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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.68 no.1 Rio de Janeiro abr. 2016

 

ARTIGOS

 

Stress, burnout e avaliação cognitiva: estudo na classe de enfermagem

 

Stress, burnout and cognitive appraisal: a study with nurses

 

Estrés, agotamiento y evaluación cognitiva: un estudio dos profesionales de enfermería

 

 

Mafalda Manuela de Alvelos PereiraI; Antonio Rui Silva GomesII

IMestranda. Escola de Psicologia. Universidade do Minho. Braga. Portugal
IIDocente. Escola de Psicologia. Universidade do Minho. Braga. Portugal

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo analisa o stress laboral em enfermeiros, observando igualmente a importância dos processos de avaliação cognitiva no ajustamento aos contextos de trabalho. Foram aplicados, em um único momento, a 153 profissionais da classe de enfermagem instrumentos de avaliação do stress ocupacional, da avaliação cognitiva primária e secundária, do burnout e da sintomatologia depressiva. Os níveis de stress, de burnout e de sintomatologia depressiva confirmaram que essa profissão é exigente do ponto de vista emocional e psicológico. Os processos de avaliação cognitiva foram determinantes na explicação da experiência de stress ocupacional, burnout e sintomatologia depressiva. O stress ocupacional e a avaliação cognitiva foram variáveis importantes na predição do burnout. Os resultados deste estudo evidenciaram o papel central da avaliação cognitiva na adaptação humana aos contextos de trabalho bem como a utilidade do modelo transacional no estudo do stress laboral.

Palavras-chave: Stress; Avaliação cognitiva; Esgotamento; Depressão.


ABSTRACT

This study analyzes the occupational stress in nurses, observing also the importance of cognitive appraisal in the adjustment to work contexts. In a single moment, evaluation protocols that included instruments of occupational stress, primary and secondary cognitive appraisals, burnout, and depressive symptomatology were applied to 153 nurses. Levels of occupational stress, burnout, and depressive symptomatology have confirmed that this activity is very demanding, both on emotional and psychological levels. The processes of cognitive appraisal were determining factors in the comprehension of occupational stress, burnout, and depressive symptomatology. Occupational stress and cognitive appraisals dimensions were predictors of the burnout experience. The results of this study pointed out the central role of the cognitive appraisals in the human adaptation to the work contexts and the usefulness of the transactional model in the study of occupational stress.

Keywords: Stress; Cognitive appraisal; Burnout; Depression.


RESUMEN

Este estudio analiza el estrés laboral en profesionales de enfermería, observando también la importancia de la evaluacion cognitiva en la adaptación al trabajo. Mediante una metodología transversal, se aplicó un protocolo de evaluación a 153 profesionales de enfermería con instrumentos de estrés ocupacional, evaluación cognitivas primaria y secundaria, agotamiento y sintomatología depresiva. Los niveles de estrés laboral, agotamiento y sintomatología depresiva confirmaron que esta actividad es muy exigente a nivel psicológico y emocional. Los procesos de evaluación cognitiva fuerwon cruciales para explicar la experiencia de estrés laboral, de agotamiento y de sintomatología depresiva. El estrés laboral y la evaluación cognitiva fueron variables importantes en la predicción de agotamiento. Los resultados de este estudio demonstraron el papel central de la evaluación cognitiva en la adaptación humana al trabajo y la utilidad del modelo transaccional en el estudio del estrés laboral.

Palabras clave: Estrés; Evaluación cognitiva; Agotamiento profesional; Depresión.


 

 

Introdução

Possuir uma atividade profissional e sentir-se realizado com o trabalho representam uma situação valorizada do ponto de vista social, não só pela importância da subsistência econômica, mas também pela consequente integração na sociedade. No entanto, é evidente que os sistemas de trabalho têm exercido cada vez mais pressão sobre os indivíduos. A Organização Mundial de Saúde chama atenção para o fato de o stress laboral representar uma epidemia em escala mundial (World Health Organization, 2007).

Nesse sentido, torna-se relevante saber que fatores podem contribuir para o ajustamento das pessoas a seus contextos de trabalho, particularmente naquelas atividades que parecem mais suscetíveis ao stress ocupacional. Dentre elas, a enfermagem encontra-se entre as profissões passíveis de desencadear forte pressão sobre os seus profissionais. Nesse caso, trabalhar por turnos, ter relações interpessoais, ter de lidar com doenças e risco de vida dos outros, estar exposto a fatores de risco de etiologia diversa e ao conflito dos papéis desempenhados, entre outros, constituem algumas das situações que podem contribuir para uma maior pressão laboral (Batista & Bianchi, 2006; Parreira & Sousa, 2000; Pereira et al., 2014; Riahi, 2011; Sousa & Araújo, 2015; Xie, Wang, & Chen, 2011). Contudo, tal como sugerem alguns autores, o estudo dos profissionais de saúde não tem sido devidamente valorizado, talvez porque estes se defendam dos seus próprios fracassos e fraquezas através de ideais de onipotência (Quintana, Cecim, & Henn, 2002) ou, simplesmente, porque não se supõe que um profissional cuja função é ajudar necessitaria de apoio psicológico.

Considerando esses aspetos, este estudo foi realizado com profissionais de enfermagem, tendo dois objetivos gerais. Em primeiro lugar, foram analisados aspectos psicológicos do funcionamento desses profissionais relacionados com o stress ocupacional, o burnout (esgotamento) e a sintomatologia depressiva, com o intuito de contribuir para o conhecimento das condições mentais dos profissionais da área de enfermagem. Esse aspecto é relevante, pois como foi afirmado anteriormente, estamos perante uma profissão bastante exigente, importando conhecer melhor o seu impacto no bem-estar dos seus profissionais.

Em segundo lugar, este trabalho analisou a importância dos processos de avaliação cognitiva no ajustamento dos profissionais de enfermagem aos seus contextos de trabalho. Ou seja, além de analisar aspetos psicológicos do funcionamento dos profissionais de enfermagem relativamente ao trabalho, primeiro objetivo geral deste estudo, é igualmente relevante estudar que fatores podem explicar reações mais favoráveis e desfavoráveis face à atividade laboral. Para esse segundo objetivo, este trabalho teve por base o modelo transacional cognitivo, motivacional e relacional de Lazarus (1991, 2000), que sugere a ocorrência do stress quando uma dada situação é avaliada pela pessoa como excedendo os seus recursos ou capacidades para lidar com ela. De acordo com Lazarus (1990), existem dois processos de avaliação cognitiva que intervêm nesse processo, fundamentais para se compreender a adaptação dos indivíduos ao stress. Assim, a avaliação cognitiva primária representa a análise inicial efetuada pela pessoa quando se confronta com uma potencial fonte de stress, sendo atribuído um dado significado a essa situação, resultando em sentimentos de mal-estar, ameaça ou desafio. Nesse caso, a pessoa avalia o que pode ser relevante na situação, construindo o significado da situação para si. A avaliação cognitiva secundária ocorre em seguida, quando a mesma avalia o que poderá fazer para lidar com a situação em questão. A pessoa analisa os seus recursos de coping (confronto) para gerir as exigências colocadas pela situação (Lazarus, 2001).

Apesar de o modelo transacional representar uma proposta conhecida e generalizada no domínio do stress, sabe-se muito pouco sobre a sua aplicação ao estudo do stress laboral (Jones & Bright, 2001), não existindo indicações claras sobre quais as consequências dos processos de avaliação cognitiva na adaptação às exigências profissionais (Dewe, O'Driscoll, & Cooper, 2010). Neste sentido, este estudo selecionou quatro domínios psicológicos de avaliação, usando-se os dados resultantes no sentido de cumprir os dois objetivos definidos para este trabalho.

O primeiro campo psicológico estudado relaciona-se com a experiência de stress ocupacional dos enfermeiros, utilizando-se um instrumento de avaliação das fontes de stress destinado especificamente para os profissionais de saúde (Gomes & Teixeira, no prelo). Com este instrumento pretendeu-se analisar as situações geradoras de stress no trabalho, primeiro objetivo deste trabalho, bem como a relação entre o stress laboral e os processos de avaliação cognitiva, segundo objetivo deste trabalho.

As duas áreas seguintes relacionam-se com a experiência de burnout e de sintomatologia depressiva dos enfermeiros, utilizando instrumentos de avaliação psicológica para tal. A escolha desses campos de avaliação relaciona-se com as indicações de pesquisas sobre as consequências do stress ocupacional no burnout e na depressão dos profissionais de saúde (ver Clever, 2002; Imai, Nakao, Tsuchiya, Kuroda, & Katoh, 2004; Shanafelt, Bradley, Wipf, & Back, 2002). Considerando esses dados, procurou-se analisar os níveis de burnout e depressão na classe profissional de enfermagem, bem como a relação desses fatores psicológicos com os processos de avaliação cognitiva.

O quarto campo psicológico relaciona-se com os processos de avaliação cognitiva (Folkman & Lazarus, 1980; Gomes, 2014a; Pines & Keinan, 2005; Schneider, 2008). Nesse caso, selecionou-se um instrumento que procurou discriminar as dimensões centrais das avaliações cognitivas primária e secundária (Gomes & Teixeira, no prelo). Mais especificamente, no nível da avaliação cognitiva primária, foi avaliada a importância atribuída pelos enfermeiros à sua atividade profissional, uma vez que todo o processo de confronto com as exigências profissionais pode ser condicionado pelo valor pessoal atribuído à atividade profissional. Em seguida, foram avaliadas duas formas fundamentais de avaliação cognitiva primária: a percepção de ameaça, que indica até que ponto a atividade laboral é avaliada como negativa, e a percepção de desafio, que indica até que ponto a atividade laboral é avaliada como positiva. No que se refere à avaliação cognitiva secundária, foi considerado o potencial de confronto, que avalia os sentimentos de poder face à atividade profissional. Esse potencial indica até que ponto a pessoa sente ser capaz de lidar com as exigências da atividade profissional e a percepção de controle.

Tendo por base os dois objetivos gerais deste estudo - avaliar aspectos psicológicos do funcionamento de profissionais efermeiros e a importância dos processos de avaliação cognitiva - e os quatro campos psicológicos avaliados - stress ocupacional, burnout, sintomatologia depressiva e avaliação cognitiva -, foram estabelecidos quatro objetivos específicos:

(a) Analisar os níveis globais de stress ocupacional e os fatores geradores de stress ocupacional bem como os índices de burnout e de sintomatologia depressiva.

(b) Analisar as diferenças na experiência de stress, burnout e sintomatologia depressiva em função dos processos de avaliação cognitiva primária e secundária.

(c) Analisar as associações entre a avaliação cognitiva primária e secundária.

(d) Observar as variáveis preditoras da experiência de burnout.

 

Método

Amostra

Participaram deste estudo 153 profissionais da classe de enfermagem (126 do sexo feminino, 82.4%) de um hospital público, com idades compreendidas entre 23 e 57 anos (M = 36.57; DP = 9.31) e uma experiência profissional entre 1 e 38 anos (M = 10.10; DP = 8.74). Todos os profissionais exerciam em contexto de intervenção terciária, possuindo qualificações para tal, nomeadamente, o Bacharelato (n = 13; 8.5%), a Licenciatura (n = 136; 88.9%) e o Mestrado (n = 4; 2.6%).

Instrumentos

Foi administrado a todos os participantes um protocolo com os instrumentos de avaliação psicológica descritos em seguida. Para todos os fatores avaliados pelos instrumentos, os valores de fidelidade "alpha" de Cronbach assumiram níveis muito aceitáveis (Nunnally & Bernstein, 1994), sendo apresentados a seguir os resultados encontrados.

Questionário Demográfico. Avaliou variáveis pessoais, sexo, idade, entre outros, e profissionais, como situação contratual, função desempenhada, experiência profissional e outros.

Questionário de Stress nos Profissionais de Saúde (QSPS) (Gomes & Teixeira, no prelo). Esse instrumento avalia as potenciais fontes de stress no exercício da atividade profissional dos profissionais da saúde. O questionário compreende duas partes distintas. Em uma parte inicial, propõe aos profissionais a avaliação do nível global de stress que experienciam na sua atividade através de um único item (0 = Nenhum stress; 4 = Elevado stress). Na segunda parte, são indicados 25 itens relativos às potenciais fontes de stress no trabalho. Os itens distribuem-se por seis subescalas, sendo respondidos numa escala tipo Likert de cinco pontos (0 = Nenhum stress; 4 = Elevado stress): (a) lidar com os clientes: stress relacionado com as pessoas para quem os profissionais prestam serviços (α = 0,75); (b) relações profissionais: stress relativamente ao ambiente de trabalho bem como à relação com os colegas de trabalho e superiores hierárquicos (α = 0,76); (c) excesso de trabalho: stress relativamente à excessiva carga de trabalho e de horas de serviço a realizar (α = 0,83); (d) carreira e remuneração: stress relacionado com a falta de perspetivas de desenvolvimento da carreira profissional e insatisfação com o salário recebido (α = 0,84); (e) ações de formação: stress relacionado com situações nas quais os profissionais devem elaborar e conduzir ações de formação e efetuar apresentações públicas (α = 0,88); e (f) problemas familiares: stress relacionado com problemas familiares e falta de apoio por parte de pessoas significativas (α = 0,85). Os valores mais elevados significam maior percepção de stress em cada um dos campos avaliados.

Inventário de Burnout de Maslach - Prestadores de Serviços Humanos (IBM-PSH) (Maslach, Jackson, & Leiter, 1996; Adaptação de Melo, Gomes, & Cruz 1999). Avaliou os níveis de burnout em três dimensões: (a) exaustão emocional: sentimentos de sobrecarga emocional e exaustão devido às exigências do trabalho (α = 0,89); (b) despersonalização: respostas "frias", impessoais ou mesmo negativas dirigidas àqueles a quem se prestam serviços (α = 0,74); e (c) realização pessoal: sentimentos de competência profissional e de sucesso no trabalho com pessoas (α = 0,76). O inventário apresenta 22 itens distribuídos pelas três subescalas, sendo respondidos numa escala tipo Likert de 7 pontos (0 = Nunca; 6 = Todos os dias). Os valores mais elevados significam maiores níveis de exaustão emocional, despersonalização e realização pessoal.

Inventário de Depressão de Beck (IDB) (Beck, Ward, Mendelsohn, Mock, & Erbaugh, 1961; Adapação de T. McIntyre & S. McIntyre, 1995). Esse inventário avalia a severidade dos sintomas depressivos, sendo constituído por 21 itens que refletem diferentes manifestações da depressão (α = 0,89). Cada item consiste em quatro ou cinco afirmações ordenadas segundo a severidade do sintoma. Assim sendo, valores mais elevados refletem maior sintomatologia depressiva.

Escala de Avaliação Cognitiva (EAC) (Gomes & Teixeira, no prelo). Considera os processos de avaliação cognitiva no nível primário em três dimensões: (a) importância atribuída à atividade profissional (α = 0,91); (b) ameaça: avaliação da ocupação como perturbadora e negativa (α = 0,87); e (c) desafio: avaliação da ocupação como estimulante e entusiasmante (α = 0,91). No nível secundário foram avaliadas duas dimensões: (a) potencial de confronto, indica até que ponto a pessoa sente que possui recursos pessoais para lidar com as exigências da atividade profissional (α = 0,89); e (b) percepção de controle, que indica até que ponto a pessoa sente que tem poder de decisão sobre o seu trabalho (α = 0,71). Todos os itens foram respondidos numa escala tipo Likert de sete pontos (ex: 0 = Nada importante; 3 = Mais ou menos; 6 = Muito importante), significando que o aumento dos valores em cada uma das dimensões equivale a maior percepção de importância, ameaça, desafio, potencial de confronto e percepção de controle.

Procedimento

Este estudo teve a aprovação formal do Conselho de Administração da instituição de saúde onde foram recolhidos os dados. Por outro lado, todos os procedimentos éticos da investigação com seres humanos foram garantidos, de acordo com a atividade científica do centro de investigação a que pertence o segundo autor. Assim sendo, foram adotados os regulamentos portugueses e europeus que definem a investigação com seres humanos e a gestão de dados pessoais recolhidos junto aos participantes. A participação no estudo foi voluntária, explicando-se aos participantes os objetivos do estudo e o caráter confidencial do tratamento dos dados, tendo sido assinado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Assim, o protocolo de avaliação foi distribuído a 164 profissionais, tendo sido recebidos e considerados válidos para efeitos do presente estudo 153 questionários, representando uma taxa de retorno e adesão de 93,3%.

 

Resultados

A análise estatística dos dados foi efetuada no programa SPSS (versão 18.0 para Windows) e incluiu vários procedimentos que serão explicados no decorrer dessa parte do trabalho.

Funcionamento psicológico dos enfermeiros

Começando pelo nível global de stress que os profissionais sentem geralmente no exercício da sua atividade profissional (primeira parte do QSPS), é de salientar o fato de 76, 4%, terem referido um índice moderado de stress associado à sua profissão. Relativamente aos problemas que podem contribuir para essa situação, verificamos como principais fatores de stress as questões relacionadas ao lidar com os clientes, a carreira e remuneração e o excesso de trabalho.

Relativamente aos níveis de esgotamento (burnout), verificamos que 10% dos participantes evidenciaram exaustão emocional, 2,7% despersonalização e 3,9% baixos índices de realização pessoal.

Quanto aos índices de depressão obtidos no IDB, verificamos que 84,4% dos participantes não revelaram problemas de depressão, 12,8% revelaram índices de depressão leve e 10,7% disforia. Em termos dos estados depressivos, 3,5% demonstraram índices de depressão moderada, não tendo sido encontrados casos de depressão severa.

Importância dos processos de avaliação cognitiva

Essa análise testou a existência de diferenças nos fatores de stress, nas dimensões de burnout e na sintomatologia depressiva (variáveis dependentes), em função da avaliação cognitiva primária e secundária dos participantes (variáveis independentes). Assim, foram constituídos quatro grupos de comparação: baixa e alta ameaça, baixo e alto desafio, baixo e alto confronto, e baixo e alto controle. Com o objetivo de constituir grupos relativamente uniformes de comparação, estabelecemos 20% de participantes face à amostra global para cada grupo de comparação, possibilitando ter no mínimo 30 casos em cada grupo referido.

Dado que o processo de confronto com o stress depende da importância atribuída pela pessoa à situação em questão (Lazarus, 1999), estabelecemos como ponto de corte um valor igual ou superior a dois na escala Likert na dimensão da importância da EAC para mantermos os participantes nesse conjunto de análises.

O tratamento dos dados foi realizado com análises comparativas para grupos independentes nos instrumentos unidimensionais ("t-tests" para amostras independentes) e análises multivariadas de variância (MANOVA) nos instrumentos multifatoriais (ver Tabela 1).

Começando pela percepção de ameaça, encontraram-se diferenças entre os grupos nas dimensões de stress (Wilks' λ = 0,62, F(6, 67) = 6,98, p < 0,001, η2 = 0,39). Os profissionais que perceberam a sua atividade como mais ameaçadora experienciaram maiores níveis de stress em todas as dimensões do questionário. Também foram verificadas diferenças nas dimensões de burnout (Wilks' λ = 0,48, F(3, 73) = 26,08), p < 0,001, η2 =0,52). Os profissionais que perceberam a sua atividade como mais ameaçadora assumiram maiores níveis de exaustão emocional e despersonalização e, inversamente, menor realização pessoal. Nesse sentido, os profissionais que perceberam a sua atividade como mais ameaçadora evidenciaram maior tendência para a sintomatologia depressiva (t = -4,08; 75; p < 0,01).

Relativamente à percepção de desafio, encontraram-se diferenças entre os grupos nas dimensões de stress (Wilks' λ = 0,84, F(6, 81) = 2,65, p < 0,05, η2 = 0,16). Os profissionais que perceberam a sua atividade como menos desafiante revelaram maior stress relativo às relações profissionais, ao excesso de trabalho e à carreira e remuneração. Paralelamente, esse grupo de profissionais também evidenciou maior exaustão emocional e despersonalização e, pelo contrário, menor realização pessoal (Wilks' λ = 0,62, F(3,87) = 18,07, p < 0,001, η2= 0,38). De igual modo, os profissionais com menor percepção de desafio evidenciaram maior sintomatologia depressiva, embora as diferenças tenham sido marginalmente significativas (t = -1,89; 89; p < 0,10).

No que se refere ao potencial de confronto, encontraram-se diferenças entre os grupos nas dimensões de stress (Wilks' λ = 0,71, F(6, 64) = 4,33, p < 0,01, η2 = 0,29). Nesse caso, o grupo com baixo confronto experienciou maior stress em cinco das dimensões avaliadas, excetuando-se a carreira e remuneração. Por outro lado, também nas dimensões de burnout verificou-se que os profissionais com menor potencial de confronto apresentaram maiores níveis de exaustão emocional e despersonalização e, inversamente, menores níveis de realização pessoal (Wilks' λ = 0,70, F(3, 72) = 10,45, p < 0,001, η2 = 0,30). De igual modo, os profissionais com menor potencial de confronto relataram maior sintomatologia depressiva (t = 3,43; 74; p < 0,01).

Finalmente, na comparação dos profissionais em função da percepção de controle, embora o teste multivariado não tenha revelado diferenças (Wilks' λ = 0,95, F(3,60) = 1,04, n.s., η2 = 0,05), verificou-se pelos testes univariados que os profissionais com menor percepção de controle evidenciaram menor realização pessoal.

Associações entre a avaliação cognitiva primária e secundária

Nesta parte, observamos se altos e baixos níveis de ameaça e desafio (avaliação primária) correspondiam a diferentes percepções de confronto e controle (avaliação secundária). Essas diferenças foram testadas através do teste χ2 de Pearson.

Começando pela associação entre a percepção de ameaça e o potencial de confronto, os resultados demonstraram uma associação significativa entre as variáveis (χ2 (1) = 7,31, p < 0,01). Verificou-se que os profissionais que perceberam uma baixa ameaça assumiram um alto potencial de confronto (87%), enquanto que os profissionais que evidenciaram uma elevada ameaça assumiram um baixo potencial de confronto (54%).

Relativamente à associação entre a ameaça e o controle, os resultados não evidenciaram resultados significativos (χ2 (1) = 2,03, n.s.). Por outro lado, verificamos uma associação significativa entre as dimensões de desafio e confronto, (χ2 (1) = 9,24, p < 0,01). Os profissionais que perceberam a sua atividade com baixo desafio evidenciaram baixos níveis de potencial de confronto (68%), enquanto os profissionais com elevada percepção de desafio assumiram elevado potencial de confronto (76%).

Por último, na análise da associação entre as dimensões de desafio e controle, os resultados apontaram uma associação significativa entre as variáveis (χ2 (1) = 10,10, p < 0,01), sendo que os profissionais que perceberam a sua atividade com alto desafio perceberam também a sua atividade com alta percepção de controle (86%), enquanto que os profissionais que perceberam baixo desafio assumiram baixo controle (62%).

Variáveis preditoras da experiência de burnout

Nessa última fase do trabalho, testou-se o valor preditivo das dimensões de stress e de avaliação cognitiva na explicação das três dimensões de burnout. Assim, efetuamos análises de regressão hierárquica, pelo método "enter", observando-se também alguns indicadores de multicolinariedade, índices de tolerância, variance inflaction fator e condition index, e autocorrelações, Durbin-Watson, constatando-se em geral a ausência desses problemas nos modelos testados. Desse modo, foram constituídos três blocos de variáveis preditoras: (a) dimensões de stress, (b) escala cognitiva primária (ameaça e desafio), e (c) escala cognitiva secundária (confronto e controle). Tal como nas análises comparativas anteriores, a percepção de importância da EAC serviu para selecionar os profissionais com um nível mínimo de envolvimento face ao trabalho. Por outro lado, a entrada das variáveis nos três blocos descritos refletiu o entendimento das fontes de stress como um estímulo, representando a primeira etapa da ocorrência do stress ocupacional, seguindo-se depois a avaliação cognitiva primária e, por último, a avaliação cognitiva secundária (ver Tabela 2).

Começando pela exaustão emocional, esta foi predita pelo maior stress associado às relações profissionais ao excesso de trabalho e à carreira e remuneração, embora nesse caso as diferenças tenham sido marginalmente significativas. No segundo bloco, a exaustão emocional foi predita por uma maior percepção de ameaça e por uma menor percepção de desafio. O terceiro bloco de entrada não se revelou significativo. Para o modelo final, foi necessário retirar um caso das análises efetuadas (outlier).

Relativamente à despersonalização, esta foi predita pelo maior stress associado ao excesso de trabalho. No segundo bloco, a despersonalização foi predita pela maior percepção de ameaça e pela menor percepção de desafio. O terceiro bloco de entrada não se revelou significativo. Nesse caso foi necessário retirar três casos das análises efetuadas (outliers).

Por último, a maior realização pessoal foi predita pelo menor stress associado ao excesso de trabalho. No segundo bloco, a realização pessoal foi predita pela menor percepção de ameaça e pela maior percepção de desafio. No terceiro bloco, a realização pessoal foi predita pelo maior potencial de confronto.

 

Discussão

Neste trabalho analisaram-se as condições mentais do exercício da atividade laboral numa amostra de profissionais de enfermagem bem como a importância dos processos de avaliação cognitiva na percepção de stress, burnout e sintomatologia depressiva. Essa análise teve por base o modelo transacional de Lazarus (1991, 2000) que, apesar de ser uma das propostas mais consensuais acerca da adaptação humana ao stress, tem ainda poucos trabalhos realizados na aplicação ao stress ocupacional. Assim sendo, três aspetos devem ser realçados dos resultados.

Em primeiro lugar, os níveis de stress, burnout e de sintomatologia depressiva confirmam que essa profissão é exigente do ponto de vista emocional e psicológico, estando os dados de acordo com os obtidos em outros estudos (Clever, 2002; Imai et al., 2004; Deklava, Circenis, & Millere, 2014; Seleghim, Mombelli, Oliveira, Waidman, & Marcon, 2012; Shanafelt et al., 2002; Silva & Guimarães, 2016). Também o fato do stress associado ao lidar com os clientes representar a maior fonte de pressão profissional está de acordo com os dados de outros estudos com profissionais de saúde (ver Gomes, 2014b; Gomes, Cruz, & Cabanelas, 2009; Paris & Omar, 2008).

Em segundo lugar, os resultados comparativos nos processos de avaliação cognitiva tornaram evidente que os profissionais que perceberam o seu trabalho como mais ameaçador, menos desafiante, com menor potencial de confronto e com menor sentimento de controle experienciaram, de um modo geral, maiores níveis de stress laboral, maior burnout e maior sintomatologia. Do nosso ponto de vista, esses dados confirmam o valor inequívoco da avaliação cognitiva na adaptação humana aos contextos de trabalho bem como a utilidade do modelo transacional no estudo do stress laboral, tal como sugerido recentemente por alguns autores (Dewe et al., 2010; Gomes, 2014a). Além disso, os resultados das associações entre a avaliação cognitiva primária e secundária demonstraram que padrões mais negativos na avaliação primária (e.g., maior ameaça e menor desafio) corresponderam igualmente a padrões mais negativos na avaliação secundária (e.g., menor potencial de confronto e menor controle). A única exceção a esse padrão foi a inexistência de uma associação entre a percepção de ameaça e de controle. Seja como for, para além de ficar comprovado o interesse de estudar os processos de avaliação cognitiva, ficou também evidente que essas duas dimensões devem ser analisadas de modo relacionado, uma vez que parecem se influenciar mutuamente, tal como sugerido por Lazarus (1999).

Em terceiro lugar, os resultados comprovaram o papel das variáveis de stress na predição do burnout, o que já vem sendo demonstrado por investigações (Gomes et al., 2009; Tummers, Merode, Landeweerd, & Candel, 2003). Mas, agora fica também evidente a importância da avaliação cognitiva na explicação da experiência de burnout principalmente no nível primário.

Apesar do interesse desses resultados, deve ser realçada uma limitação deste estudo e uma implicação para as investigações futuras. Por um lado, a avaliação realizada baseia-se em instrumentos de autorrelato dos participantes, o que pode enviesar o modo como os mesmos responderam às medidas propostas, apesar de se tratarem de questionários devidamente validados para a população de referência. Por outro lado, estudos futuros poderiam efetuar uma análise do modo como os profissionais se adaptam ao stress ocupacional recorrendo a metodologias longitudinais, sendo assim possível captar de forma mais adequada a natureza dinâmica desse processo de adaptação.

Em síntese, este estudo confirmou as exigências psicológicas colocadas por essa profissão bem como o papel da avaliação cognitiva no modo como os profissionais reagem ao trabalho. Por isso, ficou reforçada a necessidade de intervir sobre os fatores geradores de mal-estar no trabalho nessa atividade laboral. Por outro lado, ficou reforçada a importância de investigações futuras analisarem mais profundamente de que modo os processos de avaliação cognitiva ajudam a explicar a forma como as pessoas se adaptam aos seus contextos de trabalho.

 

Referências

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Endereços para correspondência:
Mafalda Mafalda Manuela de Alvelos Pereira. nocasschool@gmail.com
Antonio Rui Silva Gomes. rgomes@psi.uminho.pt

Submetido em: 03/10/2013
Revisto em: 10/03/2016
Aceito em: 10/03/2016

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