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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.67 no.2 Rio de Janeiro  2015

 

ARTIGOS

 

Reflexões heideggerianas sobre técnica, liberdade e práticas psicológicas clínicas

 

Heidegger's Reflections upon Technique, Freedom and Psychological Clinical Practices

 

Reflexiones Heideggerianas Sobre Técnica, Libertad y Prácticas Clínicas Psicológicas

 

 

Fernando da Rocha MaglianoI; Roberto Novaes de SáII

IDoutorando. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tomaremos a questão da liberdade no pensamento de Martin Heidegger como fio condutor de nossas considerações. Apresentaremos, num primeiro momento, a reflexão acerca da técnica moderna e da liberdade para, posteriormente, realizar sua articulação com o contexto das práticas clínicas psicológicas de orientação fenomenológico-existencial. Pretendemos, assim, promover um distanciamento crítico concernente às tendências cientificistas e tecnicistas da psicologia clínica no contemporâneo, fomentando outra forma de compreender e experimentar a dinâmica dos encontros psicoterapêuticos para além de sua absorção inicial no horizonte da técnica moderna, uma vez que a essência do existir humano será considerada ao modo do poder-ser, abertura de sentido e liberdade.

Palavras-chave: Heidegger; Fenomenologia; Técnica; Serenidade; Psicologia clínica.


ABSTRACT

We will take Martin Heidegger's thoughts on freedom as the guiding principle for our considerations. Initially, we will present the reflection upon modern technique and freedom to, subsequently, articulate both concepts with the context of psychological clinical practices of phenomenological-existential nature. We intend, therefore, to promote a critical distance concerning the contemporary scientific and technical tendencies of clinical psychology. The purpose is to stimulate another way of understanding and experiencing the dynamic of psychotherapeutic encounters beyond its initial conception, immersed in modern technique. We think that this approach will be able to grasp the essence of human existence by taking into account ontological concepts such as being-there, world disclosure and freedom.

Keywords: Heidegger; Phenomenology; Technique; Releasement; Clinical Psychology.


RESUMEN

Tomamos el tema de la libertad en el pensamiento de Martin Heidegger como el hilo conductor de nuestras consideraciones. Presentamos, en primer lugar, la reflexión acerca de la técnica moderna y la libertad para, posteriormente, realizar su articulación con el contexto de las prácticas clínicas psicológicas de orientación fenomenológico-existencial. Tenemos la intención, así, de promover una distancia crítica acerca de las tendencias científicas y tecnológicas de la Psicología clínica contemporáneamente, fomentando otra forma de comprender y experimentar la dinámica de los encuentros terapéuticos más allá de su absorción inicial en el horizonte de la tecnología moderna, una vez que la esencia de la existencia humana se piensa a la manera del poder ser, apertura y libertad.

Palabras-clave: Heidegger; Fenomenología; Técnica; Serenidad; Psicología Clínica.


 

 

Introdução

O pensamento fenomenológico-hermenêutico, inaugurado por Heidegger, pode fornecer elementos que nos permitam abordar de forma diferenciada questões relativas ao exercício psicológico clínico, lançando mão de uma compreensão atenta aos processos históricos de determinação da existência humana. A compreensão desconstrutiva do horizonte técnico moderno traz à luz novas possibilidades de compreensão dos fenômenos de adoecimento psíquico, bem como da dinâmica psicoterapêutica. Assim sendo, pensar em consonância com a analítica da existência (1927) e com a meditação heideggeriana sobre a técnica moderna (1949) nos oferece o ensejo para conquistarmos uma compreensão mais ampla e libertadora acerca dos fenômenos concernentes ao cuidado clínico psicológico.

Em uma perspectiva fenomenológica, homem e mundo são cooriginários, constituem-se simultaneamente, não devendo a cisão que o senso comum experiencia entre ambos ser naturalizada e pressuposta. Saber e ser também não são tomados em dissociação; saber é, segundo Heidegger (2008), uma "relação de ser" (p. 279). Esse posicionamento implica, portanto, uma distância crítica com relação ao pensamento metafísico tradicional e à ciência moderna, numa tentativa renovada de pensar a condição humana nos subtraindo a quaisquer perspectivas atreladas à filosofia da subjetividade e às teorias psicológicas contemporâneas.

A atitude fenomenológica nos desafia a prescindir de qualquer pressuposto teórico acerca da existência humana, bem como nos desvencilhar de toda atitude natural para com o ser do homem, não lhe atribuindo nenhum caráter de subsistência ou ser-simplesmente-dado (Vorhandenheit), mas considerando-o, antes de tudo, constitutivamente vinculado ao horizonte histórico de sentido no qual se encontra. O modo de ser do homem não se deixa apreender através das noções de sujeito, consciência, personalidade, pessoa, etc. Heidegger utiliza a expressão alemã Dasein, ser-aí, para designar a existência humana como mero poder-ser (seinkönnen), abertura de possibilidades (Erschlossenheit), que se encontra sempre em jogo no horizonte da temporalidade. Ao dialogarmos com a filosofia, portanto, não estamos interessados em erigir novos modelos teórico-conceituais para a psicologia clínica, senão criar um espaço de reflexão e experimentação sobre as práticas psicológicas no contemporâneo.

O pensar filosófico, que nos interessa aqui, não se preocupa em edificar doutrinas ou sistemas filosóficos, estabelecendo relações meramente abstratas entre conceitos, uma vez que sua relevância consiste justamente em auxiliar na apropriação e elaboração do sentido de nossa experiência concreta. Tendo isso em vista, sugerir uma aproximação entre o pensar filosófico e a psicologia clínica nos parece um empreendimento frutífero, na medida em que esses diferentes modos do conhecimento partilham um aspecto comum, a saber, que tanto a filosofia quanto a clínica psicológica se articulam como âmbito de elaboração temática da existência, não se resumindo nunca a uma mera trama intangível de articulações conceituais.

A dimensão de interesse da psicoterapia não é menos ontológica que aquela da filosofia, pois a questão do ser, ou do sentido, atravessa de modo essencial e inelutável a existência em suas experiências de adoecimento e sofrimento. Por outro lado, qualquer elaboração filosófica autêntica tem seu âmbito de realização na própria vida, na facticidade do existir, ou seja, na existência concreta em seu caráter ôntico. A diferença ontológica entre ser e ente, que Heidegger a todo momento quer nos lembrar, jamais deve ser compreendida como cisão entre o ôntico e o ontológico, como se a psicoterapia pudesse deixar de lado a questão do ser e tratar de modo técnico os problemas de um sujeito simplesmente dado no mundo.

A aproximação entre a filosofia heideggeriana e as práticas psicológicas clínicas não pretende, portanto, erigir um novo procedimento terapêutico que substitua as técnicas oriundas das teorias psicológicas, mas tão somente abrir a possibilidade de considerá-las em uma perspectiva mais ampla, promovendo um relacionamento mais livre para com estas. Para tanto, interessa-nos fomentar outra forma de experimentar os processos psicoterapêuticos na contemporaneidade, pensando sobre o modo de atenção que libera e conduz o cuidado clínico a partir e para além de sua absorção inicial no horizonte da técnica moderna.

 

Técnica, ciência e serenidade

A meditação filosófica sobre a técnica moderna é um dos temas importantes no caminho do pensamento heideggeriano sobre a questão do ser. Embora problematize a utilização dos recursos técnicos na vida cotidiana, trata, sobretudo e principalmente, da emergência do horizonte de sentido contemporâneo, o qual denominou como "Era da Técnica" (Heidegger, 2010, p. 24). Sua reflexão visa, fundamentalmente, facultar modos mais livres de relação com as perspectivas e padrões do pensamento técnico calculante vigentes na atualidade.

Em sua conferência A questão da técnica (Die Frage nach der Technik), Heidegger (2010) investiga o horizonte de sentido contemporâneo buscando trazer à luz o fundamento sobre o qual repousam a técnica e a ciência modernas. Seu intuito consiste em buscar acesso à experiência de sentido subjacente ao modo de conhecimento técnico-científico, algo que se realizará, por sua vez, mediante a investigação e esclarecimento da essência da técnica moderna. Tradicionalmente, concebemos essência como o conjunto de propriedades constitutivas sem as quais algo não é aquilo que é. Concebê-la dessa forma significa, contudo, permanecermos identificados com o sentido do ser simplesmente dado que o filósofo se empenha em superar. Investigar a essência equivale, para Heidegger, a buscar os fundamentos ontológicos do fenômeno, e se cumpre através da elaboração apropriativa do horizonte de sentido a partir do qual é possível o seu acontecimento histórico (Ereignis).

O surgimento da técnica moderna e o advento das ciências contemporâneas não são interpretados, nessa perspectiva, como simples consequência da aquisição e acúmulo de conhecimentos objetivos relativos à natureza. A análise fenomenológica do horizonte de sentido moderno levou Heidegger a concluir que a técnica e a ciência modernas se edificam sob uma experiência de mundo bastante específica, isto é, que estas têm por fundamento um modo histórico de desvelamento da natureza ao homem. Esses saberes não são, portanto, tomados como produções do sujeito, pois não advêm de nenhuma decisão deliberada, uma vez que, segundo Heidegger (2010), "o homem não tem, contudo, em seu poder o desencobrimento em que o real cada vez se mostra ou se retrai e se esconde" (p. 21).

A técnica moderna não é considerada mero advento do conhecimento e da vontade humanas, posto que sua essência, sua condição de possibilidade, se encontra no modo como o real se nos apresenta, na maneira pela qual a natureza passou a se revelar ao Dasein, demandando dele certo modo de correspondência. A característica fundamental da Era da Técnica consiste no desvelamento do ser da natureza como fundo de reserva, como reservatório de recursos disponíveis à exploração humana.

[...] O desencobrimento, que rege a técnica moderna, é uma exploração que impõe à natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal, ser beneficiada e armazenada. Isto também não vale relativamente ao antigo moinho de vento? Não! Suas alas giram, sem dúvida, ao vento e são diretamente confiadas a seu sopro. Mas o moinho de vento não extrai energia das correntes de ar para armazená-la. Em contrapartida, uma região se desenvolve na exploração de fornecer carvão e minérios. O subsolo passa a se desencobrir, como reservatório de carvão, o chão, como jazidas de minério. Era diferente o campo que o camponês outrora lavrava, quando lavrar ainda significava cuidar e tratar. O trabalho camponês não provoca e desafia o solo agrícola (Heidegger, 2010, p. 19).

A experiência moderna desvela o real dispondo-o a fornecer energia; dispor recebe aqui o sentido de pôr diante como algo explorável. Segundo as análises heideggerianas, predomina, no contemporâneo, a experiência da disponibilidade, na qual toda a natureza se apresenta como reservatório de recursos disponíveis à exploração. A exploração técnica ilimitada da natureza é considerada muito mais uma resposta à provocação desse horizonte histórico de sentido do que uma realização humana propriamente deliberada, embora seja parte essencial desse horizonte a ilusão do controle voluntarista. Heidegger se utiliza do termo com-posição (Gestell) para designar a emergência dessa provocação exploradora da natureza:

Com-posição, "Gestell", significa a força de reunião daquele por que põe, ou seja, que desafia o homem a des-encobrir o real no modo da dis-posição, como dis-ponibilidade. Com-posição (Gestell) denomina, portanto, o tipo de desencobrimento que rege a técnica moderna, mas que, em si mesmo, não é nada de técnico (Heidegger, 2010, p. 24).

A emergência das ciências naturais modernas deve ser considerada, nesse viés, relativamente ao comportamento dispositivo do Dasein. O surgimento da ciência moderna vincula-se diretamente ao desvelamento da natureza como fundo de reserva, sendo a disponibilidade do real seu próprio fundamento.

O resgate da meditação sobre o sentido proposto pelo pensador pretende tornar clara a relação do Dasein com a dinâmica do desvelamento. Busca-se, a partir dela, evidenciar a maneira pela qual, na Era da Técnica, a natureza se revela à luz da com-posição (disponibilidade). A reflexão sobre a técnica moderna visa liberar o Dasein da identificação com o comportamento dispositivo que se limita a revelar o ser da natureza como reservatório energético. Mesmo que a disponibilidade não seja resultado de nenhuma decisão humana, não podemos nos considerar alheios em relação a ela, posto que já estamos comprometidos com a experiência da com-posição ao sermos solicitados a desvelar a natureza ao modo da disponibilidade. Heidegger pretende liberar o Dasein para co-responder ao comportamento dispositivo, algo que se faz possível apenas compreendendo o destino histórico (Geschicklich) do desvelamento que se efetiva contemporaneamente. A liberdade depende, em última instância, de podermos perceber a emergência desse destino, compreendendo o modo como somos interpelados pelo comportamento dispositivo e respondendo, assim, às suas solicitações.

O desencobrimento do que é e está sendo segue sempre um caminho de desencobrimento. O destino do desencobrimento sempre rege o homem em todo o seu ser, mas nunca é a fatalidade de uma coação. Pois o homem só se torna livre num envio, fazendo-se ouvinte, e não escravo do destino (Heidegger, 2010, p. 27).

A meditação sobre a essência da técnica pretende evidenciar sua dinâmica histórica de constituição, sendo esta compreensão o que faculta inaugurar um relacionamento mais livre ante as determinações vigentes no mundo técnico, pois, a partir desta meditação, abrem-se novas possibilidades de compreensão e correspondência àquilo que é desvelado no interior desse horizonte, lançando-nos, então, no espaço livre do destino. Perceber o modo como, contemporaneamente, a natureza se desvela como disponibilidade aponta a possibilidade de não permanecermos irrefletidamente identificados com esse modo de desvelamento, abrindo, por conseguinte, outras formas de compreender e experimentar o ser dos entes.

O desvelamento posto pelo destino histórico expõe, segundo as análises heideggerianas, o Dasein a um perigo, a saber, a ameaça de se identificar irrestritamente com o comportamento dispositivo a ponto de excluir o pensamento sobre o sentido - a meditação sobre o ser -, exercitando o cálculo (das rechnende Denken) como modalidade absoluta do pensamento. Calcular designa, em sentido amplo, um modo de pensamento investigador e planificador que conta antecipadamente com determinados resultados. Identifica-se, assim, ao tipo de empreendimento característico do pensar científico-natural e também da vida cotidiana em seu modo ocupacional. Na Era da Técnica, portanto, a ameaça que assola o Dasein não é senão o esquecimento do esquecimento do ser, a supressão da meditação sobre o sentido (ein besinnliches Denken), o obscurecimento radical de nossa co-pertença à dinâmica do desvelamento a partir da qual o ser dos entes se constituem.

À luz da disponibilidade, a natureza se revela como fundo de reserva, ao passo que sua dinâmica de constituição se obscurece e se oculta. Não é a técnica moderna que é perigosa, mas sua essência - a experiência da disponibilidade -, porque encobre e dissimula a dinâmica de constituição do horizonte de sentido no qual nos encontramos. O predomínio da com-posição obstrui, portanto, a apropriação originária dos fenômenos, encobre a experiência do sentido, ou seja, aquilo mesmo que constitui nossa essência mais própria. Para Heidegger, o maior perigo da essência da técnica consiste na ameaça de que o homem perca sua essência meditante, deixando-se reduzir à condição de mero ser vivente simplesmente dado que possui a capacidade de raciocinar.

A investigação acerca do âmbito de pertencimento da técnica moderna prepara outra possibilidade de relação com o desvelamento vigente na atualidade. À luz da técnica moderna e do pensamento que calcula, o ser dos entes se revela sempre como algo simplesmente dado como disponível; a disponibilidade é tomada como subsistente nos entes por si mesma, ocultando o horizonte de sentido que a possibilita. O resgate da meditação sobre o ser a que se propõe o filósofo surge, justamente, em resposta ao domínio do cálculo no espírito da época moderna.

Para evocar e sustentar uma postura que mantenha viva a meditação sobre o sentido, Heidegger resgata da tradição mística medieval a noção de serenidade (Gelassenheit), designando uma atitude equânime do espírito com relação a tudo aquilo que lhe vem ao encontro. A serenidade indica um modo de pensar que não privilegia nenhum modo específico de desvelamento, tomando-o por si mesmo como fundamento. Guarda, antes, a lembrança da irredutível diferença entre os entes já constituídos em seu ser e a dinâmica histórica de realização dos entes. Embora a ciência assuma, nos dias atuais, o lugar hegemônico do saber e a tecnologia se apresente, por sua vez, como o recurso que permitirá dominar, extrair e beneficiar toda sorte de energias disponíveis da natureza, o filósofo sustenta, a partir da serenidade, que o saber técnico-científico não advém exclusivamente dos processos de aquisição e acúmulo de conhecimento, mas funda-se, antes, na essência oculta da técnica moderna: a experiência da disponibilidade.

Pensar o sentido significa, assim, inaugurar uma forma de atenção que possa analisar as determinações correntes em nosso horizonte de sentido em articulação a seu próprio âmbito de proveniência. Meditar sobre o ser oferece uma perspectiva mais ampla em relação às determinações correntes da técnica e do cálculo, liberando o pensamento de se restringir aos seus parâmetros.

A nossa relação com o mundo técnico torna-se maravilhosamente simples e tranquila. Deixamos os objectos técnicos entrar no nosso mundo quotidiano e ao mesmo tempo deixamo-los fora, isto é, deixamo-los repousar em si mesmos como coisas que não são algo de absoluto, mas que dependem elas próprias de algo superior. Gostaria de designar esta atitude do sim e do não simultâneos em relação ao mundo técnico com uma palavra antiga: a serenidade para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen) (Heidegger, 2001b, p. 24, grifos do autor).

Adotar uma postura serena não equivale a recusar a ciência ou a tecnologia, haja vista que a serenidade não afirma nem nega o mundo técnico, aceita a exigência da vida moderna de nos relacionarmos com esses saberes, sem aceitar, porém, a necessidade de nos tornarmos por eles subjugados. A serenidade do pensamento exige que tenhamos, por assim dizer, liberdade diante do horizonte técnico, estabelecendo uma relação em que seu lugar seja propriamente dimensionado.

Na perspectiva heideggeriana, a reflexão sobre a tecnicidade já se mostra, por si mesma, como um empenho no movimento de libertação do Dasein, pois, como afirma Leão (1996), "Heidegger não trata apenas da liberdade como questão. Trata também e sobretudo do questionamento como liberdade" (p. 52). A liberdade se apresenta na apropriação originária do destino histórico que se nos descortina; liberar-se implica, fundamentalmente, suspender a correspondência irrefletida, identificada com o momento histórico ao qual pertencemos, e, sobretudo, podermos nos abrir a possibilidades de experiência de sentido encobertas pela tradição do pensamento metafísico e seus desdobramentos na ciência moderna.

A pergunta pelo sentido essencial da técnica moderna é o modo pelo qual a questão sobre o sentido do ser ganha para nós, hoje, toda a sua concretude existencial, deixando de ser uma especulação filosófica vazia. A questão é um apelo para examinarmos nosso modo de estar no mundo enquanto ser-no-mundo.

 

Psicologia clínica, técnica e liberdade

Somente a partir dessa apreensão de nossa própria situação hermenêutica como psicoterapeutas se torna possível pensar uma prática clínica psicológica de postura fenomenológica capaz de propiciar a compreensão dos modos de ser do Dasein e de nos manter, por conseguinte, atentos ao âmbito de proveniência dos fenômenos que se revelam por si mesmos nos encontros psicoterapêuticos. A possibilidade de um cuidado clínico nesses termos implica efetuar um deslocamento em relação às perspectivas e padrões de pensamento correntes no horizonte de sentido moderno - a Era da Técnica -, que obscurecem a experiência do sentido ao se limitarem aos aspectos ônticos da existência. Enveredar por esse caminho requer que possamos nos posicionar criticamente ante o modelo científico, adotando uma postura fenomenológica diante daquilo que emerge no âmbito da atenção psicoterapêutica e conquistando, por meio dela, maior liberdade em relação às estruturas de significado pregnantes na cotidianidade no contemporâneo.

Desse modo, ao pensarmos as práticas psicológicas clínicas à luz do horizonte moderno, estaremos nos referindo, numa primeira aproximação, à aplicação de recursos e procedimentos técnicos. O que significa dizer que, à semelhança de um modelo médico de intervenção, a clínica psicoterápica seria concebida, sobretudo, como aplicação de um conjunto predefinido de procedimentos sobre as enfermidades psíquicas, almejando-se, por meio destes, alcançar efeitos precisos, guiados por certas expectativas de controle e previsibilidade.

O psicólogo se apresentaria, nessa perspectiva, à semelhança de um médico especialista detentor de um conhecimento específico sobre as enfermidades psíquicas, de modo que possa diagnosticá-las e, por conseguinte, executar os procedimentos predeterminados que visam solucionar a situação a partir de suas causas, restaurando a saúde de seus clientes e retirando-os, portanto, de suas condições de sofrimento. De acordo com esse raciocínio, a função do psicólogo seria dominar um conhecimento especializado a partir do qual possa realizar a análise da condição do indivíduo e efetuar, então, os procedimentos necessários para sanar seu sofrimento. A análise entendida dessa forma, em analogia com a análise da ciência química, tem o sentido de realizar uma decomposição da enfermidade a fim de alcançar seus elementos constitutivos mais simples, permitindo descrevê-los e explicá-los em suas conexões causais, para intervir de forma adequada sobre eles.

Essa concepção de análise provém de uma compreensão cartesiana da realidade, que opera segundo a dicotomia sujeito-objeto e aspira alcançar modelos conceituais de explicação de uma suposta realidade dada em si mesma, regulada a partir de leis naturais. Se nos prestamos a considerar as contribuições heideggerianas ao exercício de uma atenção clínica psicológica, esse esforço se traduz na impossibilidade de continuarmos concebendo o existir humano por meio da perspectiva tradicional, a saber, concebê-lo atrelado a qualquer noção de substancialidade (res cogitans), atribuindo-lhe o sentido de algo simplesmente dado. Ao romper com o pensamento tradicional, Heidegger concebe a existência humana, antes de tudo, como Dasein. A consequência imediata desse raciocínio é que o sentido de análise, em uma investigação fenomenológica como a Daseinsanalyse, a saber, o exercício ôntico da analítica existencial, não pode corresponder à ideia de fragmentação ou dissolução dos fenômenos em seus termos constitutivos, na tentativa de explicá-los mediante sua inscrição numa sequência de causas e efeitos.

A análise em um sentido fenomenológico significa, ao contrário do sentido cartesiano de fragmentação em unidades elementares, a remissão do fenômeno ao seu campo de pertencimento e proveniência. Compreender, por exemplo, fenomenologicamente um comportamento compulsivo não seria explicá-lo em termos de supostas causas neurofisiológicas ou encadeamentos condicionados de estímulos e respostas, mas apreender o campo ou horizonte de sentido existencial em que é possível a emergência daquele comportamento específico. Como diz Monticelli (2002), "Las realidades que el fenomenólogo nos ayuda a descubrir, que se anuncian más allá de lo visible pero siguiendo, por así decirlo, sus perfiles, son las "regiones" del ser, o bien, podríamos decir, los enteros de pertenencia de las cosas" (p. 16, grifos do autor).

Heidegger (2001a, p. 140) utiliza o termo "análise", remontando ao seu sentido no pensamento grego clássico, a saber, a noção de "analisein", que significa o "destecer de uma trama" ou ainda "liberar" ou "libertar" o que está preso. A psicoterapia de postura fenomenológica visa elaborar as condições de possibilidades dos fenômenos que se apresentam no encontro terapêutico, buscando conduzir o Dasein à apropriação de seu modo de ser, e, para tal, a dinâmica que se instaura nesses encontros não se volta simplesmente à identificação ou reconhecimento dos fenômenos já previamente objetivados pelas teorias psicológicas, mas sugere, ao invés, o exercício de suspensão desse modo de pensar, lançando um olhar outro que não esse da atitude natural, que tende a pressupor a subsistência de uma realidade objetiva.

O homem não existe que nem uma coisa, por si, que tem qualidades determinadas e que está num certo lugar. Pelo contrário, ele existe como um conjunto singular de possibilidades de relacionamento, possibilidades que realiza, na medida em que é solicitado pelo que encontra. Podemos dizer que o nosso existir consiste nas possibilidades de relacionamento recebidas diante daquilo que nos solicita e que nos chama (Boss, 1981, p. 70).

Nos Seminários de Zollikon, realizados entre os anos de 1959 e 1969, Heidegger (2001a) discute com Boss a possibilidade de uma psicologia clínica que não se oriente pelo modelo científico, uma vez que o conhecimento científico, na busca pela regularidade dos fenômenos, concebe o Dasein como sujeito substancializado e o confunde, assim, com algo simplesmente dado passível de determinação. O questionamento de uma psicologia clínica científica atém-se ao fato de que o Dasein não possui uma essência ou natureza positiva determinada a priori, tal como pressupõem as teorias psicológicas contemporâneas. Ademais, que a dinâmica terapêutica não pode se resumir apenas ao reconhecimento e atribuição de categorias diagnósticas pressupostas por essas teorias para proceder, por conseguinte, à utilização de procedimentos técnicos predeterminados.

A clínica fenomenológica existencial não se restringe a conceitos e categorias, construtos de uma linguagem categorial, mas se apresenta vinculada a modalidades de compreensão humana. A psicoterapia não é apenas uma construção teórica, mas encontra a sua efetivação na prática clínica. Como prática, pode ser fecundada por uma determinada concepção filosófica. O psicólogo é o profissional cuja fala e escuta se prestam a uma compreensão (Prado, Caldas, Efken, & Barreto, 2012, p. 216).

A articulação da atenção fenomenológica com o cuidado clínico psicológico resulta na reflexão acerca do âmbito de proveniência dos fenômenos de sofrimento e adoecimento do existir humano, que se revelam na dinâmica da relação psicoterápica e visam fomentar a liberação do Dasein diante das identificações restritivas aos significados e comportamentos sedimentados em seu horizonte existencial.

A interpretação psicoterapêutica, nessa perspectiva, não busca adequar os fenômenos que se apresentam no encontro clínico aos constructos conceituais das teorias psicológicas, mas remete o Dasein a si mesmo, aos significados e discursos que compõem sua facticidade, o que equivale a dizer que a dinâmica psicoterapêutica remete o Dasein à interpretação de mundo que ele mesmo é (sua situação hermenêutica), embora esta não se explicite em um primeiro momento no falatório cotidiano. A interpretação instaurada nesses encontros busca a verdade em seu sentido originário (alétheia), aludindo à dinâmica de velamento e desvelamento, uma vez que se trata sempre de um trazer à luz algo, um desocultar. Uma vez que o ser do Dasein se encontra, de início e na maior parte das vezes, encoberto para ele mesmo, o exercício fenomenológico se constitui como interpretação, isto é, como hermenêutica do ser do Dasein enquanto poder-ser.

Suspendendo os pressupostos psicológicos, o terapeuta mantém-se atento ao que lhe é comunicado, sem, contudo, transferir para essas falas os conteúdos de uma dada teoria. Assim sendo, o afastamento em relação às teorias do existir humano não significa, portanto, que a fenomenologia se posicione contrariamente às ciências ou que seja de alguma forma hostil ao pensamento científico. Com efeito, não é isso que está em voga nesta discussão. A esse respeito, Heidegger (2001a) afirma que "a ciência como tal não é rejeitada, de nenhuma maneira. Só a sua pretensão ao absoluto, a ser o parâmetro de todas as verdades, é julgada pretensiosa" (p. 136). Uma contribuição evidente das reflexões heideggerianas se refere à possibilidade de não concebermos o saber científico por meio da atitude natural que lhe designa um status de verdade absoluta, o que nos permite pensar em uma perspectiva histórica, dimensionando, à vista disso, o lugar correntemente atribuído à ciência e à técnica moderna.

[...] O modo como se vê a ciência e a técnica modernas faz a superstição de povos primitivos parecer uma brincadeira de crianças. Quem, pois, no atual carnaval desta idolatria (ver o tumulto sobre a navegação espacial), ainda quiser conservar a reflexão, quem se dedica hoje em dia à profissão de ajudar pessoas psiquicamente enfermas, deve saber o que acontece; deve saber onde está historicamente; precisa esclarecer-se diariamente que aqui está operando um destino antigo do homem europeu; ele precisa pensar de maneira histórica e abandonar a absolutização incondicional do progresso em cujo rastro o ser-homem do homem ocidental ameaça sucumbir (Heidegger, 2001a, p. 129).

Os fenômenos de sofrimento e adoecimento psíquicos também devem, portanto, ser pensados em conexão com o nosso destino histórico, no qual a dinâmica de constituição do ser se oculta, em favor das representações objetivas de uma suposta realidade já dada, e no qual todo conhecimento do real se subordina às possibilidades metodológicas de mensuração, visto que, à luz da essência da técnica moderna - a composição -, todo o real determina-se previamente como reservatório de recursos. Nesse panorama, o Dasein, comprometido com o comportamento dispositivo, é ele próprio absorvido a esse fundo de reserva, apreendendo seu modo de ser como algo já dado e igualmente disponível à quantificação e mensuração. As possibilidades dentre as quais se encontra lançado o Dasein circunscrevem-se e delimitam-se, nesse contexto, a partir das pretensões modernas de domínio e controle sobre a natureza, não deixando que o ser dos entes se revele por si mesmo em sua abertura de mundo. Não consegue, pois, abrir-se à dinâmica do desvelamento, admitindo como legítimos apenas o conhecimento científico e a ação produtiva.

Se, conforme sugere Heidegger, o adoecimento está vinculado à condição de restrição de liberdade e sentido, cabe ressaltar que o nosso próprio contexto histórico - a Era da Técnica - propicia um horizonte de sentido especialmente restritivo, no qual todos os fenômenos encontram-se previamente determinados pelo imperativo moderno de asseguramento e controle sobre a natureza. A emergência do horizonte técnico contemporâneo leva à radicalidade a tendência ontológico-existencial de desvio da existência cotidiana com relação ao seu caráter próprio de abertura e finitude, na medida em que, dispondo da natureza como algo passível de quantificação e mensuração, estimula nosso anseio de tudo controlar. Aquilo que não se ajusta às exigências do cálculo, o que não pode ser objetivado por representações ou, de alguma forma, escapa às nossas expectativas de controle e previsibilidade deve ser neutralizado pela atribuição de um estatuto ontológico fraco ou nulo.

Na perspectiva heideggeriana, a enfermidade, como modo de ser do Dasein, está relacionada precisamente à nossa dificuldade de suportarmos uma relação de abertura para com os sentidos do mundo, recaindo, desse modo, num fechamento diante do significado daquilo que nos vem ao encontro. É nesse contexto que podemos constatar o vínculo entre as condições atuais de sofrimento ou adoecimento psíquico e o desvelamento de nosso destino histórico, haja vista que o modo de ser do homem moderno, com suas pretensões de controle, tende a acentuar as tendências ontológico-existenciais ao fechamento, por não conseguir tolerar o estranhamento e a indeterminação. As manifestações ônticas da angústia no contemporâneo, encontradas nos consultórios de psicologia na forma de sofrimento psíquico, devem poder ser pensadas, assim, em referência a esse estreitamento dos limites de compreensão proveniente de nosso horizonte de sentido.

Os fenômenos de adoecimento psíquico se vinculam, portanto, à própria condição de abertura do Dasein; consistem na sua identificação a certas possibilidades de ser, em detrimento de outras, constituindo cenários existenciais restritos que têm por fundamento de possibilidade sua condição originária de liberdade. Nesse sentido, Heidegger admite, em uma correspondência a Boss, que o que está em jogo na dinâmica psicoterapêutica é sempre a liberdade da existência:

Exercemos a Psicologia, a Sociologia, a Psicoterapia para ajudar as pessoas, para que elas alcancem a adaptação e a liberdade no sentido mais amplo. Isto diz respeito tanto a médicos como sociólogos, pois todas as perturbações sociológicas e da saúde do indivíduo são perturbações da adaptação e da liberdade (Heidegger, 2001a, p. 178).

Conforme pensa Heidegger, o exercício psicoterapêutico se vincula inequivocamente ao contexto da liberdade existencial do Dasein. Desse modo, as entidades nosológicas da psicopatologia podem nos interessar não por designarem perturbações da ordem de uma interioridade psíquica, mas, sobretudo, por representarem limitações do horizonte existencial do Dasein. Se nos deslocarmos de um modelo científico-natural, podemos compreender o adoecimento de forma alternativa, não mais como alterações do funcionamento "intrapsíquico" do homem, mas, antes, como fenômenos de restrição da sua liberdade ontológica, decorrentes do estreitamento do horizonte hermenêutico que constitui sua abertura.

[...] Cientificamente rompe-se na luz de um relacionamento com o mundo, fenomenológico, de uma vez por todas, o conceito de uma "psiquê" tipo cápsula, o qual de antemão entrava o acesso a todas as compreensões adequadas ao homem. [...] Isto, em outras palavras, quer dizer que a essência que tudo sustenta do estar-aqui humano pode agora ser vista como sendo o suportar não coisificado de um estar estirado na amplidão do mundo. É um estar aberto no sentido de um poder-perceber a presença dos fatos de nosso mundo e de ser capaz de corresponder a seus significados especiais (Boss, 1981, p. 60).

O adoecimento representa limitações às possibilidades do existir humano e designa, por essa razão, seu vínculo necessário com a questão da liberdade. O que significa dizer, por um lado, que todo adoecer, enquanto fenômeno privativo, constitui-se como restrição da abertura e do âmbito de poder-ser do Dasein, de sua liberdade ontológica; por outro lado, que toda restrição de possibilidades apenas se dá em virtude da condição originariamente livre do Dasein. O adoecimento somente pode se instaurar devido ao fato de o Dasein já ser originariamente livre e comportar, portanto, tanto o modo de ser saudável quanto o modo de ser doente como possibilidades próprias de seu ser. Justamente por se constituir ao modo do poder-ser é que o Dasein pode, em sua liberdade, aderir ao poder-ser-doente.

A clínica pensada nessa perspectiva constitui, portanto, um espaço para a apropriação temática dos modos de ser do Dasein, partindo da desnaturalização dos significados previamente sedimentados em seu discurso, buscando fomentar a ampliação dos limites de seus horizontes de compreensão e a flexibilização das estruturas rígidas de significação. Para tal, propõe-se a sustentar o questionamento em relação ao sentido da própria experiência, acolhendo e despertando as disposições afetivas propícias ao desvelamento da existência como poder-ser. Embora uma psicologia inspirada nas contribuições filosóficas de Heidegger retire seu fundamento de possibilidade a partir da compreensão e explicitação das estruturas ontológicas do Dasein, importa ressaltar que a clínica psicológica enquanto atividade prática se dá no nível ôntico. A dinâmica psicoterapêutica acontece através de uma conduta fenomenológico-hermenêutica, uma vez que a apropriação e a elaboração temática das estruturas de sentido da existência se fazem através do trabalho de interpretação, seja ao nível ontológico-existencial ou ôntico-existenciário.

Desse modo, quando procuramos a ajuda de um psicólogo para nossas demandas de sofrimento, não podemos dizer que resolvemos o problema simplesmente nos livrando daquilo que supostamente o causava, mas, antes de tudo, porque nos livramos das restrições de possibilidades que fomentavam aquela maneira específica de realizar a experiência. Trata-se, sobretudo, de um encontro entre terapeuta e cliente, que juntos conduzem um trabalho de interpretação pelo qual destecem e re-tecem a trama que propicia aquele fenômeno restritivo e o superam não por terem suprimido-lhe as causas, mas por ele não mais poder se sustentar enquanto situação simplesmente dada quando se compreende sua dinâmica de constituição de sentido.

Se a analítica da existência, elaborada em Ser e Tempo (Heidegger, 2008), nos aponta a angústia como disposição afetiva privilegiada para o exercício de uma apropriação suspensiva do mundo cotidiano da ocupação, pensamos que, na psicoterapia, a disposição afetiva da serenidade, proposta por Heidegger (2001b) anos mais tarde no contexto da meditação sobre a técnica moderna, tem também um lugar privilegiado. A possibilidade de uma clínica fenomenológico-existencial se realiza em proximidade com a atitude da serenidade que apresentamos anteriormente; nela encontramos elementos que podem contribuir na elaboração de um cuidado clínico atento ao sentido existencial, sobretudo no que concerne aos desígnios da técnica moderna.

Essa aproximação entre a disposição de serenidade e a prática psicológica clínica se traduz no esforço de manter vivo o pensamento sobre o sentido, que está sendo gradativamente suplantado, na época moderna e na contemporaneidade, pelo pensamento calculante, voltado unicamente para a eficácia das intervenções de controle sobre o mundo e o sujeito. Cabe ressaltar, contudo, que isso não significa nos opormos à utilização de artifícios técnicos no cuidado terapêutico, mas tão somente afirmar que esse modo de proceder clínico jamais deveria suprimir a necessidade da meditação sobre o sentido dos fenômenos.

Adotar uma escuta clínica de postura fenomenológica implica conquistar uma abertura mais ampla diante da determinação tecnológica do mundo contemporâneo, no qual as práticas psicológicas clínicas são concebidas, amplamente, como espaço de aplicação técnica. A reflexão sobre o sentido do ser empreendida por Heidegger evidencia que nenhuma perspectiva ou conhecimento é absoluto ou definitivo, senão que se constitui a partir de um mundo histórico.

Justamente a fenomenologia revela que também este relacionamento tecnocrata com o mundo não é um mero e arbitrário artifício dos homens, mas um destino na história do homem. [...] Por outro lado, um envolvimento decisivo com a fenomenologia cria um relacionamento mais livre com o destino da tecnocracia e permite ver que ela é apenas um relacionamento com o mundo entre muitos outros possíveis. Assim não somos mais obrigados a entender a tecnocracia como sendo o absoluto, o melhor, o definitivo, a verdade pura e simples. Mas reconhecemos então que a tecnocracia, hoje ainda dominante, deve solicitar os homens em proporção moderada e decerto não definitivamente (Boss, 1981, p. 63).

O que a reflexão fenomenológica pode acrescentar à clínica psicológica é, sobretudo, a possibilidade de pensarmos em uma perspectiva mais abrangente, recuando a um ponto anterior em relação às determinações do horizonte moderno e possibilitando, assim, que nos posicionemos também de forma distinta em relação às concepções de eficácia que circulam no interior desse horizonte. Esse distanciamento em relação às expectativas de controle e previsibilidade dos fenômenos que se dão na clínica nos fornece uma postura diferenciada que pode ser significativa, na medida em que, ao assumi-la, oferecemos algo distinto da reprodução dos padrões hegemônicos vigentes no contemporâneo. Conforme escreve Feijoo (2010):

Através do modelo científico, fundaram-se psicologias ônticas e suas respectivas psicoterapias. Propôs-se, neste trabalho, repensar a psicologia, pautada na totalidade do ser. Parte-se do pressuposto de que, na base de toda uma proposta - seja de psicologia ou de psicoterapia -, pode-se considerar uma ontologia fundamental, que clarifica e norteia a reflexão acerca do ser do homem. Pensa-se, aqui, em uma psicoterapia que não busca resultados, maior produtividade humana, nem a adequação do homem ao mundo do impessoal. Não se trata de uma psicoterapia que tenha, como fim, uma utilidade prática, e, sim, a de ajudar o homem a conquistar sua liberdade, o seu poder-ser, o seu movimento do existir - enfim, que encontre sua justificação no eterno e sua transformação no instante (p. 189).

Atuarmos em uma perspectiva que não é da eficácia abre a possibilidade de correspondermos de outro modo àquilo que se apresenta nos encontros terapêuticos que não é o da intervenção que visa a resultados adaptativos, mas co-responder ao que se revela, ao sentido da experiência, de modo que esse co-responder desperte as disposições afetivas que comandam a nossa absorção ao mundo. A desadaptação não é vista aqui como um problema em si, mas apenas como um indicativo dos parâmetros tácitos que determinam a amplitude da abertura de sentido da cotidianidade mediana. A psicoterapia não pode, na maioria das vezes, solucionar as situações da existência, mas pode permitir que nos posicionemos de outra maneira em relação a elas. A proposta fenomenológica não se constitui, em suma, como uma nova teoria psicológica, mas como um convite a uma outra experiência ou outra atitude em relação à atuação clínica.

Nesse sentido, podemos pensar que o processo da clínica psicoterapêutica seja, em última instância, um movimento de flexibilização e ampliação das estruturas de sentido que compõem o horizonte existencial de cada Dasein; ampliação do âmbito de liberdade para co-responder às situações com as quais se deparam ao longo da existência. A clínica, nesse viés, também pode ser compreendida como um processo de desvelamento de outros sentidos e não se empenha, pois, na identificação de conteúdos predeterminados pela representação científica.

O desvelamento dos entes no aberto do mundo é um traço ontológico do ser-aí humano, aquele que Heidegger denominou como cuidado. A existência, como modo de ser do homem, caracteriza-se por ser originariamente apropriada pela verdade como desvelamento. Esta compreensão de verdade, como correspondência desveladora do que nos vem ao encontro no mundo, encontra-se, assim, em íntima conexão com a liberdade. O quanto uma existência pode deixar vir à luz em sua abertura de mundo nunca depende apenas da investigação de fatos e de raciocínios lógicos, mas, essencialmente, do quanto é livre. (...) As estruturas de sentido que geram sofrimento não são corrigidas através de concepções mais adequadas à realidade. O que produz sofrimento não é a sua incorreção lógica ou factual, e, sim, a redução de possibilidades de sentido que impõem ao campo existencial, isto é, a restrição da liberdade (Sá, 2009, p. 12).

O encontro terapêutico não se limita, portanto, ao reconhecimento de uma realidade supostamente já dada, mas consiste, sobretudo, no desvelamento de novos sentidos, que somente são possíveis de acordo com a abrangência da abertura ao mundo que nós mesmos somos, pois aquilo que pode se dar à nossa abertura de mundo depende fundamentalmente do quanto somos livres, ou do quanto nos apropriamos do nosso ser próprio como liberdade. A dinâmica terapêutica é, desse modo, uma dinâmica de desvelamento, cuja essência é a liberdade ontológico-existencial do Dasein.

 

Considerações finais

Nosso intuito, neste artigo, consistiu em explicitar, a partir do pensamento heideggeriano, uma compreensão fenomenológico-existencial da psicoterapia. Sob essa perspectiva, a condição de possibilidade do cuidado psicoterapêutico não estaria no conhecimento sobre as determinações causais internas ou externas que condicionam a vida psicológica, mas, sim, na compreensão da essência do existir humano como mero poder-ser, abertura de sentido, liberdade.

A proposição de pensar a existência humana enquanto poder-ser implica um esforço por efetuar certa liberação ante o horizonte técnico moderno que nos abre e regula as possibilidades de compreensão do real. Ao nos posicionarmos junto às reflexões heideggerianas, suspendemos todas as considerações da existência como algo simplesmente dado, passível de determinação e objetivação prévias. Se nos valemos do insight filosófico de Heidegger, a saber, admitir o modo de ser do homem enquanto Dasein, essa opção repercute na maneira como compreendemos os processos de adoecimento psíquico e se reflete, consequentemente, na atitude que assumimos frente às situações psicoterapêuticas.

O que se evidencia, portanto, com o Dasein heideggeriano é que o modo de ser do homem é ter o seu sentido sempre em jogo num espaço relacional que nunca é simplesmente dado, uma vez que se constitui na história e se perfaz, portanto, numa dinâmica temporal. Assim sendo, compreender os fenômenos de adoecimento psíquico à luz da fenomenologia-hermenêutica implica sempre uma apropriação temática do horizonte histórico de sentido no qual nos situamos, visto que as situações de enfermidade não são consideradas como simples perturbações de um suposto funcionamento intrapsíquico, senão que estas se vinculam à condição de abertura do Dasein, isto é, à própria liberdade humana, configurando limitações ou restrições de seu horizonte existencial.

Mediante o questionamento acerca da essência da técnica moderna, aclaramos o horizonte de sentido que constitui nossa abertura ao mundo, facultando-nos, por conseguinte, participar de nosso destino histórico sem, contudo, nos tornarmos cegos à sua essência e fundamento: a própria dinâmica do desvelamento. Elucidar as determinações tecnicistas do mundo contemporâneo, redimensionando historicamente o horizonte de sentido no qual vivemos, significa, por fim, poder co-responder com mais liberdade àquilo que nos solicita e vem ao encontro.

Se a determinação fundamental do mundo contemporâneo é a técnica moderna, não podemos contornar o fato de que a própria psicologia, na medida em que é uma disciplina científica, tem sua condição de possibilidade no interior desse horizonte histórico. Assim sendo, nos pareceu coerente trazer à tona a problematização sobre a redução técnico-científica dos fenômenos que vigora nos dias de hoje, uma vez que, pensando historicamente, podemos constatar que nenhum conhecimento ou perspectiva é derivado da natureza simplesmente dada das coisas. À vista disso, não seria equivocado admitir que o conhecimento técnico-científico nos forneça um solo rico em possibilidades de atuação clínica, conquanto isso não signifique que toda dinâmica psicoterapêutica deva necessariamente ser arbitrada por ele, reduzindo-se a seus parâmetros e medidas. Não propomos rejeitar as teorias psicológicas ou técnicas terapêuticas, mas tão somente adotar uma postura em que, caso as utilizemos, não nos afastemos da experiência do sentido, esvaziando-a em favor da utilização acrítica e irrefletida de tecnologias e procedimentos predeterminados.

As meditações heideggerianas sobre a essência da técnica nos abrem uma perspectiva mais abrangente em relação às determinações do pensamento calculante, visto que não nos mantemos unilateralmente inseridos no domínio de suas representações. Pensar o sentido nos convida a realizar outras formas de compreensão mais livres para responder às solicitações de nosso horizonte histórico, sem privilegiar uma forma determinada de desvelamento, sem subordinar nossas possibilidades de compreensão dos fenômenos aos critérios da apreciação técnico-científica, que pretende reivindicar para si o lugar hegemônico do saber.

Para compreender que a questão da liberdade constituiu o fio condutor de todas as presentes considerações, devemos recordar os aspectos a seguir. Primeiro, para Heidegger, a psicoterapia diz respeito ao sofrimento humano enquanto fenômeno de restrição do seu âmbito de poder-ser e de sua liberdade existencial de correspondência ao sentido daquilo que encontra no aberto do mundo. Segundo, a meditação sobre a tecnicidade moderna visa, em última instância, propiciar uma relação mais livre com a atual Era da Técnica. Por fim, salienta o filósofo, não é possível, para aqueles que se dedicam às profissões que pretendem lidar com o sofrimento existencial, contornar a tarefa de apropriação do lugar histórico em que se encontram e a partir do qual as possibilidades da existência cotidiana se condicionam e se restringem.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Fernando da Rocha Magliano
fernandomagliano@hotmail.com
Roberto Novaes de Sá
roberto_novaes@terra.com.br

Submetido em: 14/02/2015
Revisto em: 23/04/2015
Aceito em: 01/06/2015

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