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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.66 no.3 Rio de Janeiro  2014

 

RESENHA

 

A psicologia e as questões singulares de nosso tempo

 

 

Pedro Sobrino Laureano

Docente. Departamento de Psicologia. Universidade Federal de Juiz de Fora. (UFSJ). Juiz de Fora. Estado de Minas Gerais. Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Almeida, L.-P. (Org.). (2013). A psicologia contra a natureza - reflexões sobre os múltiplos da atualidade. Niterói: Editora da UFF.

Já faz algumas décadas desde que George Canguilhem apontou, em O que é a psicologia? (Canguilhem, 1973), as contradições que afetavam essa disciplina praticamente neonata, à época. Será a psicologia nova ainda, nos dias de hoje? De fato, se nos lembrarmos de que a física moderna, por exemplo, tem seu nascimento com cientistas como Galileu e Newton, nos séculos XVI e XVII, e de que se costuma datar o "nascimento" da psicologia no final do século XIX, nos laboratórios de Wilhem Wundt, na Alemanha, a resposta seria que sim (Jacó-Viléla, Ferreira, & Portugal, 2007). Obviamente os critérios de classificação nunca são inocentes; eles revelam as tendências ideológicas que tornam o ato de organizar sempre um recorte interessado por parte daquele que organiza. De fato, teria a psicologia começado já com Aristóteles, em seu tratado Sobre a alma (Aristóteles, 2006), ou seria ela fruto do "corte epistemológico" (Bachelard, 1997) representado pelo nascimento da ciência moderna, no século XVII?

De qualquer forma, se podemos historiar as questões que fazem parte de determinada disciplina, traçando uma genealogia dos problemas, mais do que das respostas, com que esta se defronta, veremos a psicologia às voltas com uma problemática resumida por Canguilhem na seguinte consideração:

É, pois, muito vulgarmente que a filosofia coloca para a psicologia a questão: dizei-me em que direção tendes, para que eu saiba o que sois? Mas o filósofo pode também se dirigir ao psicólogo sob a forma - uma vez que não é costume - de um conselho de orientação, e dizer: quando se sai da Sorbonne pela rue Saint-Jacques, pode-se subir ou descer; se se sobe, aproxima-se do Pantheon, que é o Conservatório de alguns grandes homens, mas se se desce dirige-se certamente para a Chefatura de Polícia (Canguilhem, 1973, p. 123).

É nesse sentido que o livro A psicologia contra a natureza - reflexões sobre os múltiplos da atualidade (Almeida, 2013) extrai sua importância no panorama atual da psicologia. Através de seus treze textos, organizados por Leonardo Pinto de Almeida, ele é capaz de nos relevar uma constelação de problemas com os quais a psicologia moderna se defronta. E revelá-los a contrapelo do neopositivismo atual, que gostaria de ver a psicologia reduzida às questões de natureza humana, seja esta atestada pelos neurônios, seja ainda pela glândula pineal cartesiana, ou talvez pelo crânio lombrosiano.

A citação de Canguilhem é pertinente ao tratar do livro, recém-lançado pela Editora da UFF. Pois, geografias parisienses à parte, vemos como a preceptiva de Canguilhem é mais do que crítica, no sentido kantiano do termo. Ela visa justamente à crítica social e histórica da própria perspectiva neutra ou universal do positivismo científico - esse grande inimigo com o qual Canguilhem sempre se defrontou, ao longo de sua trajetória filosófica. Não se trata, como em Kant (1996), de uma crítica da razão com o intuito de limitar o terreno de seus direitos, e de determinar a constituição transcendental dos limites e possibilidades de sua legislação. Para Kant, de fato, a razão (compreendida como a razão científica no marco newtoniano) não poderia emitir juízos sobre Deus, o mundo ou o sujeito, cabendo à filosofia a tarefa de inserir as descobertas da ciência dentro de uma teoria do homem. Uma antropologia para o sujeito moderno, portanto, ou uma analítica da finitude, como queria Foucault (1966).

Eis que, supreendentemente, em que pesem os vetos kantianos dirigidos contra a psicologia (dado seu caráter excessivamente subjetivista e "contaminado"), a psicologia, hoje, pode retrucar Kant, à maneira de Sade: "Filósofos, ainda mais um passo se quereis ser crítico-transcendental!". Pois se trata, agora, de fazer o transcendental kantiano operar a partir do próprio campo histórico e social, de forma a questionar, de maneira estritamente imanente - isto é, racional, mas com a condição de que a ideia de razão sofra um radical descentramento em relação ao Homem -, a própria legitimidade das repartições que se encontram pressupostas em um paradoxal senso comum científico. Entre elas, talvez, a candidata à ilusão maior do ocidente esclarecido moderno - a do indivíduo, pilar fundamental do projeto filosófico kantiano.

Essa crítica social e histórica, entretanto, não visa à ciência como um juiz que arbitrasse do exterior sobre conteúdos que ele ignora. Não se trata de lamentar a reificação técnico-administrativa das sociedades ocidentais, a falência da lei simbólica, a ausência de laços comunitários ou, ainda, o caráter acéfalo de uma sociedade atomisticamente constituída. O livro A psicologia contra a natureza não exprime qualquer ressentimento da ciência; pelo contrário, elencando textos de autores atualizados com as perspectivas oferecidas pela ciência (como o texto Cérebro, cultura somática e neuroterritórios emergentes, de Rafaela Teixeira Zorzanelli), busca escandir, dentro da "marcha" da ciência, as contradições que habitam qualquer projeto de universalização, seja social, tecnológico ou científico. Nesse sentido, o livro trabalha, de fato, a favor do desenvolvimento da ciência; porém poderíamos nos perguntar aqui que tipo de ciência é essa, que nasce, como gostaria o filósofo Gilles Deleuze (2006), de uma problemática, antes que de uma axiomática. Ou seja: de um processo incessante de se levantarem questões.

Dessa forma, o livro nos oferece, como em um raio-x, alguns dos principais temas nos quais a psicologia tem se lançado, e que constituem a multiplicidade a partir da qual Georges Canguilhem, no texto já referido, caracteriza a psicologia da época. Sem que, para o autor, assim como para nós e certamente também para o organizador e os autores do livro, tal multiplicidade constitua qualquer indício de defeito ou má-formação. Como indica o subtítulo - "reflexões sobre os múltiplos da atualidade" -, trata-se de se fazer implodir a ideia de uma ciência unificada. E como atesta, também, a própria heterogeneidade dos textos que compõem a coletânea. Da filosofia à neurociência, da teoria do trabalho à literatura, passando, é claro, pela ciência psicológica estrito senso, vemos que o psicólogo pode se situar como uma espécie de coringa no campo teórico atual. Não por qualquer relativismo, entretanto, mas pelo caráter imanente de sua empreitada. Pois, se o objeto clássico da psicologia é o "homem", é certo que a contemporânea implosão do "homem" - seja nas modernas técnicas de mapeamento cerebral que resultam num "sujeito cerebral" (Almeida, 2013), seja ainda pela crítica pós-estruturalista realizada por autores como Foucault e Deleuze - tão citados nos textos - ou, finalmente, na subversão da categoria de indivíduo proposta por Freud e continuada por Lacan, enfim, esta ainda tão atual subversão do humanismo contribui para tornar a psicologia uma disciplina assaz paradoxal e, sobretudo, interessante.

Uma resenha de um livro importante e complexo como este A psicologia contra a natureza, como podemos ver, poderia se beneficiar de uma espécie de recenseamento dos campos problemáticos aos quais os textos do livro respondem. De forma que suas questões possam ressoar para estudantes, profissionais ou simplesmente interessados nos temas que essa espécie de "psicologia crítica" contemporânea - não no sentido estrito kantiano, como vimos -, realizada nas universidades brasileiras, vem desenvolvendo. Propomos, então, enumerar quatro questões, ou pontos singulares, que pudemos pinçar na leitura dos textos incluídos no livro:

1) De que maneira podemos estabelecer uma distinção, interior às próprias ciências, entre a ideia de processo e a ideia de naturalização? Isto é, não bastaria realizar a crítica de juiz à qual nos referimos acima, questionando a ciência quanto a qualquer perda do ser, perda de sentido ou desencantamento do mundo. De fato, não há mundo para o qual voltar, de maneira que é preciso incentivar as inovações da ciência, enquanto, ao mesmo tempo, se destitui o imperialismo (político e teórico) de uma visão oniabrangente que reduzisse a filosofia à análise lógico-discursiva pragmática "anglo-saxã", a psicanálise à teoria neuronal e a psicologia em geral aos elementos de in-put e out-put discerníveis numa ciência da mente organicamente determinada. Mas como realizar tal tarefa? Talvez pela introdução de uma "falha" na máquina: a ideia de processo, desenvolvida no texto de Ricardo Salztrager e Rosane Zétola Lustoza, A subjetividade naturalizada e os processos de subjetivação: questões epistemológicas e históricas. O desdobramento filosófico de tal questão pode ser antevisto no seguinte questionamento: como pensar, para além da dicotomia entre ciência e sentido, ou ciências exatas e humanas, legada pelos séculos XIX e XX, uma constituição imanente da tensão entre ambas as perspectivas?

2) Como o saber psicológico pode ajudar na compreensão da política contemporânea, isto é, da crise da democracia deflagrada pela crise do capitalismo contemporâneo (ou, ainda, do capitalismo contemporâneo como crise perpétua)? Trata-se da tentativa de se pensar uma renovação da política que, fragilizada pela crescente anomia e promiscuidade entre estados e mercados, abre terreno para um marco posterior àquele legado pela queda das alternativas utópicas, por um lado, e pelo cínico universo social contemporâneo, por outro. Em chave político-filosófica, a questão, que perpassa textos como Um social que dispõe do poder de morte: Freud e os preconceitos da política, de Bruno Farah, e Residências terapêuticas e a construção de bons encontros e amizade na comunidade, de Maria Inês Badaró e Carlos Roberto de Castro, diria: como pensar uma política radical (isto, é igualitária) em meio (isto é, afirmando) à contingência e à multiplicidade (pós-)modernas?

3) Com a crescente pluralização das identidades sexuais, como pensar uma teoria da sexualidade aberta ao contemporâneo? Uma teoria que não subscrevesse a nostalgia das divisões binárias do passado (homem-mulher, heterossexual-homossexual, etc.), mas que, ao mesmo tempo, cernisse os impasses imanentes às novas modalidades de gozo e de relação? Ou seja, que não sustentasse apenas a retórica - tão afeita à subjetividade plural do mercado - da flexibilidade e da heterogeneidade, mas fosse capaz de manter-se atenta aos impasses e conflitos que se colocam no bojo das transformações? Tal teoria é empreendida em textos como Sobre gênero e subjetividade na obra de Judith Butler, de Carlos Augusto Peixoto Júnior e Márcia Arán.

4) Finalmente: como cernir a questão da arte, atualmente? Também nos defrontamos aqui com uma crítica à nostalgia da tradição, por um lado, e à pura celebração do pós-moderno, por outro. As perguntas colocadas por textos como Baudelaire e a modernidade, de Daniel Menezes Coelho, e Para uma ontologia política da leitura literária, do organizador do livro, são, justamente, as que permitem responder por uma teoria apta a pensar as novas formas e regimes de sensibilidade contemporâneos. Essas questões, então, poderiam ser definidas da seguinte maneira: o desmonte de nossas categorias usuais (e historicamente fundadas) de sensibilidade responde a que desafios para os artistas e os públicos em geral? Tal questão é abordada, no livro, através da literatura.

Com essas quatro questões não esgotamos, é claro, o campo problemático desenvolvido pelo livro. Ainda restaria muito a falar, certamente, sobre as sessões a respeito do trabalho e a que versa sobre a questão importantíssima das políticas públicas no terreno da saúde mental. Entretanto, nesta breve resenha de um livro que não teme enfrentar desafios, vemos dois pressupostos que buscamos destacar e que fazem a excelência dos autores compilados por Leonardo Pinto de Almeida. Primeiramente, o de que, numa era de pragmatismo frenético, da crescente absolutização dos critérios de quantificação e de eficácia, é mais do que nunca necessário o apelo à teoria - ou seja, ao próprio pensamento -, se não quisermos nos manter reféns do que Deleuze (2003) chamou de o "sonho dos Outros", e que poderíamos traduzir por "constelação ideológica" atual. Se não pensamos, certamente pensam por nós, ou, ainda, Algo pensa em nós (Freud). Não existe ação fora do espectro de sua efetivação simbólica (Lacan). E, segundo pressuposto: a psicologia contemporânea pode e deve enfrentar questões que extrapolam o escopo de seu objeto de estudo clássico. Talvez seja verdade que esse objeto de estudo - o "Homem" - já se encontra implodido por todos os lados. Bastaria então que fizéssemos ouvir, aos profetas do individualismo radical atual (dos neoliberais aos defensores do horizonte político como restrito aos "direitos humanos" e ao temor do Mal Radical), que tal esfacelamento, antes de ser a crise contemporânea, talvez nos aponte as vias para uma resposta?

 

Referências

Bachelard, G. (1997). A formação do espírito científico. Rio de janeiro: contraponto.         [ Links ]

Aristóteles. (2006). De anima. Edição. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Canguilem, G. (1973). O que é a psicologia? Tempo Brasileiro, 30-31, 104-123.         [ Links ]

Deleuze, G. (2003). Deux regimes de foux (1975-1995). Paris: Éditions de Minuit.         [ Links ]

Deleuze, G. (2006). Diferença e repetição. Rio de janeiro: Graal.         [ Links ]

Foucault, M. (1966). As palavras e as coisas. Lisboa: Portugalia.         [ Links ]

Jacó-Vilela, A. M., Ferreira, A. A. L., & Portugal, F. T. (2007). História da Psicologia: Rumos e Percursos. Rio de Janeiro: Nau.         [ Links ]

Kant, I. (1996). Crítica da Razão Pura. São Paulo: Ed. Nova Cultural.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Pedro Sobrino Laureano
pedro@laureanopsi.com.br

Submetida em: 14/07/2013
Aceita em: 29/06/2014

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