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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.67 no.3 Rio de Janeiro  2015

 

ARTIGOS

 

Sínteses sem fim: a percepção de objetos segundo Husserl*

 

Endless syntheses: the perception of objects according to Husserl

 

Síntesis sin fin: la percepción de objetos según Husserl

 

 

Danilo Saretta Verissimo

Docente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Estadual Paulista (UNESP). Assis. Estado de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, apresentamos e comentamos os estudos de Husserl recolhidos na obra Coisa e espaço: lições de 1907. Trata-se de investigações voltadas ao desenvolvimento de uma fenomenologia da percepção a partir da circunscrição de um campo provisional de pesquisas: compreender analiticamente a percepção externa, ou, mais precisamente, "a constituição de objetos-coisa na percepção" e a intencionalidade que lhe é própria. Além de situar as lições de Coisa e espaço no conjunto da obra de Husserl, destacamos o dinamismo da percepção revelado no entrelaçamento das suas dimensões de ausência e de presença, de aparecimento e de recolhimento no invisível, de crença e de inacabamento. Esse dinamismo encaminha-nos a questões relativas à subjetividade em sua dimensão encarnada.

Palavras-chave: Fenomenologia; percepção; subjetividade.


ABSTRACT

In this paper, we present and discuss the studies by Husserl collected in Thing and space: lectures of 1907. These are studies focused on the development of a phenomenology of perception, based on the delimitation of a provisional research area: the analytic understanding of external perception or, more precisely "the constitution of thing-objects in perception" and its characteristic intentionality. Besides situating the lessons from Thing and space in Husserl's work as a whole, we highlight the dynamics of the perception revealed in the interweaving of its dimensions of absence and presence, appearance and withdrawal into the invisible, belief and incompleteness. This dynamism leads us to aspects of subjectivity in its incarnated dimensions.

Keywords: Phenomenology; perception; subjectivity.


RESUMEN

En este artículo, presentamos y comentamos los estudios de Husserl recogidos en la obra Cosa y espacio: lecciones de 1907. Se trata de investigaciones dirigidas al desarrollo de una fenomenología de la percepción a partir de la circunscripción de un campo provisional de investigaciones: comprender analíticamente la percepción externa o, más precisamente, "la constitución de objetos-cosa en la percepción" y de su peculiar intencionalidad. Además de situar las lecciones de Cosa y espacio en el conjunto de la obra de Husserl, destacamos el dinamismo de la percepción revelado en el entrelazamiento de sus dimensiones de ausencia y de presencia, de aparecimiento y recogimiento en el invisible, de creencia y de incompletitud. Este dinamismo nos lleva a cuestiones relativas a la subjetividad en su dimensión encarnada.

Palabras clave: Fenomenología; percepción; subjetividad.


 

 

Introdução

Neste artigo, propomo-nos a apresentar e comentar os estudos de Husserl recolhidos na obra Coisa e espaço: lições de 1907 (Husserl, 1989). Trata-se de investigações inteiramente voltadas ao desenvolvimento de uma fenomenologia da percepção a partir da circunscrição de um campo provisional de pesquisas: compreender analiticamente a percepção externa, ou, mais precisamente, "a constituição de objetos-coisa na percepção" (Husserl, 1989, p. 172) e a intencionalidade que lhe é própria.

Ao longo da nossa exposição, além de procurar situar as lições de Coisa e espaço no conjunto da obra de Husserl, pretendemos destacar o que nos parece central para a compreensão da herança filosófica da fenomenologia husserliana da percepção, a saber, o dinamismo da percepção revelado no entrelaçamento das suas dimensões de ausência e de presença, de aparecimento e de recolhimento no invisível, de crença e de inacabamento. Esse dinamismo encaminha-nos a questões relativas à subjetividade em sua dimensão encarnada. Ele encontra-se na base do progresso ulterior das investigações fenomenológicas de Husserl, bem como na origem de outros importantes trabalhos acerca da percepção, na filosofia e nas ciências psicológicas, como os escritos de Merleau-Ponty (1945, 1964/2006) e, mais recentemente, de Barbaras (2006, 2009) e Berthoz e Petit (2006).

 

O primado da percepção e os fundamentos da sua análise fenomenológica

As investigações husserlianas são guiadas pelo problema fundamental relativo à teoria do conhecimento em geral, qual seja, o da possibilidade da experiência. Husserl entende realizar uma fenomenologia do conhecimento, que remete à questão da essência da experiência (Husserl, 1989, 1928/2002) e à necessidade de uma fenomenologia da experiência (Husserl, 1989). Seus estudos acerca da percepção são considerados "partes fundamentais" (Husserl, 1989, p. 23) dessa fenomenologia da experiência. Trata-se de elucidar a "essência da doação empírica" (Husserl, 1989, p. 23), ou seja, do aparecimento das coisas a uma subjetividade, em seus "níveis inferiores" de doação (Husserl, 1989, p. 23). Com efeito, a percepção é tomada como camada primordial em relação ao estudo dos atos superiores de relação com o mundo, como o pensamento, os processos lógicos e a teorização. Segundo Husserl, o sentido originário da experiência nos remete à "relação a um objeto experimentado" (Husserl, 1989, p. 174). A investigação acerca dessa relação fundamental nos encaminha ao estudo da essência da percepção, compreendida nos momentos de doação do "ser-dado-em-pessoa" (Husserl, 1989, p. 175), da coisa "em carne e osso" (Husserl, 1989, p. 175), que a caracteriza.

Husserl (1989) parte da fixação dos fundamentos da investigação fenomenológica da percepção. Estão em questão: a restrição do domínio de estudos à percepção externa, que se define em oposição ao conceito clássico de percepção interna, ou apercepção; o estabelecimento da metodologia adotada, que se refere à interrogação da percepção no campo de reflexão pautado pela redução fenomenológica; a determinação essencial da percepção como intencionalidade, que decorre da redução; e, a partir disso, o estabelecimento do foco da pesquisa como exame da objetidade própria à percepção, quer dizer, o caráter específico dos objetos nela apresentados, bem como a sua condição de aparição.

O campo provisório de estudos estabelecido por Husserl (1989) é o da percepção de coisas ou de processos relativos às coisas e que, na percepção, se faz objeto à parte, mesmo que sempre apareça sobre um pano de fundo qualquer. Vemos, ouvimos, tocamos, sentimos e degustamos coisas ou suas propriedades. Husserl (1989) comenta: "'Eu vejo' quer sempre dizer: vejo alguma coisa, a saber, uma coisa ou uma propriedade da mesma coisa, ou um processo da coisa. Vejo uma casa, o voo de um pássaro, a queda das folhas" (p. 31). Num primeiro momento, circunscreve-se como tema de investigação a correlação entre percepção e coisidade percebida, tomada no sentido da apresentação espaço-temporal daquilo que aparece, na medida em que se poderia tratar, além disso, do ser animado e da necessária distinção entre o "Eu próprio" e o "Eu estrangeiro" (Husserl, 1989, p.30), por exemplo. Nessa direção, faz-se abstração momentânea do fato de que tudo o que se ouve ou se vê possui relação com o corpo do Eu.

Prosseguimos com questões de método e passamos à redução fenomenológica. Qualquer fenômeno que nos propomos a pesquisar aparece sob um halo de significação. Nesse sentido, Husserl (1989) exige de si um trabalho de identificação de prejuízos conceituais e de escolha de pontos fundamentais que o guiem no início dos estudos, posto que, de qualquer modo, é obrigado a assumir um ponto de vista para a partida. Decide, justamente, não se orientar por conceitos psicológicos e filosóficos acerca da percepção. Afirma nada saber sobre a percepção, a não ser a palavra mesma e uma significação incerta, vaga, que permanece ligada a ela. "Retornar aos próprios fenômenos sob a condução desta vaga significação, estudá-los intuitivamente, depois forjar conceitos fixos, exprimindo com pureza os dados fenomenológicos, esta será a tarefa", assevera o autor (Husserl, 1989, p. 30). Sob essa aparente mística do filósofo cético já se apresenta o recurso aos dados fenomenológicos.

Não fazia muito tempo que Husserl começara a tomar consciência do seu princípio da redução fenomenológica. É em Lições sobre a consciência íntima do tempo (Husserl, 1928/2002) que reúne aulas ministradas em 1905, apenas dois anos antes dos cursos que nos ocupam, que Husserl formaliza a redução (English, 2002; Lavigne, 1989a). Naquelas lições, Husserl (1928/2002) fala em excluir toda suposição em relação ao tempo objetivo, "todas as pressuposições transcendentes de um existente" (p. 6). O que se aceita, diz o filósofo, é "o tempo aparecendo" (p. 7), o ser do "tempo imanente do curso da consciência" (p. 7).

De volta ao problema da percepção, Husserl (1989) afirma que realizar a redução fenomenológica implica não considerar a existência física, ou real, como válida. Trata-se de deixar de realizar qualquer julgamento acerca da existência real das coisas, o que abarca a suspensão das coisas em si, fixadas pela metafísica, a materialidade das coisas tal como definida pela física, as realidades e disposições psicológicas, bem como as coisas tal como consideradas na vida ordinária. Tome-se como exemplo a percepção de uma casa: o eu empírico daquele que percebe a casa, enquanto objeto físico-geométrico, e a percepção enquanto vivido psicológico não interessam para a análise. O que importa é "a essência desta percepção, tal como ela é dada na consciência" (Husserl, 1989, p. 33). "Coisas aparecem", assevera Husserl (1989, p. 174), o que quer dizer que se tem experiência delas, que há fenômenos da experiência, e a essência da experiência em geral, "em seu 'sentido' originário" (Husserl, 1989, p. 174), é o dado fenomenológico fundamental. Portanto, não se trata de abandonar o âmbito transcendente, ou objetivo, mas de evidenciar suas relações com o âmbito imanente, ou fenomenológico. No que concerne à experiência perceptiva, está em questão o modo próprio do aparecer das coisas e, num segundo momento, do próprio eu, na percepção.

No campo da redução fenomenológica, à percepção corresponde aquilo que aparece, mas tão somente como correlato desta percepção. Um exemplo que Husserl (1928/2002) apresenta em suas Lições sobre a consciência íntima do tempo pode ajudar a esclarecer a natureza dessa nova correlação entre a percepção e o percebido, que dispensa o recurso à tese da existência transcendente. Ao discutir a simultaneidade da percepção e do percebido, o filósofo argumenta que na perspectiva do tempo objetivo, ou seja, da atitude ingênua, é possível que no momento da percepção o objeto percebido nem exista mais, como no caso das estrelas, o que leva a se afirmar a exterioridade dos instantes da percepção e do percebido. Com efeito, na posição objetiva, esses instantes "recaem sempre fora uns dos outros" (Husserl, 1928/2002, p. 145), ainda que consideremos a percepção visual a curta distância ou mesmo a experiência tátil. Na perspectiva da atitude fenomenológica, pode-se dizer, ao contrário, que "a cada fase da duração do objeto corresponde então uma fase da percepção" (Husserl, 1928/2002, p. 145), posto que, mesmo fora do nosso campo geográfico de experiência, o objeto permanece como "correlato de uma percepção possível" (Husserl, 1928/2002, p. 145).

Tal como dada à consciência, ou seja, em estado imanente, à percepção pertence a relação a um objeto. É essencial à percepção reenviar a um percebido, apresentar-se como um voltar-se a alguma coisa. A intencionalidade, conceito que, no âmbito da consciência em geral, se refere a essa conversão fundamental do eu visando se ocupar de um objeto, justamente como característica forte da consciência, distingue outras diversas cogitationes. Em Investigações Lógicas, Husserl (1901/1962), reportando-se à descrição dos vividos intencionais em Brentano, afirma que na imaginação alguma coisa é imaginada, assim como no amor algo é amado, ou no desejo algo é desejado. Dito de outra maneira, na imaginação tem-se a presentificação imaginária de qualquer coisa, de uma mesa, por exemplo. Na exposição por imagem, tem-se a imagem da mesa, e no pensar, o pensamento da mesa. A preposição "de" exprime um caráter essencial de objetidade, afirma Husserl (1989), ou seja, de relação a um objeto, de modo que, no que diz respeito à percepção, o propósito é interrogar a sua própria objetidade, o caráter essencial da objetidade relativa à percepção, o seu modo específico de visar alguma coisa e que a diferencia da imaginação, do juízo etc.

Em conformidade com as análises acerca da percepção realizadas nas Investigações Lógicas (Husserl, 1901/1962), em Coisa e espaço Husserl (1989) define o caráter particular da objetidade relativa ao ato perceptivo com base na presença corporal da coisa percebida: "o objeto mantém-se na percepção como presente em carne e osso" (p. 36), diz ele, "como atualmente presente, como dado em pessoa no Agora atual" (p. 36). Como comparação, tem-se que na imaginação o objeto se apresenta diante dos olhos, mas não como "presença-em-carne-e-osso" (p. 36). O mesmo vale no caso das imagens, em que aquilo que se encontra representado em um retrato ou numa pintura não se apresenta "em carne e osso", mas tão somente como em carne e osso. Essa presença corporal da coisa percebida é uma das características da percepção que guiam a exploração do tema por Husserl. E este se adianta em afirmar: com a definição deste traço essencial da percepção nada se diz a respeito da existência verdadeira daquilo que é percebido, pois se assim fosse as ilusões perceptivas seriam um contrassenso. Ao contrário, apenas se atesta que o "[...] caráter essencial da percepção é ser 'consciência' da presença em carne e osso do objeto, quer dizer, de ser fenômeno dele" (Husserl, 1989, p. 36).

Em suma, Husserl estabelece como ponto de partida para seu estudo da percepção, tomada como camada primordial da essência da doação empírica, os atos perceptivos dirigidos a coisas inanimadas. A percepção é questionada a partir da suspensão da crença na existência factual do mundo e do sujeito psicológico. Como correlato da consciência perceptiva evidencia-se a necessidade daquilo que aparece. A suspensão da crença na realidade empírica não anula a objetidade da percepção, ou de qualquer outro ato intencional, que permanece exigindo um correlato intencional, um objeto da percepção, da imaginação etc. Ademais, constata-se que a objetidade própria à intencionalidade perceptiva refere-se à apresentação daquilo que aparece como dado em pessoa, em carne e osso. Essas são as premissas básicas para o exercício da análise metódica e minuciosa de inúmeras formas de apreensão e de aparição da objetidade própria à percepção. A questão que brota pouco a pouco para Husserl é a seguinte: diante da necessária e incessante mudança do material sensível e da apreensão, "[...] como deve se constituir a unidade no ser-outro contínuo" (Husserl, 1989, p. 90)?

 

Análise da percepção

Dois níveis de análise da percepção se cruzam no texto de Husserl (1989) e possuem diferentes implicações para a compreensão da experiência sensível. Um deles é descritivo e desperta nosso interesse na medida em que tem conduzido a profícuas investigações acerca do que Barbaras (2006, 2009) denomina estrutura do aparecer. O outro, analítico, num sentido estrito, parece fazer tributo a teses empiristas e intelectualistas das quais Husserl pretende se afastar. Pode-se afirmar que esse discurso analítico reabsorve a estrutura do aparecer num "conjunto de eventos subjetivos" (Barbaras, 2009, p. 70).

A análise da percepção, tal como empreendida por Husserl (1989), baseia-se na distinção entre os componentes reais e intencionais da percepção. Amparado pelo campo da redução fenomenológica e pela caracterização da correlação intencional, que, como vimos, exprime o reenvio de todo dado fenomenal a um ato subjetivo, ao mesmo tempo em que devolve todo ato subjetivo para aquilo a que ele se dirige, Husserl (1989) procede ao estabelecimento de uma distinção fundamental entre a percepção como fenômeno e aquilo que aparece nela, o objeto da percepção. "É evidente que a percepção não é uma coisa", atesta Husserl (1989, p. 38). A percepção de uma superfície quadrangular preta não é ela mesma nem uma superfície, nem quadrangular e preta. Deve-se, pois, diferenciar a aparição do objeto que aparece. Todo objeto que aparece se apresenta a título de aparição, e toda aparição faz referência a algo aparecendo. Existe um conteúdo real da aparição, quer dizer, "um conteúdo efetivo imanente do vivido" (Lavigne, 1989b, p. 453) de percepção, com suas partes e determinações, qualidades sensíveis pré-empíricas que caracterizam a forma, a cor e a textura sentidas. Eu as tenho como um dado absoluto, ou seja, como uma imanência. De outro lado, falamos em "conteúdo do objeto que aparece" (Husserl, 1989, p. 39), exposto, na percepção, em carne e osso e com determinadas marcas que o distinguem. Como veremos mais adiante em detalhes, ele não me é dado plena e absolutamente. No conteúdo imanente da percepção, encontramos perfis perceptivos contínuos da cor da superfície ou de qualquer outra determinidade do objeto. Ao perfil sentido corresponde uma superfície uniformemente colorida, que, na qualidade de objeto intencional da percepção, percebido em carne e osso, é uma transcendência, quer dizer, algo que não possuo efetivamente, em todos os momentos que o constituem.

Vale esmiuçar um pouco mais essas análises. Segundo Husserl (1989), o conteúdo da percepção, como, por exemplo, a cor sentida, distingue-se do conteúdo do seu objeto, a cor percebida. A despeito de conter o momento de vermelho, a percepção, ela mesma, não é vermelha; o que ela contém é o vermelho sentido, "momento real da percepção", conforme a expressão de Husserl (1989, p. 65). Esses vividos sensíveis, dados plenos e absolutos, não se confundem com os aspectos necessários da coisidade, como sua forma espacial e sua cor. A expressão kantiana que se refere a formas da intuição é "fundamentalmente falsa", diz Husserl (1989, p. 66), pois nem o espaço nem qualquer outra determinação da coisa podem ser atribuídos à forma dos vividos. Pensar assim implicaria emparelhar complexões de conteúdos, considerados ora de modo transcendente, ora de modo imanente. Desse modo, afirma Husserl (1989), "teríamos duas coisas, uma imanente e uma transcendente. Não haveria nenhuma razão para negar à imanente o nome distintivo de 'coisa'" (p. 66). Permanecendo em nosso exemplo calcado na cor, o que temos é o contrário: ao conteúdo imanente da percepção pertencem esboços, ou perfis, contínuos do vermelho, e aos perfis sentidos corresponde um objeto colorido de forma uniforme. Não há identidade entre a marca distintiva objetiva, no caso a cor vermelha do objeto, e a sensação correspondente. Em outras palavras, a percepção não contém a imagem da coisa percebida, resume Husserl.

Mas o que faz com que algo objetivo se apresente em carne e osso mediante os conteúdos de percepção? De acordo com Husserl (1989), a percepção, que se dá pela complexão de conteúdos reais, depende do que ele denomina apreensão. O autor expressa-se da seguinte forma: "É pela apreensão que eles [os conteúdos de sensação] adquirem, eles que em si seriam como uma matéria morta, uma significação que os anima, de tal sorte que com eles um objeto acede à exposição" (Husserl, 1989, p. 69). Na apreensão, um conteúdo imanente à percepção "funciona como expositivo" (Husserl, 1989, p. 69), ou seja, realiza a relação a um objeto percebido. A apreensão opera, pois, a passagem de uma percepção autoposicional a uma percepção expositiva. Nela, o conteúdo imanente "[...] é apreendido como qualquer coisa que ele mesmo não é, mas que aparece com a sua apreensão" (Husserl, 1989, p. 69). Em outras palavras, na apreensão alguma coisa aparece.

Essa distinção entre conteúdos de sensação e apreensão intencional já era operada por Husserl nas Investigações Lógicas (Husserl, 1901/1962). Em Ideias I (Husserl, 1913/2008), ela recebe um formato conceitual mais bem acabado. Husserl fala, então, de vividos sensoriais e vividos que portam "a propriedade específica da intencionalidade" (Husserl, 1913/2008, p. 288). Por um lado, há os conteúdos de sensação, como os dados de cor, de toque, de som etc. Eles não devem ser confundidos com "os momentos de coisas que aparecem" (Husserl, 1913/2008, p. 288), quer dizer, a qualidade colorida ou rugosa que se perfila através deles. Há ainda as sensações de prazer, de dor e os impulsos. Esses conteúdos constituem a matéria, a hylé sensorial, que, em si, "não possui nada de intencional" (Husserl, 1913/2008, p. 289). Eles se revelam, dessa maneira, como dados brutos de sensação, face a uma camada de vividos que os anima, "dá-lhes um sentido" (Husserl, 1913/2008, p. 289), formações intencionais que lhes garante uma forma. Essa camada Husserl denomina morphé intencional, que caracteriza o momento noético da consciência. O vivido intencional é justamente consciência de qualquer coisa. Acerca da relação entre noese, ou momento noético, e a ideia de consciência, Husserl (1913/2008) afirma:

O que enforma a matéria para fazer dela um vivido intencional, o que introduz o elemento específico da intencionalidade, é isso mesmo que dá à expressão de consciência seu sentido específico e faz com que a consciência indique precisamente ipso facto alguma coisa do que ela é consciência (p. 291).

O correlato do momento noético da consciência é denominado por Husserl noema. No caso da percepção, e segundo a situação puramente fenomenológica, o seu noema corresponde ao "percebido enquanto tal" (Husserl, 1913/2008, p. 305). Abre-se a possibilidade, já explorada em Coisa e espaço, de "descrever fielmente e com uma perfeita evidência 'o que aparece enquanto tal'" (Husserl, 1913/2008, p. 308), na qualidade de noema da percepção.

Essa análise da vida intencional em Husserl suscita discussões. Segundo Sacrini (2009), longe de reforçar a cisão clássica entre interioridade mental e exterioridade mundana, e o forte hábito de explicar uma pela outra, Husserl delimita "[...] um campo em que o mundo se manifesta de maneira subjetiva sem ser uma mera criação da consciência" (p. 52). Na mesma medida em que o dado fenomenal é remetido a um ato subjetivo, e aos seus componentes, todo ato subjetivo dirige-se a alguma coisa. Na manifestação mediante atos subjetivos, constitui-se uma objetividade, e a grande tarefa da investigação fenomenológica da percepção é a descrição da constituição da objetividade "na multiplicidade de aparições mutantes", como afirma Husserl (1989, p. 185).

Na opinião de Barbaras (2009), a análise husserliana parece respeitar o aparecer perceptivo. Há um momento de receptividade, de preenchimento em vista da presença da coisa, e do qual se trata na referência a vividos hiléticos que apenas existem como vividos, e não como coisa percebida. Visados pela noese, os conteúdos sensíveis exercem sua "função 'figurativa' ou 'ostensiva'" (Barbaras, 2009, p. 62) e se apagam em proveito do objeto, do perfil de alguma coisa. Com isso, preservam-se a transcendência, que não é coisa em si, dada plenamente, e a imanência, que não adquire caráter de coisa. Por outro lado, Barbaras pergunta se essa descrição da subjetividade é coerente em relação à teoria da percepção que a acompanha. Como aquilo que, em primeira instância, foi separado pode ser reunificado? Como os dados sensíveis podem ser unificados por atos noéticos para se tornar faces de um objeto se não cumpriam esta função anteriormente? Como a apreensão pode, de forma heteronômica, conferir aos dados hiléticos uma função de manifestação que lhes falta inicialmente? Qual o sentido de uma cor passível de ser vivida sem ser percebida, uma cor que não se remeta a um objeto presente em carne e osso?

A essas questões, Barbaras (2009) responde categoricamente: "Esta distinção, sobre a qual, aliás, Husserl hesitou longamente, aparece como uma concessão à ideia empirista de sensações, consideradas como conteúdos sensíveis imanentes" (p. 71). No que diz respeito ao ato de apreensão, à noese, Barbaras a toma como uma contra-abstração destinada a animar a abstração de uma matéria sensorial pura, um vivido encarregado de apresentar um objeto. Mas como um ato de consciência permite à consciência a relação com o que não é ela mesma? Ao ideário empirista vem reunir-se, portanto, a dificuldade do intelectualismo. Esses problemas remontam a uma subjetivação do aparecer, no sentido metafísico tradicional da expressão. Se, com base na redução, o subjetivo parecia designar o caráter fenomenal do mundo, "o mundo enquanto aparece" (Barbaras, 2009, p. 73, grifo do autor) e que expõe, por correlação, um sujeito do aparecer inteiramente devotado a esse aparecer, a análise dos vividos remonta a processos internos encarregados de fazer aparecer um transcendente.

 

A fenomenologia da percepção

No exercício descritivo acerca da percepção, Husserl situa-se na dimensão fenomenal do aparecer e põe em marcha um vocabulário e um esquema conceitual que nos levam a considerar o inacabamento inerente à percepção e, por conseguinte, ao conhecimento. Seu intento é estudar a estrutura da síntese contínua da objetidade inalterada. Veremos que a objetidade perceptiva, de modo geral, pode ser considerada como unidade na mudança: a coisa percebida "[...] não é absolutamente idêntica, mas idêntica apenas no devir-diferente contínuo, na mudança", afirma Husserl (1989, p. 336).

Conteúdos de exposição auferidos na apreensão implicam o aparecimento de alguma coisa. Partindo disso, Husserl (1989) considera que, de forma fenomenológica, o percebido, ou seja, aquilo que aparece, evoca uma diferenciação entre o percebido próprio, no sentido de autêntico, e o percebido de forma imprópria. Se me posiciono diante de uma casa, vejo dela propriamente tão somente a fachada. Apenas um certo complexo de determinações da casa encontra exposição e compõe a sua face aparente. No sentido da percepção, todavia, a casa possui outras partes além da face anterior e que se encontram, desde a posição que ocupo, desprovidas de conteúdos expositivos. Essas partes não diretamente visíveis estão compreendidas na percepção; elas apenas não acedem à exposição. Constata-se, pois, que "a percepção de um todo não implica a percepção de todas as suas partes e determinações" (Husserl, 1989, p. 73).

Considerando-se que Husserl utiliza o sentido clássico do termo "intuição", o de relação direta e presencial com um objeto de experiência, pode-se dizer que apenas o conteúdo exposto é dado "intuitivamente" (Husserl, 1989, p. 74), embora carregue com ele toda a zona de aparição imprópria. Com efeito, o que aparece é a casa, ainda que apenas uma de suas faces seja exposta na aparição própria. Husserl (1989, p. 74) enfatiza que "[...] uma face não é face senão do objeto completo. Ela não é qualquer coisa que existe à parte, ela é impensável como ser-à-parte". Há um pertencimento primordial entre a face e a coisa da qual ela é face. A coisa se expõe na face. Dito de outra maneira, o que é exposto na exposição da face é a própria coisa. Husserl (1989) complementa: "Olhando a face, posso enunciar o que ela expõe, a que título ela faz aparecer a coisa [...]. E da coisa posso dizer que ela é o que é exposto de tal e tal forma nesta face" (p. 181).

A essência da aparição própria é prolongar-se na impropriedade, mesmo no caso de uma sucessão de aparições próprias de um mesmo objeto. Nessa direção, Husserl (1989) fala de uma "incompletude radical" (p. 75) ao referir-se à "unilateralidade da percepção externa" (p. 75), que estabelece que a coisa seja dada sempre na aparição, ou seja, por meio de um perfil perceptivo. A percepção de coisas espaciais apenas pode se dar de forma unilateral. Conforme o vocabulário husserliano, trata-se de uma "inadequação essencial de toda percepção externa isolada" (Husserl, 1989, p. 74). Disso conclui-se que apenas pode haver intuição imprópria do espaço. Jamais haverá uma intuição própria tridimensional, ou seja, uma exposição completa da coisa de acordo com "todos seus momentos e partes constitutivas" (Husserl, 1989, p. 76).

A constatação da incompletude e da unilateralidade da percepção faz par com a multiplicidade de perfis que transcorre continuamente. Vale destacar, à guisa de esclarecimento, a importância que a noção de Abschattung, que traduzimos por perfil, ou também por esboço, possui na fenomenologia da percepção husserliana. Ao longo de toda sua trajetória filosófica, Husserl fará referência à doação perceptiva por Abschattungen. Segundo Granel (1968), trata-se de uma espécie de achado, que Husserl coloca no centro das suas descrições fenomenológicas da coisa percebida, e que carrega, em sua "indeterminação fundamental" (Granel, 1968, p. 220), "todo o equívoco da fenomenologia da percepção" (Granel, 1968, p. 220).

Retomando nossa discussão, o fato é que o movimento das coisas e principalmente o nosso próprio movimento, dos olhos, da cabeça ou do corpo todo, garantem que jamais tenhamos uma percepção inalterada. Na essência da aparição, ou da percepção, temos "continuamente qualquer coisa diferente outra vez" (Husserl, 1989, p. 129). Temos uma série de "momentos de aparição constitutivos" (Husserl, 1989, p. 130) que transcorrem com pequenas diferenças. Tome-se o exemplo, mencionado por Husserl, de um hexaedro. Esse objeto não se dá apenas em um perfil, mas mediante inúmeros perfis que, continuamente, se transfiguram um no outro. O mesmo é válido em relação à cor do cubo, que se constitui como unidade em vista de uma série de perfis de cor, variáveis conforme o jogo de iluminação ao qual o objeto se encontra exposto. No progresso desse movimento aparente, operado pela multiplicidade de perfis que transcorrem incessantemente, dá-se a consciência fenomenal de um único e mesmo hexaedro. Nesses termos, pode-se falar da coisa como "unidade na multiplicidade" (Husserl, 1989, p. 131), ou como "identidade na continuidade" (Husserl, 1989, p. 131), aquilo que aparece e se legitima apenas "na continuidade dos perfis do objeto" (Husserl, 1989, p. 131). O hexaedro se-mantém-lá-em-pessoa "sob a forma de um perfil perspectivo" (Husserl, 1989, p. 131).

A coisa é idêntica na "unidade sistemática" (Husserl, 1989, p. 133) dos perfis perceptivos, de maneira que o mesmo varia o tempo todo como determinação contínua de um outro mesmo. Com efeito, a multiplicação das determinidades do objeto na variedade de perfis perceptivos afeta a forma da coisa percebida, mesmo sem alterá-la. Na sua mesmice - gostaríamos de poder dizer "mesmidade" -, a coisa percebida escapa continuamente. Tudo se dá conforme os termos de uma falta permanente, que nos remete a uma completude cuja vivência deixar-nos-ia satisfeitos. Na consciência da doação perceptiva, inacabada por natureza, e que nos "reenvia para além dela mesma" (Husserl, 1989, p. 136), surge o ideal de uma percepção adequada da coisa. Todo o problema da percepção caminha na direção descerrada por esse ideal. É o que se observa na interpretação ingênua, a do "viver habitual" (Husserl, 1989, p. 146), que gira em torno da tentação da verdade da coisa percebida e das aparências a que estaríamos condenados em vista das contingências da nossa condição.

Husserl, ao contrário, opta pela tentação do inacabamento e da ambiguidade da percepção. "Toda percepção de coisa é inadequada", assevera o filósofo (Husserl, 1989, p. 144). A percepção em repouso encontra sua inadequação na unilateralidade. Supondo que se tenha uma percepção bastante precisa de uma face qualquer da coisa, o que Husserl (1989) denomina "doação plenamente saturada" (p. 145), permanecemos expostos à reserva que o objeto nos opõe. Caso passemos ao encontro das outras faces, perdemos o que tínhamos na primeira série de imagens. Não se pode, simultaneamente, manter o mais alto grau de saturação de doação de uma face e ter a vista dos outros lados do objeto. Na percepção variável, que, em função do movimento do objeto ou do sujeito perceptivo, se constitui na doação do objeto por etapas, ainda que suponhamos um processo de determinação mais precisa mediante uma multilateralidade paulatinamente mais rica, nunca se atinge algo próximo a um dado absoluto. "O enriquecimento de um lado vai de par com o empobrecimento do outro", afirma Husserl (1989, p. 145).

Com efeito, Husserl (1989) define o espaço como "uma multiplicidade infinita de lugares possíveis" (p. 152), que oferece "um campo de possibilidades de movimento infinitamente numerosas" (p. 152, grifo nosso). Mesmo um determinado perfil perceptivo pode ser objeto de visadas renovadas em direção de suas partes. De maneira que, considere-se o todo ou as partes, apenas temos exposições incompletas e passíveis de ser retocadas, alteradas e, eventualmente, mais bem determinadas. Husserl (1989) afirma: "Vemos que a continuidade do corpo de coisa pressupõe a percepção 'inadequada', a percepção por perfis que são continuamente suscetíveis de enriquecimento e determinação mais precisa" (p. 152). Há sempre uma promessa de maior completude da coisa percebida. Essa promessa, todavia, jamais se confirma.

O mesmo é válido no que se refere à incompletude externa do objeto percebido, quer dizer, às percepções que vão além do quadro da imagem atual. Todo objeto aparecendo é "circundado por uma zona periférica de objetos" (Husserl, 1989, p. 250) que podem aparecer ou não. Trata-se de objetos percebidos sem aceder à exposição. Husserl menciona exemplos tais como um salão cheio de gente, uma floresta repleta de árvores ou um campo de cereais, para evidenciar que, a despeito de não abranger todos os elementos do campo visual com um único olhar, temos consciência da multiplicidade. O filósofo comenta:

O que a cada vez é visto em próprio não se encontra, todavia, lá sozinho para nosso "ver"; assim como a face posterior do objeto não é vista propriamente e, no entanto, é co-apreendida e co-colocada, o ambiente do objeto, que não vemos, está inteiro também (Husserl, 1989, p. 251).

Em Filosofia primeira, conjunto de cursos ministrados entre 1923 e 1924, Husserl (1972) fala em horizonte interno e horizonte externo da coisa percebida. O filósofo afirma, então, que todo percebido se dá mediante a consciência de horizonte. O invisível apresenta-se à consciência "de forma 'não intuitiva'" (Husserl, 1972, p. 204). Essa consciência vazia no tocante à intuição é consciência de horizonte. No que diz respeito ao horizonte externo da coisa percebida, Husserl (1972) considera-o um "domínio de pré-figuração determinada" (p. 205), em que o momento percebido reenvia "a momentos imediatamente co-presentes ou quase co-presentes" (p. 205). Segundo o autor, contamos com essa pré-figuração como possibilidade de preenchimento intuitivo, de maneira que somos capazes de explicitá-la como "possibilidade de experiência" (Husserl, 1972, p. 206), como "experiência a realizar logo depois" (Husserl, 1972, p. 206, grifo do autor). Trata-se, pois, de considerar, a título de percebido, aquilo "que eu perceberia se continuasse a fazer progredir minha experiência ativa em certas direções que me são já familiares" (Husserl, 1972, p. 206, grifo do autor). Cumpre destacar o desejo que se engendra diante desse negativo de intuição. Voltar a atenção para o invisível é perguntar-se pela aparência da outra face da coisa, desejar vê-la e realizar essa nova visão valendo-se do movimento. Husserl (1972) afirma: "a consciência vazia e as afecções que procedem dela são as condições de possibilidade de uma consciência de objeto plenamente dada e, portanto, intuitiva" (p. 205).

De volta a Coisa e espaço, é preciso destacar duas implicações do que dizíamos. Primeiramente, à incompletude interna do objeto corresponde uma incompletude externa. Da mesma maneira que apreendo a inteireza da coisa a despeito de me defrontar sempre apenas com faces dela, apreendo a sua presença quando de sua ausência em meu campo de visão. Se no decorrer dos movimentos corporais, do transcurso cinestésico, o objeto se encontra "desprovido de imagem representativa" (Husserl, 1989, p. 254), isso não nos leva a crer no seu desaparecimento, da mesma forma que, no tocante ao seu horizonte interno, diante da visão de uma de suas faces não o tomamos como algo cindido pela metade. Ademais, pode-se dizer que o campo de objetos exposto "é um campo de objetos em um 'mundo'" (p. 251), um campo de coisas mais próximas ou mais afastadas e que, no limite, nos levam a considerar um espaço infinito. O mundo se apresenta, no sentido da percepção, justamente como possibilidade sem fim de experiências. A segunda implicação refere-se ao jogo de figura e fundo na sua relação com o interesse e a satisfação. O círculo de dados perceptivos máximos, ou seja, saturados e determinantes em relação à coisa percebida, é movente. Tome-se a situação em que uma casa é considerada no que diz respeito à sua forma arquitetural, exemplo apresentado por Husserl. Procuramos as aparições em que ela pode ser dada da forma mais integral. Mas se o material de construção torna-se objeto de interesse, novas séries de aparição serão exigidas. Husserl (1989) afirma:

se alguma "indicação" na aparição que até aqui valia como completa lhe dá talvez uma nova direção, o círculo de aparições completamente suficientes se metamorfoseia em um círculo insuficiente, e, eventualmente, diferenças de aparição que antes não tinham consequência tornam-se, no presente, pertinentes (p. 159).

Com efeito, o que Husserl denomina "interesse" determina a visada e explicita a co-apreensão do Eu perceptivo, ou do corpo do Eu, em toda exposição perceptiva.

 

Tempo, corpo e subjetividade

De acordo com Husserl, a dinâmica de movimento dos perfis perceptivos articula-se em torno de uma unidade de sentido. Suas palavras são as seguintes: "[...] as exposições pertencentes a uma determinidade que aparece propriamente e fusionando essencialmente em uma continuidade são de parte a parte regidas por uma unidade de sentido contínua" (Husserl, 1989, p. 131, grifo nosso). Frente a qualquer diferencial de movimento, inicia-se o transcorrer de uma série de aparições que se organizam em torno de "uma certa teleologia" (Husserl, 1989, p. 232). Para nós, é importante esclarecer a natureza dessa indicação, posto ser possível dizer que as soluções clássicas para o problema da percepção, das quais Husserl pretende se afastar, trabalham com o ideário de uma teleologia da percepção subjetivamente orientada. Quer se trate de posturas intelectualistas, quer se trate de posturas materialistas e causalistas, representa-se a experiência perceptiva como algo distanciado do mundo, apartado dele e confinado numa dimensão subjetiva, tomada como conjunto de imagens e representações pensadas ou produzidas por associação de sensações e ideias, e destinadas a atribuir significado ao que está fora. Na descrição noemática da percepção, tal como desenvolvida por Husserl, essa "unidade de sentido contínua" funda-se, ao contrário, na integração da temporalidade e do movimento.

O tempo, enquanto dimensão constitutiva da percepção, fez-se presente em nossas análises precedentes. Isso porque a questão da temporalidade percorre as análises husserlianas da percepção. Em Coisa e espaço, o tempo aparece fundamentalmente de duas maneiras: como estrutura das sínteses de identificação dos perfis perceptivos e como possibilidade cineticamente motivada. Nas duas é difícil operar a distinção entre a duração e a série perceptiva cinética que a sustenta, ou seja, o movimento. No entrelaço do tempo e do movimento, tem-se uma figuração do sujeito corpóreo da percepção.

O tempo como estrutura das sínteses de identificação refere-se ao reconhecimento de que à essência de toda percepção pertence uma espécie de "encadeamento perceptivo" (Husserl, 1989, p. 86), ou de extensão. Cada fase da extensão transcendental, ou pré-empírica, da aparição contém momentos de sensação e de apreensão, aos quais correspondem a aparição própria e a aparição imprópria. A possibilidade de reunião na "unidade da identificação sintética" (Husserl, 1989, p. 89) define a essência da distinção dessas fases ou fragmentos abstratos da percepção. Cada uma delas "pertence à 'mesma' coisa", afirma Husserl (1989, p. 89). O elemento primordial aqui é a unidade contínua da percepção, ou "forma perceptiva temporal" (Husserl, 1989, p. 89), que corresponde à unidade de sentido indicada anteriormente. Na continuidade das fases aparece, de modo perceptivo, a temporalidade da coisa, ou seja, uma temporalidade fenomenal. "A coisa que aparece, inalterada ou não, dura, ela preenche um tempo", observa Husserl (1989, p. 91).

Segundo Lavigne (1989b), essa formulação referente à unidade contínua da percepção revela o momento noético da consciência como "a priori regulador da síntese passiva" (p. 458). Não estaríamos longe de uma espécie de subjetivação da percepção.

As análises relativas às motivações cinestésicas da unidade da multiplicidade de aparições colocam-nos, novamente, em contato com a dimensão afetiva da relação com o mundo. O aparecimento de algo se legitima em uma "série perceptiva cinética" (Husserl, 1989, p. 191). O acesso contínuo de diversas faces da coisa percebida à aparição depende do movimento da coisa mesma ou do nosso corpo, para contorná-la, para nos aproximarmos ou nos afastarmos dela. A coisa percebida e o nosso corpo podem, também, mover-se ao mesmo tempo. Interessa-nos o destaque que Husserl dá ao movimento do corpo próprio (Leib) e às alterações fenomenológicas atreladas à série de sensações de movimento. As sensações visuais e táteis não bastam para a constituição da espacialidade. Embora as sensações de movimento do corpo próprio não sejam elas mesmas expositivas no que diz respeito ao corpo (Körper) das coisas, elas tornam a exposição possível. Husserl utiliza o termo sensação cinestésica para se referir aos vividos relativos aos movimentos do sujeito perceptivo, dos seus olhos, da cabeça, das mãos, do corpo no espaço etc.

Atendo-se à percepção visual, Husserl (1989) afirma que toda alteração cinestésica (K) condiciona uma mudança da imagem visual (i). O filósofo sinaliza a co-pertença de um termo ao outro, embora enfatize a cinestesia como fator de motivação em relação às aparições. "Agora eu movo a cabeça e o corpo, o campo visual é preenchido diferentemente, voltei-me para outras coisas, e assim sempre para outras novamente", observa Husserl (1989, p. 216). As cinestesias configuram as circunstâncias dos perfis perceptivos, ou aparições, que, por sua vez, sustentam a consciência de unidade daquilo que aparece. Na série de imagens, uma reenvia à outra, e são perpassadas pela intenção de unidade. Essa intencionalidade é, portanto, motivada pelas circunstâncias cinestésicas. Husserl fala em componentes da aparição, o componente-i e o componente-K. "O componente-i fornece a 'intenção para', o componente-K a motivação desta intenção" (Husserl, 1989, p. 226). Nesse sistema, a continuidade de imagens no decurso temporal pré-empírico transcorre fusionada e em coincidência temporal junto a uma continuidade de circunstâncias cinestésicas.

Husserl enfatiza o fato de a unidade de aparições advir de uma multiplicidade de imagens possíveis, correspondente à multiplicidade de movimentos possíveis. Caso os movimentos corporais tomassem outra direção, as intenções motivadas e atualmente presentes seriam outras. Husserl extrai dessa constatação dois pressupostos. Primeiramente, faz parte da essência da apreensão a fundação da consciência: "se K fosse de tal e tal forma, então a aparição seria de tal e tal forma" (Husserl, 1989, p. 227). Em segundo lugar, compreende-se que "cada fase de apreensão contém em sua essência a relação a todas as possibilidades" (Husserl, 1989, p. 227). Na multiplicidade de transcursos cinestésicos e de imagens, a mesma coisa está lá continuamente, o que caracteriza a exposição por perfis, na medida em que cada exposição "visa mais do que ela expõe" (Husserl, 1989, p. 234).

Vale insistir na caracterização desse excesso da aparição como elemento de motivação dos movimentos corporais, tal como indicado quando falávamos do horizonte interno e externo da coisa percebida. Husserl (1989) caminha nessa direção ao observar que as partes ocultas de um objeto reenviam a decursos cinestésicos possíveis e às percepções legitimadoras a eles atreladas, isso na medida em que se verifica um privilégio do dado explícito da coisa, que, ao mesmo tempo, se revela como "privilégio do interesse" (Husserl, 1989, p. 235). Em Filosofia primeira, cumpre reforçar, essa dinâmica é descrita por Husserl (1972) mediante o recurso à ideia do "desejo" (p. 204) de olhar a coisa sob sua outra face e da afecção intencional do eu a partir do campo de objetos e perfis possíveis no espaço. Essa dimensão afetiva da percepção integra-se ao movimento. Em suas Meditações cartesianas, Husserl (1931/2001) refere-se ao horizonte intencional aberto em cada percepção exterior, dado que os lados percebidos de um objeto remetem aos perfis apenas antecipados de "forma não intuitiva como aspectos 'a vir' na percepção" (p. 82). Essa antecipação é caracterizada em termos eminentemente motores. A essas possibilidades, afirma Husserl (1931/2001), se mistura "um 'eu posso' e um 'eu ajo', um 'eu posso agir diferentemente de como ajo de fato'" (p. 83).

 

Considerações finais

Vimos que Husserl se orienta pelo problema da teoria do conhecimento e, em termos mais gerais, por indagações acerca da possibilidade da experiência. Em Coisa e espaço, trata-se de realizar investigações fenomenológicas da percepção, na medida em que a experiência perceptiva é tomada como parte fundamental de uma fenomenologia da experiência. O objetivo específico de Husserl é o de caracterizar a objetidade própria à percepção, seu modo particular de visar algo. Essa objetidade é logo relacionada à presença "em carne e osso" (Husserl, 1989, p. 36) da coisa percebida. Detivemo-nos no polo descritivo dos estudos de Husserl sobre a percepção e acompanhamos o desenrolar de uma estrutura conceitual que destaca o inacabamento da experiência perceptiva. A objetidade perceptiva é referida como unidade na mudança, como devir contínuo. A unilateralidade da percepção implica que a coisa se mostre sempre na aparição, ou no perfil perceptivo. A identidade do objeto percebido, nessa disposição, faz-se na continuidade e na multiplicidade dos perfis percebidos. Essa dinâmica se engendra em meio a uma lógica em que o inacabamento do mundo percebido reclama a atividade perceptiva na mesma medida em que esta se depara com a ambiguidade das coisas. O eixo dessa dinâmica se integra na temporalidade e no movimento do sujeito perceptivo.

Deparamo-nos com uma dimensão afetiva da estrutura antecipadora da percepção. A intencionalidade corresponderia não a uma via de mão única, mas a um campo de tendências opostas no qual se inclui a percepção como resposta ao chamado das coisas mundanas. A percepção não pode, nesses termos, ser considerada como abertura a um espetáculo à distância. O sujeito configura-se como sujeito carnal presente no mundo (Barbaras, 2006; Montavont, 1999). Vê-se que o perfil perceptivo apenas adquire potencial teórico face a um sujeito corpóreo susceptível de ir ao encontro das coisas pelo movimento. Pode-se, então, indagar se a unidade de sentido que articula os perfis perceptivos poderia depender de uma síntese temporal anterior à unidade do próprio corpo (Franck, 1981). As pesquisas de Husserl (1989) sobre a percepção parecem exigir investigações sobre o corpo próprio.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Danilo Saretta Verissimo
danilo.verissimo@gmail.com

Submetido em: 05/01/2015
Revisto em: 13/03/2015
Aceito em: 19/03/2015

 

 

* Texto referido à pesquisa realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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