SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.66 issue3Crisis management: referral and psychiatric hospitalization in questionSustaining the difference: theater, connections and invention of worlds author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.66 no.3 Rio de Janeiro  2014

 

ARTIGOS

 

Território e nomadismo: a saúde em questão*

 

Territory and nomadism: the health at issue

 

Territorio y nomadismo: la salud en cuestión

 

 

Betina HillesheimI; Anita Guazzelli BernardesII

IDocente. Programa de Pós-graduação em Educação. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Santa Cruz do Sul. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Campo Grande. Estado do Mato Grosso do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir a articulação entre território e nomadismo no campo da saúde. Para isso, toma-se o nomadismo como um conceito potente para problematizar as políticas públicas de saúde, a partir da perspectiva territorial que essas assumem. Não se trata, assim, de trazer a experiência dos nômades propriamente ditos, mas usar o nomadismo como ferramenta de problematização. Tendo em vista a relação entre território e segmentaridade na saúde, considera-se o território cotejado pelo nomadismo, indicando-o como linha de declive da política pública de saúde e como conceito potência para pensá-la. A discussão se fundamenta em conceitos pós-estruturalistas, tais como governamentalidade, subjetivação e territorialização.

Palavras-chave: Território; Nomadismo; Políticas públicas de saúde.


ABSTRACT

This article aims to discuss the relationship between territory and nomadism in the field of health. To do so, nomadism is seen as a powerful concept to problematize public health policies from the territorial perspective that they take. Therefore, it is not to bring the experience of the nomads themselves, but use nomadism as a problematic tool. Taking into account the relationship between territory and segmentarity of health, it is considered the territory collated by nomadism, indicating it as the line slope of the public health policy and as a powered concept to think of it. The discussion is based on post-structuralists conceptual tooling such as governmentality, subjectivity and territorialization.

Keywords: Territory; Nomadism; Public health policies.


RESUMEN

Este artículo pretende discutir la relación entre territorio y nomadismo en el campo de la salud. Para ello, se toma el nomadismo como un concepto potente para problematizar las políticas de salud pública, desde la perspectiva territorial que estas asumen. No se trata de traer la experiencia de los nómadas propiamente dichos, sino la de utilizar el nomadismo como una herramienta del cuestionamiento. Teniendo en cuenta la relación entre territorio y segmentación en salud, se considera el territorio cotejado al nomadismo, indicándolo como una línea de declive de la política de salud pública y como concepto para pensar. La discusión se basa en conceptos post-estructuralistas, tales como gubernamentalidad, subjetivación y territorialidad.

Palabras clave: Territorio; Nomadismo; Políticas de salud pública.


 

 

Este artigo tem como objetivo discutir a relação entre território e nomadismo a partir de sua articulação no campo da saúde. A problematização se dá em razão da forma como as políticas públicas de saúde tornam o território um conceito agenciador das formas de gestão da vida e segmentarização das formas de viver. O nomadismo, em contrapartida, produz aquilo que flexiona o território.

O conceito de território se constituiu como um elemento importante no campo da saúde pública e da saúde coletiva. A partir da Constituição Federal de 1988, os territórios compõem uma rede de serviços ofertada pelo Estado, buscando assegurar os princípios e diretrizes definidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Dessa maneira, como pontuam Gondim e Monken (2008), a territorialização da saúde busca redesenhar as bases territoriais do sistema de saúde brasileiro, no intuito de "assegurar a universalidade do acesso, a integralidade do cuidado e a equidade de atenção", operando "mudanças no modelo assistencial e nas práticas sanitárias vigentes" (p. 395).

Conforme Gadelha, Machado, Lima e Baptista (2009), a perspectiva territorial, no âmbito do SUS, está relacionada à diretriz de descentralização, mediante a regionalização das ações e serviços de saúde e com vistas à expansão do acesso, uso racional de recursos, participação social e atenção às necessidades regionais. Entretanto, uma das críticas formuladas pelos autores é no sentido de que território é entendido de forma estanque, a partir da concepção de que este se constitui como uma área geográfica delimitada que compreende determinada população. Tal concepção não considera a dinâmica política, econômica ou social dos territórios, o fluxo das populações ou os fatores macroestruturais que condicionam a iniquidade.

Cabe assinalar que, na utilização que Foucault faz do conceito de território, este não se reduz a uma noção geográfica, mas adquire aspectos jurídicos e políticos, designando o que é controlado por determinado tipo de poder no que se refere aos modos como se inscrevem o militar ou o administrador, tanto no solo como nas diferentes formas de discurso (Castro, 2009). Nesse sentido, é interessante pensar que, na origem etimológica da palavra território, de acordo com Gondim e Monken (2008), a acepção latina territorium (terra) é bastante próxima de térreo-territor (terror, aterrorizar). Desse modo, os autores apontam uma relação, por um lado, com a dominação da terra e o medo daqueles que são expropriados da mesma ou são impedidos de circular no território, e, por outro, com o sentimento de pertença e identificação para aqueles que podem usufruí-lo.

Tendo em vista tais questões, este artigo pretende discutir a lógica de organização territorial da saúde. Para isso, toma-se o nomadismo como um conceito potente para problematizar as políticas públicas de saúde, a partir da perspectiva territorial que essas assumem. Não se trata, assim, de trazer a experiência dos nômades propriamente ditos, mas usar o nomadismo como ferramenta de problematização. Assinala-se que o nomadismo é compreendido de forma ampla, abrangendo tanto o movimento migratório de determinados grupos sociais que buscam condições de sobrevivência ou resistência (como é o caso de trabalhadores safristas, moradores de rua, etc.) quanto aqueles que têm o deslocamento como forma de vida (ciganos, índios, etc.). Entretanto, se considerarmos que as políticas públicas de saúde, muitas vezes, estão ancoradas em uma noção de território utilitária e funcional, os nômades rompem com essa lógica, causando-nos o deslocamento de determinadas formas de pensar.

Para tanto, em um primeiro momento, discute-se a relação entre território e segmentaridade na saúde; a partir disso, compreende-se o território cotejado pelo nomadismo. A discussão tem, como eixos de reflexão, ferramentas conceituais pós-estruturalistas, tais como governamentalidade, subjetivação e territorialização.

 

A territorialização na saúde e a segmentaridade

Com a criação do SUS, a partir da Constituição Federal de 1988, e sua subsequente regulamentação, através das leis 8.080/90 (Brasil, 1990a) e 8.142/90 (Brasil, 1990b), a política de saúde brasileira passa por profundas modificações. Machado e Viana (2009) afirmam que, até então, a política de saúde no país era caracterizada pela fragmentação institucional, mediante a presença de dois grandes aparatos federais (o Ministério da Saúde e o Ministério da Previdência Social), pela subalternidade dos estados e municípios, pela forte oferta de serviços privados, bem como por um baixo poder regulatório do Estado. Porém, com o SUS, impõe-se um processo de redefinição do Ministério da Saúde, na medida em que a saúde é concebida como um direito de todos. Dessa maneira, para a implementação do SUS são necessários dois movimentos: a unificação horizontal do comando sobre a política e a descentralização político-administrativa.

De acordo com Iozzi e Albuquerque (2009, p. 60), "território, desenvolvimento e saúde são questões indissociáveis no debate em torno do papel do Estado, das desigualdades socioespaciais e dos anseios e aspirações de cada sociedade em relação ao seu futuro". As condições de possibilidade para a criação do SUS relacionam-se com a necessidade de lidar com uma dinâmica territorial mais complexa, ocasionada pela "maior integração do mercado interno, pelo aumento da fluidez e pela extensão dos usos urbanos e agrícolas do território, das intensas migrações e do crescimento demográfico e do aumento das desigualdades regionais" (pp. 79-80). Além disso, tal dinâmica implicava o aumento das desigualdades urbanas e rurais, com consequências importantes para a saúde da população, visto as condições de vida da população estarem ligadas à incidência de doenças e também o menor acesso da população rural ao sistema de saúde. Nesse contexto, a descentralização surge como medida importante para garantia da universalização da saúde.

A proposta da descentralização como diretriz organizacional do SUS pretende ofertar atendimento integral à população em todos os níveis de atenção - primário, secundário e terciário. Nesse cenário, a noção de território é enfatizada, considerando-se um movimento de descentralização e centralização das ações a partir dos serviços de saúde existentes no município/região, os quais são compreendidos como os principais responsáveis pelo atendimento da população. Para a operacionalização das ações, são utilizadas uma variedade de nomenclaturas e divisões territoriais, tais como: município, distrito sanitário, microárea, área de abrangência. Tais divisões, entendidas como áreas de atuação administrativas, gerenciais, econômicas ou políticas, criam territórios próprios (Gondim et al., 2008). Portanto, como afirmam Santos e Rigotto (2010),

o SUS se organiza com base num substrato territorial. Com isso, a distribuição dos serviços de saúde assume uma estratégia operacional de demarcação de áreas de abrangência correspondentes aos níveis de complexidade das ações de saúde. As diretrizes organizativas do SUS guardam expressivas relações com a concepção de território enquanto delimitação de uma área específica para cenário das ações de saúde dirigidas a uma população específica, porém com composição distinta, quantitativa e qualitativamente (p. 393).

Entendendo-se que as políticas públicas de saúde operam a partir de uma lógica inclusiva (o que está formulado explicitamente na Lei 8.080 (Brasil, 1990), quando dispõe que saúde é direito de todos e dever do Estado, a Atenção Básica à Saúde e a Estratégia Saúde da Família (ESF) são compreendidas como portas de acesso ao sistema único de saúde, bem como ligação importante entre o usuário e o SUS. Santos e Rigotto (2010) problematizam a estratégia da territorialização em saúde, colocando que, por vezes, especialmente no âmbito da Atenção Básica à Saúde, a operacionalização da categoria território é tratada de forma parcial pelas equipes de saúde, sendo o conceito de espaço voltado para fins administrativos que visam ao gerenciamento dos serviços. No caso da ESF, a territorialização é um pressuposto básico, adquirindo três sentidos diversos e complementares: 1) a demarcação das áreas de atuação entre os serviços; 2) o conhecimento do contexto de vida da população e a dinâmica envolvida no território; 3) o estabelecimento de relações com outros serviços de saúde. Entretanto, Pereira e Barcellos (2006, citados por Santos & Rigotto, 2010) ressaltam que esses diferentes sentidos não são discutidos pela ESF, evidenciando-se a preocupação na operacionalização do conceito de território.

É importante para essa discussão compreender que o território torna-se, pela política pública, uma estratégia de governo da população. A população emerge no século XVIII como uma problemática a ser respondida. É em razão dos fenômenos próprios da população, que circulam de indicadores de mortalidade e nascimentos, epidemias e endemias, mas também de habitação, circulação e liberdades, que se constituirá uma arte de governar, uma economia política voltada fundamentalmente para o governo da população, que Foucault (2008) nomeará de governamentalidade. Diferentemente de um governo soberano em que o território é a condição que demarca a própria soberania e o soberano estabelece com esse uma relação de exterioridade, na medida em que a soberania se exerce primeiramente sobre um território e, consequentemente, sobre a população que o habita, nas formas de governo de Estados Nação, a relação com o território passa a estabelecer uma marca de pertencimento. Dessa maneira, está em jogo "aquilo com que o governo se relaciona que não é, portanto, o território, mas uma espécie de complexo constituído pelos homens e as coisas" (Foucault, 2008, p. 128).

Nessa racionalidade de governo, não é o território que se governa, e sim o elemento interno que se distribui no território - pessoas e coisas. Entretanto, o território torna-se uma estratégia privilegiada de governo, na medida em que é a partir dele que se aplica um conjunto heterogêneo de tecnologias. Nessa lógica, o território é, em si mesmo, um elemento secundário, porém necessário, pois possibilita estabelecer regularidades e continuidades. O território permite a estratificação da população; é mediante o território que emerge um saber possível sobre a população: medidas estatísticas e perfis epidemiológicos.

Desse modo, a relação da população com o território é de fixação, entendendo-se que esta permite o controle da distribuição da população: fixam-se habitações, identidades, costumes, hábitos e também as liberdades. A fixação opera como uma estratégia de regulação das liberdades, visto que a população tem liberdade de circulação no território, porém, para se acessarem as liberdades, é necessário um elemento que a fixe: quem se é, como se vive, com quem se vive, onde se vive, sob que condições se vive, de onde se vem e para onde se vai.

Considerando-se as reflexões de Foucault (2008) sobre o território como elemento das estratégias de governo da população mediante o enraizamento da mesma, torna-se importante situá-las no âmbito das políticas públicas de saúde no Brasil. De modo diferente do que é discutido pelo filósofo, nas políticas públicas de saúde o território assume a figura de comunidades-territórios, ou seja, não se trata de fixar a população em um território, mas de, a partir da própria população, delimitar territórios de pertencimento. O primeiro ponto, então, é o território assumir uma dimensão espacial, de localização, "sob forma de trabalho em equipe, dirigido a populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações" (Brasil, 2006, p. 10). Como segundo ponto, a adscrição da população a um território bem delimitado apresentará, além da dimensão espacial, uma outra figura: "a descrição dos usuários é um processo de vinculação de pessoas" (Portaria 2.488, 2011, p. 4). Dessa maneira, a vinculação das pessoas não será com o território a que estão adscritas, mas com as equipes que se encontram nos territórios adscritos.

Tendo em vista tais diferenças no uso da noção de território no âmbito das políticas públicas, pode-se afirmar que o território constitui-se como um jogo estratégico na saúde. Portanto, território é tanto uma dimensão espacial que permite a fixação da população em comunidades delimitadas de pertencimento quanto a fixação entre as pessoas por meio do vínculo com as equipes de saúde.

O território como estratégia de fixação da população constitui-se como o que Deleuze e Parnet (1998) denominam linhas de segmentaridade dura. Essas linhas operam segmentos determinados, bem como cortes específicos: saúde-doença, homem-mulher, criança-adulto, trabalho-domicílio, etc. Também constituem o encadeamento dos segmentos: criança-família-escola, família-trabalho-aposentadoria. As linhas de segmentaridade compõem territórios existenciais, criam a possibilidade de regularidades que dependem do que os autores nomeiam de máquinas binárias, que "não são sumariamente dualistas, são, antes, dicotômicas" (Deleuze & Parnet, 1998, p. 149). As máquinas binárias são, antes de qualquer coisa, máquinas semióticas, agenciamentos coletivos de enunciação que permitem a criação de regiões de visibilidade e campos de dizibilidade. Assim, o território possibilita, além de governar a população, conhecer aquilo que se governa, tendo como estratégia a localização e a vinculação da própria população.

Dessa forma, a segmentaridade implica não apenas a constituição de campos de saber, mas também dispositivos de poder. Estes, como máquinas abstratas, permitem que o agenciamento das máquinas binárias se atualize no campo social. Desse modo, a heterogeneidade do campo social, mediante linhas de segmentaridade, organiza-se em segmentos que asseguram a sua própria homogeneização, suas condições de convertibilidade, traduzibilidade, prevalência. O território, quando compreendido como estratégia de governo da população, bem como constituído por linhas de segmentaridade dura torna-se um plano de organização. Nesse plano se estabelece o que conta e o que não conta em um território, entendendo-se que a máquina binária é uma invenção moderna, formas de produção de saberes possíveis que passaram a organizar-se na modernidade mediante um projeto nomeado por Latour (2009) de purificação.

Esse projeto de purificação, por meio de um processo de ordenação e separação de pares/oposições, torna-os evidências, mas principalmente os torna ontologias distintas e permanentes. Os territórios, nas políticas públicas de saúde, responderam a essa urgência moderna de ordenação, ao passo que criaram ontologias nesses territórios. Essas ontologias permitem a fixação no espaço, assim como o estabelecimento das formas de investimento, tanto no âmbito da prevenção de doenças quanto da promoção de saúde, no que tange à Atenção Básica. As ontologias tornam-se a imagem finalidade, aquilo para o qual se direciona a política pública e sobre o qual se opera: política de saúde da mulher, da criança, do idoso, do homem, da família.

Para além das críticas citadas, também é possível considerar que, embora o conceito de território tenha sido incorporado às políticas públicas de saúde como necessário à inclusão, possibilitando o conhecimento do cotidiano da vida, da saúde e da doença dos indivíduos que compõem a população, o nomadismo põe em xeque a territorialização, visto que esses sujeitos (andarilhos, sem-teto, ciganos, índios, itinerantes, entre outros) não se restringem aos limites definidos pela saúde, denotando a fragilidade da conceituação de território utilizada, bem como dos arranjos que se estabelecem com base nessa racionalidade.

Nesse sentido, pode-se pensar em linhas de segmentaridade mais flexíveis e menos precisas, as quais, segundo Deleuze e Parnet (1998), traçam pequenas modificações, fissuras, desvios, movendo fluxos. Trata-se aqui também de máquinas abstratas, mas que já não são as mesmas, pois são mutantes, "fazendo correr, entre os segmentos, fluxos de desterritorialização" (p. 152). Ou seja, o que os fluxos de desterritorialização teriam a dizer sobre as formas de territorialização da população?

 

Território e nomadismo

Ao aproximar os conceitos de território e nomadismo no campo da saúde, pretende-se apontar que o nomadismo constitui outros modos de território, ou seja, a relação com o território se dá mediante coordenadas que não são fixas, regulares e permanentes. O território conforma-se também como temporalidade. A superfície de inscrição do nomadismo no território se dá pelas marcas temporais, pelas passagens, pelo intempestivo: existe o tempo das safras e das entressafras; existe o tempo do território geográfico que oferta meios de subsistência ou não; existe o tempo em que o clima permite viver em certas regiões ou torna as condições de vida mais difíceis, etc.

Portanto, há aqui a compreensão de que o território, apesar de delimitado pela política pública e segmentarizado, também se constitui por linhas de segmentaridade mais flexíveis, moleculares. Essas linhas não são exteriores ao território, mas tornam o território um campo também de exterioridades, na medida em que, ao produzirem desvios e passagens, atravessam as fronteiras segmentarizadas. O nomadismo estabelece outro jogo com o território, um jogo com o tempo, um jogo de hibridizações.

Para o nômade, a terra é, antes de ser uma propriedade na qual se fixa, um território. Como colocam Deleuze e Guattari (1997), é a desterritorialização que marca a relação do nômade com a terra, sendo que este se reterritorializa nesse processo, de forma que o nômade encontra um território na terra que se desterritorializa. "A terra é simplesmente o solo, o suporte sobre o qual as passagens delimitam territórios de vida" (Souza, 2009, p. 42).

Ao se considerar o nomadismo também como forma de viver, ou seja, forma não fixa em um território, torna-se necessário olhar para os modos como se constituem essas subjetividades, na medida em que não estão atadas no território geográfico, mas em territórios existenciais identitários. Porém, para que a governamentalidade acesse essas vidas que escapam, é necessário circunscrevê-las em identidades. É mediante o jogo de identidades que se organizam formas de governo destas populações: indígenas, moradores de rua, ciganos, trabalhadores safristas. Porém, o próprio nomadismo cria desvios nesses mapas identitários, visto que, pela relação com os territórios de passagem, os nômades assumem novos modos de viver, portanto, novos modos de subjetivação, ou seja, de desterritorialização.

Como exemplo, pode-se citar que algumas etnias indígenas se movimentam de acordo com as condições de subsistência, habitando tanto o espaço urbano quanto suas aldeias. Quando nas aldeias não é possível encontrar recursos para a sobrevivência, dada a extensão do território geográfico, essas comunidades circulam em outros espaços, não apenas pela venda de artesanato, mas também como mão de obra doméstica. Desse modo, a relação com o território se constitui pelo tempo do trabalho e da necessidade. Essa circulação em territórios distintos também cria relações heterogêneas com o sistema de saúde, pois, como não há um território delimitado de pertencimento, os indicadores de saúde também não estão delimitados: compõem tanto aldeia como espaço urbano, em um processo de hibridização de vetores de subjetivação. Pode-se dizer, assim, a partir de Deleuze e Guattari (1997), que o nomadismo opõe-se às formas de captura do Estado, distribuindo-se em um espaço aberto, não indo de um ponto a outro, mas preservando a possibilidade de surgir em qualquer ponto.

Além disso, a desterritorialização traz outros desvios. Se a adscrição da população se dá não apenas com o território delimitado, mas também com as próprias equipes, como governar vidas que se conformam em territórios existenciais provisórios? Como vincular equipe-população se o vetor utilizado é a delimitação e a fixação? O nomadismo como marca identitária encontra-se com a heterogeneização de indicadores de saúde, criando fissuras nas próprias estratégias de vinculação das equipes de saúde com a população.

Dito de outro modo, o nomadismo é incluído no sistema de saúde pelas marcas que definem esses coletivos, como escrito anteriormente, trabalhadores safristas, moradores de rua, ciganos, indígenas, etc. Porém, como essas próprias marcas são aquelas forjadas para criar um campo de inteligibilidade dessas populações nômades, o que escapa é a própria condição de nomadismo, de heterogeneidade de circulação e formas de subjetivação que não se constituem por processos de purificação modernos, e sim por hibridizações: urbano/rural, trabalho/não trabalho, rua/espaços fechados.

Tais hibridizações são fissuras, na medida em que, para a governamentalidade, é preciso conhecer aquele que se governa, mas, sobretudo, aquilo que constitui o que se governa, ou seja, a relação entre os homens e as coisas. No caso da saúde, a relação de esquadrinhamento é pelos territórios sanitários e epidemiológicos; entretanto, o nomadismo percorre diferentes territórios sanitários e epidemiológicos. Isso apresenta para as equipes de saúde não apenas a provisoriedade dos vínculos, mas também a provisoriedade de indicadores. Entretanto, é possível entender que o nômade, mesmo quando sofre os efeitos do estriamento do espaço realizado pelas políticas públicas de saúde, não pertence a esse espaço no qual tudo se passa de um ponto a outro. Como sublinham Deleuze e Guattari (1997), "ele está antes num absoluto local, um absoluto que tem sua manifestação no local e seu engendramento na série de operações locais com orientações diversas: o deserto, a estepe, o gelo, o mar" (p. 54).

Nessa perspectiva, Souza (2009), ao analisar as relações entre o Estado e os movimentos sociais, propõe pensar as políticas públicas de saúde como possibilidade de produção de saúde para além da máquina de Estado. Para o autor, o SUS, embora uma função do Estado, também possui uma função coletiva, visto que seus princípios e diretrizes "garantem uma abertura no interior da máquina estatal para que este 'fora' do Estado se mantenha atuante no seu interior" (Souza, 2009, p. 49). Dessa maneira, a política pública adquire uma dupla inscrição: por um lado, uma inscrição jurídico-legal e, por outro, os modos concretos pelos quais essas noções são apropriadas e reinventadas. É justamente na abertura para as minorias, mediante um movimento constante de tensionamento e lutas, que a noção de 'público' é revigorada.

Seguindo nessa discussão, o autor assinala que a máquina do Estado pode capturar uma máquina de guerra, sendo que o público é entendido a partir de determinadas formas que adquirem funções burocráticas, encontrando-se repartido, institucionalizado, e opera por segmentaridades duras.

O 'público' do ponto de vista do Estado é um aparelho que organiza o espaço e o tempo, reparte a cidade em diferentes segmentos que são interiorizados, por exemplo, em diferentes secretarias (saúde, educação, justiça, ação social, etc.). Constitui-se um conjunto de binarismos e polaridades que no campo da saúde se atualiza como um obstáculo difícil de ser transposto (Souza, 2009, p. 50).

Entretanto, o autor considera que o público adquire novo vigor na medida em que o coletivo resiste às repartições, expressando-se como forças múltiplas e heterogêneas. Assim, pode-se compreender, com Deleuze e Guattari (1997), que "o Estado compreende rápido" (p. 103), sendo que uma das suas tarefas é combater o nomadismo, capturando os fluxos, determinando trajetos fixos e direções determinadas, regulando a velocidade.

Nessa tentativa de captura dos fluxos, o Estado busca a normalização dos grupos que escapam à sua lógica. Desse modo, por exemplo, a população moradora de rua entra nas políticas públicas de distintas maneiras: na assistência social, a partir de suas relações com o trabalho; na saúde, mediante sua definição como grupo usuário de drogas. Tais circunscrições podem ser entendidas como maneiras de determinar trajetórias fixas, regrando e codificando formas de vida. Entretanto, a população moradora de rua apresenta distintas conformações que não se limitam às esferas do trabalho e da drogadição: o nomadismo também se engendra por andarilhos, aqueles que não se vinculam ao trabalho, tampouco ao uso de drogas, mas ao tempo como "uma duração, um ritmo de duração, uma maneira de ser no tempo" (Deleuze, 1999, p. 22). O vínculo está com aquilo que carregam em seus corpos e com o movimento do corpo no tempo, experiências ampliadas e ultrapassadas. Assim, nem tudo se reduz ao esquema proposto pelas políticas públicas, mas outros elementos são postos em ação e surgem, muitas vezes, de forma inesperada.

Desse modo, o território possui um caráter ambíguo. Por um lado, permite o controle da população, fixando-a e segmentarizando-a em diferentes direções: cadastros, fichas de acompanhamento, visitas domiciliares, regiões de pertencimento, formas identitárias (gestantes, adolescentes, hipertensos, diabéticos, homens violentos...), mapas das famílias, etc. Por outro, o território enquanto espaço nômade não é delimitado, mas é marcado pela variabilidade e pluralidade de direções.

Diante disso, cabe salientar que, ao afirmar tal ambiguidade, não se trata de afirmar um suposto dualismo entre o controle e o que escapa. Deleuze e Parnet (1998) colocam que não existe um dualismo entre as máquinas abstratas sobrecodificantes e as máquinas abstratas mutantes, pois ambas operam umas sobre as outras por meio de agenciamentos; ao mesmo tempo em que segmentam, organizam e sobrecodificam, também dissolvem, minam, resistem. Trata-se de uma multiplicidade de dimensões, linhas e direções que ocorrem no interior de um agenciamento, sendo que as linhas se compõem emaranhadas umas nas outras: "não se sabe de antemão o que vai funcionar como linha de declive, nem a forma do que virá barrá-la" (Deleuze e Parnet, 1998, p. 154).

Dito de outro modo, as formas de governamentalidade operam segundo regras de sobrecodificação em que a população assume um estatuto jurídico, bem como foco de investimento de um fazer viver. Governam-se entidades jurídicas, aquelas que são diagramatizadas ao serem sobrecodificadas. Como entidades jurídicas, a partir da Constituição de 1988, todos os habitantes do território nacional são sujeitos de direitos. Isso implica que todos têm direitos de acesso a possibilidades de vida, incluindo-se aquelas que se tornam condições para a saúde.

Entretanto, a condição jurídica não estabelece o acesso igualitário, pois esta não apenas não se confunde com outras formas de subjetivação, como também não as subsume. O nomadismo, como coletivos menores, como minorias, apresenta um plano de bifurcação da política. Por um lado, engendra-se no campo do direito e de marcas identitárias; por outro, ao não se subsumir pelo direito e tampouco pelas identidades, apresenta-se como aquilo que, muitas vezes, justamente por não se adscrever no território delimitado e vinculado às equipes, deixa-se morrer. O deixar morrer assume a forma de uma estratégia voltada para as linhas de declive, aquelas que não se sabe de antemão como governá-las. Essa problemática apresenta-se na medida em que a Política de Atenção Básica (Portaria 2.488, 2011) tem como forma de gestão da vida as estratégias de prevenção e promoção em saúde, de modo a tornar-se fundamental o controle e a regulação daquilo que será prevenido/promovido. Porém, o nomadismo escapa ao controle e regulação, obrigando o Estado a abrir-se para aquilo que o transborda.

Portanto, trata-se de compreender que os segmentos duros não se sustentam se não estiverem mergulhados em um tecido flexível: sempre se está atravessado pelas duas segmentaridades, a molar e a molecular, as quais são inseparáveis e coexistentes. "Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica" (Deleuze & Guattari, 1996, p. 90). Do ponto de vista desta última, uma sociedade é definida por suas linhas de fuga; sempre algo vaza ou escapa às organizações binárias, à sobrecodificação.

 

Rastros

O nomadismo, nesta reflexão, assume uma condição de conceito problema no que tange às possibilidades de invenção nas políticas públicas. Se, por um lado, nas políticas públicas de saúde, a noção de territorialização busca gerir a vida, há modos de viver que tensionam as formas estanques de compreensão do território. Não se trata de considerar formas de captura dessas vidas nômades, e sim o que podem apresentar de condição de modificação/afetação das linhas de segmentarização da política pública de saúde. Como potência, o nomadismo torna-se um agenciamento que permite linhas mais flexíveis, declives, ou seja, cabe afetar-se pela experiência nômade como invenção de formas de viver, portanto, como estéticas da existência.

A experiência nômade traz para a política pública de saúde tanto uma dimensão de assombro quanto de escândalo. Assombro no que tange às formas inéditas de viver não espacializadas no território; escândalo como aquilo que, por sua incapturabilidade em grades de inteligibilidade, é deixado morrer. É no jogo que se estabelece entre essas duas dimensões que se torna possível pensar o que o nomadismo tem a nos dizer como estética da existência, como experiência de duração, e não o que a política tem a lhe dizer.

Pontua-se que o conceito de território na saúde está estreitamente vinculado à inclusão, objetivando garantir a universalização do acesso. Ao desnaturalizar a noção de território, percebe-se que esse não é estanque, mas se constitui de temporalidades e movimentos: é a própria vida que está sempre a encontrar saídas, realizar novas circulações. Afinal, como afirma Pelbart (2011), "vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo" (p. 83), reconhecendo aí o paradoxo já anunciado por Foucault, ou seja, é justamente onde o poder investe - a vida - que se dá a resistência, constituindo sua potência política, fazendo variar suas formas e reinventando-se constantemente.

Se o nomadismo racha a lógica territorial das políticas públicas - com suas áreas, microáreas, regiões, distritos, etc. -, combatendo as classificações e ordenações da vida, também obriga que as próprias políticas se dobrem, buscando atingir a inclusão de todos no campo da saúde. Isso implica abrir-se para as formas de viver que não se enquadram nos modos sedentários, fixos e previsíveis. Tem-se aqui o que Pelbart (2011) chama de flerte com o demônio, isto é, a partir do interior da própria máquina de produção de subjetividades, do próprio poder, encontrar dispositivos de valorização capazes de transpor as tentativas de captura da vida. Para além de ações que pretendam fixar os usuários que não se reduzem à lógica proposta pela saúde, entender o nomadismo como potência implica o avesso de uma exaustiva integralização da vida, tomando-o em sua produtividade e construindo, a partir do campo das políticas públicas, outros sentidos. Não se trata, portanto, de abandonar a noção de território ou declará-la inoperante; mas alargá-la, transformá-la, potencializá-la, mostrando suas limitações, forçando-a até seus limites, apontando, sempre, a própria vida.

 

Referências

Brasil. (1990a). Lei nº. 8080, de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde. Diário oficial da união. Brasília, DF, p. 005346, set. 1990. Seção 1. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em 16 de março de 2009.         [ Links ]

Brasil. (1990b). Lei nº 8.142 de 28 de dezembro de 1990.Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiro na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, dez. 1990. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8142.htm. Acesso em 17 de março de 2009.         [ Links ]

Brasil. (2006). Diretrizes para a programação pactuada e integrada da assistência à saúde. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Regulação, Avaliação e Controle de Sistemas. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Castro, E. (2009). Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Deleuze, G. (1999). Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1996). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3). São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5). São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Deleuze, G., & Parnet, C. (1998). Diálogos. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Gadelha, C. A. G., Machado, C. V., Lima, L. D. de, & Baptista, T. W. de F. (2009). Saúde e desenvolvimento: uma perspectiva territorial. In A. L. A. V. Viana, N. Ibañez, & P. E. M. Elias (Orgs.), Saúde, desenvolvimento e território (pp. 97-123). São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Gondim, G. M. de M., & Monken, M. (2008). Territorialização em saúde. In I. B. Pereira & J. C. F. Lima (Orgs.), Dicionário da educação profissional em saúde (2a ed., pp. 392-398). Rio de Janeiro: EPSJV.         [ Links ]

Gondim, G. M. de M., Monken, M., Rojas, L. I., Barcellos, C., Peiter, P., Navarro, M., & Gracie, R. (2008). O território da saúde: a organização do sistema de saúde e a territorialização. In A. C. de Miranda, C. Barcellos, J. C. Moreira, & M. Monken (Orgs.), Território, ambiente e saúde (pp. 237-255). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.         [ Links ]

Iozzi, F. L., & Albuquerque, M. V. de. (2009). Saúde e desenvolvimento na formação socioespacial brasileira. In A. L. A. V. Viana, N. Ibañez, & P. E. M. Elias (Orgs.), Saúde, desenvolvimento e território (pp. 60-96). São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Latour, B. (2009). Nunca fomos modernos. São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Machado, C. V., & Vianna, A. L. d'Á. (2009). Descentralização e coordenação federativa na Saúde. In A. L. A. V. Viana, N. Ibañez, & P. E. M. Elias (Orgs.), Saúde, desenvolvimento e território (pp. 21-59). São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Pelbart, P. P. (2011). Vida capital: Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras.         [ Links ]

Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. (2011). Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União 2011; 21 out. Disponível em http://www.saude.ba.gov.br/dab/Portaria2488.pdf. Acesso em 10 de dezembro de 2011.         [ Links ]

Santos, A. L., & Rigotto, R. M. (2010). Território e territorialização: incorporando as relações produção, trabalho, ambiente e saúde na atenção básica à saúde. Trabalho, educação e saúde (Online), 8(3), 387-406. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/tes/v8n3/03.pdf. Acesso em 11 de abril de 2013.         [ Links ]

Souza, T. de P. (2009). O fora do Estado: considerações sobre movimentos sociais e saúde pública. In S. R. Carvalho, S. Ferigato, & M. E. Barros (Orgs.), Conexões: Saúde coletiva e políticas de subjetividade (pp. 42-52). São Paulo: Ed. Hucitec.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Betina Hillesheim
betinah@unisc.br
Anita Guazzelli Bernardes
anitabernardes1909@gmail.com

Submetido em: 28/08/2013
Revisto em: 11/07/2014
Aceito em: 19/07/2014

 

 

* Apoio CNPq.

Creative Commons License