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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.67 no.3 Rio de Janeiro  2015

 

ARTIGOS

 

Impacto emocional da gestação materna para primogênitos em idade pré-escolar*

 

The emotional impact of maternal pregnancy on preschool firstborns

 

Impacto emocional de la gestación materna al primogénitos en edad preescolar

 

 

Débora Silva de OliveiraI; Caroline Rossato PereiraII; Rita de Cássia Sobreira LopesIII; Denise Ruschel BandeiraIV; César Augusto PiccininiV

IDocente. Curso de Psicologia. Faculdade INEDI. Cachoeirinha. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIDocente. Departamento de Psicologia. Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IVDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
VDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Foi investigado o impacto emocional da gestação materna para primogênitos pré-escolares avaliados pelo Teste das Fábulas, comparando-os a filhos únicos. Participaram do estudo 46 crianças, entre dois e seis anos (21 filhos únicos e 25 primogênitos cujas mães estavam no terceiro trimestre gestacional), de níveis socioeconômicos variados e residentes na região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. O instrumento foi aplicado individualmente, e os dados foram analisados a partir do sistema de categorização proposto pelas autoras do teste. Os resultados apontaram que filhos de mães grávidas demonstram maior frequência de fantasias de privação, rejeição e abandono, defesas e expressões de sentimentos. Apresentam também maior mobilização frente às separações em relação à mãe, buscando outras figuras de apoio. O Teste das Fábulas possibilitou a expressão do inconsciente, viabilizando a escuta do complexo processo de tornar-se irmão, que se inicia antes mesmo do nascimento do primeiro irmão.

Palavras-chave: Pré-escolares; Gestação; Técnicas projetivas.


ABSTRACT

The present study investigated emotional impact of maternal pregnancy on preschool firstborns assessed by Fables Test and compared with only children. Forty-six children between two to and six years participated of this study (21 only children and 25 firstborns whose mothers were in the third trimester of pregnancy), of varying socioeconomic levels and residents at Porto Alegre, Rio Grande do Sul. The instrument was applied individually and data were analyzed based on categorization system proposed by the authors of the test. Results revealed that children whose mothers were pregnant demonstrated more fantasies of deprivation, rejection and abandonment, defenses and expressions of feelings. They also presented more mobilization when dealing with separations from their mothers, searching for other support figures. The Fables Test facilitated unconscious expression, enabling to access the complex process of becoming a sibling, which begins even before the birth of first sibling.

Keywords: Preschool children; Pregnancy; Projective techniques.


RESUMEN

Se investigó el impacto emocional de la gestación materna al primogénitos preescolar, evaluados por el Test de las Fábulas, comparándolos con los hijos únicos. Participaron 46 niños, entre dos y seis años (21 únicos y 25 primogénitos cuyas madres estaban en el tercer trimestre de gestación), de distintos niveles socioeconómicos y residentes en el región metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. El instrumento se aplicó individualmente, y los datos fueron analizados desde el sistema de clasificación propuesto por los autores del test. Los resultados muestran que los hijos de las madres embarazadas mostran una mayor frecuencia fantasías de privación, rechazo y abandono, defensas y expresiones de sentimientos. También muestran una mayor movilización delante de la separación en relación a la madre, en busca de otras figuras de apoyo. El Test de las Fábulas facilitó la expresión inconsciente, permitiendo la escucha del complejo proceso de convertirse en un hermano, que comienza incluso antes del nacimiento del primer hermano.

Palabras clave: Preescolares; Gestación; Técnicas proyectivas.


 

 

O processo de tornar-se irmão mais velho se inicia antes mesmo do nascimento do segundo filho na família e impacta o primogênito já no período gestacional. Os estudos iniciais sobre o tema datam da década de 1980. Field e Reite (1984) foram os pioneiros a constatarem aumento na brincadeira fantasiosa e na criação de um amigo imaginário por parte de crianças que vivenciavam a gestação materna. Tais fenômenos teriam função terapêutica, auxiliando a criança a elaborar essa situação. Segundo os autores, essas mudanças não estariam relacionadas unicamente à separação mãe-primogênito, mas à antecipação feita pela criança do novo bebê e da alteração em seus relacionamentos, uma vez que muitos progenitores buscavam prepará-la para o nascimento do irmão com antecedência. A esse respeito, Dunn e Kendrick (1982) afirmaram que os acontecimentos em torno do nascimento eram por si só suficientes para distorcer a relação dos progenitores com o primogênito e impactar sua harmonia.

Endossando essas ideias, pouco tempo depois, Stewart, Mobley, Van-Tuyl e Salvador (1987) também revelaram que o impacto do nascimento do irmão já era sentido mesmo antes de sua chegada, de forma que os relatos maternos referentes ao ajustamento do primogênito foram bastante similares entre o último mês pré-parto e o primeiro mês pós-parto. Em estudo mais recente, da década de 1990, Gottlieb e Baillies (1995), estudando uma amostra canadense de 80 primogênitos com idade entre 1,5 e 5 anos cujas mães estavam grávidas do segundo filho, relataram que as mudanças de comportamento manifestadas pelo primogênito antes do nascimento do irmão foram os melhores preditores nos meses seguintes ao seu nascimento. Nesse sentido, as interações e relações familiares anteriores desempenhariam importante papel no ajustamento do primogênito no período posterior ao nascimento do irmão (Dunn & Kendrick, 1982; Teti, Sakin, Kucera, Corns, & Eiden, 1996).

No primeiro estudo brasileiro, Dessen e Mettel (1984) também apontaram alterações no comportamento do primogênito percebidas pela mãe desde quando foi informado sobre a gestação do irmão. A esse respeito, Gottlieb e Baillies (1995) referiram que a fase intermediária da gestação seria, de modo geral, o momento em que é contado para a criança sobre a gestação e quando a mãe e a criança começariam a concretizar a realidade do bebê. Nessa etapa da gestação, todas as crianças pesquisadas estavam mais dependentes do que após o nascimento, principalmente os meninos, que passaram a resistir mais à separação e a demonstrar mais agressividade em relação à mãe.

Esse dado também foi corroborado por estudo brasileiro mais recente (Oliveira & Lopes, 2008). Ao investigarem cinco primogênitos brasileiros em idade pré-escolar e suas respectivas mães no terceiro trimestre gestacional, as autoras identificaram que os primogênitos mostraram-se mais dependentes na gestação. Contudo, o período gestacional foi caracterizado por ambivalência pelos primogênitos, visto que alguns também apresentaram comportamentos de independência como forma de se adaptarem ao novo papel. Um quadro similar foi referido por Pereira e Piccinini (2011a), que, por meio de entrevistas com oito mães brasileiras, encontraram que, concomitantes a manifestações de alegria pela chegada do irmão, o avançar da gestação e a proximidade do parto desencadearam ansiedade e ciúme nos primogênitos pré-escolares. Todas as crianças apresentaram atitudes indicativas de rivalidade fraterna, incluindo medo de perder a atenção e o carinho da mãe, assim como sinais de agressividade dirigidos à barriga da gestante. Tais manifestações estariam associadas, em parte, às mudanças ocorridas no contexto relacional dos primogênitos.

A esse respeito, Pereira e Piccinini (2011b), ao investigar oito mães gestantes do segundo filho, referiram que o período da gestação trouxe a necessidade de redefinição na relação mãe-primogênito. Além de voltar-se emocionalmente para o bebê, as restrições físicas da gestação impuseram limitações à interação mãe-primogênito, tanto em brincadeiras como nos cuidados diários deste. Richardson (1983) já havia apontado que, ao final da gestação, as mães estariam sobrecarregadas e menos aptas a lidar com o primogênito, que se tornava crescentemente exigente e mal-comportado. Nesse período, a relação com o primogênito foi percebida pelas mães como predominantemente insatisfatória.

O início do complexo processo de tornar-se irmão pode minar temporariamente a segurança e a confiança do primogênito, que passa a requerer mais atenção e apoio dos progenitores. Sensível a todas essas mudanças, tem de lidar com a nova situação e passar do papel de filho único para o de irmão mais velho (Walz & Rich, 1983). Conforme Mendelson (1990), a transição para o status de irmão caracteriza a instância de aquisição de um papel. Pré-escolares que estão esperando irmão precisam passar por um trabalho psicológico de reestruturação de seu autoconceito, definindo novos papéis sociais, ao mesmo tempo em que desenvolvem um conceito sobre o bebê. Mesmo antes de o bebê nascer, informações como de que o irmão mais velho irá cuidar do bebê ou de que o bebê será seu companheiro de brincadeiras fornecem ideias concretas sobre como ser irmão mais velho. Assim, o relacionamento fraterno traz consigo diversos desafios aos irmãos, incluindo o de dividir e compartilhar os espaços físicos da casa, as posses e brinquedos de cada um e, mais do que isso, o de dividir a atenção, a admiração e o afeto dos progenitores (Pereira & Lopes, 2013).

Contudo, ainda não há consenso na literatura de que as mudanças emocionais do primogênito sejam realmente expressivas e observáveis. Nesse sentido, o estudo de Kramer (1996) indicou que a gestação e a iminente chegada do irmão não seriam percebidas com preocupação pelo primogênito. Gottlieb e Baillies (1995) também encontraram diferença muito pequena entre os comportamentos de crianças cujas mães estavam grávidas do segundo filho e aquelas que não experienciavam esse processo. Segundo os autores, essa situação só se alteraria mais intensamente após o nascimento do irmão.

Embora pesquisas tenham abordado o primogênito, a metodologia utilizada foi, de modo geral, observacional. Um dos recursos ainda pouco explorados em contexto de pesquisa para a investigação de questões específicas do desenvolvimento em crianças pequenas refere-se às técnicas projetivas. Essas se constituem em recursos para eliciar a emergência de material inconsciente nas respostas do sujeito. Dentre elas, o Teste das Fábulas (Cunha & Nunes, 1993) consiste em método projetivo verbal, sensível para detectar conflitos relacionados ao desenvolvimento emocional infantil (Cunha et al., 1989; Nunes, Cunha, & Oliveira, 1990).

Embora estudos recentes tenham se dedicado a tal temática, poucas pesquisas atuais são encontradas sobre ela, conforme apontam autores brasileiros (Oliveira, 2010; Oliveira & Lopes, 2013; Pereira & Lopes, 2013). Em uma pesquisa foi avaliado especificamente o ponto de vista de três primogênitos, através do Teste das Fábulas, e apontaram-se reações muito variadas e complexas já no período gestacional (Oliveira, 2006, 2010; Oliveira & Lopes, 2013). Os resultados indicaram repercussões para o desenvolvimento emocional e, sobretudo, para a separação psicológica ou emocional em relação aos seus cuidadores. Os primogênitos revelaram predominantemente regressão na gestação materna, enquanto que crescimento se manifestou especialmente aos 12 e aos 24 meses de idade do irmão. Os pesquisadores compreenderam a regressão como forma de enfrentar a chegada do irmão e o crescimento como capacidade para conquistas ou custos de ser mais velho. Nesse sentido, tomando como ponto de partida essas pesquisas, objetivou-se neste trabalho investigar o impacto emocional da gestação materna para primogênitos em idade pré-escolar avaliado pelo Teste das Fábulas, comparando-os a filhos únicos.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo 46 crianças entre dois e seis anos de idade. As crianças faziam parte de dois grupos distintos: 21 filhos únicos e 25 primogênitos cujas mães estavam grávidas do segundo filho. Ao longo do artigo, serão utilizadas as siglas FU (filhos únicos) e FMG (filhos de mães grávidas) para designar os dois grupos investigados. Os participantes fazem parte do estudo longitudinal intitulado Estudo longitudinal sobre o impacto do nascimento do segundo filho na dinâmica familiar e no desenvolvimento emocional do primogênito - ELSEFI (Lopes, Piccinini, Rossato & Oliveira, 2005), que tem por objetivo investigar o impacto do nascimento do segundo filho no relacionamento familiar e no desenvolvimento emocional do primogênito, e que se iniciou acompanhando 55 famílias, sendo que em 30 delas a mãe estava grávida do segundo filho e nas outras 25 havia um único filho. As famílias foram investigadas ao longo de dois anos. Para fins do presente trabalho, foram incluídas todas as crianças que responderam ao Teste das Fábulas no primeiro momento de coleta de dados do estudo longitudinal referido, totalizando então apenas 46 participantes. Os participantes são de níveis socioeconômicos variados e residentes na região metropolitana de Porto Alegre. A amostra foi caracterizada por sexo e faixa etária, conforme a Tabela 1.

Procedimentos de coleta de dados e instrumentos

A coleta de dados foi realizada em escolas de educação infantil e creches, na UFRGS e/ou na casa dos participantes, conforme disponibilidade desses. As mães ou os pais das crianças assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e preencheram uma Ficha de Contato Inicial. O Teste das Fábulas (Cunha & Nunes, 1993) foi aplicado individualmente. As respostas ao teste e o inquérito realizado foram gravados e transcritos. O teste na forma pictórica é constituído de doze lâminas com ilustrações adequadas a cada uma das dez fábulas. O examinador conta as histórias, anota as respostas e realiza inquérito cuidadoso para aprofundar as respostas fornecidas pela criança. Foi utilizada a versão pictórica do teste, indicada para crianças entre três e oito ou nove anos de idade.

Tendo em vista o objetivo do estudo de investigar o impacto da gestação materna no desenvolvimento emocional do primogênito em idade pré-escolar, optou-se por analisar somente as cinco fábulas que investigam situações-problema específicas dessa fase do desenvolvimento infantil. As fábulas incluídas referem-se aos seguintes temas: dependência-independência e processo de separação-individuação (F1 - Fábula do passarinho), reação à cena primária (F2 - Fábula do aniversário de casamento), dependência-independência e rivalidade fraterna (F3 - Fábula do cordeirinho), alterações na criança ocasionadas pelo desenvolvimento e fantasias vinculadas ao temor à castração (F6 - Fábula do elefante), possessividade e obstinação, dependência em relação à mãe (F7 - Fábula do objeto fabricado). A Fábula do passeio (F8), embora tenha sido aplicada, não foi incluída nos resultados por não apresentar dados relevantes de diferenciação entre os dois grupos investigados.

O projeto longitudinal, do qual este estudo faz parte, foi aprovado pelo Comitê de Pesquisa e Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela Resolução nº/2004373, sendo considerado ético e metodologicamente adequado, de acordo com as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde).

Procedimentos de análise de dados

Os dados foram analisados a partir do sistema de categorização de respostas proposto por Cunha e Nunes (1993). Duas das autoras do presente estudo avaliaram separadamente cada uma das 46 fábulas às cegas, e eventuais discordâncias foram sanadas com um terceiro juiz (também autor do presente estudo). A partir dessas análises, os resultados dos dois grupos de crianças foram comparados para cada uma das categorias de análise. Segundo o sistema de categorização do teste, foram avaliadas categorias específicas em cada fábula (ação, enredo, desfecho, objeto de medo, dentre outros) e fenômenos presentes em praticamente todas elas (tipo de resposta, fantasias, estados emocionais e defesas). As tabelas apresentam essas comparações, e em várias dessas variáveis a soma total não representa 100% em razão de o percentual ter sido calculado pelo total de casos, e não de respostas dadas pelas crianças. Uma mesma criança podia apresentar diferentes respostas para uma única categoria. Por exemplo, a resposta para uma fábula podia conter indicativos de mais de uma fantasia (ex.: privação, rejeição e reparação).

Para as comparações, foram realizadas análises de Qui-Quadrado. Contudo, em diversas variáveis restou pequeno número de casos nas caselas, inviabilizando a análise. Mesmo assim, pelo ineditismo de muitos dos resultados, optou-se por apresentar apenas percentuais entre os grupos, dando um caráter descritivo qualitativo ao estudo.

 

Resultados

Apresentam-se os resultados que se mostraram qualitativamente diferentes para os grupos em cada uma das fábulas incluídas no estudo.

Fábula 1: Fábula do Passarinho

A Fábula 1 explora a dimensão de dependência-independência e discute o processo de separação-individuação, questão básica para o desenvolvimento infantil. Através do impacto da perda ou ameaça de crise familiar, representado pelo ninho que cai, o filhote passarinho pode sentir-se abandonado, desprotegido e despreparado para lidar com a realidade externa. A presença de um elemento potencialmente destruidor (o vento muito forte) ameaça a proteção e a estabilidade do ambiente familiar, acarretando a separação do filhote em relação aos genitores. As soluções fornecidas pela criança frente a essa condição potencialmente traumática indicam sua atitude no mundo externo, projetada na ação do personagem herói da história, o filhote passarinho.

Na resposta à F1, destaca-se que, em termos percentuais, menos crianças do grupo FMG (8%) apresentaram indicativo de choque do que crianças do grupo FU (42,9%) (Tabela 2). Esse dado pode ser analisado associando-o à indicação de personagens apontados pelas crianças. Choque refere-se a um tipo de fenômeno específico que pode ser identificado tanto através do tempo de reação da criança quanto da qualidade de sua resposta. Conforme Cunha e Nunes (1993), a presença de fenômenos específicos indica a existência de um conflito na área investigada pela fábula. Frente à situação traumática (o ninho cai no chão, e o passarinho se encontra sozinho), os FMG referiram procurar mais a figura paterna (20%), não parentais positivas (16%) ou irmãos e outros filhotes (12%), enquanto os FU buscaram restabelecer a relação de dependência com a mãe (23,8%). No grupo FMG, percebeu-se que, quando a figura materna foi indicada, apareceu mais frequentemente junto ao pai (52%) do que sozinha (8%). Além disso, a partir da categoria de enredo, observou-se que o ambiente familiar foi apontado como acolhedor por menos crianças do grupo FMG (64%) do que do grupo FU (76,2%). O enredo diz respeito ao encadeamento da história até seu desfecho, estando associado ao modo como a criança percebe o ambiente ao seu redor. O conteúdo despertou diferentes fantasias, defesas e estados emocionais. Quanto às fantasias, houve predominância de privação e abandono (20%) e de impotência e volta ao útero (40%) nos FMG. Por outro lado, os FMG também apresentaram maior evidência de superação (16%) do que os FU (0%). Foi observado, ainda, que apresentaram menos dificuldade em expressar suas emoções (48% sem indícios de estados emocionais) quando comparados aos FU (66,7%) (Tabela 2). Destaca-se que os FMG apontaram tanto tristeza e mal-estar (20%) quanto alegria (36%).

No que tange às defesas, os FMG apresentaram mais defesas narcisistas (48%), quando comparados ao grupo FU (19,1%), conforme a Tabela 2. Dentre essas, destaca-se a projeção (24%), quando comparados aos FU (9,5%). Os FU, por sua vez, apresentaram maior prevalência de defesas imaturas (33,5%) e neuróticas (23,9%). Para fins de síntese, as defesas foram agrupadas, conforme proposta de Kaplan, Sadock e Grebb (2003), em: defesas narcisistas (projeção, negação, distorção, idealização), defesas imaturas (atuação, bloqueio, hipocondria, introjeção, comportamento passivo-agressivo, projeção, regressão, fantasia esquizóide, somatização, retorno contra si mesmo, evitação), defesas neuróticas (controle, deslocamento, dissociação, externalização, inibição, intelectualização, isolamento, racionalização, formação reativa, repressão, sexualização, anulação, compensação) e defesas maduras (altruísmo, antecipação, ascetismo, humor, sublimação, supressão).

Fábula 2: Fábula do aniversário de casamento

A Fábula 2 apresenta o contexto da festa de aniversário de casamento dos pais, os quais se amam muito. Durante a festa, a criança se levanta e vai ficar sozinha no fundo do quintal. O conteúdo remete à ideia de que, independentemente da existência da criança, os genitores possuem uma relação afetiva, podendo suscitar respostas que a levem a reagir à cena primária. Esta fábula pode ainda remeter a sentimentos de rejeição e de exclusão, uma vez que a criança deve responder por que motivo saiu da festa e foi ficar sozinha.

Destaca-se maior presença de motivo associado à rejeição no grupo FMG (44%), quando comparado ao FU (28,6%), conforme a Tabela 3. A presença de motivo deslocado para temas orais (tais como envolvendo a alimentação) esteve menos presente nos FMG (16%) do que nos FU (23,8%).

Os FMG (20%) indicaram mais fantasias do que os FU (9,6%), havendo destaque para o narcisismo e onipotência (12%), bem como gratificação e agregação familiar (8%), que não estiveram presentes entre os FU. Os FMG também indicaram mais alegria e bem-estar (12%), quando comparados aos FU (4,8%), sentimentos que podem ser relacionados às fantasias de gratificação e de agregação. Além disso, também apresentaram mais indicadores de defesas (apenas 16% sem resposta para defesas), quando comparados aos FU (42,9% sem resposta para defesas), as quais foram de todos os tipos: narcisistas (32%), imaturas (52%), neuróticas (32%) e maduras (4%).

Fábula 3: Fábula do cordeirinho

A Fábula 3 investiga aspectos referentes à dependência versus independência, além da rivalidade fraterna, uma vez que a criança se identifica com um cordeirinho privado de seu alimento para que seja alimentado outro menor. As figuras simbólicas, ovelha/cordeirinho, remetem para conotações tanto de segurança e conforto quanto de vulnerabilidade e insegurança. O cordeirinho representa o "bem, o crescimento", e o leite representa "o alimento, a representação simbólica do afeto da mãe" (Cunha & Nunes, 1993).

Da mesma forma que na F1, na F3 menos crianças do grupo FMG apresentaram choque (12%) e resistência ativa (8%), quando comparadas aos FU (choque - 23,8%, resistência ativa - 19%). Os FMG apresentaram maior frequência de ação ativa (60%) e desfecho parcialmente adaptado (16%) diante do conflito. Ação refere-se à atitude do herói da fábula (cordeirinho) após ter sido informado pela mãe de que não poderá mais tomar leite, devendo comer capim. Já o desfecho está relacionado à forma como a criança finaliza sua história. Embora a maioria dos FU também tenha apresentado ação ativa (47,7%), eles indicaram mais ação não adaptada ou sem resposta (23,8%), não apresentando adequabilidade e nexo lógico em suas respostas.

Da mesma forma que na F1 e na F2, conforme a Tabela 4, o grupo FMG apresentou mais indícios de fantasias do que o grupo FU. As de privação e de rejeição foram destacadas por ambos, sendo predominantes entre os FMG (56%). Destaca-se ainda que os FMG manifestaram mais presença de estados emocionais (40% sem indícios de estados emocionais), quando comparados ao grupo FU (71,4% sem indícios), tanto de alegria quanto de tristeza. Quanto às defesas, ao contrário da análise de frequência indicada nas fábulas anteriores, os FMG apresentaram mais defesas neuróticas (36%), enquanto os FU indicaram mais defesas narcisistas (38,1%) e imaturas (38,2%).

Fábula 6: Fábula do elefante

Na F6, a criança deve indicar modificações que possam ter ocorrido no elefante enquanto o personagem da história estava ausente. Essas modificações possuem significação simbólica que remete a alterações na própria criança ocasionadas pelo desenvolvimento e, especialmente, por fantasias vinculadas aos temores em relação à castração. De acordo com Cunha e Nunes (1993), a resposta dada para essa fábula varia conforme as características individuais e a ocorrência de situações potencialmente traumáticas, como é o caso do nascimento de um irmão. Contudo, a resposta comumente dada por crianças da mesma faixa etária indica mudanças quanto ao estado psicológico ou físico do elefante.

Os FMG pareceram mais mobilizados com a F6, apresentando maior frequência de fenômenos específicos como choque, contaminação, autorreferência, descrição da lâmina e resistência ativa (Tabela 5). A contaminação refere-se à interferência de uma resposta pelo conteúdo da fábula anterior. A autorreferencia caracteriza-se pela indicação altamente personalizada ou indicativa de autoenvolvimento. Já a resistência ativa ocorre quando há dificuldades por parte da criança em identificar mudança no elefante, tanto sem conseguir formular resposta quanto através do uso de "outra" resposta diretamente relacionada ao conflito, constituindo reação defensiva ao conteúdo ansiogênico da fábula.

Os FMG apresentaram maior dificuldade em identificar mudança no elefante (32% sem resposta) do que os FU (19% sem resposta) e utilizaram mais uma resposta (12% FMG versus 4% FU) relacionada ao conflito. Pode-se identificar que a maior parte dos FMG indicou mudança no elefante como um todo (56%), e não em uma parte específica de seu corpo. Por outro lado, os FU apresentaram maior percentual de respostas envolvendo mudanças no rabo do elefante (19% versus 4% FMG), o que pode indicar que estariam mais envolvidos nos conflitos edípicos e, em consequência, nas fantasias de castração do que os FMG.

Esses dados também podem ser relacionados à natureza da mudança (Tabela 5). Enquanto os FU indicaram maior percentual de mudanças vinculadas à mutilação (14,3% versus 4% FMG), os FMG mencionaram outras mudanças, incluindo substituição, sequestro, sumiço, fuga (16% versus 0% FU). Destaca-se que esses temas remetem a fantasias ligadas à separação em relação à mãe. Enquanto os FMG estariam relacionando o crescimento do personagem à temática da separação da mãe, apresentando mais fantasias de privação e de rejeição (20% versus 0% de FU), os FU pareceram estar mais voltados para a preocupação consigo, temas físicos, mais egocêntricos. Nessa fábula, ficou claro que as fantasias de privação e de rejeição dos FMG aparecem em decorrência da separação em relação à mãe, havendo maior frequência de fantasias de castigo e reparação (12% versus 0% de FU). Nesse contexto, é coerente que mais FMG tenham apresentado estados emocionais de tristeza, pesar e mal-estar em seus relatos (32%) do que os FU (14,3%).

Quanto às defesas, não se observou diferença entre os grupos no que tange às do tipo neuróticas e imaturas. Contudo, os FMG apresentaram mais indícios de narcísicas (28% versus 14,4% de FU). Esse dado contrapõe-se aos encontrados nas fantasias apresentadas nessa mesma fábula, em que se observou que os FU pareceram estar mais voltados para si, mais egocêntricos, enquanto os FMG estariam mais voltados para a temática da separação da mãe.

Fábula 7 - Fábula do objeto fabricado

A F7 fornece dados importantes sobre temas como possessividade e obstinação, uma vez que a criança, personagem herói da história, confecciona um objeto de argila e está livre para dá-lo ou não à mãe. Há também a intenção de avaliar aspectos relacionados à dependência ou não em relação à mãe, que podem ser associados tanto ao afastamento da mãe quanto à percepção sobre ela. A situação-problema revela à criança que existe um mundo contrário aos seus desejos e sentimentos, impondo-lhe uma situação potencialmente frustrante, para que prossiga com o curso de seu desenvolvimento.

No caso dos FMG, os dados da F7 foram sensíveis à instabilidade da relação com a mãe naquele momento. Conforme a Tabela 6, a frequência de fenômenos específicos (12% choque, 12% descrição da lâmina, 8% autorreferência) indica que mobilizou emoções mais intensas nessas crianças do que nos FU.

A resposta mais comum esperada para crianças pré-escolares é dar o objeto fabricado à mãe. No caso dos FMG, chama atenção o alto índice de personagens que não deram (29,2%), configurando-se ação com resistência ativa. Destaca-se que nenhuma das crianças do grupo FU apresentou essa resposta. A maioria indicou a resposta esperada, ou seja, dar o objeto (ação ativa e adaptada: 57% FU versus 33,3% FMG).

Os sentimentos também podem ser identificados através das fantasias sugeridas (Tabela 6). Os FMG apresentaram maior frequência de fantasias de privação e rejeição (20% versus 9,5% de FU), além de agressão (16% versus 4,8%), castigo/reparação (20% versus 0%) e narcisismo/onipotência (28% versus 14,3%). Conforme a Tabela 6, mais FMG apresentaram respostas com conteúdo emocional (estados emocionais) e defesas mais primitivas (imaturas e narcisistas). As respostas revelaram que o conteúdo mobilizou, especialmente, os FMG.

 

Discussão

Analisando cada grupo a partir das cinco fábulas, percebeu-se que algumas mobilizaram mais os FU (F1 e F3), enquanto outras impactaram mais os FMG (F2, F6 e F7). Os FU apresentaram maior mobilização em fábulas cujas situações-problema estão associadas, especialmente, à separação da figura materna, apresentando mais fenômenos específicos (choque, contaminação, autorreferência, descrição da lâmina, resistência ativa) e dificuldades em expressar emoções (estados emocionais), demonstrando não estarem preparados para lidar com situação potencialmente ameaçadora na relação com a mãe. Essas fábulas abordam a temática da separação em relação aos progenitores e da autonomia da criança. Assim, pode-se conjecturar que os FU estivessem menos preparados para lidar com tais temáticas do que os FMG.

A necessidade de compartilhar os cuidados e o amor materno já estava presente nos FMG em função de vivenciarem o contexto de gestação e o início do complexo processo de tornar-se irmão. Dentre as mudanças nas relações familiares, já durante o período gestacional, a literatura indica aumento de práticas disciplinares de controle, diminuição da interação e da atenção materna, redução do tempo ocupado em brincadeiras com o filho e diminuição significativa do apego seguro de primogênitos em relação à mãe (Baydar, Greek, & Brooks-Gunn, 1997; Feiring & Lewis, 1978; Kowaleski-Jones & Dunifon, 2004; Teti et al., 1996). Nesse estudo, os FMG também indicaram percepção mais ameaçadora de seu ambiente e maior distanciamento em relação à mãe como figura prioritária de apego. Além disso, a presença de outras figuras de apoio, como o pai e outras figuras positivas, apareceu nitidamente nesse grupo, enquanto os FU buscaram predominantemente a figura materna. Esses dados corroboram a literatura, que aponta que, frente às mudanças nessa relação especial, o papel do pai e de outras figuras de apoio, como a avó materna, torna-se essencial para o primogênito (Gottlieb & Mendelson, 1990; Levitt, Webber, & Clark, 1986; Winnicott, 1982). Segundo Pereira e Piccinini (2011b), enquanto a relação com a mãe passa por mudanças marcantes no final da gestação, o pai pode servir como figura de continuidade, favorecendo o sentimento de confiança para o primogênito.

Ainda que os FMG tenham apresentado respostas consideradas de maior autonomia, isso não significa que seja uma adaptação fácil. Os primogênitos, além de terem indicado mais defesas imaturas e fantasias de privação, de rejeição e de abandono frente à ameaça de perda da figura materna, também perceberam o ambiente como menos acolhedor, embora tenham buscado restabelecer a relação com outras figuras de apoio diante da menor disponibilidade da mãe.

Chama atenção a frequência mais elevada de fantasias de privação, rejeição e abandono entre os FMG. Tais fantasias podem estar relacionadas ao medo de separação da mãe e à ameaça de perda de seu amor frente ao iminente nascimento do irmão. Associadas a esse temor, as fantasias de impotência e de volta ao útero, e de castigo e reparação remetem à vulnerabilidade, desamparo e desproteção sentidos e à necessidade de reabastecimento emocional. Frente a essas fantasias, apresentaram agressividade dirigida à mãe, que, consequentemente, desencadeou sentimento de culpa manifesto na fantasia de castigo e reparação. Esse dado corrobora a literatura, que apontou presença de comportamentos regressivos, de dependência, de maior demanda e agressividade direcionada à mãe e ao bebê (Baydar et al., 1997; Dunn, Kendrick, & MacNamee, 1981; Gottlieb & Baillies, 1995; Legg, Sherick, & Wadland, 1974; Oliveira, 2006, 2010; Oliveira & Lopes, 2008, 2013; Stewart et al., 1987).

As fantasias de rejeição apontadas por esse grupo de crianças estariam mais associadas ao fato de a mãe estar grávida do que ao conflito edípico. O conflito edípico não havia ainda se tornado temática central da vida dessas crianças. Assim, os sentimentos de exclusão diriam respeito às alterações na rotina diária, bem como à competição pela atenção materna já presente no período gestacional e no complexo fraterno (Legg et al., 1974; Oliveira, 2010). Mais do que o complexo de Édipo, o complexo fraterno tomaria a frente da vida psíquica dessas crianças nesse momento. Segundo Freud (1916-1917/1976), seria a transferência dos afetos edípicos, originalmente dirigidos aos progenitores, para os irmãos, devido à hostilidade despertada pela ocorrência ou pela possibilidade de perda ou divisão dos carinhos dos progenitores:

Quando outras crianças aparecem em cena, o complexo de Édipo avoluma-se em um complexo de família. Este, com novo apoio obtido a partir do sentimento egoístico de haver sido prejudicado, dá fundamento a que os novos irmãos e irmãs sejam recebidos com aversão e faz com que, sem hesitações, sejam, em desejos, eliminados (Freud, 1916-1917/1976, p. 65).

O conceito freudiano de complexo fraterno foi posteriormente revisto e ampliado (Kancyper, 1999), tendo sido considerado como independente do complexo edípico, ainda que guardando relações com ele.

Com isso, as fantasias de superação, narcisismo e onipotência, agregação familiar e gratificação podem indicar tentativa de se ajustarem às alterações provenientes do contexto e de lidarem com suas próprias necessidades de dependência. Essas fantasias podem funcionar como recurso para comunicar os custos de assumir novas responsabilidades, na medida em que têm de renunciar a antigos papéis e dividir o cuidado materno com outra criança (Brazelton & Sparrow, 2003; Oliveira, 2010). Tais dados podem ser relacionados a pesquisas brasileiras (Oliveira, 2010; Oliveira & Lopes, 2013), as quais revelaram que os indicadores de crescimento apresentados pelo primogênito podem, na verdade, estar mascarando as dificuldades do mesmo em lidar com as demandas emocionais desse contexto, representando uma pseudomaturidade, mais do que uma conquista no processo de amadurecimento.

O crescimento do primogênito, a necessidade de ocupar o lugar de "irmão mais velho", os estímulos provenientes dos genitores para uma maior independência, associados ao crescimento do irmão dentro da barriga e às próprias mudanças físicas da mãe, podem ter contribuído para que sentissem maior ansiedade e, em consequência, apresentassem maior frequência de fenômenos específicos, demonstrando emocionalmente maior mobilização em relação a esse contexto. O interesse em realizar atividades do dia a dia de modo independente e de ocupar papel de filho mais velho são também destacados na literatura como sinais de crescimento e de maior independência (Dunn et al., 1981; Gottlieb & Baillies, 1995; Kendrick & Dunn, 1980; Kramer & Gottman, 1992; Kreppner et al., 1982; Oliveira, 2010; Oliveira & Lopes, 2008, 2013).

Acredita-se que as fantasias podem estar a serviço das defesas erigidas nesse contexto, como indicadoras de mobilização. Em parte, as crianças se sentiram rejeitadas, abandonadas e, em parte, enfrentaram essa situação com onipotência e superação. Pode-se observar que a mesma fábula estimulou fantasias opostas para a mesma criança.

Outro dado significativo demonstrado pelos FMG diz respeito à temática das mudanças físicas e psicológicas do personagem herói da história. O fato de terem apresentado maior dificuldade em identificar a mudança no elefante e terem indicado outra resposta pode ser entendido também como reação defensiva ao conteúdo ansiogênico.

Em relação às defesas, de modo geral, os FMG as apresentaram mais do que os FU. Quanto ao tipo, houve predomínio de defesas narcisistas, seguidas das imaturas. Os FMG também apresentaram mais frequentemente essas defesas em suas respostas. A presença de defesas consideradas mais primitivas poderia indicar a regressão ocorrida nesse contexto. A literatura, de modo geral, aponta predominância de indicadores de regressão de primogênitos já durante a gestação (Dunn & Kendrick, 1980; Gottlieb & Baillies, 1995; Legg et al., 1974; Oliveira, 2006, 2010). Nesse caso, é esperado algum comportamento regressivo ou dependente, vez que esse é utilizado como estratégia para reabastecer a segurança e a confiança abaladas pela situação da gravidez (Oliveira & Lopes, 2013). Pode-se conjecturar que precisassem usar mais defesas para lidar com as emoções e ansiedades que a ameaça de separação da mãe suscitava.

Foi observado, ainda, que os FMG apresentaram mais respostas com conteúdo emocional (estados emocionais) às fábulas. Pode-se pensar que o comportamento regressivo coloca-os em contato mais direto com suas emoções, o que pode ajudar a compreender essa diferença. Destaca-se que o grupo FMG apontou tanto mais tristeza e mal-estar quanto mais alegria, quando comparados aos FU. Tal dado faz pensar que, ao mesmo tempo em que percebem com tristeza mudanças decorrentes da presença de um irmão, também demonstram alegria com a sua chegada. Embora os sentimentos de alegria possam ser entendidos juntamente com a presença de defesas imaturas, como a atuação, por exemplo, que indica postura "maníaca" frente ao conflito, destaca-se que a chegada de um irmão desperta tanto sentimentos de rivalidade e ciúmes quanto de alegria e satisfação, indicando a horizontalidade das relações imersas no complexo fraterno.

 

Considerações finais

De modo geral, os resultados permitem pensar que os FMG, em razão da gestação materna, estavam vivenciando um processo de ajustamento na relação usufruída com os progenitores, em especial com a mãe. A literatura caracterizou a chegada de uma segunda criança como período marcado por mudança na relação mãe-primogênito (Dunn & Kendrick, 1980; Dessen & Mettel, 1984; Gullicks & Crase, 1993; Kowaleski-Jones & Dunifon, 2004; Lopes, Vivian, Oliveira, Pereira, & Piccinini, 2012). Isso foi corroborado por diferenças apresentadas pelos FMG em relação aos FU nas cinco fábulas: ambiente percebido como menos acolhedor pelos FMG, maior busca de figuras de referência alternativas à mãe, maior mobilização relacionada à temática das transformações físicas e emocionais associadas à gestação e ao seu próprio crescimento, maior presença de conflito na relação com a mãe, maiores índices de fantasias de privação, rejeição e abandono, mais presença de defesas de modo geral e maior frequência de estados emocionais de tristeza, mal-estar e pesar.

Provavelmente, o crescimento do primogênito, sua necessidade de ocupar o lugar de "irmão mais velho", os estímulos provenientes dos progenitores para maior independência, relacionados ao crescimento do irmão dentro da barriga e às próprias mudanças físicas da mãe, estivessem contribuindo para uma maior ansiedade e mudança em sua autopercepção. Nesse contexto, o primogênito precisava não apenas redefinir sua relação com os progenitores, como também lidar com seu novo papel de irmão.

Assim, foi possível observar, por meio do Teste das Fábulas, as repercussões no primogênito da emergência do complexo fraterno. Cabe lembrar que, ainda que não tenha sido o foco do presente estudo, outro estudo realizado pelo grupo de pesquisa (Vivian, Lopes, Geara, & Piccinini, 2013) deixou claro o quanto o complexo fraterno é também reativado nos pais nesse momento, interferindo na expressão do complexo fraterno nos filhos. A emergência do complexo fraterno no primogênito durante a gestação e a reativação do complexo fraterno nos pais foram também exploradas e discutidas em estudo realizado no setting ultrassonográfico por meio de aplicação do método Bick de observação de bebês e desenhos realizados pelas crianças após o exame (Caron & Fonseca, 2011).

Como limitação do estudo, pode-se apontar o pequeno tamanho da amostra, que inviabilizou comparações estatísticas, além de o grupo de FMG apresentar idades inferiores às dos FU, uma vez que a diferença etária possui implicações para o desenvolvimento infantil. Contudo, os resultados foram importantes para compreender o impacto emocional da gestação materna para primogênitos em idade pré-escolar. Ainda, destaca-se que o Teste das Fábulas foi essencial para essa investigação, já que a forma como foi construído (completar histórias com o apoio de figuras) facilitou o exame de aspectos relacionados ao desenvolvimento emocional de crianças em idade pré-escolar no processo de tornar-se irmão. Além disso, o teste viabilizou avaliar o inconsciente da criança, a perda da figura materna e a aprendizagem de tornar-se irmão, inaugurando o complexo fraterno. Mesmo que de modo indireto, através de um teste projetivo, abriu-se uma possibilidade de escuta do irmão mais velho. Esse tema, com a técnica utilizada, pode ser mais explorado em estudos futuros.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Débora Silva de Oliveira
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Caroline Rossato Pereira
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Rita de Cássia Sobreira Lopes
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Denise Ruschel Bandeira
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César Augusto Piccinini
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Submetido em: 20/11/2013
Revisto em: 29/04/2014
Aceito em: 29/06/2014

 

 

* Texto referido à pesquisa realizada com apoio do CNPq.

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