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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.68 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2016

 

ARTIGOS

 

A deformação do conceito de sexualidade: o percurso epistemológico freudiano

 

The deformation of the concept of sexuality: Freud's epistemological route

 

La deformación del concepto de sexualidad: ruta epistemológica de Freud

 

 

Tiago Iwasawa Neves

Docente. Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Campina Grande. Estado da Paraíba. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo discute o trabalho de construção do conceito de sexualidade nos anos iniciais da obra freudiana. A partir do conceito de deformação, fundamental na epistemologia histórica de Bachelard, verifica-se momentos de descobertas e impasses, tanto na teoria quanto na clínica inventada por Freud. Ao contrário de uma perspectiva evolucionista e continuísta do espírito, o percurso epistêmico esboçado por Freud rumo à formalização da etiologia das neuroses não sugere outra coisa senão a lógica da deformação dos conceitos, dos erros retificados e a assunção de hipóteses cada vez mais refinadas. São mudanças de posição que produzem novos problemas, ou seja, características da formação de um conhecimento compatível com a lógica científica proposta por Bachelard.

Palavras-chave: Sexualidade; Deformação; Epistemologia; Freud; Bachelard.


ABSTRACT

The article discusses the construction of the concept of sexuality in the early years of Freud's work. From the concept of deformation, fundamental concept in historical epistemology of Gaston Bachelard, we find moments of discoveries and dilemmas, both in theory and in clinical invented by Freud. Unlike an evolutionary perspective and continuationist spirit, the epistemic route outlined by Freud toward the formalization of the etiology of neurosis does not suggest anything other than the logic of the deformation of concepts, errors rectified and the assumption of increasingly refined hypotheses. Are changes in positions that produce new problems, in other words, characteristics of formation knowledge compatible with the scientific logic proposed by Bachelard.

Keywords: Sexuality; Deformation; Epistemology; Freud; Bachelard.


RESUMEN

El artículo aborda la construcción del concepto de la sexualidad en los primeros años de la obra de Freud. Desde el concepto de deformación, fundamental en la epistemología histórica de Gastón Bachelard, encontramos momentos de descubrimientos y dilemas, tanto en teoría como en la clínica inventado por Freud. A diferencia de una perspectiva evolutiva y el espíritu continuationist, la ruta epistémica descrito por Freud hacia la formalización de la etiología de las neurosis no sugiere que no sea la lógica de la deformación de los conceptos, los errores rectificados y la asunción de hipótesis cada vez más refinados. Son los cambios en las posiciones que producen nuevos problemas, es decir, las características de formación del conocimiento acordes con la lógica científica propuesta por Bachelard.

Palabras clave: Sexualidad; Deformácion; Epistemología; Freud; Bachelard.


 

 

Introdução

O tema da sexualidade é fundamental para a psicanálise desde seus primórdios, fato esse comprovado pela constante ênfase de Freud sobre a participação da sexualidade nas questões psíquicas, especificamente na etiologia das neuroses. Mais do que afirmar uma atividade sexual na tenra infância, Freud (1905/1969i) demonstra que o interesse da psicanálise pelo campo da sexualidade diz respeito a uma falta de orientação relativa à satisfação pulsional. A raiz da etiologia neurótica estaria, assim, no terreno da dinâmica e da economia libidinal do sujeito. Porém, essa orientação clínica só se formula a partir do trabalho conceitual que Freud promove nesse campo. Somente a partir dos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (Freud, 1905/1969i) ele propõe uma nova perspectiva em relação à sexualidade. Esta diz respeito ao conceito de pulsão, definida nos ensaios a partir de dois eixos centrais: 1) as pulsões são independentes do objeto; 2) a satisfação pulsional não é a necessidade biológica.

Não custa nada lembrar que à medida que Freud (1893/1969a; 1894/1969b) avança com sua tese de que o trauma psíquico é o determinante da neurose, o relato de seus pacientes na clínica o leva a concluir que a experiência traumática que condiciona o aparecimento de um sintoma neurótico é de caráter sexual. Um primeiro ponto que não podemos perder de vista é que Freud não objetiva a busca de uma etiologia sexual para as neuroses, mas sim que o tema da sexualidade torna-se fundamental em seu pensamento em função de sua prática clínica. É ele próprio quem afirma, em 1896, o risco de se levantar a hipótese da etiologia sexual das neuroses: "Ao fazer isso, certamente chegamos ao período da mais precoce infância, período anterior ao desenvolvimento da vida sexual; e isso pareceria envolver o abandono de uma etiologia sexual" (Freud, 1896/1969d, pp. 228-229).

A hipótese de que a pesquisa etiológica das neuroses deveria se concentrar na sexualidade começa a ganhar terreno a partir do momento em que a busca pelo trauma inicial faz com que o relato dos pacientes avance cada vez mais para a tenra infância. O trauma psíquico corresponderia a uma experiência sexual infantil. O relato dessas experiências sexuais infantis coloca Freud diante de uma confissão "cujo nome é sedução, trauma, mau encontro" (Cottet, 1989, p. 29). Cottet (1989) sublinha que, nessa época, Freud caminhou em busca da "revelação de um segredo" (p. 29) por parte da histérica. A cena traumática é algo que o paciente desconhece e ignora e, por essa razão, o método catártico objetiva exclusivamente a revelação da experiência recalcada. Assim, o objetivo terapêutico só pode ser fazer com que o inconsciente se torne consciente.

A aposta teórica inicial é a teoria da sedução traumática, elaborada nos anos 1895 e 1896 com o objetivo de estabelecer uma etiologia específica para as neuroses, levando em conta a sexualidade. Ao formular essa teoria, Freud está seguro quanto à sua hipótese da defesa: a neurose é resultado de um mecanismo defensivo contra a sexualidade. As ideias que sofrem a ação do recalcamento são de caráter sexual. A questão é a seguinte: por que a sexualidade seria vivida como um trauma? De que forma Freud propõe a articulação destes termos: sexualidade, trauma e recalcamento?

A teoria da sedução traumática entra em cena com o propósito de estabelecer essa articulação. Entretanto, logo é abandonada por Freud (1898/1969f), quando ele entra em contato com as fantasia inconsciente dos pacientes. A partir de então, uma retificação teórica é necessária, fazendo com que o modo de tratamento dos pacientes também sofra mudanças. Cottet (1989) aponta essa ruptura afirmando que, enquanto o método catártico e a técnica do "interrogatório" e da "pressão na testa" se prendem à revelação da cena traumática, a clínica psicanalítica se funda com a superação desse modelo. Com a introdução da técnica da associação-livre, o analista não mais busca o relato da cena traumática como sendo a chave que libertaria o sujeito de todos os recalques. Trata-se, a partir da descoberta da fantasia e da sexualidade infantil, de interpretar o sentido sexual oculto dos sonhos e dos sintomas. E, além disso, a partir dessa deformação conceitual empreendida por Freud, a teoria da sexualidade ganha novos contornos: a passividade sexual da criança, articulada segundo uma sexualidade genital adulta, é modificada para uma atividade sexual infantil perverso-polimorfa.

Dessa forma, verifica-se que o tema da sexualidade esteve sujeito a deformações e retificações teóricas ao longo do período de fundação da psicanálise. Segundo o epistemólogo francês Bachelard (1996) a riqueza e fecundidade de um conceito científico mede-se por sua potência de deformação, isto é, pela capacidade de modificação dos conceitos a partir do momento que a prática avança e alcança outros limites. Resumidamente, a epistemologia desse autor afirma que o progresso científico só se efetiva a partir do momento em que o trabalho de retificação e deformação conceitual condiciona a modificação da experiência objetiva. Dessa forma, a ciência se torna cada vez mais refinada ao retificar seus erros, ao deformar seus impasses, alterando, por consequência, a natureza de seu objeto. Ora, não é isso que vemos acontecer nos anos de fundação da psicanálise? É no nível do trabalho freudiano de deformação do conceito de sexualidade que devemos articular as mudaças na estruturação da experiência clínica psicanalítica.

Neste artigo trataremos dessas deformações relativas ao conceito de sexualidade, avaliando as consequências que Freud extrai delas para a fundação da psicanálise. Partiremos da teoria da sedução traumática, uma vez que ela foi a primeira tentativa de articulação da sexualidade com os mecanismos que regem o funcionamento do aparelho psíquico. Em seguida, analisaremos os motivos que levaram Freud (1986b) a abandonar sua "Neurotica" (p. 256) em benefício da teoria da fantasia. No final pretendemos demonstrar como todo esse trabalho de deformação da sexualidade no contexto psicanalítico atinge seu grau mais elevado de sistematização em 1905 com os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1969i).

Consequentemente, a intenção deste artigo é demonstrar que o ato de conhecer dá-se contra conhecimentos já bem estabelecidos, que a perspectiva de erros retificados é o que precisamente caracteriza o Espírito Científico no pensamento de Bachelard. Logo, acreditamos que o pensamento freudiano é síncrono à epistemologia bachelardiana, pois a centenária divisão entre a teoria e sua aplicação "ignorava esta necessidade de incorporar as condições de aplicação na própria essência da teoria. Um conceito torna-se científico na proporção em que se torna técnico, em que está acompanhado de uma técnica de realização" (Bachelard, 1996, p. 76). Acreditamos que o percurso de fundação da psicanálise segue uma lógica compatível com a epistemologia de Bachelard, segundo a qual a ciência nunca nasce pronta e são as deformações e retificações de ideias e noções que permitem a produção de conceitos, e podem orientar uma ação prática. Contudo, é preciso dizer que este artigo não propõe a aplicação de um conceito bachelardiano à obra freudiana, mas sim, a demonstração da existência de uma postura epistemológica em Freud que se mostra compatível com o pensamento de Bachelard.

 

A teoria da sedução traumática

Na Parte II do Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1895/1969c), intitulada Psicopatologia, Freud procura sustentar a tese de que o mecanismo psicopatológico que atua na produção dos sintomas da histeria ocorre devido às representações excessivamente intensas, as quais trazem como efeito o que chamou, na época, de compulsão histérica. Com base nos conceitos forjados de seu mecanismo neuronal, Freud (1895/1969c) afirma que essas ideias excessivamente intensas das quais sofrem seus pacientes histéricos são de natureza sexual. A tese que sustenta essa afirmação foi a seguinte: para cada pensamento compulsório na histeria, teríamos uma representação sexual recalcada (Freud, 1895/1969c, p. 460). Portanto, a hipótese fundamental é que a compulsão histérica resulta de uma defesa psíquica patológica, cuja ação deve incidir sobre as ideias de natureza sexual. A questão que se coloca para Freud é a seguinte: por que a lembrança de uma cena já vivida teria o poder de causar efeitos patológicos, no presente, sobre o sujeito? Ou ainda, como podemos pensar a articulação entre o recalque e o trauma sexual, este último sendo cada vez mais localizado na tenra infância? E por fim, como se dão as primeiras deformações sofridas pelo conceito de recalque, que começa a substituir a noção de defesa como uma regra biológica? Foi a partir do clássico exemplo de Emma e das idéias articuladas em Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa (Freud, 1896/1969e) e no Rascunho K (Freud, 1986a), este último dirigido à Fliess, que Freud propõe sua teoria da sedução traumática como resposta aos questionamentos elencados acima. Tomaremos, em seguida, o exemplo de Emma, extraído da Parte II do Projeto (Freud, 1895/1969c), como orientação para nossa discussão sobre a teoria da sedução traumática.

O sintoma que Emma traz para a análise é o fato de não entrar sozinha em lojas. Ela situa o começo do sintoma à época dos doze anos - pouco antes da puberdade, tal como relata Freud - quando entra em uma loja de roupas e, percebendo que os vendedores davam risada, foge em pânico. Freud afirma que, além de imaginar que os vendedores riam de sua roupa, Emma confessa que sentira atração sexual por um dos vendedores. Além disso, Freud acrescenta que esses fragmentos de lembrança não são suficientes para explicar tanto o caráter compulsivo quanto a determinação do sintoma histérico, a recusa de entrar sozinha em lojas. No entanto, durante o tratamento, Emma relata outra cena. Quando tinha oito anos de idade, foi a uma confeitaria, sendo que o proprietário "agarrou-lhe as partes genitais por cima da roupa. Apesar disso, voltou lá de novo e agora se recrimina por esta segunda vez [...]" (Freud, 1895/1969c, p. 465). É interessante notarmos que a cena remetida aos oito anos irá adquirir seu valor traumático em função de outra cena que acontece quatro anos mais tarde. O gesto do confeiteiro será sexualizado só-depois.

Podemos destacar dessa passagem do Projeto (Freud, 1895/1969c) dois pontos de suma importância, os quais deformam teses centrais dos Estudos sobre a histeria (Freud, 1893/1969a). Em primeiro lugar, podemos questionar qual o sentido da experiência traumática na teoria da sedução. Ora, a partir da explicação que Freud propõe, podemos concluir que a cena traumática não possui a qualidade de ser traumática por si mesma. O efeito traumático de uma experiência se torna inteligível só-depois, em função de uma repetição. No exemplo supracitado, essa repetição se dá em função de dois elementos. O sorriso irônico do confeiteiro é inconscientemente evocado pelo riso dos vendedores da loja, e o significante 'roupas' é comum, conscientemente, nas duas cenas. Assim, o trauma só aparece em função da segunda lembrança. Isso quer dizer que Freud (1895/1969c) relaciona o trauma não a uma experiência real, mas sim a uma lembrança. A repetição de uma cena análoga - no exemplo de Emma, a experiência com os vendedores na loja - faz com que a lembrança da cena ocorrida aos oito anos de idade seja evocada. E, pelo fato dessa lembrança gerar desprazer ao Eu quando evocada, ela é recalcada. Com efeito, é só a partir da repetição que uma excitação sexual, que não está lá desde sempre, aparece em forma de angústia com a lembrança da cena ocorrida aos oito anos. O fato de Emma se recriminar só-depois da cena com o confeiteiro demonstra isso claramente. "Ora, esse caso é típico do recalque que se manifesta na histeria. Sempre se comprova que a lembrança fica recalcada apenas quando se torna um trauma por ação retardada" (Freud, 1895/1969c, p. 468). A moléstia da qual Emma é vítima do confeiteiro - Cena II - torna-se traumática ao ser lembrada. A famosa fórmula da Comunicação Preliminar (Freud, 1893/1969a) "os histéricos sofrem de reminiscências" (p. 37) pode ser então retificada, levando-se em consideração uma primeira noção de um conceito que não estava presente em 1893, a saber, o conceito de recalcamento. A situação traumática que apareceu na Comunicação Preliminar somente como um possível agente provocadordos sintomas na histeria, foi deformada com a teoria da sedução traumática. O trauma psíquico é fruto de um efeito retroativo do recalcamento. É por essa razão que Freud (1898/1969f) afirma em A sexualidade na etiologia das neuroses que as experiências sexuais da infância possuem uma tendência de se tornarem patogênicas por um efeito adiado. No momento em que essas experiências de fato ocorrem, o efeito é apenas leve, vindo à tona somente em períodos posteriores de maturação sexual.

Assim, o recalque e a formação de sintomas só ocorrerão posteriormente, uma vez que a imaturidade sexual das crianças não possibilitaria ao psiquismo uma atividade, mas somente uma passividade, caracterizada por uma lacuna psíquica. Essas conclusões, extraídas a partir do Rascunho K (Freud, 1986a) que levam Freud a concluir que o sintoma neurótico é efeito de uma experiência sexual traumática vivida na infância, antes mesmo da puberdade, e que esse trauma sexual estaria vinculado a uma sedução sofrida pelo paciente neurótico. A passividade sexual durante o período infantil, que Freud nesse texto nomeia de pré-sexual, seria, assim, o determinante específico da histeria. O recalcamento e os sintomas serão o efeito posterior dessa primeira experiência de desprazer que, para Freud, ligava-se a uma sedução de alguma pessoa já sexualmente madura, ou seja, uma violação sexual da criança por parte do adulto.

Com efeito, podemos apontar, a partir dessa discussão, outra deformação conceitual importante. A causa da histeria não seria mais, portanto, algum evento ligado à vida sexual do sujeito, que poderia ocorrer em qualquer época, e cuja liberação e supressão do afeto aflitivo poderiam levar o sujeito a uma patologia psíquica. Podemos ainda concluir que a teoria da sedução traumática encerra em si uma trama psíquica, cujo efeito se dá em função de uma lembrança recalcada que age como um trauma. O fato de o trauma sexual aparecer somente em função de uma retroação - ou seja, de uma resignificação de uma suposta experiência de sedução "pré-sexual" vivida na infância -, demonstra perfeitamente que a teoria da sedução traumática, apesar de ter sido abandonada, não se refere a um realismo traumático ingênuo de Freud. Mezan (2003) aponta que o recurso à teoria da sedução, especialmente a ênfase dada à irritação real dos genitais, é uma saída para Freud explicar o "afloramento da sexualidade no período pré-puberal" (p. 39). Toda e qualquer manifestação da sexualidade anterior ao período de maturação sexual deveria estar condicionada a uma experiência de sedução prévia. A criança, ainda privada de uma maturação biológica que estabelece a genitalidade a serviço da reprodução, entraria em contato com a sexualidade a partir de uma experiência passiva. Dessa forma, sedução e passividade sexual formam, sobre o modelo da sexualidade adulta, um par.

A perspectiva da sexualidade condicionada a uma experiência de desprazer, no momento em que ocorre a violação sexual ou no momento de sua recordação, não se firma por muito tempo na teoria freudiana. Freud constata, a partir da descoberta das fantasias inconscientes de seus pacientes, que a maioria das recordações sexuais produzem prazer e não desprazer. Assim, a hipótese da puberdade retardada e a explicação do recalcamento a partir dela se tornam insustentáveis, uma vez que o aumento da tensão sexual no período da puberdade não explica o prazer envolvido nestas recordações. Existe aí uma grave contradição: o prazer envolve uma diminuição da tensão e não um aumento. Além disso, a imaturidade sexual da criança no momento da sedução passa a ser incompatível com o prazer produzido pelo investimento em recordações da esfera sexual. Então, um impasse se coloca: ou o trauma geraria prazer, o que é absurdo na perspectiva do Princípio do Prazer, ou a recordação do trauma também acabaria por gerar prazer, o que é, na visão de Freud, igualmente absurdo. A descoberta da fantasia leva Freud a deformar sua hipótese de trabalho: o material recalcado são os impulsos sexuais infantis, e não mais as recordações da cena de sedução.

Quando Freud começa a notar que os impulsos sexuais da criança encontram na trama familiar a condição de um recalcamento precoce, tem-se o início do trabalho de deformação sobre a natureza desses impulsos sexuais que se manifestam já na infância, que culminará na formalização do conceito de pulsão em 1905 (Freud, 1905/1969i). Ora, se as fantasias sexuais infantis são a causa das cenas de sedução, a realidade psíquica é, consequentemente, de outra ordem, diversa da realidade dos fatos. E mais, se Freud conclui que as recordações do trauma sexual são acompanhadas de prazer e não de desprazer, a teoria da sedução começa a perder o sentido. A descoberta da fantasia e dos impulsos sexuais infantis leva Freud a deformar a teoria das neuroses retificando, por outro lado, as teses sobre a sexualidade. Segundo a fórmula do Rascunho K (Freud, 1986a), a experiência sexual traumática da infância não poderia nunca ser acompanhada de prazer, mas somente de desprazer.

 

Fantasias inconscientes e realidade psíquica

Na decisiva Carta 69 de 21/09/1897, Freud (1986b) revela à Fliess estar orgulhoso por ter colocado em questão sua Neurotica (teoria das neuroses). Freud enumera quatro motivos para essa sua descrença recheada de orgulho. O primeiro motivo, afirma, se refere ao constante fracasso na tentativa de conduzir as análises a uma "verdadeira conclusão" (p. 257). Em 1897 a resolução de uma neurose consiste na remoção de todos os sintomas apresentados pelo paciente, objetivando ao máximo evitar o surgimento de outros no lugar destes. Com a teoria da sedução traumática, o objetivo terapêutico torna-se mais consistente. O sucesso do tratamento está condicionado a um esforço do "analista" na superação das resistências impostas pelos pacientes, até atingir o trauma da sedução. É preciso dizer que essas resistências emergem no decorrer do tratamento à medida que os segredos da vida sexual do paciente são desvendados. A partir daí, duas situações clínicas são possíveis: ou a recordação da cena do trauma se reproduz ou não. No segundo caso, sabemos que Freud atribui as causas do fracasso às resistências dos pacientes, o que na época chamou de amnésia do trauma. No primeiro caso, ao contrário do que Freud imagina, a reprodução da cena pelo paciente também se encerra no fracasso: a análise não se conclui, ou seja, os sintomas permanecem.

O segundo motivo não é uma novidade, pois como apontou Mezan (2003), esse argumento fora levantado diversas vezes contra a teoria da sedução. Refere-se ao fato da obrigação de se atribuir atos perversos aos adultos em todos os casos de neurose. Dois argumentos são lançados contra essa tese da teoria da sedução. Em primeiro lugar, a perversão deveria ter uma incidência maior que a histeria, o que não se verifica na prática. Em segundo, Freud não acredita ser muito provável que os traços de perversão adulta possam ser generalizados. Com a descoberta da fantasia, podemos concluir que a relação se inverte: a existência de fantasias sexuais inconscientes é que surge como um fenômeno comum nos indivíduos normais, e mais notadamente nos neuróticos.

Já o terceiro motivo merece destaque em nossa análise. Freud sugeriu de maneira segura que no inconsciente não há indicação alguma de realidade. Segundo Freud, "não se pode distinguir entre a verdade e a ficção que foram investidas pelo afeto. (Por conseguinte, restaria a solução de que a fantasia sexual se prende invariavelmente ao tema dos pais)" (1897/1986b, p. 265-266). Portanto, segundo Freud, os sentimentos edipianos aparecem já na primeira infância, sendo que estes, necessariamente, devem sucumbir ao recalque, muito embora a explicação para esse mecanismo não apareça nessa carta. Por outro lado, Freud pode concluir que as resistências de seus pacientes são motivadas pelo recalcamento: tanto na hesitação em revelar conteúdos perturbadores, quanto no sentido de relatar as fantasias das quais o implicado na cena seria o paciente.

Em Lembranças encobridoras (1899/1969g) Freud, logo no início do artigo, assinala a frequência com que os casos de histeria e neurose obsessiva revelam recordações fragmentadas dos primeiros anos de vida. Esses fragmentos de lembrança ligados à infância assumem, no relato de seus pacientes, uma característica oposta à sua expectativa. Segundo Freud, sua expectativa é de que as lembranças infantis se relacionem a fatos que tenham despertado "alguma emoção poderosa ou que, devido as suas consequências, fossem reconhecidas como importantes logo após sua ocorrência" (Freud, 1899/1969g, p. 335). Porém, o fato que chama atenção de Freud é exatamente o oposto. Em muitos de seus pacientes, as lembranças infantis se referem a coisas cotidianas e indiferentes que não poderiam produzir qualquer efeito emocional, mesmo tratando-se de crianças.

Desse modo, a questão que se coloca para Freud é a seguinte: por que se recordar de algo sem importância, deixando de lado o que realmente importaria? Freud afirma que não se trata de uma incompletude da lembrança: a experiência não é esquecida, mas antes, omitida. Logo, a pergunta que formula é a seguinte: qual o mecanismo do processo que suprime o que é importante de uma experiência infantil, substituindo por algo trivial para o sujeito? É a partir dessa questão que a noção de defesa psíquica - recalque - de efeito conciliatório irá surgir. A imagem mnêmica evocada pelo sujeito na análise não é a própria experiência, que Freud afirma ser a relevante. A explicação é a seguinte: duas forças contrárias produzem a lembrança enigmática. "Uma dessas forças baseia-se na importância da experiência como motivo para procurar lembrá-la, enquanto a outra força - a resistência - tenta impedir que tal preferência seja mostrada" (Freud, 1899/1969g, p. 337). O resultado deste conflito é que, em vez de a imagem mnêmica correspondente ao evento, produz-se outra, por associação de deslocamento. O interessante é notarmos que logo em seguida Freud afirma que essa operação - conflito, recalque e substituição envolvendo conciliação - fornece as condições para se pensar a lógica de formação dos sonhos e dos sintomas neuróticos. As lembranças enigmáticas que aparecem em função do resultado conciliatório de duas forças - a que supomos ser o recalcamento, de um lado, e já uma primitiva noção da pulsão sexual, de outro - seriam lembranças encobridoras que visam dar um disfarce florido a uma cena infantil, isto é, a uma fantasia infantil inconsciente.

Esta discussão a partir do artigo Lembranças encobridoras é importante porque o que chama atenção na lembrança encobridora não é o seu conteúdo. A realidade psíquica, então, não se produz de forma fiel segundo a realidade dos fatos. Mas, ao contrário, Freud constata que a memória é enganosa, pelo fato de ser um efeito de uma trama psíquica que visa uma conciliação de forças. Essa ideia será mais uma vez deformada em A Interpretação dos Sonhos (1900/1969h), quando Freud postula como hipótese fundamental a distinção entre os conteúdos manifesto e latente dos sonhos. Com efeito, em função desta descoberta, podemos concluir que a identidade entre a realidade psíquica e a realidade dos fatos é ilusória.

E, por fim, o quarto motivo do abandono da teoria da sedução traumática. Freud afirma que nos casos de psicose verifica-se que a lembrança inconsciente não vem à tona, isto é, a cena da sedução não é revelada pelos pacientes psicóticos nem mesmo no mais absurdo delírio. Novamente, podemos estabelecer duas possibilidades: ou o inconsciente desses pacientes psicóticos, mesmo depois do mais minucioso levantamento das resistências, permanece inacessível, ou as cenas de sedução nunca ocorreram. A primeira, Freud a descarta de saída, uma vez que a psicanálise "se propunha precisamente a desfazer as resistências para trazer à luz os núcleos patogêncios; ora, se mesmo em regime de delírio o núcleo fundamental jamais pudesse ser evocado, com muito menos razão o seria no curso da terapia freudiana" (Mezan, 2003, p. 67). Portanto, se resta a Freud somente a segunda possibilidade, a única solução possível seria deformar a teoria da sedução traumática.

A cena da violação sexual da qual a criança é vítima assenta-se, segundo a teoria da sedução traumática, em uma experiência vivida efetivamente. Freud, ao desconsiderar a dimensão fantasmática do psiquismo, não pode, de forma alguma, deixar de lado a irritação real dos órgãos genitais como garantia da sexualidade precoce das crianças. A experiência sexual traumática da infância não é, de fato, uma experiência real, mas antes, uma realidade psíquica cuja trama é tecida com a participação de fantasias inconscientes. Portanto, o abandono da teoria da sedução traumática significa, em última análise, a retirada da ênfase dada ao trauma sexual como uma experiência real, passiva e desprazerosa. A descoberta da tragédia edipiana e seus enlaces com a sexualidade infantil - os impulsos sexuais infantis - também condenam a teoria da sedução ao fracasso.

 

A sexualidade infantil

Renato Mezan (2003), a partir da Carta 75 (Freud, 1986c) e da explicação dada por Freud para o recalcamento, aponta algumas deformações teóricas importantes. Em primeiro lugar, nota-se que a sexualidade aparece pela primeira vez desvinculada dos órgãos genitais - tese fundamental da teoria da sedução. "Abandonada a teoria da sedução e dado o conteúdo das fantasias recalcadas, os orifícios do trato digestivo começam a ser pensados como produtores de sensações análogas às sexuais" (Mezan, 2003, p. 70). Essa deformação implica, por um lado, que a sexualidade seja sentida como prazerosa e, por outro, aponta para uma atividade sexual nos primeiros anos de vida. Sem dúvida, dois duros golpes na teoria da sedução traumática.

Em segundo, uma deformação importante do conceito de recalque: o recalcamento está vinculado ao abandono das antigas zonas erógenas, boca e ânus. É o efeito do recalcamento que impede essas zonas de serem, no período posterior de um desenvolvimento das organizações libidinais, fontes de prazer. Vimos que na teoria da sedução traumática o desprazer estava vinculado a dois acontecimentos: o primeiro é a sedução, o segundo, outro análogo sentido como desprazer, devido ao advento da puberdade. Portanto, o desprazer sentido pelo sujeito está vinculado à lembrança da primeira cena de sedução que se tornou traumática, isto é, recalcada, só-depois, em função do segundo acontecimento. Mas na Carta 75 (Freud, 1986c) o desprazer não tem como causa um segundo acontecimento análogo ao primeiro. Ao contrário, ele é provocado pela repugnância vinculada às fezes ou aos produtos da boca. Isso significa que as atividades sexuais infantis, que nesse momento ainda não se encontra definida por Freud, foram vividas com prazer a partir das zonas erógenas abandonadas. Assim, a primeira consequência que podemos apontar é que o advento tardio da puberdade não serve mais de explicação para o recalque.

Se, com essa carta, o golpe recebido pela teoria da sedução traumática já havia sido violento, em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1969h) ele foi fatal. Freud (Freud, 1900/1969h) definiu o recalque em 1900 como sendo a barreira que impede as representações investidas libidinalmente de se tornarem conscientes. Ora, a partir de então o recalque não mais significa uma mera astúcia do Eu, muito menos a substituição de uma representação por outra. No inconsciente, essas representações investidas libidinalmente irão provocar desprazer caso se aproximem da consciência. Por essa razão, a formação substituta, o sintoma, definido como o retorno do recalcado, aparece disfarçada com o objetivo de evitar o desprazer que a representação causaria.

Dessa forma, a importância da etiologia sexual na formação dos sintomas neuróticos deveria ser revista, uma vez que a atividade sexual no período da infância precisava ser definida com urgência. Caso contrário, o conceito de recalque corria sérios riscos de não ser operativo. Em 1905, Freud publica a primeira edição dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1969i). Sabemos que o principal conceito produzido a partir dessa obra foi o de pulsão. A definição de pulsão nesse texto de 1905 é muito próxima da noção de estimulação endógena elaborada no Projeto (Freud, 1895/1969c): uma quantidade interna contínua de Q que exige um trabalho psíquico, uma vez que diante dela não é possível a fuga, como acontece no caso dos estímulos vindos de fora. Essa é, portanto, uma primeira especificidade do conceito elaborado por Freud. Uma segunda especificidade do conceito de pulsão é comentada com precisão por Laplanche. Em Freud e a sexualidade, Laplanche (1997) afirma que o abandono em 1897 da teoria da sedução traumática trouxe o risco, ainda hoje eminente, de um desvio da noção psicanalítica de sexualidade, especificamente o que ele chamou de "biologismo da pulsão sexual" (p. 10), ou ainda "o desvio biologizante" (p. 11) da teoria sexual freudiana. Segundo Laplanche, esse risco de degradação conceitual da noção psicanalítica de sexualidade possui um nome: instinto. A tese laplancheana é de que o termo utilizado por Freud, em alemão Trieb, serviu para deformar definitivamente a noção de Instinkt, pelo menos em três pontos fundamentais. O uso do termo Instinkt nos indica que: 1) trata-se de uma finalidade vital biológica bem demarcada, como por exemplo, evitar o perigo; 2) caracteriza-se pelo seu caráter de invariância (fixado) de indivíduo para indivíduo; 3) é adquirido pelo indivíduo de maneira inata.

Ora, ao propor o termo Trieb, Freud (1905/1969i) é constantemente contra a possibilidade de reduzir a pulsão ao instinto. Para exemplificar o que acabamos de afirmar, basta estarmos atentos ao início dos Três Ensaios que começa com uma forte oposição de Freud à opinião popular acerca da sexualidade. Segundo ele, a psicanálise irá discordar basicamente de três pontos fundamentais: a época de surgimento da pulsão sexual, a natureza heterossexual predeterminada do objeto e a limitação da finalidade sexual à copulação. Em função da deformação desses três pontos levantados logo no início do primeiro ensaio esse texto freudiano demarcou de maneira precisa o conceito de sexualidade na teoria psicanalítica.

O primeiro argumento levantado contra essas três opiniões populares é a questão das perversões sexuais. De acordo com Freud, existem duas formas de perversões sexuais: uma em relação ao objeto da pulsão sexual, outra em relação ao alvo da pulsão sexual. O desvio em relação ao objeto sexual é exemplificado pelo fenômeno da homossexualidade. Os homossexuais partem para uma escolha invertida do objeto sexual que não pode ser explicada por uma degenerescência nervosa, tampouco pelo caráter adquirido. Freud constata que os homossexuais não apresentam qualquer tipo de déficit mental e que, ainda, vários sujeitos podem ser expostos às influências sexuais (sedução e masturbação, por exemplo) sem se tornarem homossexuais. Dessa forma, na opinião de Freud (1905/1969i) é grosseira a ideia de que todos os homens nascem com a pulsão sexual ligada a um objeto a priori. "Há homens cujo objeto sexual é outro homem e não uma mulher, e mulheres cujo objeto sexual é outra mulher e não um homem" (Freud, 1905/1969i, p. 129). A escolha de objeto não é, portanto, um problema ligado a fatores hereditários ou mesmo ocasionais. O objeto será aquilo que há de mais variável na pulsão sexual. Ora, se há escolha, é porque não há objeto originário. Assim, Freud afirma ser provável que a pulsão sexual seja independente de seu objeto, porém pouco provável que sua origem seja determinada pelos atrativos de seu objeto. A escolha de objeto sexual popularmente aceita como normal, ou seja, heterossexual, deixa de receber o status de uma escolha de objeto predeterminada. O objeto pelo qual a pulsão consegue obter satisfação é um objeto contingente. Com efeito, a ideia de um instinto sexual que se fixa a um objeto sexual é absurda para a psicanálise em seu tratamento clínico.

Quanto aos desvios do alvo da pulsão sexual, Freud apontou duas modalidades: as atividades que se desviam do objetivo sexual final - fixações em objetivos sexuais preliminares- e o investimento em objetos que se distanciam dos órgãos genitais - extensões anatômicas. Assim, devemos pensar o alvo da pulsão como sendo a ação que, vinculada ao objeto, satisfaz a pulsão. Portanto, as extensões anatômicas dizem respeito ao uso de partes do corpo que são consideradas inapropriadas para o ato sexual, como o uso do orifício oral e anal para práticas sexuais, por exemplo. Já as fixações em objetivos sexuais preliminares referem-se à demora em atividades que deveriam ser preparatórias e que se transformam em meta principal, tocar, olhar, entre outras. A primeira consequência disso, é que

todos esses desvios destroem no adulto a ideia de uma pré-formação, de uma finalidade, pois o único objetivo atribuível a todos esses atos ditos sexuais (e com razão) não pode ser um fim biológico, só pode ser pura e simplesmente o prazer (Laplanche, 1997, p. 23).

Portanto, o recalque está associado aos sentimentos de vergonha e repugnância, "cuja atuação restringe a manifestação desenfreada da erogeneidade não-genital, e cuja ausência (ou derrota) é indicada pela ocorrência da perversão" (Mezan, 2003, p. 130). Por outro lado, o conceito de pulsões parciais, o qual indica que sexualidade tida como normal, ou seja, aquela onde há a primazia da função genital, se constitui a partir de elementos originariamente dispersos. "Qualquer outra parte do corpo pode ser promovida à condição de zona erógena" (Freud, 1905/1969i, p. 173). Trata-se, assim, de uma parcialização que impede uma unidade entre o objeto e o alvo da pulsão. A partir de então, a neurose será definida em função do recalque das pulsões parciais perversas e do retorno desse material recalcado de forma transformada.

Frente à descoberta das zonas erógenas, as quais se comportam como uma porção do aparelho sexual, e além das pulsões parciais, que buscam a satisfação sexual a partir dessas zonas erógenas no período da infância, Freud (1905/1969i) busca, no segundo ensaio, definir a sexualidade infantil. "Duas teses centrais estão na base do argumento da sexualidade infantil: o caráter predominantemente auto-erótico da vida sexual infantil, e a fragmentação dos impulsos pelas várias zonas erógenas" (Mezan, 2003, p. 131). O exemplo clássico da atividade auto-erótica foi dado por Freud (1905/1969i) nos Três Ensaios: a sucção do polegar. De acordo com Freud, a função sexual propriamente dita se estabelece após uma ruptura entre o prazer sentido pela sucção do seio e a função biológica da alimentação. Assim, na atividade auto-erótica, a boca, que é o apoio da primeira experiência de satisfação constitui-se uma zona erógena a partir da qual a criança buscará a sensação de prazer com a ajuda de uma área pertencente ao próprio corpo, que nesse caso seria o polegar. Essa seria a primeira manifestação pulsional na criança, uma vez que na primeira experiência de satisfação o prazer sexual não está desvinculado da necessidade alimentar. Portanto, a satisfação será auto-erótica somente depois de se desvincular do seio. A criança busca o prazer - o alvo a ser atingido -, sendo que o objeto exterior torna-se dispensável. O uso do próprio corpo visa à satisfação pulsional, lembrando que o corpo é agora também o objeto da pulsão, ou seja, objeto e fonte coincidem nesse momento.

Os conceitos pulsões parciais e auto-erotismo podem ser agora relacionados. A sexualidade infantil é auto-erótica devido à parcialidade das pulsões, isto é, cada qual encontra a satisfação independentemente das demais. Em função disso, Freud define a sexualidade infantil com o termo perverso-polimorfa, procurando indicar que a pulsão sexual se satisfaz independentemente do objeto e que essa satisfação se dá por vários caminhos e formas. Portanto, conforme observa Laplanche (1997), a sexualidade infantil não está ligada a uma ativação precoce dos genitais:

se ela é dita polimorfa, é não só quanto ao tipo de atividade, mas também quanto às zonas que se encontram excitadas na criança, e que Freud pensa serem múltiplas, e podem ser até o conjunto do corpo (p. 24).

Em função disso, podemos concluir que, para a psicanálise, sexualidade e reprodução não são sinônimos. No campo da sexualidade, pelo qual se interessa a psicanálise, estamos às voltas com uma satisfação pulsional que pode acontecer com qualquer objeto. Já no campo da reprodução, o objeto não é fruto de uma escolha, mas antes, de uma determinação anatômica e biológica.

Contudo, a questão que permanece, e que será o tema central do terceiro ensaio, é como se dá o processo da escolha de objeto. A tese freudiana é de que as transformações ocorridas com o advento da puberdade conferem à sexualidade infantil sua forma definitiva e normal. Se nos primeiros anos de vida a pulsão sexual havia sido exclusivamente auto-erótica, com o surgimento de uma nova finalidade sexual, a reprodução, as pulsões parciais que, a partir do investimento nas zonas erógenas haviam estabelecido o prazer como alvo exclusivo, devem se combinar para atingir esse novo alvo. Essa nova finalidade implica também na subordinação das zonas erógenas ao primado da zona genital. Entretanto, mesmo concretizada essa maturação sexual, a busca pelo prazer continua sendo um objetivo fundamental. O recalque, conforme vimos acima, teria por função interditar a satisfação perversa obtida pelas pulsões parciais nas antigas zonas erógenas. Ora, se na fase adulta o sujeito sexualmente maduro insiste em investir em tais zonas erógenas para obter prazer sexual, significa que o recalque não cumpriu seu objetivo. E esse fracasso, o qual pode ser também creditado a ineficácia do recalque em evitar o desprazer experimentado pelo sujeito com o sintoma, é que irá produzir a neurose.

Mais intrigante ainda é o fato de Freud afirmar que essa busca pelo prazer pode persistir de tal forma que esse prazer chega a suplantar a reprodução como meta fundamental da função sexual. Assim, as zonas erógenas, agora sob a primazia da zona genital, devem servir apenas como uma zona de prazer preliminar, isto é, preparatória para o prazer final obtido com o orgasmo. Isso significa que a estimulação adequada das zonas erógenas irá provocar um aumento momentâneo da tensão, ideia contraditória porque o prazer, desde o Projeto, envolve a diminuição da tensão. É, portanto, peculiar ao prazer preliminar, que ele esteja constituído de tal forma que a única descarga possível para a tensão gerada nas zonas erógenas consista no coito. A exigência de que a descarga seja feita através da via genital, indica muito bem o que significa as zonas erógenas estarem sob a primazia da zona genital.

Posteriormente, com o advento da puberdade e da supremacia da zona genital, o sujeito deve se lançar na escolha de um objeto. Porém, como isso ocorre? Segundo Freud, o fundamental é a tese de que o primeiro objeto permanece como o protótipo para as escolhas posteriores. "Há, portanto, bons motivos para que uma criança que suga o seio da mãe se tenha tornado o protótipo de toda relação de amor. O encontro de um objeto é, na realidade, um reencontro dele" (Freud, 1905/1969i, p.229). Assim, a primeira escolha de objeto é sempre incestuosa. Essa escolha, entretanto, se processa no campo da fantasia, uma vez que durante o período de latência as barreiras contra a relação incestuosa já estão sólidas devido às exigências da educação social. A superação das fantasias inconscientes incestuosas, nesse momento da obra freudiana, se dá pela efetiva vivência do sujeito no seu meio social. Portanto, como a escolha de objeto se processa na puberdade, a tese de que as fantasias incestuosas são superadas pelo convívio social não parece ser desprovida de sentido. Nota-se que Freud está ainda distante de considerar o papel desempenhado pelas fantasias em torno dos Complexos de Édipo e Castração. A consequência destes seria o abandono das fantasias incestuosas, que só pode ser localizado no período da adolescência e culmina na escolha de objeto. "As fantasias são principalmente produzidas na puberdade e reprojetadas retroativamente" (Laplanche, 1997, p. 38). Com a introdução das organizações libidinais pré-genitais tempos depois, o problema em torno das fantasias incestuosas da criança pelos pais pôde ser reformulado.

 

Considerações finais

Não é nenhuma surpresa que dezessete anos após o abandono de sua Neurotica, Freud revele as consequências da deformação conceitual que promovera naquela época. De fato, o trabalho que envolve a deformação de um conceito encontra "terra firme" justamente onde a certeza se fragiliza. A descoberta das fantasias inconscientes e da sexualidade infantil leva Freud a revisar suas expectativas. Segundo Laurent (1995), o estudo das perversões sexuais conduz Freud à conclusão de que a pulsão sexual não poderia ser definida segundo um ponto de vista darwinista, isto é, como tendo a finalidade única de "garantir a taxa de reprodução diferencial da espécie" (p. 196). Se nas obras precedentes aos Três ensaios (Freud, 1905/1969i), por exemplo, a de Krafft-Ebing (1895), as perversões se caracterizam pela inversão do instinto sexual frente àquilo que define a finalidade desse instinto, a reprodução, em Freud elas definem a atividade sexual infantil. A pulsão sexual não se encontra unificada, mas antes, parcializada, e, por isso, no psiquismo constata-se a "inexistência da tendência sexual como uma totalidade" (Laurent, 1995, p. 198). Assim, a principal deformação que a psicanálise promoveu com relação à sexualidade foi o abandono do ponto de vista darwinista da sexualidade, ou seja, para a psicanálise a pulsão sexual não é única, somente parcial e com o objetivo de alcançar a satisfação.

Além disso, vimos que a pulsão sexual exige uma satisfação através de um objeto, mas esta não se encontra ligada ou determinada pelos atrativos desse objeto. Apesar dessa exigência, esse objeto será o que há de mais flexível. A independência da pulsão em relação ao objeto permite ao sujeito uma escolha para alcançar a satisfação. Ora, o problema que se coloca em torno da escolha de objeto é: qual o objeto ideal de investimento para o sujeito? Como ter de antemão as garantias de uma escolha se não há objeto originário? Se a satisfação pulsional não vem do objeto, mas sim do mecanismo pulsional que é erigido em torno dele, como estabelecer um critério de escolha, uma vez que o objeto com o qual a pulsão se satisfaz é um objeto sem qualidades e atrativos pré-definidos? A falta de qualidades do objeto tem duas outras implicações: se não há qualidades, não é possível traçar uma hierarquia de objetos de investimentos. E se não há uma hierarquia de objetos de investimentos, também não estamos mais em um campo finito, mas em um campo em que os objetos, ao se constituírem em função do investimento e do trabalho do inconsciente, apontam para seu caráter potencialmente infinito.

Portanto, podemos concluir que a clínica psicanalítica só pode se sustentar com um conceito bem definido de sexualidade. Vimos que esse conceito de sexualidade não é uma criação intempestiva de Freud, mas uma ideia que sofre deformações incessantes no período inicial de sua obra. Sobre a importância desse trabalho de deformação, Bachelard (1940/1978) diz que "só existe um meio de fazer avançar a ciência; é o de atacar a ciência já constituída, ou seja, mudar sua constituição" (p. 19). Não é dificil aproximarmos essa passagem de Bachelard com o momento raro em que Freud tenta justificar seu posicionamento epistemológico:

O avanço do conhecimento, contudo, não tolera qualquer rigidez, inclusive em se tratando de definições. A física proporciona excelente ilustração da forma pela qual mesmo 'conceitos básicos', que tenham sido estabelecidos sob a forma de definições, estão sendo constantemente alterados em seu conteúdo (Freud, 1915/1969j, p. 137).

 

Referências

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Endereços para correspondência:
Tiago Iwasawa Neves. tiagoiwasawa@yahoo.com.br

Submetido em: 22/02/2015
Revisto em: 27/03/2016
Aceito em: 11/04/2016

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