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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.67 no.2 Rio de Janeiro  2015

 

SESSÃO ABERTA

 

O nascimento da ciência moderna. Uma leitura de "A ciência e a verdade"*,1

 

 

Jean Louis Gault

Psiquiatra, psicanalista, Membro da École de La Cause freudienne (ECF) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)

 

 

A ciência moderna nasce de uma mutação radical

Em seu texto A ciência e a verdade, Lacan (1998b) se dispõe a explorar as relações da ciência com a psicanálise. Ele se dedica, primeiro, a situar o que é nomeado "ciência" na época moderna.

Lacan toma de empréstimo a Alexandre Koyré a concepção descontinuísta da história das ciências: a modalidade do saber que se distinguiu ao longo do século XVII a partir da física galileana não se inscreve em continuidade com os saberes que a precederam. A física que surge então não é o prolongamento da física do Renascimento ou da Idade Média. A astronomia moderna não é uma continuação da astronomia assíria, indiana ou chinesa. Existe um corte epistemológico entre as ciências antigas e as ciências novas, que inauguram um novo regime de saber. Esse novo saber é o que Lacan, depois de Koyré, chama de A ciência, que qualifica como moderna por distingui-la da episteme antiga. As diversas ciências da nossa época não representam o desenvolvimento das ciências mais antigas; todas elas se referem a um mesmo discurso, que Lacan (1985) nomeou discurso da ciência. Ele introduziu essa noção em uma lição do seu Seminário II, ao comentar a exposição que Koyré havia feito no dia anterior sobre o Mênon de Platão2. Mais tarde, em "Televisão" (Lacan, 2003b), explicita a estrutura desse discurso.

Koyré critica a concepção positivista e empirista que concebe a origem da ciência moderna no contexto de uma evolução contínua das antigas ciências - nesse ponto, seu debate é com o grande historiador da física, Pierre Duhem. Na ciência medieval, a teoria era independente da prática - ao passo que, a partir do século XVII, as duas ficam estreitamente ligadas. Isso porque os instrumentos da Idade Média não passam de ferramentas, enquanto os instrumentos da ciência moderna são, verdadeiramente, a teoria encarnada. Assim, as grandes invenções técnicas da Idade Média não são o resultado do progresso de teorias científicas correspondentes e, também, não suscitam o avanço no âmbito da teoria científica. A invenção dos óculos não teve nenhuma consequência na ciência ótica da Idade Média, ao mesmo tempo em que esta não levou a avanços na tecnologia ótica ou na construção de instrumentos óticos. Em contrapartida, no século XVII, a invenção do telescópio ocasionou um desenvolvimento da teoria e foi acompanhado de um florescimento da técnica.

A ciência moderna não resulta de um progresso da observação; ela consiste, ao contrário, em uma predominância da razão sobre os fatos da experiência. Ela implica um afastamento prévio da realidade empiricamente conhecida para substitui-la por modelos ideo-matemáticos. O verdadeiro método experimental é um método no qual a teoria matemática determina a própria estrutura da experiência: utiliza a linguagem matemática para formular questões à natureza e para interpretar, em linguagem matemática, as respostas que dela recebe. Fabrica-se um termômetro utilizando-se, por exemplo, a propriedade de dilatação dos corpos físicos pelo calor, da qual se medem as variações para fazer, a partir disso, um instrumento matemático de medida. Quando se mergulha esse instrumento dentro de um fluido qualquer, coloca-se em linguagem matemática uma questão à natureza, que responde em linguagem matemática, e se lê essa resposta na escala de medida, nada mais do que isso. Eis aí o modelo do que é um instrumento no sentido da ciência moderna e é sobre essa base que se estabelece qualquer experimentação que se pretende científica.

No início de A ciência e a verdade, Lacan (1998b) sublinha que o que caracteriza a ciência moderna, na ordem da temporalidade, é a aceleração crescente que marca seu desenvolvimento e o da técnica que o acompanha. Isso reforça a tese descontinuísta, que faz da ciência tanto a causa como o efeito de uma mutação radical.

As elaborações de Lacan sobre a ciência se inscrevem em uma dupla filiação, a de Kojève, que segue a de Koyré - com a Fenomenologia do espírito de Hegel como pano de fundo. Segundo Kojève, há entre o mundo da antiguidade e o universo moderno um corte referente ao cristianismo. Koyré redobra essa tese situando esse corte entre a episteme antiga e a ciência moderna, na introdução da ideia totalmente nova de uma ciência da natureza matemática. Lacan une essas duas proposições ao considerar que a ciência moderna se constitui pelo que há de judaico no cristianismo, na medida onde em que é nisso que ele se distingue do mundo antigo. A ciência moderna seria inconcebível sem o Deus dos Judeus. O monoteísmo instaura um mundo ordenado em torno de um centro que abre o caminho para a concepção unitária de universo que a ciência promove. O mito bíblico da criação ex-nihilo põe em funcionamento o poder criador do significante, que mobiliza a ciência. Enfim, a mensagem do Deus de Moisés instaura uma nova relação entre verdade e saber, que condiciona esse regime do saber próprio à ciência moderna.

A singularidade da tese de Lacan é de considerar que a mutação que dá nascimento à ciência moderna se liga à emergência de uma posição subjetiva historicamente definida. Essa reflexão foi iniciada em seu Seminário Problemas cruciais para a psicanálise, que havia pensado intitular "Posições subjetivas do Ser". Ele sublinha:

foi possível notar que tomei como fio condutor, no ano passado, um certo momento do sujeito que considero ser um correlato essencial da ciência: um momento historicamente definido, sobre o qual talvez tenhamos de saber se ele é rigorosamente passível de ser repetido na experiência: aquele que Descartes inaugura e que se chama cogito (Lacan, 1998b, p. 870).

Esse novo sujeito é aquele que aparece como resto ineliminável da prova da dúvida radical que Descartes experimenta em sua meditação. Esse sujeito, reduzido ao extremo evanescente do cogito, é o Um, resgatado do inferno da dúvida.

Essa referência ao sujeito cartesiano se situa em uma reflexão mais geral de Lacan sobre a subjetividade e sobre as subjetividades, tais como elas se inscrevem no movimento geral do espírito. O sujeito não é uma essência atemporal que dominaria as vicissitudes da história com sua constância. Ele é totalmente o contrário, um efeito, respondendo estritamente às coordenadas do discurso, historicamente definidas, que determinam notadamente sua relação com o saber. Lacan isolou, assim, três momentos subjetivos que escandem, ao longo do tempo, o que identifica como uma dialética do sujeito. Cada uma dessas etapas se liga a um nome próprio. Por ordem, Sócrates, depois Descartes e, enfim, Freud.

 

A subjetividade socrática e o hiato entre episteme e arété3

Apoiando-se no ponto último alcançado por essa dialética, a escanção freudiana, Lacan renova profundamente a acepção tradicional da noção de sujeito. Em A ciência e a verdade (Lacan, 1998b), lembra que, no ano precedente, fundou o estatuto do sujeito na psicanálise, estabelecendo uma estrutura que dá conta do estado de Spaltung no qual esse sujeito é localizado na práxis analítica. A estrutura em questão, que governa a experiência analítica, é a da linguagem. Nessa experiência da linguagem, o sujeito que fala, o analisante, revela-se estar sujeito a lapsos, esquecimentos ou a sonhos que o subvertem. A partir do momento em que tem a experiência da fala, o sujeito se vê regularmente perturbado em sua intenção de significação por essas diversas formações do inconsciente. Eis aí sua divisão.

Em um escrito anterior, Lacan (1998a) destaca que uma "estrutura é constitutiva da prática do que chamamos psicanálise" (p. 807). Essa estrutura é a de linguagem, que dá conta das manifestações do inconsciente. Acrescenta: "Uma vez reconhecida a estrutura da linguagem no inconsciente, que tipo de sujeito podemos conceber?" (Lacan, 1998a, p. 814). O sujeito do inconsciente é certamente um sujeito que fala, mas ele parece tanto falado quanto falante, e por isso é irremediavelmente dividido entre seu enunciado e sua enunciação. Esse sujeito não é um dado primeiro da experiência, é um efeito segundo da estrutura de linguagem que é, ela, o dado primário. Ele é indexado como fading, desaparecimento, furo, esquecimento, tropeço, denegação, renúncia, e é assim que é apreendido na prática.

Por outro lado, o sujeito situa-se a partir de sua relação com o saber. É a lição que Lacan (1998a) tira da leitura de Fenomenologia do espírito. No seu Seminário II, sublinha o lugar que a psicanálise ocupa em certo progresso da subjetividade humana. Mas, a verdade que a descoberta freudiana trouxe foi reduzida, em seus seguidores, em um saber congelado, no qual se perde o sentido de sua origem. Lacan quis responder a essa degradação da verdade em um saber constituído, que marcava os desvios pós-freudianos, restaurando a "lâmina cortante" (Lacan, 2003a, p. 235) da verdade freudiana.

Ele identifica em Platão essa mesma ambiguidade do saber e da verdade. Faz de Sócrates aquele que inaugura um novo estilo na subjetividade humana, de onde surge a noção de um saber ligado a certas exigências de coerência, por exemplo, o saber matemático colocado à prova no Mênon. A instauração desse saber matemático é o tempo 1 da emergência da ciência moderna, antes que esta renasça uma segunda vez no século XVII como ciência física. No momento em que Sócrates inaugura o "novo ser-no-mundo que [Lacan] chama [...] uma subjetividade" (Lacan, 1985), surge um descentramento. Essa posição subjetiva, que torna possível a constituição desse saber matemático, depende do surgimento de um sujeito suscetível de assumir tal posição, quer dizer, um sujeito habitado por uma virtude. Somente aquele que possui essa qualidade da alma (arété em grego), a excelência, é capaz de produzir esse saber certo que é procurado. Entretanto, esse saber pode transmitir as regras matemáticas, mas não pode ensinar essa virtude. Apesar de correlativa à abertura de um novo regime de saber, a arété permanece, quanto a sua transmissão, tradição e sua formação fora do campo desse saber. Há um hiato irredutível entre arété (S) e episteme (S2) - S representando o "sujeito" e S2 o "saber".

Para Lacan, o interesse do Mênon é mostrar que a episteme não abarca todo o campo da experiência humana. Em particular, não há episteme do que realiza a perfeição, a arété dessa experiência. Há uma verdade que não pode ser apreendida em um saber articulado. Na episteme moderna, como no tempo de Sócrates, permanece certa coerência do discurso, e ela é, ela mesma, dependente de uma posição subjetiva específica.

 

O sujeito do cogito e o desencadeamento do discurso cientifico

Uma nova subjetividade surge com a meditação cartesiana, de onde emerge o sujeito do cogito. Ainda ali, o sujeito se define a partir de uma relação com o saber.

O método cartesiano se propõe a introduzir um saber sem dúvidas. Por isso, Descartes procede a uma revisão de todos os saberes admitidos até então. Koyré é sensível à audácia e à coragem da decisão do filósofo que, desse modo, responde à renúncia e ao ceticismo que haviam marcado o século anterior4. Quando se extrai a estrutura desse momento, a meditação cartesiana se coloca em dois tempos. A prova da dúvida hiperbólica extrai uma tábula rasa inaugural pelo questionamento de todos os pensamentos, por uma suspensão de todas as representações, por uma rejeição de todos os saberes anteriormente adquiridos. O segundo tempo põe em evidencia a presença de um resíduo, de um resto, persistente após o primeiro esvaziamento. Um eu penso fundamental, suporte de todas as cogitações - mesmo se forem falsas -, de todas as representações, de todos os saberes, não pode ser posto em dúvida. O poder de diluição da dúvida não deixa que nada subsista no espaço do saber, mas ao mesmo tempo isola-se um elemento de certeza que se liga ao eu (je) colocado em exercício no eu duvido (je doute). Dubito ergo sum, "duvido, logo sou", tal é a formula da qual emerge esse sujeito estabelecido a partir do pensamento da dúvida.

A tábula rasa inicial deixa persistir a ponta evanescente de um cogito pelo qual Descartes funda um eu sou, um sum, uma acomodação do sujeito no Ser. Essa operação do cogito comporta uma separação radical do sujeito com o saber.

De um lado flutua um sujeito esvaziado de qualquer representação, desamarrado de qualquer saber, um sujeito nu, vazio. É esse o sujeito vazio do cogito que é o sujeito da ciência. Com efeito, somente ao preço dessa ascese o cientista opera na ciência. Deve calar em si mesmo qualquer vontade de subjetividade para colocar a trabalho o significante matemática e produzir o saber exato da ciência. Essa posição subjetiva singular é o que Lacan (1998b) chama "sujeito da ciência" (p. 870), porque ela é correlativa desse modo muito especial de saber que é o saber cientifico. É a posição que deve adotar o cientista na ciência, tentando não entrar em nada de modo algum no saber que elabora. Esse é o arété próprio dos cientistas.

A ciência, no sentido moderno, é esse saber que rejeita o sujeito. É sua condição de existência, sua beleza e seu poder. Essa "foraclusão" do sujeito explica o desenvolvimento exponencial que caracteriza o discurso cientifico assim desamarrado. Enquanto os saberes tradicionais estavam sempre presos por algum elemento de subjetividade, e não poderiam então ir além de um certo ponto, não há doravante nenhum freio à explosão das pequenas letras matemáticas. Daí a tentativa de retomar o domínio, a partir do exterior, pela instauração de comitês ditos de ética.

A história da ciência moderna mostra que foi preciso regularmente ultrapassar obstáculos para livrar de qualquer contágio subjetivo o saber produzido. O cogito cartesiano não era mais do que o início desse programa, foi preciso em seguida repetir essa operação, por vezes com grande dificuldade.

O momento cartesiano faz nascer um novo sujeito, doravante universalizável, posto que despojado de qualquer representação particular. O sujeito que vai ser assim jogado no mundo não tem sexo, idade, nome, religião ou nacionalidade.

 

O sujeito da ciência é aquele sobre o qual a psicanalise opera

Com Freud, houve a irrupção de uma nova perspectiva, que revolucionou a subjetividade, mostrando que o sujeito não se confunde com o indivíduo. As elaborações do sujeito tais quais Freud as registra, lapsos, atos falhos, esquecimentos, não podem ser situadas em um eixo onde se confundiriam com a inteligência, a excelência, as capacidades cognitivas, a perfeição do indivíduo, com o arété individual, em resumo. O sujeito não se situa nesse eixo, ele é excêntrico, descentrado em relação ao indivíduo biológico. Ele não é um organismo que se adapta. Essa separação entre indivíduo e sujeito nos introduz a uma diplopia na qual a verdade freudiana vem se derramar. A verdade está fora do individuo, fora do organismo, está na libido.

O sujeito da experiência analítica, aquele que fala, não é o indivíduo biológico que a ciência pode estudar. O sujeito que fala é um obstáculo à produção de um saber cientifico sobre o indivíduo. O cientista contorna esse obstáculo se atendo apenas aos dados que extrai da observação do indivíduo. Ele os conjuga em seguida com uma exploração sofisticada do organismo vivo, na qual as imagens cerebrais possuem hoje o papel principal.

Se "o sujeito-que-fala" não é o indivíduo do qual se ocupa a ciência, o sujeito freudiano tem, entretanto, um laço com a ciência. Ele é esse sujeito da ciência que nós vimos no princípio da produção do saber cientifico, mas persona non grata no seio desse saber. É esse sujeito órfão do saber científico, rejeitado pela ciência, sujeito doravante desnorteado, posto que desligado do saber tradicional que responderia ao enigma da sua existência e do seu sexo. E, sem recursos, endereçou-se ao interlocutor novo que Freud soube encarnar. Eis o elo preciso entre o nascimento do dispositivo do tratamento analítico e a emergência do sujeito surgido do cogito cartesiano.

A prática analítica e a descoberta do inconsciente são impensáveis antes do nascimento, no século XVII, da ciência. O ideal científico que animava Freud conduziu-o à descoberta do inconsciente e à invenção da prática analítica. Lacan compartilhou esse ideal científico, sem cessar de renovar suas referências até o fim do seu ensino, voltando-se em diversos momentos para a linguística, as matemáticas, a lógica e a topologia. O sujeito da ciência é a condição de existência do discurso analítico. A prática analítica no sentido freudiano somente é concebível se opera sobre esse sujeito de estatuto bastante singular que é o sujeito da ciência. Reciprocamente, ali onde essa forma muito especial do sujeito não se deixa isolar, a pratica analítica se torna impossível. Lacan evocou algumas vezes essas formas de impossibilidade como, por exemplo, o sujeito católico ou o sujeito do discurso japonês. O sujeito que se coloca como obstáculo à operação analítica é, de maneira geral, o sujeito que faz Um com o saber da tradição, seja ela religiosa ou cultural. É um sujeito que não se deixa dissociar de suas identificações tradicionais que, por exemplo, sabe o que é ser um homem ou uma mulher, enquanto o sujeito do inconsciente, no seu sentido freudiano, não é identificável a nenhum sexo.

Esses sujeitos, certamente, não são o todo da experiência analítica: mesmo se ele é "calculável", ele não é "saturado" (Lacan, 1998b, p. 877). Com efeito, o sujeito fala com seu corpo que, ele, é sexuado, e por aí se introduz na experiência um objeto que põe tudo a perder (Lacan, 1998b).

Se a psicanalise é filha da ciência, ela não é propriamente falando uma ciência - no sentido da ciência galileana. Distingue desta última justamente pelo fato de operar sobre o sujeito que a ciência rejeita.

A psicanálise distingue-se da ciência porque se endereça a um sujeito responsável (Lacan, 1998b). O sujeito da ciência é fundamentalmente irresponsável pelo saber que produz, na medida em que é necessariamente dissociado dele. O cientista não pode ser considerado responsável pelas leis físicas que extrai do real da natureza. É por essa razão que esse saber sobre a natureza pode ser considerado exato. Em contraposição, a partir do momento em que o deixamos falar, o sujeito é chamado a se tornar responsável por sua posição subjetiva, quer dizer, por aquilo que diz. O Ser do cogito cartesiano, o sum, se deduz logicamente do pensamento, enquanto o sujeito freudiano está submetido a um imperativo, o de dever ser. Ali onde temos um ergo, um então lógico, em Descartes, temos em Freud, um soll, um você deve ético. O Wo Es warsol Ich werden freudiano responde ao cogito ego sum de Descartes. Esse dever ser é a arété do sujeito na análise.

Em oposição ao sujeito da ciência, é possível definir um estatuto do sujeito anterior à emergência do discurso científico. Trata de um sujeito não vazio, mas pleno. É um sujeito dotado de profundezas, que conserva uma relação arquetípica com o saber, quer dizer, que mantém uma ligação com o saber arcaico, anterior ao saber científico. Lacan vê na teoria junguiana a tentativa de restaurar esse momento do sujeito na psicanálise. Essa posição subjetiva é incompatível com a prática da psicanálise, tal como Freud a entendia. Lacan via aí o signo do arcaísmo que marca alguns desvios pós-freudianos da psicanálise. A experiência inaugurada por Freud é essencialmente uma operação de desidentificação. Isso porque a praxis analítica implica um sujeito apto a realizar tal dissociação. Esse sujeito vazio encontra-se no príncipio da produção do saber científico e é também aquele sobre o qual opera o procedimento freudiano. Mas, ele não ocupa a mesma posição dentro dos dois discursos. Na ciência, roga-se que se mantenha calado. Na análise, é livre para falar. Nem por isso a psicanálise é uma ciência do sujeito. É uma experiência na qual o sujeito experimenta o que significa falar, para um falasser embaraçado por um corpo vivo.

 

Referências

Koyré, A. (1984). Introdução à leitura de Platão. Lisboa: Editorial Presença.         [ Links ]

Lacan, J. (1985). O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1998a). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In J. Lacan, Escritos (pp. 807-842). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1998b). A ciência e a verdade. In J. Lacan, Escritos (pp. 869-892). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Lacan, J. (2003a). Ato de Fundação. In J. Lacan, Outros Escritos (pp. 235-247). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (2003b). Televisão. In J. Lacan, Outros Escritos (pp. 508-543). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

*Traduzido por Rogério Barros; revisto por Carla Fernandes e Vera L. Besset.
1 N. T. No original: La naissance de la science moderne. Une lecture de "La science et la vérité". Publicado em 2013, em La Cause du Désir, 84, 58-64.
2 Em 16 de novembro de 1954 Lacan encontra Koyré pela primeira vez, quando este faz sua Conferência sobre Mênon, na véspera da primeira lição do Seminário II. Lacan (1985) indica que Sócrates introduz Mênon no 'discurso da ciência' (p. 27).
3 N. T. Mantemos aqui o termo que consta no original, remetendo ao do grego antigo (
άρετή), que se refere à "virtude".
4 Cf. Koyré (1984).

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