concepção da existência de uma escrita prévia cifrada do mundo que se oferece à leitura, com um passinho a mais, verificamos que há algo do efeito do próprio método de leitura que Freud inaugura, a partir do relato. Tal método propõe a leitura a partir de uma nova escrita, feita de novas inscrições, sem que se possa reduzir a experiência analítica a uma narrativa que desvelaria uma memória esquecida ou mesmo impedida de ser lembrada. Mesmo numa primeira versão do que elabora Lacan, jamais se trata de pensar em uma recuperação do que foi perdido para o sujeito, ainda que se possam escrever seus rastros.

Para concluir, consideramos importante destacar, como nos mostra Miller (2000), que não se trata de interrogar quem seria mais originário, o gozo ou o significante, pois se trata de uma outra ordem de grandezas. E se Lacan nos conduz, como vimos anteriormente, pelo caminho aberto quando da entrada da cifra no universo, será em torno do que não cabe na matriz de leitura estabelecida pela ciência que centrará sua abordagem acerca do que aí se presta a incluir na nova ordem do mundo um novo regime de saber. O sujeito da psicanálise, tributário do discurso da ciência, instaura sobre o mundo uma matriz de leitura que subverterá a relação com o que é possível saber.

Consideramos, portanto, que, se a escrita do mundo inaugurada pelo discurso científico se faz a partir da presença do número no real, da cifra, encontraremos no discurso analítico uma perspectiva um tanto subversiva que faz da própria cifra o suporte para uma escrita que, se por um lado encontra ressonâncias no que se deposita no curso de uma história, por outro, trata-se de um texto peculiar, aberto, afeito à rasura (Lacan, 2009), e que não pode ser cernido senão a cada caso no curso de uma análise. Trata-se de uma dimensão da escrita que, além de não se dar à leitura stricto sensu, nos informa sobre as relações da psicanálise com o real. Na operação analítica encontramos, portanto, uma dimensão de leitura que comporta, dentro dos contornos da própria experiência analítica, uma escrita com a qual circunscrevemos as coordenadas de mundo que permitem ao vivente habitar a existência.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Andréa Vilanova
anvnova@gmail.com
Marcus André
Vieira mav@litura.com.br

Submetido em: 19/06/2013
Revisto em: 01/02/2013
Aceito em: 23/02/2014

 

 

* Artigo referido à pesquisa de tese da autora, concluída em 2013 sob orientação do coautor, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
1 Recomendamos ao leitor o referido texto de Miller (2000), Os seis paradigmas do gozo, onde o autor promove a periodização do ensino de Lacan orientando suas escansões quanto ao tratamento dado por Lacan ao fator econômico em Freud. Destaca ainda que seus fotogramas simplificados pretendem localizar os deslocamentos sofridos pelo ensino de Lacan, em seu esforço de conceitualização, que não escapa aos equívocos.
2 No verso "a carnadura concreta da palavra" (Cabral de Melo Neto, 2008, p. 207).