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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.66 no.3 Rio de Janeiro  2014

 

ARTIGOS

 

A marca do desejo parental

 

The impression of parental's desire

 

La marca del deseo de los padres

 

 

David BernardI; Chantal TanguyI; Laurent OttaviI; Mariel Camas MartinsII

IDocente. Universidade Rennes 2. Rennes. França
IIDoutoranda. Universidade Rennes 2. Rennes. França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Por quais razões e por quais vias alguma coisa do desejo parental pode transmitir-se à criança, marcá-la em seu inconsciente, deixando uma impressão? Inicialmente, é devido à entrada da criança na linguagem, por ela ter consentido uma perda de gozo, que uma primeira possibilidade surge para ela. Intérprete daquilo que se esconde por trás do discurso de seus pais, pouco a pouco se abre para a criança a via da marca do desejo parental. Paralelamente a essa interpretação, é no aguardo e na esperança de uma resposta à questão "O que eu sou para o Outro?" que podemos reconhecer os primeiros traços da transmissão do desejo do Outro parental. Os escritos de R. Gary La promesse de l'aube e de P. Quignard Le nom sur le bout de la langue nos permitem perceber que o sujeito se coloca no lugar daquilo que falta ao Outro. É porque o sujeito consente uma separação da cadeia significante do Outro que o desejo deste Outro poderá se transmitir e se inscrever.

Palavras-chave: Desejo; Marca; Outro; Significante; Voz.


ABSTRACT

What are the reasons and the path in which something of the parents desire can be transmitted to the child, marking his inconscient and leaving a print? Primarily, it is because the child has entered at the language, due to a consent to a loss of jouissance, that a first possibility comes up. Interpreter of what lies behind the parental speech, gradually, there is an accessible way that opens up to the parental's desire. At the same time, it is in this moment of waiting and hoping for a response to the question "What am I to you?" that we spot the first signs of a transmission of the desire of the Other parental in the child. The writings of R. Gary, La promesse de l'aube and of P. Quignard, Le nom sur le bout de la langue, allow us to recognize that the subject constitutes himself in the lacking-space of the Other. It is because the subject consents to separate himself from the signifying chain of the Other that the desire of this Other can be transmitted and inscribed.

Keywords: Desire; Impression; Signifier; Voice.


RESUMEN

¿Por qué razones y por qué vías algo del deseo de los padres puede transmitirse al niño, marcar su inconsciente y dejar una marca? Al principio es debido a la entrada del niño en el lenguaje, que accedió a una pérdida de goce, que se presenta una primera posibilidad. Intérprete de lo que se esconde detrás del discurso de sus padres, poco a poco, se abre para el pequeño niño la vía de la marca del deseo de los padres. Paralelo a esta interpretación, es en la espera y en la esperanza de una respuesta a la pregunta "¿Qué soy yo para el Otro?" que encontramos las primeras marcas de una transmisión del deseo del Otro parental. Los escritos de R. Gary La promesse de l'aube y de P. Quignard Le nom sur le bout de la langue nos permiten percibir que el sujeto se coloca en el lugar de lo que falta en el Otro. Es porque el sujeto consiente a la separación de la cadena significante del Otro que el deseo de este Otro puede ser transmitido e inscrito.

Palabras clave: Deseo; Marca; Otro; Significante; Voz.


 

 

Por quais razões algo do desejo parental pode ser transmitido à criança e marcá-la em seu inconsciente? Situemos a primeira dessas razões na própria criança, se a tomarmos como uma resposta aos complexos familiares (Lacan, 2001a). Efetivamente, de acordo com a concepção que elabora Lacan:

O sintoma da criança se encontra no lugar de resposta àquilo que existe de sintomático na estrutura da família. O sintoma é aqui o fato fundamental da experiência analítica que se define nesse contexto como representante da verdade. O sintoma pode representar a verdade do casal da família [...]. A articulação muito se reduz quando o sintoma que vem a dominar revela a subjetividade da mãe. Aqui, é diretamente como um correlativo de um fantasma que a criança interessa1 (Lacan, 2001b, p. 273, tradução nossa).

Lacan (2003), em sua carta a Jenny Aubry intitulada Nota sobre a criança, de 1969, nos permite entender "a verdade" (p. 273) da criança como a "resposta" (p. 273) àquilo que se passa quando a função paterna opera ou não. Temos então dois caminhos: ou a criança responde com seu sintoma na medida em que este último está articulado com o Nome-do-Pai, o sintoma representando então a verdade do casal familiar; ou então a metáfora paterna falha e a criança é tomada no fantasma da mãe, vindo saturar sua falta e estando em posição de objeto condensador de seu gozo. Por consequência, se do dizer do Outro algo se transmite, a própria criança, como sujeito e como resposta, participa dessa transmissão. É um ser de saber.

As crianças, escreve Miller (2011),

sabem, elas sempre sabem mais do que os adultos possam suspeitar [...]. Com certeza, elas sabem os segredos da família; elas sabem o desejo dos pais, justamente porque elas são o sintoma; [...]; elas não se enganam sobre os caracteres de semblante de saberes que lhes são impostos e sobre o halo de ignorância que cerca estes saberes e onde estes encontram seu assento2 (Miller, 2011, p. 18, tradução nossa).

No entanto, o que queremos mostrar aqui é que nada será transmitido à criança sem que ela tenha escutado a fala de seus pais, sem que essa fala tenha sido questionada e interpretada. Dizendo de outro modo, Bonnaud, em seu livro L'inconscient de l'enfant (2013), afirma: "O destino de cada um não se escreve sem que haja uma escolha do sujeito"3 (p. 106, tradução nossa).

Lacan insiste nesse ponto em seu Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, 1973), ao comentar o que são e o que visam as perguntas das crianças. Após ter definido o primeiro tempo da causação do sujeito, que ele chama de alienação, Lacan vai concentrar-se no segundo salto subjetivo da criança, que constitui a operação de separação. Aqui, estamos no momento em que a criança, já inscrita na linguagem e começando a se representar, se interessará pelo discurso do Outro para, leitora apurada que ela se tornará, ler entre suas linhas. Assim, não é mais ao discurso do Outro que a criança fica suspensa, mas ao desejo desse Outro. E Lacan acrescenta:

O desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso do Outro, e todos os por quês? da criança testemunham menos de uma avidez da razão das coisas do que constituem uma colocação em prova do adulto, um por que será que você me diz isso? sempre ressuscitado de seu fundo, que é o enigma do desejo do adulto (Lacan, 1998, p. 203).

Assim, ao pai ou à mãe que ordinariamente fecham os olhos diante do que querem exatamente quando educam, a criança responde "Ele me diz isso, mas o que ele quer?", em que interroga, por atrás do discurso educativo, o desejo dos pais. Aliás, não seria essa posição de criança-intérprete um dos traços mais importantes do que faz a criança? A criança, fundamentalmente, interpreta o desejo do Outro parental. Consideremos então que o que se transmitirá do desejo dos pais à criança se fará pela via dessa questão que é colocada ao desejo do Outro e da interpretação que fará a criança desse desejo. A partir de agora, tratemos de precisar o porquê de a criança colocar essa questão antes de indicar o que ela encontrará como resposta e quais serão os efeitos.

Lacan isolou a razão dessa questão: a entrada da criança na linguagem. Faremos aqui um curto lembrete nos apoiando no Seminário I de Lacan, Les écrits techniques de Freud (Lacan, 1975), e no texto Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse (Lacan, 1966). A criança só poderá tornar-se sujeito sofrendo uma perda primária de gozo que vai forçá-la a questionar o Outro. Lacan retomará esse ponto na sequência de seu ensino, apoiando-se na conceptualização do objeto a. O objeto a, causa do desejo, será demandado ao Outro. Assim, ele enunciará em outra ocasião:

O que faz elo do desejo enquanto função do sujeito, do sujeito ele mesmo designado como efeito do significante, é isto, que o a é sempre demandado ao Outro. É a verdadeira natureza do elo que existe (para) esse ser que chamamos de ser da norma4. (Lacan, 1967, tradução nossa).

A criança supõe então no Outro o poder de possuir aquilo que lhe falta e por isso enuncia seu pedido. É isso que vai deixá-la, duplamente, na dependência desse Outro. A criança será primeiramente condenada a submeter-se às leis do Outro da linguagem. O sujeito que ela se tornará só poderá se representar por um significante junto a outro significante e assim desaparecerá sob os significantes que a representam, porém, nenhum significante será suficiente para designá-la efetivamente. Além disso, essa passagem pelo significante terá como consequência a transformação de sua necessidade em desejo. Assim, destaca Lacan, "O momento em que o desejo se humaniza é também aquele em que a criança nasce à linguagem"5 (1966, pp. 318-319, tradução nossa).

Finalmente, para a satisfação esperada desse desejo, a criança dependerá de um outro desejo, o do Outro, considerado dessa vez não mais como lugar do código, mas em sua valência real, por exemplo na pessoa da mãe. É por isso que sua demanda será sempre demanda de amor, demanda de que o Outro a reconheça como sujeito desejante e que aceita sinalizar seu amor, fazendo ato de sua presença em seu lugar. A questão que o sujeito encarna, O que sou eu?, torna-se O que sou eu para você?. A partir daí a criança não cessará de reiterar suas demandas e de endereçar sua questão ao Outro. Por trás de todos esses porquês permanece, mais discreto, mais secreto, o "Por que a si?" (Lacan, 1998a, p. 451), em que o sujeito interroga, ao invés do Outro, a causa, contudo insondável, de seu ato de nascimento. É o que Lacan, depois de Freud, resume em uma fórmula: o desejo de saber da criança busca decifrar "[...] o mistério de sua união [dos pais] ou sua desunião, conforme o caso" (Lacan, 1998b, p. 585).

Mas, na demanda de amor que a criança dirige ao Outro, ecoa outra demanda, a de uma resposta. A questão O que sou eu para você? fica à espera, no lugar do Outro, de um Você é, que poderia revelar à criança o segredo de seu ser e de seu desejo. O sujeito neurótico fundamentalmente fica na esperança de que um Outro possa aliviá-lo de sua questão. Nesse caminho, o presente trabalho visa mostrar como essa espera de um Você é ilumina a lógica daquilo que, a uma criança, pode transmitir-se. Tentaremos também acentuar o peso particular da voz nesse processo de transmissão.

Primeiramente, essa espera por uma fala que diria ao sujeito quem ele é já poderia nos conduzir a explicitar por que toda fala, desde que a escutemos, observa Lacan (1998b) em sua De uma questão preliminar, comporta, necessariamente, um efeito de sugestão: "[...] simplesmente por entrar na audição dela [a da palavra do outro], o sujeito sucumbe a uma sugestão" (p. 539). Daí então o porquê dessa sugestão, que não é senão a de que o ser falante já a requeria, e que ele está, em efeito, estruturalmente, na espera de uma fala que lhe diria quem ele é, o que ele deseja. A história e suas tragédias ideológicas demonstram, aliás, o quanto as multidões podem depender cegamente da fala e do comando de um Outro, colocando-se como último respondente. O ser falante espera que lhe contem uma história na qual ele poderá crer, ou seja, uma história que o console sobre as faltas no registro da representação significante, da falta-a-ser, como no registro do desejo e do gozo, a da falta a gozar. No entanto, sugestão não é transmissão.

Nem toda fala do Outro terá um efeito de transmissão sobre a criança. Ao contrário, o que a criança encontrar de ordinário como significação no discurso do Outro poderá fracassar ao responder algo sobre o seu ser. Lacan (1992) nota tal ponto em seu Seminário 3, As Psicoses. A fala do Outro, mesmo sendo uma delegação que vem incumbir o sujeito, não conseguirá identificá-lo. O "tu és isto, quando o recebo, me torna na palavra outro que não eu" (Lacan, 1992, p. 314). O Você é destacado no Outro pode certamente alimentar as significações egoicas do sujeito, aumentar seu forte ego, mas o enigma do sujeito, esse só será redobrado, observa Lacan (1992) nesse Seminário: "Que sou eu, para ser o que você acaba de dizer?" (p. 314), "Possa eu chegar a isso!" (p. 314).

Aí se encontra um paradoxo que Gary (1980) demonstra clinicamente em seu livro Promesse de l'aube, romance autobiográfico do autor, no qual ele relata longamente o que fora sua relação com sua mãe. Mais precisamente, o autor conta quais foram os ditos de sua mãe em seu lugar que se caracterizavam como um oráculo prevendo constantemente um destino inigualável. É essa fala, entre mil outras, que a criança retém.

Um dia, quando a criança começava laboriosamente suas aulas de dança, sob os olhares inflamados de sua mãe, ela acrescentou: "Nijinsky! Nijinsky! Você será Nijinsky! Eu sei o que estou dizendo"6 (Gary, 1980, p. 28, tradução nossa). Assim, no lugar desse Outro maternal, a criança deveria se ver como destinada (Lacan, 1992, p. 56). Podemos aqui ir ao encontro do que Lacan (1999) trazia quanto ao estádio do espelho: um olhar do Outro vindo confirmar, reconhecer a imagem ideal da criança no espelho. Mas é necessário acrescentar que esse olhar do Outro se faz em tal ponto veredicto, na medida em que esse Outro, com efeito, saberia o que diz.

Do lugar do desejo do Outro retorna para a criança uma fala que ordena, carregada de comando. "Você será... tudo o que sua mãe disse"7 (Gary, 1980, p. 58, tradução nossa), dirão à criança. Seja como for, ao apoio dessa fala maternal, nós poderíamos acreditar que o jovem Gary sabia quem ele era e até mesmo quem se tornaria, segundo o mandato de sua mãe. Ora, essa é uma primeira observação que queremos fazer: o efeito desse dizer do Outro foi o contrário. Essa fala, como muitas outras no mesmo estilo, teria garantido para a criança que falta algo a seu ser. Em uma de suas passagens, Gary afirma:

Ver-me constantemente em um olhar apaixonado e perturbado como único, incomparável, dotado de todas as qualidades e prometido à via triunfal, só acentuava minhas frustrações e a consciência já muito lúcida e dolorosa que eu tinha do abismo entre essa imagem de grandeza e minha pobre realidade8 (Gary, 1980, p. 58, tradução nossa).

Mais ainda, Gary (1980) nos faz entender que não são tanto as falas carregadas de sentido que o marcarão, mas o enigma por trás delas, o fora do sentido. Passamos então do veredicto maternal, e da imagem ideal que este podia impor, a toda opacidade do desejo materno. Trata-se, nesse ponto, não mais somente dos significantes mestres da mãe, mas da impossibilidade de dizer o que eles tentavam recobrir: o Che Vuoi? de seu desejo. Assim como as lágrimas de sua mãe, quando, no momento de deitar-se, pedia misteriosamente para ele levantar seus olhos a fim de poder vê-los e começava a chorar, plena de uma tristeza infinita. A criança ousa perguntar por quê? a outra mulher "Por que mamãe chora ao olhar meus olhos?"9 (Gary, 1980, p. 184, tradução nossa). Recebe essa resposta: "É por causa da cor deles"10 (p. 68, tradução nossa). Mais tarde, ele vem a compreender:

Às vezes seu olhar buscava meus olhos com uma tristeza infinita e eu bem sabia que no suspiro que elevava seu peito não era de mim que se tratava. Eu a deixava fazer. Deus me perdoe, aconteceu-me, na idade adulta, de levantar propositalmente os olhos em direção da luz e de assim permanecer para ajudá-la a se lembrar: eu sempre fiz por ela tudo o que pude11 (p. 29, tradução nossa).

Esse autor nos demonstra que o que foi determinante para ele não foi o enunciado da mãe que serviu como garantia da falta existente em seu ser e dobrou sua divisão, seu O que sou eu?, mas a causa desse enunciado, que a criança, perguntando por quê?, terá conseguido decifrar. Por trás dos oráculos promissores permanecia a desesperança dessa mãe atribuindo ao filho seu lugar. Com Gary nós vemos que, se o sujeito não pode encontrar sua resposta no enunciado do Outro, ele a buscará em outro lugar: na razão dessa cadeia significante que se desenrola no lugar desse Outro. Encontramos aqui a questão da criança que não visará o enunciado, mas sim sua causa.

A questão que guia o sujeito não é somente O que sou eu?, mas O que sou eu para você? Razão pela qual, por trás do enunciado, a criança perseguirá, traçará a enunciação do Outro: "Por que você me diz isso?", ou seja: "Você que me fala e que então me reconhece, diga-me o que eu sou para você". Eis a questão colocando à prova o dizer do Outro. Precisemos agora o que a criança encontrará como resposta.

Primeiramente, observa Lacan, uma lacuna, precisamente a falta dessa resposta. "Não há no Outro, avança Lacan, nenhum significante que possa [...] responder o que eu sou" (Lacan, 2013, p. 354). Aqui, novamente, a impossível resposta ecoará no próprio dizer: existe a impossibilidade de encontrar, no lugar do Outro, uma garantia, a garantia do que ele diz. "...não existe nenhum significante que garanta a continuidade concreta de nenhuma manifestação de significantes12" (Lacan, 2013, p. 441); as perguntas "O que sou eu para você?" e "Por que você me diz isso?" tropeçam em um impossível, em uma falta de significante do Outro. No caso de Gary, trata-se da demanda por parte da mãe de que ele levante os olhos, caracterizando um enigma.

Lacan nos deu o matema dessa falta: S(A barrado) (Lacan, 2013, p. 352) a ausência de garantia do Outro que é também o enigma de seu desejo. É nesse lugar do Outro, em que seu desejo emerge, que o sujeito busca sua resposta. Não nos enunciados do discurso, no que o Outro diz, mas em sua causa: por que ele o diz. Encontramo-nos então no momento em que o sujeito apela ao desejo do Outro para se significar e responder a sua pergunta. No entanto, nesse ponto, falta o significante último S(A barrado).

Daí a tese que Lacan cedo formulou: a criança, certamente, é reconhecida pelo Outro e o reconhece, já que ela se representa junto de seus significantes; entretanto, isso não quer dizer que ela o conhece (Lacan, 1992, p. 49). E isso vale para os pais, que gostaríamos de acreditar o mais possível atentos ao sujeito. O Por que você me diz isso? é a marca que permite delinear na figura de cada pai algo que permanece estranho à criança e que ela questiona cada vez mais.

Por trás do enunciado do Outro permanece o segredo de sua enunciação. No Outro, por trás de seus dizeres, existe uma alteridade radical. Lacan (1992) a menciona desde seu Seminário As psicoses: existe uma "incógnita na alteridade do Outro" (p. 49). Em seu Seminário sobre A angústia, ele acrescenta esta precisão: essa alteridade é "a alteridade do que é dito" (Lacan, 2005, p. 300).

A alteridade do que é dito: é essa a expressão em torno da qual desejamos centrar nossas conclusões. Encontramos primeiramente o eco dessa outra frase de Lacan, citada anteriormente. Se a criança endereça seus porquês, é porque ela questiona o desejo do Outro através "do que não cola" em seu discurso, nas "faltas" (Lacan, 1973, p. 203) desse discurso, e o sujeito questiona no lugar certo, já que é sempre nas falhas do discurso que se pode ler o desejo.

Concluamos então com uma primeira observação: o que o sujeito encontrará de mais próximo concernindo à causa de sua existência e que ele poderá interpretar como tal será não um enunciado do Outro pleno de sentido, mas o que constituirá a falha, a dificuldade desse enunciado, que está sempre mais próxima do desejo. A saber, o que no Outro, com efeito, aparecerá como o x, o enigma, a Alteridade, o S(A barrado).

Vimos, com Gary e seu romance autobiográfico, uma ilustração dessa alteridade no Outro, essa tristeza infinita que ele se esforçará, enquanto criança, para decifrar. Acrescentaremos agora outra referência, o filme do cineasta sueco Ingmar Bergman, intitulado Sonate d'Automne (Bergman, 1978)13, o qual nos permitirá dar um passo à frente. O filme nos fornece um longo diálogo entre uma mulher e sua mãe. Após ficarem sete anos sem se ver, as duas se encontram por alguns dias na casa da filha. Fazem então algumas descobertas, na ocasião de um diálogo difícil, no qual tentarão dizer algumas verdades sobre suas relações passadas e presentes. Retenhamos, por exemplo, esta frase:

Eu te amava, diz a filha, na vida, na morte, creio eu, mas eu desconfiava do que você dizia. Eu entendia, instintivamente, que você não pensava quase nunca o que dizia. Você tinha uma voz tão bela, mamãe, quando eu era pequena, eu a sentia no meu corpo inteiro quando você falava comigo e frequentemente você ficava brava porque eu não escutava o que você tinha acabado de me dizer. Era por causa de sua voz, sua voz que eu escutava, e também porque eu não entendia o que você dizia. Eu não entendia suas palavras, elas não se combinavam com a expressão de quando você sorria ou estava em cólera. Quando você detestava o papai e que o chamava de "meu querido", quando eu a cansava e você dizia "minha pequenina adorada"14 (Bergman, 1978, p. 46, tradução nossa).

Nada daquilo colava, nada se encaixava (Bergman, 1978, p. 46, tradução nossa). "Nada cola, nada se encaixa"15, são essas as falhas que essa criança reconhecia no discurso de sua mãe, ao que se acrescentará esta outra fala ouvida um dia: "Você deveria ter sido um garoto"16 (Bergman, 1978, p. 44, tradução nossa).

Ora, não seria essa dimensão do ouvido dizer que deveríamos acentuar? Tal como já havíamos avançado, existe, por trás do enunciado, o dizer não declarado que corre por trás dessas falas um dia ouvidas, esses segredos encobertos pela metade, essas histórias contadas na mesa familiar que lançarão a criança na perplexidade, com a tarefa de se desprender dela. A respeito disso, Soler (2008) afirma:

À maneira de falar do Outro, é necessário acrescentar, o que faz Lacan, a maneira de ouvir da criança. Entre o que é emitido e o que é recebido, há uma contingência do ouvir, do entender, que limita consideravelmente a responsabilidade dos pais junto aos filhos, sem contar também os efeitos que produzem a partir daquilo que mais lhes escapa"17 (p. 30, tradução nossa).

Em se tratando de Gary, encontramos essa demanda enigmática que lhe dirigia sua mãe: o desejo de "Outra coisa" (Lacan, 1998c, p. 858) de uma mãe que o filho desconstruirá a partir daquilo que não colava, do que não se encaixava através de suas falas e que ele interpretará, falsamente, como um não amor. No entanto, acentuemos o que Bergman acrescenta: estando atenta ao discurso do Outro, a garotinha não desenterrará somente aquilo que não se encaixa no seu discurso, mas, em contrapartida, será marcada pela voz desse Outro.

A frase de Lacan citada anteriormente permite supor: é por entrar na audição (Lacan, 1998b, p. 539) da fala do outro que o sujeito sofrerá seu efeito, independentemente de toda significação. Nesse ponto, o Seminário A Angústia (Lacan, 2005) nos permite especificar: a voz é a alteridade do que se diz. O que se transmitirá à criança parece vir dessa dimensão do ouvir dizer, compreendendo, além do dizer do Outro desenterrado e descoberto pela criança nas falhas do discurso, a voz que carrega esse dizer. Na verdade, é também a voz que dará à fala ouvida a força de marcar a criança, ou seja, o peso de um comando. Lacan já supunha também esse ponto em seu artigo dos Escritos, Subversão do sujeito e dialética do desejo: "O dito primeiro decreta, legifera, sentencia, é oráculo, confere ao outro real sua obscura autoridade" (Lacan, 1998e, p. 822). O dizer do Outro também tem seus efeitos de transmissão, ou seja, de destino e de comando, da voz que o profere e do opaco desejo do qual ele se torna indício.

Lacan, em seu Seminário A Angústia (Lacan, 2005), nos mostra a lógica que articula o que viemos ressaltando até aqui: o apelo no Outro ao Você é, que encontrará como resposta o significante da falta do Outro S(A barrado), a voz e enfim sua consequência, o supereu. Lacan retoma o que já havíamos enfatizado: fazendo apelo ao Outro, para nele encontrar uma significação de seu ser, o sujeito experimentará, primeiramente, o que "[...] se furta na remissão infinita das significações, desse Outro em que o sujeito não se vê mais do que como um destino, porém um destino que não tem fim, um destino que se perde no oceano das histórias" (Lacan, 2005, p. 56).

Em outros termos, é com a ausência de garantia no Outro que o sujeito se confronta aqui, com o S(A barrado). Ele encontrará no Você é os significantes junto dos quais se representará ou desaparecerá definitivamente. Para que o seu apelo ao Outro se realize (Lacan, 2005, p. 198), existirá então um resto, o objeto (a). A saber: o que no Outro consiste na alteridade, no enigma de seu desejo, na causa de sua enunciação.

Esse Por quê você me diz isso? terá como resposta justamente o fato de mostrar esse vazio da falta no Outro. Nós encontraremos, de um lado, o que virá a significar tal falta, esses meio-dizeres do Outro um dia ouvidos, esses fora do sentido de seu discurso, esses significantes em estado puro (Lacan, 1998b, p. 556), desprendidos de suas significações que constituirão um enigma para o sujeito, ao mesmo tempo em que lhe assegurarão que alguma coisa se dizia, em segredo, sobre o desejo do Outro considerado dentro de sua alteridade radical, desejo encoberto onde o sujeito se busca. Verdadeira "significação da significação" (Lacan, 1998b, p. 545), para retomar essa expressão que Jacques Lacan aplicava à perplexidade primeira do sujeito psicótico. No entanto, existirá também a voz que irá encorpar esse dizer de acordo com o que, precisamente, constituía enigma. Uma voz ecoa no vazio do Outro. Em outras palavras, especifica Lacan, "A voz responde ao que é dito, mas não responde por isso". (Lacan, 2005, p. 300).

Lacan especifica a consequência disso: "Para que ela responda, devemos incorporar a voz como alteridade daquilo que é dito" (Lacan, 2005, p. 300). O sujeito, por não poder encontrar a garantia do que ele é para o Outro, optará por incorporar essa voz como signo da Alteridade, ou seja, a voz enquanto imperativo, a voz superegoica que reivindica obediência e convicção, mas também a voz que se atribui ao fora do sentido no Outro. O sujeito se constitui no comando da voz (Lacan, 2005, p. 328), eternizando, nele mesmo, ressonâncias do dizer do Outro, esse dizer primeiro, enigmático, que codifica, que é oráculo.

Dentro do que será transmitido à criança, existirá então o que terá sido retirado das falhas do discurso do Outro, como signos de seu desejo. No entanto, para que tais dizeres enigmáticos possam marcar a criança ao ponto de determinar (Lacan, 1998d, p. 659) seu próprio desejo, será necessário que a voz tenha feito seu papel. A voz incorporada, tal como Lacan (2005) evoca em seu Seminário A Angústia, transformando-se em supereu é também o que virá tatuar no sujeito o texto do dizer do Outro para lhe dar um comando insensato. Trata-se de um comando feito de significantes fora do sentido, mas também carregado de seu apelo ao gozo, em uma repetição eternizada e forçada de condutas do sujeito. Restariam a deduzir as relações do significante mestre e da voz, o objeto mais original (Lacan, 2005, p. 279).

Um laço de causalidade aparece então entre a rejeição pelo sujeito da falta no Outro S(A barrado) e o que virá em troca, na medida mesmo dessa rejeição: os efeitos do supereu e de seus comandos impossíveis. Por não encontrar no Outro do significante sua resposta, o sujeito se reconhecerá na Alteridade do dizer do Outro real, onde se unem o desejo, o fora do sentido e a voz. A Alteridade do dizer do Outro está onde o sujeito se fará. Eis o porquê de ele ser o que lhe será transmitido e que terá força de lei. Gostaríamos agora de verificar clinicamente essa articulação entre a falha no Outro do significante, a presença do Outro real e seus efeitos superegoicos naquilo que se transmite.

Isso, na clínica, poderá ser transmitido da maneira mais trágica à mais inócua. É por isso que nos apoiaremos aqui no recito, também autobiográfico, de Quignard (2007) intitulado Le nom sur le bout de la langue. A partir de uma exposição depurada que o distancia de todo pathos, o autor nos mostra, primeiramente, o que de sua mãe lhe foi transmitido: insignificâncias que decidirão seu destino. Além do mais, ele nos permitirá também especificar a natureza dessa identificação que comporta uma transmissão, se se trata verdadeiramente de um recurso contra a falta-a-ser.

Retomemos primeiramente a lembrança que o escritor guarda e que relata, da cena que parece decisiva: "Minha mãe, se existe uma lembrança que me prende a ela, como a mão ao braço, é esta cena"18 (Quignard, 2007, p. 59, tradução nossa). Ele continua:

Minha mãe se sentava sempre na ponta da mesa de jantar, com as costas para a porta da cozinha. Bruscamente, minha mãe pedia que nos calássemos. Seu rosto se armava. Seu olhar se distanciava de nós, perdia-se no vazio. Sua mão avançava sobre nós no silêncio. Mamãe procurava uma palavra. De repente tudo parava. De repente, nada mais existia. Distraída, distante, ela tentava, o olho fixado no nada, brilhante, fazer vir a ela, no silêncio, a palavra que estava na ponta de sua língua. Nós mesmos estávamos na borda de seus lábios. Nós estávamos à procura, assim como ela. Nós a ajudávamos com nosso silêncio - com toda a força de nosso silêncio. Sabíamos que ela faria retornar a palavra perdida, a palavra que a desesperava19 (p. 56, tradução nossa).

É isso que, para o escritor, fixará, em um vivo instante, a falta no Outro. Uma palavra que falta e enfraquece a potência maternal, afeta com um discreto desespero, como um toque de morte.

A face petrificou-se em sua concentração. Ela se congelou dentro da busca e da frustração. Ela não se move mais. O não-vivo a invadiu. A face daquela que busca o nome que está na ponta de sua língua não tem mais rosto20 (p. 83, tradução nossa).

Retroativamente, o autor nos fala de sua releitura desse instante: a língua havia abandonado sua mãe, deixando-a afetada por sua falta. "Que uma palavra possa ser perdida significa, justamente, que não somos a nossa língua"21 (p. 57). "A todo nome falta algo. Falta algo à linguagem. Também é necessário que o que lhe é excluído penetre a fala e que ela sofra as consequências. É essa palavra"22 (p. 67, tradução nossa).

Horror, morte, "desamparo da linguagem"23 (Quignard, 2007, p. 57, tradução nossa), que a criança recobrirá cedo com uma máscara de beleza:

Essa cabeça que se levanta de repente, a contenção do corpo que busca fazer voltar a palavra perdida, esse olhar que partiu ao longe, esse olhar implicado na busca daquilo que não pode voltar - o conjunto dessa cabeça é imperiosamente sexual24 (p. 70, tradução nossa).

"Ela era uma estátua. E ela estava bela"25 (Quignard, 2007, p. 81, tradução nossa), afirma o autor em seu livro. Ao fora-do-sentido que veio dizer a palavra que falta foi acrescentado um outro registro, o do real. O autor o destaca também enfatizando como os restos desse instante terão perfurado a bela imagem: o "olhar perdido"26 (p. 59 & p. 84, tradução nossa) de sua mãe, bem como seu silêncio e a "voz perdida"27 (p. 94, tradução nossa) que ecoa. O rosto de sua mãe, estático, é o que fora abandonado pelo olhar, "face humana desertada, a boca aberta na linguagem perdida"28 (p. 86, tradução nossa), "face da morte no grito do terror"29 (p. 81, tradução nossa). É essa a cena que a criança construiu, elevando e congelando o enigma do desejo da mãe. O instante se eterniza onde se redobram os índices do desejo opaco do Outro: a falha no discurso do Outro que é a palavra que falta e aqueles que a acompanham na perda: o olhar e a voz. Duas pequenas coisas perdidas que farão a mãe ausente, desejante em Outro lugar, deixando a criança, nesse instante, desesperada para ir ao seu encontro. "Esse olhar perdido no qual nós não tínhamos importância"30 (p. 59, tradução nossa), "Minha mãe se cansando para recuperar a forma perdida, minha mãe se cansando para recobrar o verbo antigo que explicaria tudo"31 (p. 83, tradução nossa).

"Parece-me que relaciono tudo a esse olhar perdido e à palavra que nele se busca"32, diz o autor (p. 84, tradução nossa). Mas isso ainda não diz por que tal cena terá decidido um destino, pois temos que acrescentar como a criança, sujeito responsável, a ela responde. Com efeito, passado o instante de encontro estupefato com o que a criança interpretou como falta no Outro, o autor nos diz qual foi essa réplica. "A criança se identificou com essa falta para nela desaparecer e a ela se dedicar, encontrando aí uma figura de seu destino e uma razão para viver"33 (p. 85, tradução nossa). "A criança se fará na 'borda' dos lábios de sua mãe"34 (p. 56, tradução nossa), onde a palavra faltava, cavidade onde a voz ensurdece. "Eu era essa criança que apostava a totalidade de sua vida no esforço de minha mãe para reencontrar um nome do qual ela se lembrava, mas que dele se encontrava privada"35 (p. 60, tradução nossa). "Eu era lançado sob a forma dessa troca silenciosa com a linguagem que falta"36 (p. 61, tradução nossa), "Eu me fundia a esse silêncio e a esse desnudamento"37 (p. 84, tradução nossa), "Eu me dedicava a isso bem mais do que havia me dedicado a observar essa língua perdida"38 (p. 85, tradução nossa).

Mas precisemos ainda: qual foi a lógica do que o autor nos indica aqui como escolha forçada? Lacan lhe dará um nome: a separação, essa operação de causação do sujeito onde este, após ter desnudado a falta no Outro por trás do pleno sentido de seu discurso, recobre-a com uma outra falta, aquela que lhe havia custado, anteriormente, sua alienação significante. O sujeito se faz no lugar daquilo que falta no Outro. Como nota o autor, ele se dedica, se funde, se lança, aposta sua parte viva. É nisso que ele se reconhece e se encontra, abrigando nessa falta seu vazio de falasser.

Dessa forma, não haverá transmissão de um desejo ao sujeito sem essa operação de separação. É sob a condição de se separar da cadeia significante do Outro, de atacá-la em seu intervalo onde Outra coisa (Lacan, 1998c, p. 851) começa a motivá-lo, que esse desejo Outro será transmitido ao sujeito.

Quignard (2007) o demonstra, lembrando-se de que da falta no Outro uma lei lhe retornará, carregada de sua injunção superegoica e de seus efeitos de destino: "É esse brilho do olhar abandonado que se levanta e que procura. Eu estou fadado a esse brilho, à ereção desse rosto privado de linguagem. 'Sentio legem'. Eu sinto uma lei"39 (p. 101, tradução nossa).

'Sentio legem': [...] Eu sinto em mim uma lei. É esse olhar. São suas sobrancelhas que se franzem. É essa mão que se levanta diante da boca silenciosa e que faz calar tudo em volta da mulher com ares de quem busca. 'Sentio legem'. [...] Eu sinto em mim o dia do julgamento, o julgamento mesmo com sua impiedosa severidade40 (Quignard, 2007, p. 102, tradução nossa).

A criança se fará então filha de... tal falta no Outro por ela interpretada, à qual a partir de agora ela se dedica. Ela se encontrará inscrita em uma linhagem na qual, de uma geração a outra, havia passado um desejo.

Eu me identificava inteiramente com o movimento de pensar da minha mãe [...]. Mais tarde, eu me identificava com o pai de minha mãe. Depois, eu me identificava com o avô da minha mãe. Fazendo isso, eu só justificava uma identificação programada pela minha mãe desde antes de minha chegada ao mundo, já que os dois nomes associados ao meu nome eram os seus nomes - Charles, Edmond. Ainda criança, parecia-me que era necessário adquirir o saber filosófico, gramatical e romano de meu avô para tornar-me o poeta que meu bisavô almejara ser. Ambos haviam sido professores na Sorbonne. Ambos haviam colecionado os livros41 (Quignard, 2007, p. 61, tradução nossa).

Em seu artigo Observação sobre o relatório de Daniel Lagache, Lacan (1998d), após Freud, observou: "[...] o novo homenzinho retomará um dossiê anterior a seus avós: sob a forma do supereu deles" (p. 659), "Aqui ressoa o desejo dos pais" (p. 659).

Concluamos então com Quignard ressaltando como, ao redor de quais significantes, a criança então se precipitou. Do Outro lhe vinha uma lei, um comando. A mãe, nesse instante, o havia silenciado para concentrar-se na busca da palavra que estava na ponta de sua língua. Desde então, o comando não parou mais de ecoar. A criança teria então que, eternamente, "falar mudo, falar calado"42 (p. 62, tradução nossa). A separação de uma babá, apelidada pela criança de Mutti, que havia tomado o lugar da mãe doente e acamada, ofereceu-lhe a ocasião de dar corpo a tal comando. Após essa separação, a criança cai em um período de mutismo. A letra, significante puro do desejo do Outro, imprime-se nela, para fazer dela um "alfabeto vivo". (Lacan, 1998a, p. 446).

Eu a chamava de Mutti. Eu me tornei mudo43. Eu consegui desaparecer nesse nome ainda mais querido que o de minha mãe e que era infelizmente uma injunção. Era um nome não na ponta de minha língua, mas na ponta de meu corpo, e o silêncio de meu corpo era o único capaz de tornar presente, em ato, o calor"44 (Quignard, 2007, p. 62, tradução nossa).

Depois disso, a criança encontrou-se outra solução: não mais o ato do corpo, mas o da escrita, outro modo de falar em silêncio. "Eu comecei a escrever porque era a única maneira de falar calando"45 (p. 62, tradução nossa), "Escrever é ouvir a voz perdida"46 (p. 94, tradução nossa). "Da separação de uma mãe, um desejo lhe fora assim transmitido e tornou-se para ele irrevogável"47 48. (p. 62, tradução nossa).

Ao fim deste artigo, teremos enfatizado a maneira com a qual a criança toma uma parte daquilo que lhe é transmitido. Existe, primeiramente, sua espera de uma resposta que venha do lugar do Outro e que poderia lhe dizer quem ela é. Atenta ao que do discurso do Outro é sinal de sua falta, de seu desejo, e então atenta àquilo que falha e que faz enigma nesse discurso, a criança interpretará em seguida tal desejo. Vemos enfim como, desse ponto, desse lugar, poderá lhe retornar o sentimento de ter, sob um modo superegoico, obrigação de ser..., para satisfazer o desejo do Outro e velar sua falta. Teríamos então que continuar, e poderíamos fazê-lo, por exemplo, sob dois eixos.

Poderíamos primeiramente articular a esta função da voz este outro objeto do desejo que é o olhar. A voz e o olhar são, com efeito, os dois objetos do supereu. Poderíamos então acrescentar aos desenvolvimentos que precedem o efeito de nominação que pode representar o que assim se transmite à criança. Temos o hábito de comentar a nominação paternal. No entanto, Lacan acrescenta em 1974 a nominação maternal, definida por ele como "nomear a", o "ser nomeado a alguma coisa". Daí, então, poderíamos reler o que evocávamos aqui como mandato maternal, mas também, como nos convida Lacan, medir a atualidade: "Ser nomeado a alguma coisa, é isto que para nós, no ponto da história onde estamos, se encontra preferir, passar antes daquilo que é do nome do pai"49 (Lacan, 1974, p. 181, tradução nossa).

 

Referências

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Endereço para correspondência:
David Bernard
dabernard2@yahoo.fr
Chantal Tanguy
chantal-tanguy@orange.fr
Laurent Ottavi
laurent.ottavi@me.com
Mariel Camas Martins
marielmartins@hotmail.com

Submetido em: 02/03/2014
Revisto em: 07/07/2014
Aceito em: 20/07/2014

 

 

1 N. A. No original: "Le symptôme de l'enfant se trouve en place de répondre à ce qu'il y a de symptomatique dans la structure familiale. Le symptôme, c'est là le fait fondamental de l'expérience analytique se définit dans ce contexte comme représentant de la vérité. Le symptôme peut représenter la vérité du couple familial [...]. L'articulation se réduit de beaucoup quand le symptôme qui vient à dominer ressortit à la subjectivité de la mère. Ici, c'est directement comme corrélatif d'un fantasme que l'enfant est intéressé".
2 N. A. No original: "savent, ils en savent toujours plus que n'en soupçonnent les adultes [...]. Bien sûr, ils savent les secrets de famille; ils savent le désir des parents, ne serait-ce qu'au titre d'en être le symptôme; [...]; ils ne se trompent pas sur les caractère de semblant des savoirs qu'on leur impose et sur le halo d'ignorance dont ces savoirs sont entourés et où ceux-ci trouvent leur assise".
3 N. A. No original: "Le destin de chacun ne s'écrit pas sans un choix du sujet".
4 N. A. No original: "Ce qui fait le lien du désir en tant qu'il est fonction du sujet, du sujet lui-même désigné comme effet du signifiant, c'est ceci, c'est que le a est toujours demandé à l'Autre. C'est la vrai nature du lien qui existe [pour] cet être que nous appelons normé".
5 N. A. No original: "Le moment où le désir s'humanise est aussi celui où l'enfant nait au langage".
6 N. A. No original: "Nijinsky! Nijinsky! Tu seras Nijinsky! Je sais ce que je dis!"
7 N. A. No original: "Tu seras... tout ce que ta mère a dit".
8 N. A. No original: "Me voir constamment dans un regard passionné et éperdu comme unique, incomparable, doué de toutes les qualités et promis à la voie triomphale, ne faisait qu'accentuer mes frustrations et la conscience déjà fort lucide et douloureuse que j'avais, du gouffre entre cette image de grandeur et ma piètre réalité".
9 N. A. No original: "Pourquoi maman pleure-t'elle en regardant mes yeux?"
10 N. A. No original: "C'est à cause de leur couleur".
11 N. A. No original: "Parfois son regard cherchait mes yeux avec une tristesse infinie et je savais bien que dans le soupir qui soulevait alors sa poitrine, ce n'était pas de moi qu'il s'agissait. Je la laissais faire. Dieu me pardonne, il m'est arrivé, à l'âge d'homme, de lever exprès les yeux vers la lumière et de demeurer ainsi pour l'aider à se souvenir : j'ai toujours fait pour elle tout ce que j'ai pu".
12 N. A. No original: "...qu'aucun signifiant n'existe qui garantisse la suite concrète d'aucune manifestation de signifiants".
13 Nesse mesmo ano, foi publicado um livro, extraído do filme. Bergman, I. Sonate d'Automne, éd. Gallimard, Paris, 1978.
14 N. A. No original: "Je t'aimais, dit la fille, à la vie, à la mort, je crois, mais je me méfiais de ce que tu disais. Je comprenais d'instinct que tu ne pensais presque jamais ce que tu disais. Tu avais une si belle voix, maman, quand j'étais petite, je sentais ça dans tout mon corps quand tu me parlais et il t'arrivait souvent de te fâcher parce que je n'avais pas écouté ce que tu venais de me dire. C'était à cause de ta voix, ta voix que j'écoutais, et aussi parce que je ne comprenais pas ce que tu disais. Je ne comprenais pas tes mots, ils ne s'accordaient pas avec l'expression quand tu souriais et que tu étais en colère. Quand tu haïssais papa et que tu l'appelais "mon chéri", quand je te fatiguais et que tu me disais "ma petite fille adorée". Rien ne collait".
15 N. A. No original: "Rien ne collait".
16 N. A. No original: "Tu aurais du être un garçon".
17 N. A. No original: "À la façon de parler de lAutre, il faut ajouter, ce que fait Lacan, la façon dentendre de lenfant. Entre ce qui est émis et ce qui est reçu, il y a une contingence de lentendu qui limite de beaucoup la responsabilité des parents à lendroit de leurs enfants, outre queux-mêmes ont des effets par ce qui leur échappe le plus".
18 N. A. No original: "Ma mère, s'il est un souvenir qui me retient à elle, comme la main au bras, c'est cette scène".
19 N. A. No original: "Ma mère se tenait toujours à l'extrémité de la table à manger, le dos à la porte de la cuisine. Brusquement, ma mère nous faisait taire. Son visage se dressait. Son regard s'éloignait de nous, se perdait dans le vague. Sa main s'avançait au-dessus de nous dans le silence. Maman cherchait un mot. Tout s'arrêtait soudain. Plus rien n'existait soudain. Eperdue, lointaine, elle essayait, l'œil fixé sur rien, étincelant, de faire venir à elle dans le silence le mot qu'elle avait sur le bout de la langue. Nous étions nous-mêmes sur le bord de ses lèvres. Nous étions aux aguets, comme elle. Nous l'aidions de notre silence - de toute la force de notre silence. Nous savions qu'elle allait faire revenir le mot perdu, le mot qui la désespérait".
20 N. A. No original: "La face s'est pétrifiée dans sa concentration. Elle s'est figée dans la recherche et dans la frustration. Elle n'est plus mobile. Le non-vivant l'a envahie. La face de celle qui cherche le nom qui est sur le bout de sa langue n'a plus de visage".
21 N. A. No original: "Qu'un mot puisse être perdu, cela veut dire: la langue n'est pas nous-mêmes".
22 N. A. No original: "Tout nom manque sa chose. Quelque chose manque au langage. Aussi faut-il que ce qui lui est exclu pénètre la parole et qu'elle en souffre. C'est ce mot".
23 N. A. No original: "détresse du langage".
24 N. A. No original: "Cette tête qui se dresse soudain, la contention du corps qui cherche à faire revenir le mot perdu, ce regard parti au loin, ce regard impliqué dans la recherche de ce qui ne peut revenir - l'ensemble de cette tête est impérieusement sexuel".
25 N. A. No original: "Elle était une statue. Elle était belle".
26 N. A. No original: "regard perdu".
27 N. A. No original: "voix perdue".
28 N. A. No original: "face humaine désertée, la bouche ouverte sur le langage perdu".
29 N. A. No original: "face de la mort dans le hurlement de la terreur".
30 N. A. No original: "Ce regard perdu où nous n'importions pas".
31 N. A. No original: "Ma mère s'échinant à rattraper la forme perdue, ma mère s'échinant à recouvrer le verbe ancien qui expliquerait tout".
32 N. A. No original: "Il me semble que je rapporte tout à ce regard perdu et au mot qui s'y cherche".
33 N. A. No original: "L'enfant s'est identifié à ce manque pour y disparaître lui-même et s'y vouer, trouvant là une figure de son destin et une raison de vivre".
34 N. A. No original: "L'enfant se fera sur le "bord" des lèvres de sa mère".
35 N. A. No original: "J'étais cet enfant qui misait la totalité de sa vie sur l'effort de ma mère pour retrouver un nom dont elle avait mémoire en en étant privée".
36 N. A. No original: "J'étais précipité sous la forme de cet échange silencieux avec le langage qui manque".
37 N. A. No original: "Je me fondais à ce silence et à ce dénuement".
38 N. A. No original: "J'ai été voué bien plus que je ne me suis voué à ce guet de langue perdue".
39 N. A. No original: "C'est cet étincellement du regard déserté qui se lève et qui cherche. Je suis voué à cet étincellement, à l'érection de ce visage sevré du langage. "Sentio legem". Je sens une loi".
40 N. A. No original: "'Sentio legem': [...] Je sens en moi une loi. C'est ce regard. Ce sont ces sourcils qui se froncent. C'est cette main qui s'élève devant la bouche silencieuse et qui fait faire silence autour de la femme à face de face qui cherche. 'Sentio legem'. [...] Je sens en moi le Jour du jugement, le jugement lui-même, sa sévérité impitoyable".
41 N. A. No original: "Je m'identifiai tout entier au mouvement de penser de ma mère [...]. Plus tard, je m'identifiai au père de ma mère. Plus tard, je m'identifiai au grand-père de ma mère. Ce faisant je ne faisais que justifier une identification programmée dès avant mon arrivée à l'air par ma mère, puisque les deus petits noms associés à mon prénom étaient leurs prénoms - Charles, Edmond. Enfant, il me parut qu'il fallait acquérir le savoir philosophique, grammatical et romain de mon grand-père pour devenir le poète qu'aurait voulu être mon arrière grand-père. Tous les deux avaient professé à la Sorbonne. Tous les deux avaient collectionné les livres".
42 N. A. No original: "parler mutique, parler muet".
43 N. A. Em francês, o termo é mutique.
44 N. A. No original: "(Je l')appelais Mutti. Je devins mutique. Je parvins à m'ensevelir dans ce nom encore plus cher que celui de ma mère et qui était par malheur une injonction. C'était un nom non pas au bout de ma langue mais au bout de mon corps et le silence de mon corps était seul capable d'en rendre présente, en acte, la chaleur".
45 N. A. No original: "J'ai écrit parce que c'était la seule façon de parler en se taisant".
46 N. A. No original: "Écrire, c'est entendre la voix perdue".
47 N. A. No original: "De la séparation d'avec une mère, un désir lui fut ainsi transmis qui lui devint irré-vocable".
48 Em português podemos pensar esse jogo de palavras como irre-vocábulo.
49 N. A. No original: Être nommé-à quelque chose, voilà ce qui pour nous, à ce point de l'histoire où nous sommes, se trouve préférer, passer avant - ce qu'il en est du nom du père.

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