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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.66 no.3 Rio de Janeiro  2014

 

ARTIGOS

 

Liberdade e desejo de constituir família: percepções de jovens adultos

 

Freedom and the desire to constitute a family: perceptions of young adults

 

Libertad y deseo de constituir una familia: percepciones de jóvenes adultos

 

 

Carolina de Campos BorgesI; Andrea Seixas MagalhãesII; Terezinha Féres-CarneiroII

IDocente. Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Dourados. Estado do Mato Grosso do Sul. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste estudo, são examinadas as repercussões do individualismo na família contemporânea a partir de resultados de uma pesquisa qualitativa, por meio da qual se investigou como os planos de constituir uma família se inserem nos projetos de vida de indivíduos pertencentes a segmentos médios da população carioca de duas gerações. Para este trabalho, foram selecionados resultados das análises dos discursos de dez entrevistados da geração mais jovem, homens e mulheres, com idades entre 27 e 34 anos. Concluiu-se que a valorização da individualidade e da liberdade pessoal nas relações amorosas, a atribuição de fragilidade às relações amorosas e a visão de casamento como algo que limita a liberdade individual são reflexos do individualismo que influenciam diretamente a forma como a família é concebida nos projetos dos indivíduos. Com isso, o casamento vem deixando de ser o foco nos planos de constituir família, e os filhos passam a ocupar um lugar mais central para os indivíduos.

Palavras-chave: Liberdade individual; Laço conjugal; Família contemporânea.


ABSTRACT

In this study we examine the repercussions of individualism in the contemporary family from the results of a qualitative research, which investigated how the plans for constituting a family are inserted in the life projects of individuals from two generations. For this work we selected results from the discourse analysis of ten interviewees from a younger generation, men and women, aging from 27 to 34 years-old. We concluded that the appreciation of both individuality and personal freedom in loving relationships, the character of fragility attributed to loving relationships, and the perspective of marriage as constraining individuals are reflections of individualism that directly influence the way family is conceived in individuals' projects. Therefore, marriage is not anymore the focus when planning a family, and children are now central to the individuals.

Keywords: Individual freedom; Couple bond; Contemporary family.


RESUMEN

En este estudio se examinaron las repercusiones del individualismo en la familia contemporánea a partir de resultados de una investigación cualitativa, en la cual se investigó cómo los planes de constituir una familia se insieren en los proyectos de vida de individuos que pertenecen a segmentos medios de la población de Rio de Janeiro de dos generaciones. Para este trabajo se seleccionaron resultados de los análisis de discursos de diez encuestados de la generación más joven, hombres y mujeres, con edades entre 27 y 34 años. Se concluyó que la valoración de la individualidad y de la libertad personal en las relaciones amorosas, la atribución de fragilidad a las relaciones amorosas y la percepción del matrimonio como algo inhibidor del individuo, son reflejos del individualismo que influyen directamente en la forma cómo la familia se concibe en los proyectos de los individuos. Por lo tanto, el matrimonio ha dejado de ser el foco en los planes de construir una familia, y los hijos pasan a ocupar un lugar más central para los individuos.

Palabras clave: Libertad individual; Vínculo conyugal; Familia contemporánea.


 

 

A individualização da sociedade contemporânea, decorrente da centralidade do indivíduo na configuração dos valores sociais, gera formas de vinculação social que se refletem diretamente na natureza das relações amorosas e familiares estabelecidas. Nas sociedades antigas, nas quais o indivíduo ocupava um lugar de menor importância na configuração dos valores sociais, o casamento consistia, sobretudo, em uma aliança entre famílias. No início da Era Cristã, o discurso da Igreja modificou o sentido da vida familiar, submetendo-a a regras morais religiosas, e fez do casamento e da família instituições sagradas. Na modernidade, já sob influência da ascensão do individualismo, as relações familiares e conjugais tornaram-se mais carregadas de afetividade e de intimidade (Araújo, 2011; Martucelli & Singly, 2012; Melchior-Bonnet & Salles, 2001).

Na contemporaneidade, um propósito de emancipação individual está no centro do processo de individualização da sociedade. O acirramento do individualismo tem levado, segundo Singly (2007) e Martucelli e Singly (2012), a uma valorização da dimensão individual dos membros da família, da liberdade pessoal, bem como do respeito à singularidade. Em consequência disso, vive-se a democratização das relações familiares e a busca por relacionamentos pessoalmente satisfatórios.

Nesse contexto, emerge a figura do indivíduo individualizado, que se define por si mesmo, é livre para transitar por universos simbólicos diferentes, vincula-se a referências diversas, tendo várias âncoras, e não somente aquelas herdadas dos laços familiares. São pessoas que "querem, ao mesmo tempo, ter asas e criar raízes" (Singly, 2007, p. 176).

Singly (2005a) afirma que o individualismo que surge a partir da modernidade é um humanismo, é emancipatório. Por meio da emancipação, da recusa a todo enclausuramento identitário involuntário, do distanciamento do indivíduo das dimensões de sua identidade estatutária e dos seus pertencimentos herdados, uma pessoa pode se afirmar como "ela mesma", reconhecendo-se como uma pessoa original. Funda-se um modo de vida social no qual o valor intrínseco de cada ser humano se sobressai e a liberdade individual se torna um elemento importante para os laços sociais que se constituem.

É interessante notar que, justamente nesse cenário, marcado pela exacerbação do individualismo e pela valorização da liberdade, vem aumentando a incidência de casos de divórcios na sociedade. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2012) referentes aos anos de 2002 a 2012, registrou-se um aumento no número de casamentos e divórcios no Brasil. Com relação à elevação da taxa de nupcialidade, o número de casamentos aumentou de 5,6 em 2002 para 6,8 em 2008, chegando a 6,9 em 2011 e 2012. Esse aumento "discreto" nos índices de casamento registrados nos últimos anos pode ser explicado, provavelmente, pelas mudanças ocorridas na legislação brasileira, dentre elas o reconhecimento jurídico da coabitação de duas pessoas como critério suficiente para o estabelecimento de direitos e deveres conjugais.

Já o aumento no número de divórcios no Brasil, segundo o IBGE (2012), foi maior. Passou de 1,2 em 2002 para 2,6 em 2011 e 2,5 em 2012. Os dados mostram também uma queda na duração dos casamentos. Dentre os divórcios registrados em 2002, o tempo médio transcorrido entre o casamento e a data da sentença do divórcio foi de 17 anos, enquanto que, para os casos registrados em 2012, foi de 15 anos. Os índices do IBGE apontam ainda que o aumento nos casos de divórcio nesse período ocorreu, sobretudo, quando se tratava de casais sem filhos. Casais com filhos menores de idade tiveram uma queda na escala desses índices.

Assim, delineia-se um novo panorama para as relações conjugais na contemporaneidade, o qual, acredita-se, está intimamente ligado à escalada da individualização da sociedade. É possível que, em consequência da valorização da individualidade dos membros de um casal, novos sentidos estejam sendo associados à vida conjugal, e que dificuldades quanto à negociação e à conciliação de desejos e expectativas individuais no casamento estejam intimamente ligadas ao aumento da incidência de divórcios.

Até aproximadamente a primeira metade do século XX, a principal motivação para alguém se casar era ter filhos e constituir uma família. Embora os casamentos durassem longo tempo, praticamente a vida toda dos cônjuges, essa duração não se devia exatamente à felicidade e à satisfação dos cônjuges, individualmente, com suas vidas em comum, tal como se entende hoje. O sucesso de um casal se media por outros parâmetros, mais ligados à estabilidade do núcleo familiar e a expectativas sociais do que a questões individuais (Diniz, 2009; Diniz & Féres-Carneiro, 2012).

Atualmente, as pessoas têm outras expectativas ligadas ao casamento. Esperam encontrar paixão, felicidade, realização pessoal, cumplicidade e companheirismo, de modo que a vida em casal passou a ter como finalidade principal não mais a sustentação de um núcleo familiar, mas a satisfação do indivíduo - afetiva, amorosa e sexual. Nesse contexto, como aponta Féres-Carneiro (1998), quando se aspira a uma vida privada que garanta altas gratificações afetivas e sexuais, os casamentos se tornam mais instáveis, ressaltando-se que o que está na base dessa instabilidade é a idealização do casal. Com grandes expectativas dirigidas ao casamento, os cônjuges se divorciam quando não se sentem satisfeitos.

Fundamental para se compreenderem as mudanças que estão ocorrendo no universo do casal atualmente é entender o processo de instituição do ideal amoroso na sociedade moderna. O amor é uma construção social. Embora seja também uma construção particular, uma elaboração individual, na medida em que existe uma diferença entre sua representação coletiva e o modo particular como cada um o vivencia, o que se entende como uma relação amorosa é o resultado de um longo movimento histórico.

Conforme Ariès (1987), a ideia de um amor conjugal começou a existir como um amor derivado do amor a Deus, divino e imortal, e se instalou na sociedade de forma processual como um amor humano e mortal. Da oposição entre o amor divino, único, transcendente e os prazeres pagãos, surgiu uma posição intermediária, um tipo de amor "profano", que se faz passar como "verdadeiro amor" por se dizer "honesto" e "pudico".

Começa, então, a longa caminhada da modernidade sentimental. O sentimento amoroso, mais próximo de como é vivido hoje, consiste justamente em uma manifestação desse novo sentimento intermediário entre os prazeres profanos e o amor divino. O amor dos casamentos "arranjados", correspondente ao amor domesticado, uma forma de paixão tranquila, calmamente cultivada no interior da união já instalada, foi substituído por um amor apaixonado, fervente, livre, avesso às instituições enclausurantes, o amor dos casamentos modernos. Ou seja, o amor dos casamentos em que está em questão o desejo e a subjetividade dos parceiros (Kaufmann, 2007b).

Além disso, o amor, na contemporaneidade, tem a especificidade de estar diretamente relacionado à afirmação da singularidade do "eu". Conforme Singly (2005b), o vínculo amoroso é vivido pelo indivíduo como ocasião de ser uma pessoa "autêntica", uma vez que a condição de ser especial para outra pessoa se traduz no reconhecimento e na valorização de sua singularidade. Nesse sentido, os afetos que emergem da vida conjugal propiciam aos indivíduos envolvidos a revelação de si mesmos como pessoas autênticas e especiais.

Considerando, portanto, tanto a valorização da individualidade quanto a importância subjetiva dos vínculos amorosos para os indivíduos, apresenta-se um paradoxo do qual não escapa o indivíduo contemporâneo. Uma das temáticas centrais relacionadas ao casal contemporâneo é o medo que o indivíduo comprometido amorosamente sente de perder sua liberdade e independência, pois, como demonstra Kaufmann (2007b), ligar-se a alguém pode implicar abdicar da liberdade de poder se inventar constantemente.

O autor faz um resumido esboço do curso da vida de um casal a fim de demonstrar isso. Segundo ele, o começo da vida em casal na juventude impulsiona os dois parceiros em direção à idade adulta, desencadeando uma aceleração de etapas do ciclo de vida. Desde o primeiro encontro, começa a transformação da identidade de cada um (Kaufmann, 2013).

Depois vem a fase do conforto identitário, quando os parceiros já se conhecem bem, sabe-se onde se está, o que se pode esperar e o que se deve fazer. O tempo do conforto de uma relação conjugal estável permite que o casal faça economia, se deixe conduzir por rotinas do cotidiano sem se sentir entediado, tolere sentimentos negativos. Muito raramente um desejo de surpresas e paixão se mantém no casal, a não ser em certos momentos de ruptura do ritmo habitual (como nos períodos de férias e de viagens). Nessa fase do processo, os indivíduos perdem um pouco a liberdade inventiva de si, a possibilidade de se reinventarem livremente, que existia antes do começo da história do casal, pois a manutenção da segurança do vínculo amoroso exige alguma fixidez do eu (Kaufmann, 2007b).

Considerando todas essas tensões que se apresentam, e que dizem respeito à individualização da sociedade e à constituição da relação conjugal e familiar, este trabalho discute, a partir de dados de uma pesquisa realizada, como uma maior demanda de liberdade individual nos relacionamentos amorosos repercute nos planos de jovens adultos de constituir família. Afinal, o que significa a valorização da liberdade individual para essa geração? Como é a família que eles pretendem constituir no futuro? Por fim, que consequências a inclusão da ideia de liberdade nas relações pode ter para os horizontes da vida conjugal e familiar contemporânea?

A pesquisa realizada teve como objetivo compreender como os planos de constituir uma família se inserem nos projetos de vida de indivíduos de duas gerações, mas, no presente estudo, focalizou-se parte desses dados, referentes a temas que emergiram das entrevistas com os participantes da geração mais jovem.

 

Método

Foram entrevistadas 20 pessoas, sendo 10 com idades entre 63 e 69 anos e 10 com idades entre 27 e 34 anos, metade homens, metade mulheres, todos pertencentes aos segmentos médios da população carioca. Ser homossexual ou heterossexual, casado, solteiro ou divorciado não foi considerado um critério para a escolha dos participantes. Dentre os participantes da geração mais jovem, a maioria era solteira - apenas uma pessoa era casada - e heterossexual - somente duas pessoas eram bissexuais. As entrevistas se basearam em um roteiro de perguntas previamente elaborado. Elas foram gravadas em arquivo de mp3 e, posteriormente, transcritas na íntegra. Os textos resultantes das entrevistas foram submetidos a uma análise de discurso.

Os sujeitos foram convidados a participar da pesquisa a partir de sua rede social, o que, segundo Heilborn (2004), é uma estratégia de recrutamento interessante quando se tem como alvo as camadas médias, um segmento extremamente vasto e variado, de difícil definição. Trata-se de uma tentativa de abordar pessoas que compartilham de uma representação de mundo próxima dentro das classes médias, fazendo com que a comparação de seus discursos seja possível.

A Análise de Discurso foi considerada a metodologia adequada para a realização desta pesquisa, em função do objetivo de apreender as falas dos sujeitos como textos produzidos dentro de um contexto sociocultural e explorar os sistemas ideológicos subjacentes a ele (Fairclough, 2001; Fairclough, Mulderrig, & Wodak, 2011; Menegon, 2013; Rocha-Coutinho, 1998). A análise das entrevistas foi influenciada também pela Sociologia Compreensiva (Kaufmann, 2007a) no que diz respeito à fina articulação entre o trabalho de campo realizado e a emersão das categorias de análise.

Antes da realização das entrevistas, todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, através do qual expressaram concordância em participar deste estudo e autorizaram o uso das informações para estudos acadêmicos e para publicação, tendo a pesquisadora se comprometido a garantir o sigilo de suas identidades e utilizar nomes fictícios na divulgação dos resultados. Este estudo obteve a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde foi realizado.

 

Resultados e discussão

No seu recorte mais amplo, esta pesquisa indicou estar ocorrendo uma mudança nas preocupações e objetivos de homens e mulheres das duas gerações. Observou-se uma diminuição das assimetrias de gênero - ou seja, atualmente homens e mulheres constroem percursos de vida mais parecidos um com o outro; ambos têm preocupações sobre profissão, trabalho, independência financeira, diferentemente do que acontecia antigamente, quando os assuntos do mundo público eram designados quase exclusivamente aos homens, enquanto as mulheres eram incumbidas de lidar com as questões do mundo privado.

Além dessa aproximação dos interesses de homens e mulheres, foi possível notar que os entrevistados da geração mais jovem compartilham um valor, a liberdade individual, que influencia diretamente seus projetos individuais, suas visões acerca das relações amorosas e do casamento, bem como seus planos de constituir família. Esse assunto será discutido mais detalhadamente a partir de quatro temas que emergiram das entrevistas: 1) Valorização da liberdade individual; 2) Atribuição de fragilidade às relações amorosas; 3) Visão de casamento como algo limitador das possibilidades de vida; e 4) Filhos como projeto individual.

Valorização da liberdade individual

Há, entre os entrevistados, uma valorização de liberdade e individualidade nos relacionamentos, como se pode ver nas falas a seguir:

Liberdade, liberdade individual da pessoa! A pessoa tem coisas dela, que é só dela, entendeu? Eu tenho coisas que é só minha. E eu não posso impedir isso nela e nem ela pode impedir isso em mim, entendeu? [...] Compreensão, acima de tudo, compreensão. Num relacionamento, isso é uma chave. Pra coisa prosseguir e vocês viverem felizes para sempre. E hoje em dia tá difícil de ser felizes para sempre (Flávio, 31 anos, solteiro).

[...] Eu adoro viajar sozinha. Sou do tipo que coloca a mochila nas costas e vou. Passo o final de semana. Como eu tô, muitas vezes, namorando, isso não é uma coisa agradável e nem sempre a galera topa, sabe? [...] 'Te adoro, mas o mundo é muito maneiro! Tem um monte de coisa acontecendo. Eu saio, eu viajo' (Carla, 32 anos, solteira).

Os enunciados "Liberdade, liberdade individual da pessoa" e "Te adoro, mas o mundo é muito maneiro" indicam que preservação da individualidade e valorização da liberdade pessoal são ingredientes necessários para a constituição dos vínculos. Essa referência a liberdades e individualidades remete a uma das especificidades do laço social individualista contemporâneo: propiciar aos indivíduos ao mesmo tempo pertencimento social e mobilidade individual. É dentro dessa configuração social que liberdade e individualidade ganham importância (Dumont, 1983; Elias, 1994; Kaufmann, 2010; Simmel, 1989).

Autores como Giddens (2002) e Maffesoli (1987) tratam da importância da noção de liberdade para as relações no mundo social contemporâneo. Na visão de Giddens (2002), a diversificação da vida social nas grandes cidades, decorrente do aumento das possibilidades de trocas culturais entre indivíduos, gera a ampliação das possibilidades de escolha dos indivíduos sobre a vida que pretendem ter. Isso se traduz como um aumento da margem de manobra dos indivíduos sobre suas vidas. Poder fazer escolhas, ainda que as escolhas não se deem fora dos limites de um campo de possibilidades, é justamente desfrutar de liberdade, poder deixar emergir a individualidade de cada um.

Na ótica de Maffesoli (1987), liberdade e sociabilidade se relacionam de outra maneira. Uma vez que o indivíduo contemporâneo é livre para transitar por diferentes universos simbólicos, ele não somente tem a possibilidade de escolher, mas também de combinar referências distintas. Segundo o autor, a sociabilidade contemporânea tem um aspecto confusional caracterizado pela fluidez, por reuniões pontuais e pela dispersão. Lançando mão da metáfora das tribos, o autor explica que, nesse contexto, as pessoas se ligam umas às outras em uniões em pontilhado, podendo se unir a diferentes grupos que se fundem e se dispersam facilmente. Assim, hoje as pessoas têm a possibilidade de fazer parte de diferentes grupos, identificando-se ao mesmo tempo com distintas referências, não tendo necessariamente que escolher entre elas, podendo simplesmente conviver com uma variedade de grupos ao mesmo tempo.

Poder participar de vários grupos, estar vinculado amorosamente a alguém sem precisar escolher ou renunciar a nada, parece ser algo próximo daquilo que a entrevistada Carla quis dizer ao afirmar "Te adoro, mas o mundo é muito maneiro! Tem um monte de coisa acontecendo". Essa é uma forma de vínculo típica da contemporaneidade, em que se reivindica justamente a preservação de individualidades e a possibilidade de pertencer a diferentes grupos ao mesmo tempo.

Preservar a identidade individual é, precisamente, preservar singularidades, ou seja, permitir que o que há de autêntico em cada eu possa se manifestar e não impedir que isso ocorra, como afirma Elias (1994). O aprofundamento de valores individualistas torna o eu mais importante do que o nós e legitima a formação de um tipo de laço social em que a identidade individual tende a se manter preservada (ou protegida) das imposições sociais.

Contudo, sustentar a afirmação de eus nas relações é fonte de tensão. Isso faz com que os cônjuges e os membros da família tenham que sustentar um tipo de entrosamento que não camufle suas individualidades e fomenta a emersão de novas questões, tanto para a vida conjugal como para a vida familiar de forma mais ampla. Uma possível consequência disso é que as relações amorosas e conjugais podem se tornar mais instáveis, pois demandam, por parte de cada um, maior fluxo de negociações e conciliações.

Atribuição de fragilidade às relações amorosas

Os discursos de Lígia, Rafaela e Rodrigo apontam suas convicções sobre a fragilidade dos vínculos amorosos e a certeza de que os relacionamentos amorosos chegam ao fim, como se pode ver:

[...] eu não sei se eu acredito em relacionamento a longo prazo. Eu realmente não sei. Hoje em dia, olhando ao meu redor, eu vejo que as pessoas ficam juntas 10, 15 anos, e se separam. Salvo raríssimas exceções. E essas raríssimas exceções às vezes são hipocrisias, entendeu? São casais que não se gostam mais, mas não se separam por causa da sociedade que vai julgar, sei lá... porque tem medo ou porque a mulher não pode porque não tem condições financeiras de ficar sozinha (Lígia, 33 anos, solteira).

E eu não sei se é no Rio que acontece isso assim, mas as pessoas são muito... ficam juntos, casam, separam [...]. É porque eu conheço poucas pessoas hoje em dia que ficam pra valer pro resto da vida. Tipo casou, teve filhinho, ficou pro resto da vida. Pouquíssimas. Então, eu também não tenho essa mentalidade do apego (Rafaela, 34 anos, solteira).

Eu acho que eu tenho um pouco de dificuldade com esses valores contemporâneos, eu já sei que nada é pra sempre, sabe? Então, eu sinto uma certa dificuldade de... não sei... de imaginar que eu vou casar pra todo o sempre com uma mesma mulher. Isso é uma coisa que é meio difícil, assim. [...] Não sei se os mitos vão caindo... Aí, agora, não sei... eu sei que tudo vai acabar. Os relacionamentos amorosos vão acabar. Então, fico com dificuldade com isso, até de saber com quem eu vou fazer... Porque é isso, não tem a pessoa certa (Rodrigo, 32 anos, solteiro).

Em um mesmo contexto social, em que liberdades e individualidades se apresentam como valores constituintes dos laços sociais, observa-se que são cada vez mais frequentes os divórcios, como apontam, no Brasil, dados do IBGE. Pode-se compreender, então, por que, para os entrevistados, seja realmente difícil apostar na ideia de que os relacionamentos amorosos resistem ao passar dos anos. Como afirmou Jablonski (1998, p. 21), o "até que a morte os separe" deu lugar ao "até que a vida os separe". Diante das estatísticas sobre casamentos e divórcios no Brasil e no mundo, o mais coerente é que as pessoas assumam uma postura de ponderação quanto aos riscos de uma separação conjugal, considerando perdas e ganhos individuais envolvidos no processo de manutenção ou de ruptura de um relacionamento, como foi observado nos discursos dos entrevistados.

Delineia-se, assim, a realidade das relações amorosas em um contexto marcado por mudanças econômicas, tecnológicas, nas relações de gênero, no ciclo de vida, no campo da medicina, no âmbito da legislação e, sobretudo, por mudanças na configuração dos valores socialmente compartilhados. A individualização da sociedade, e com ela a importância atribuída à individualidade e à liberdade de cada pessoa na vida social, geram uma transformação radical no propósito da vinculação dos parceiros em um casal. Hoje, a união conjugal deve favorecer o não encobrimento da autenticidade de cada cônjuge, como foi discutido.

Nesse contexto, a estabilidade de um casal decorre de um tipo de entrosamento entre os cônjuges que permita a cada um ser ele mesmo, embora se reconhecendo também no outro. O eu conjugal, a dimensão da identidade pessoal que se transforma em nós, se constitui por um processo de articulação tenso com o eu mesmo, que não se deixa englobar pelo conjunto. Compatibilizando as referências de cada eu autônomo e aquelas do nós casal, as relações conjugais são viabilizadas (Diniz & Féres-Carneiro, 2012; Féres-Carneiro, 1998; Féres-Carneiro & Magalhães, 2008; Jablonski, 2010).

Apesar de toda a complexidade implicada na conciliação de individualidades para a viabilização do envolvimento amoroso na contemporaneidade, o vínculo amoroso continua tendo grande importância para os indivíduos, não somente porque lhes propicia a valorização de sua singularidade (Singly, 2005b), mas também porque o alto grau de intimidade e envolvimento afetivo nele implicado pode se tornar um suporte subjetivo para eles. De acordo com Magalhães e Féres-Carneiro (2003), o sujeito contemporâneo, que se afirma como autônomo, não conta mais com referências tradicionais que lhe deem suporte para a construção de sua identidade. Diante disso, a relação amorosa acaba por representar a esperança de reasseguramento do eu a partir de trocas intersubjetivas com o outro.

Mesmo sendo importante a função subjetiva dos laços amorosos para os indivíduos contemporâneos, o fato é que, atualmente, o casamento não se impõe arbitrariamente aos indivíduos, assim como é amplamente aceita a possibilidade do fim dos casamentos. Vem aumentando o número de pessoas solteiras que vivem sós atualmente em diversos países, como constata Lardellier (2006). Segundo ele, a possibilidade de estabelecer uma vida a sós hoje encontra sustentação nas novas ideias, amplamente disseminadas na sociedade, de que o eu pode ser matriz de sua existência, vivendo conforme projetos individualmente idealizados. Portanto, em contexto de individualização, são diversas as possibilidades abertas aos indivíduos na construção de suas trajetórias de vida, de modo que uma vida a dois representa uma dentre outras tantas possíveis.

Essa ampliação das possibilidades de vida dos indivíduos foi observada também nos discursos dos entrevistados. Além da unanimidade quanto à fragilidade das relações amorosas, sempre abertas à possibilidade de se desfazerem, parece haver uma atitude de aceitação diante do fato de os relacionamentos sempre terem um fim. Há, por parte deles, uma conformação e compreensibilidade da recorrência do fim dos casamentos atualmente. Os entrevistados parecem não contestar o porquê de os relacionamentos amorosos não durarem hoje tanto como antigamente ("eu sei que tudo vai acabar") e mostram-se mais abertos a estabelecer uma vida a sós ou a estabelecer relações amorosas de curta duração ("eu também não tenho essa mentalidade do apego").

A continuidade de um casamento pode ser vista como "hipocrisia", como afirmou Lígia, porque a visão que se tem de casamento não hipócrita hoje é idealizada como aquela relação mantida exclusivamente por amor, paixão, companheirismo, admiração, complementaridade, etc. A combinação desses dois elementos - a saber, idealização da relação amorosa e afirmação da liberdade dos indivíduos para construir suas trajetórias de vida de diversas formas - é o que delineia as relações conjugais almejadas na contemporaneidade.

Visão de casamento como algo limitador das possibilidades do indivíduo

A vida a dois na contemporaneidade se afirma muitas vezes como uma escolha paradoxal, pois pode representar o cerceamento das possibilidades dos indivíduos, como se pode ver nos trechos a seguir:

Então, eu acho que hoje em dia eu não me casaria, não. [...] Porque... não sei... Por exemplo, eu acho que casamento hoje... eu tenho muito sonho ainda que eu posso realizar, mas o fato de eu estar casado me impede. [...] Olha, eu queria muito ir pra fora estudar. Uma época eu tive essa oportunidade e não fui porque sou casado. Então, é complicado (Lucas, 27 anos, casado).

Engraçado, na minha cabeça eu não tenho aquela fantasia do casamento perfeito. Eu acho também que tudo pode se espelhar muito na minha educação, né? No meu histórico de vida. Os meus pais se casaram. Depois de 13 anos de casado, se separaram e depois eu achei que os dois separados era muito melhor do que juntos. Sabe? (Rafaela, 34 anos, solteira).

Os discursos de Lucas e Rafaela chamam atenção para o caráter conflituoso da conciliação das ideias de liberdade e conjugalidade no mundo contemporâneo. No caso de Lucas, estar casado o impede de ter a mobilidade de que necessitaria para viver outras coisas que ele gostaria, como estudar fora do país. No caso de Rafaela, ela notou que o término de um casamento pode tornar as pessoas mais felizes do que eram antes, como aconteceu com seus pais. Em ambos os discursos, está em questão uma visão do vínculo conjugal como algo que tolhe o indivíduo, bem como a valorização da liberdade como algo necessário para ele.

Essa é uma das temáticas centrais relacionadas ao casal contemporâneo. Os indivíduos hoje querem ter asas e raízes. Quando são parte constituinte de um casal, os indivíduos sonham em poder se libertar para recuperar sua independência. Mas, se por um lado, eles têm medo de se perder nos papéis que desempenham no casal, por outro lado, quando estão sós, sentem-se livres, porém têm medo de ficar sós para sempre.

A constituição da conjugalidade depende necessariamente da criação de uma zona comum de interação e, claro, da formação de uma identidade conjugal (Diniz & Féres-Carneiro, 2012; Féres-Carneiro, 1998; Magalhães & Féres-Carneiro, 2003). Portanto, a vida a dois exige de cada pessoa certo desligamento de si, certa mobilidade identitária, ou, de acordo com Kaufmann (2007b, 2010), certa abdicação da liberdade de poder se inventar, o que pode se tornar insuportável para o sujeito contemporâneo.

Configura-se, assim, um dos paradoxos que o individualismo contemporâneo traz para o universo de um casal. O que torna o casal contemporâneo, ou a família contemporânea, um lugar coletivo no seio do qual os indivíduos podem se socializar e se expandir é a capacidade de equilibrar o individual e o coletivo. Segundo Singly (2000), viver junto, dividindo o mesmo espaço, em um contexto individualista, só é possível para o indivíduo que está apto a viver com, a aceitar os ajustamentos que ele deve fazer para que a vida compartilhada seja suportável. Divisórias, segundo o autor, são a garantia da individualização no seio da família. Mesmo quando são mal colocadas, elas valem sempre mais do que sua ausência, pois viabilizam a alternância vital, no contexto contemporâneo, entre vida pessoal e vida comum.

Compreende-se, enfim, por que, no discurso dos entrevistados, o divórcio é apreendido como algo libertador do indivíduo. Comprometidos com o valor da liberdade individual, eles consideram que o desenlace conjugal pode ser detonador de mudanças enriquecedoras para o eu, já que o casamento é visto como algo, de certa forma, limitador das possibilidades do indivíduo.

Filhos como projeto individual

A valorização da liberdade individual, a atribuição de fragilidade às relações amorosas e a visão de casamento como algo limitador do indivíduo - reflexos da individualização da sociedade - influenciam a forma como os indivíduos conciliam a ideia de formar uma família com seus projetos pessoais. Esse último ponto será discutido a partir dos discursos de Lígia e Gabriel:

Eu sempre quis ter filhos. [...] Filhos. Família. Marido, não. Assim, marido, se ele existir, pra mim é 100% melhor porque é uma figura que vai me ajudar a cuidar da família (Lígia, 33 anos, solteira).

Não sei. Eu acho que eu gostaria de criar um filho. Agora, como é que vai ser isso, se eu preciso estar casado pra fazer isso ou não, na verdade eu nem... não sei. Eu sei que eu quero ter filhos. Pretendo ter filhos. [...] Acho que eu gostaria de passar por isso independente de estar casado ou não. [...] Obviamente, ter filhos é bom que você tenha uma pessoa do lado te ajudando a criá-lo (Gabriel, 27 anos, solteiro).

Para Lígia e Gabriel, ter filhos faz parte de seus planos. A existência de um companheiro ou companheira, para tanto, embora seja desejável, não é imprescindível. Pode-se afirmar, então, que são os filhos as figuras determinantes para a ideia de família que pensam constituir, o que assinala uma importante transformação no lugar tradicionalmente atribuído ao casal na estruturação de uma concepção de família.

A referência de Lígia e Gabriel a um formato de família no qual não é necessária a existência, a priori, de um casal remete a uma concepção de família marcada pela não obrigatoriedade de estabelecimento de laços que não sejam pessoalmente apreciados. Esse é, para Singly (2007), o novo traço das relações familiares que emerge na contemporaneidade. Segundo ele, "o que muda é o fato de que as relações só são valorizadas quando proporcionam satisfação a cada um dos membros da família. Hoje, a família feliz é menos atrativa, o que importa é a felicidade de cada um" (Singly, 2007, p. 131). Ou seja, é um tipo de família na qual se evidencia o caráter reflexivo das relações no mundo contemporâneo (Giddens, 2002).

A partir dos dados desta pesquisa apresentados anteriormente, observa-se que a ênfase dada à individualidade e à liberdade na contemporaneidade tem mudado os parâmetros pelos quais se avalia a felicidade do casal e da família e, também, as concepções de família partilhadas pelos indivíduos. Transforma-se, inevitavelmente, aquele modelo de família que foi, por razões históricas, tradicionalmente idealizado: a família conjugal moderna, gerida a partir da união de um casal e voltada para o bem-estar das crianças provenientes dessa união. Uma nova realidade, mais fluida e também, por vezes, mais mutável, se apresenta aos casais, diante das grandes expectativas de realização individual depositadas na vida a dois. E a ideia de ter filhos se apresenta como algo independente do estabelecimento de uma vida conjugal nos moldes de um casamento, alimentando uma nova maneira de se conceberem as relações familiares.

Segalen (2008) emprega a expressão "Famille conjugale instable" (p. 64) para se referir a um tipo de família que vem surgindo nesse cenário marcado pelo aumento da ocorrência de divórcios e separações e da atribuição de fragilidade às relações conjugais. Esse novo tipo de família se distingue de outros padrões familiares - por exemplo, a família conjugal moderna - justamente pelo fato de não mais se estruturar em torno da ideia de um casamento sólido e eterno. Ele surge como um correspondente da família conjugal moderna em um contexto em que é alto o risco de ruptura das relações amorosas, em função, como dito anteriormente, das altas exigências afetivas dirigidas a elas.

De acordo com Segalen (2008), até os anos 1970 só havia uma forma socialmente legítima de fundar uma família no mundo ocidental moderno: o casamento. Contudo, esse padrão foi se transformando pouco a pouco, na medida em que as relações conjugais foram se tornando instáveis. A instabilidade do casamento, resultante de transformações do mundo feminino e, de maneira geral, do aprofundamento do individualismo nas relações gerou a desestabilização de um modelo de família que o tinha como centro e propiciou uma abertura ao reconhecimento das novas e diversas concepções de família que estão surgindo.

As repercussões disso para a estruturação da família são que, quando, há algumas décadas, se tinha o casamento como uma relação indissolúvel, filhos faziam parte dos projetos de um casal e eram fruto do compromisso dos cônjuges em constituir uma família. O casal fundava a família. No entanto, o aumento do número de divórcios e separações na sociedade contemporânea demonstra que o vínculo conjugal tem-se tornado algo mais fluido, menos sólido do que outrora. Diante disso, hoje, o vínculo de filiação, perene e incondicional, passa a ter grande importância na constituição de uma família. Nesse contexto, como afirma a autora, é a criança que funda a família.

Os discursos de Lígia e Gabriel retratam claramente essa formulação apresentada por Segalen (2008). Trata-se da proposição de uma concepção de família em que são os filhos, e não o casal, que ganham maior importância para a definição de um núcleo familiar. Assim, os filhos ganham uma posição de destaque na estruturação da ideia de família, encarnando o "espírito de família", dos laços eternos, da continuidade.

Não é a primeira vez na história que é referida a importância da criança na estruturação da família. De fato, como argumentou Ariès (2006), a emersão de um sentimento afetivo dirigido à criança foi o grande acontecimento para que surgisse o sentimento da família. Isso se deu por volta do século XVI. Frente à distinção entre a vida pública e a vida privada e à introdução de uma carga afetiva nas relações, a família se voltou afetivamente para as crianças e viveu uma transformação nas suas funções e na natureza dos vínculos estabelecidos dentro dela. Em torno da criança, foi surgindo o sentimento de família e de infância, seguido do crescimento da intimidade na família. Assim se deu a entrada da família na modernidade.

A retomada da importância da criança na estruturação da ideia de família na contemporaneidade tem um sentido completamente diferente desse primeiro momento, ocorrido no final da Idade Média. O deslocamento da figura dos filhos para o centro da família hoje é o resultado de um processo de profundas mudanças nas relações amorosas e conjugais, decorrentes da individualização da sociedade.

A maior ocorrência de divórcios e separações, bem como a dúvida quanto à durabilidade dos relacionamentos amorosos, impulsionou a emersão de uma variedade de novas configurações familiares. Famílias monoparentais, famílias recasadas ou reconstituídas, famílias homoafetivas e famílias constituídas em torno dos filhos são formas de família instituídas na contemporaneidade, cujo surgimento está diretamente ligado a transformações do universo do casal (Diniz e Féres-Carneiro, 2012; Féres-Carneiro, 2002; Féres-Carneiro & Magalhães, 2008; Vaitsman, 1994).

Este estudo mostra que as mudanças socioculturais da contemporaneidade estão impulsionando uma transformação da ideia de família que se projeta para o futuro. Embora a presença de um marido na família possa ser considerada por alguns "100% melhor", como afirmou a entrevistada, e ser "bom que você tenha uma pessoa do lado te ajudando a criá-lo (um filho)", como afirmou o entrevistado, é possível idealizar uma família sem um núcleo conjugal. Trata-se de uma flexibilização significativa dos parâmetros da tradicional família conjugal moderna.

Há de se ressaltar, por fim, que o caráter instável assumido pelas relações conjugais contemporâneas não reflete o fim de projetos de uma vida a dois, e sim a ênfase atualmente dada à satisfação pessoal nas relações. Instituída a flexibilidade como ingrediente para a definição de uma família, a obrigatoriedade do casal como núcleo familiar tende hoje a ser superada, e, neste caso, o sentimento de família oriundo da valorização dos afetos no núcleo familiar recai sobre os laços de filiação. Nesse contexto, é possível que os planos de ter filhos passem a existir não mais como projetos exclusivamente do casal, mas também como fruto de projetos individuais.

 

Considerações finais

Apesar do pequeno número de participantes envolvidos neste estudo, considera-se que os resultados encontrados permitiram tecer algumas considerações sobre as questões que atingem o indivíduo e o universo da família na contemporaneidade. Constatou-se haver uma estreita ligação entre o aprofundamento de valores individualistas e os novos rumos que se apresentam para a vida conjugal e familiar. A valorização da liberdade individual vem propiciando que os vínculos amorosos sejam considerados cerceadores das possibilidades dos indivíduos. Ainda que os indivíduos desejem manter relações amorosas, frente aos altos índices estatísticos de divórcios e separações, eles se inclinam a acreditar que essas relações, quase sempre, terminam em separações e se vêm em um impasse quando pensam em abrir mão de sua liberdade individual para levar à frente um projeto de vida a dois.

Dentro desse panorama, casamento e projetos de constituir uma família se inserem no horizonte da vida das pessoas hoje de modo inédito. Em primeiro lugar, quando se trata de um casamento, há maior necessidade de que os parceiros conciliem suas individualidades, de modo que o vínculo conjugal não acabe frustrando seus planos individuais. Em segundo lugar, a família, a sexualidade, e até a procriação, vêm-se delineando como projetos individuais, e não mais como projetos a serem construídos necessariamente com alguém com quem se compartilha um projeto de vida. Até mesmo filhos podem ser frutos de planos que as pessoas estabelecem para si individualmente, a partir de uma relação pontual com outra pessoa ou mesmo por meio de técnicas de fertilização.

Frente a esse novo panorama, os projetos de constituir família ganham novos contornos: os filhos podem vir a ocupar o centro daquilo que, ao longo da história, se convencionou entender como família. Embora o núcleo conjugal seja ainda apontado por alguns como o ideal, é possível combinar liberdade, fluidez das relações amorosas e filhos como elementos de uma nova família a se constituir.

 

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Endereço para correspondência:
Carolina de Campos Borges
carolinacambor@gmail.com
Andrea Seixas Magalhães
andreasm@puc-rio.br
Terezinha Féres-Carneiro
teferca@puc-rio.br

Submetido em: 12/09/2013
Revisto em: 12/10/2014
Aceito em: 16/10/2014

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