SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.68 issue1Writing, psychology, production and care: ethics, aesthetics and politicsGroup practices in schizoanalysis: cartography, workshop and schizodrama author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.68 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2016

 

ARTIGOS

 

Ideologia: concepções de creche em revistas brasileiras de pediatria

 

Ideology: the conception of day care in journal of pediatrics

 

Ideología: concepciones de guardería en revistas brasilenãs de pediatría

 

 

Flávio Urra

Mestre em Psicologia Social. Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa tem por intuito contribuir para a compreensão da construção social da infância brasileira, analisando discursos de atores sociais adultos sobre o bebê, sua educação e cuidado. Nosso objetivo foi descrever e interpretar as concepções de creche em duas revistas brasileiras de Pediatria - o Jornal de Pediatria e a Revista Paulista de Pediatria. O recorte teórico foi constituído pela integração de três campos de conhecimento: teoria de ideologia, teoria de gênero e os estudos sociais sobre infância. Nos artigos a creche foi predominantemente tratada como um local utilizado para suprir a ausência da mãe, principalmente para famílias de baixa renda. Tal interpretação ocorre, usualmente, associada à percepção de riscos de enfermidades, mobilizando sentidos de gravidade, de negatividade em relação à creche. Concluímos que os discursos produzidos e veiculados pela Pediatria contemporânea podem ser interpretados como sustentando relações de dominação de gênero e idade.

Palavras-chave: Ideologia; Gênero; Infância; Pediatria; Creche.


ABSTRACT

The research is meant to contribute to the understanding of the social construction of Brazilian childhood, analyzing speeches of different adult social actors about the baby, their education and care. Our objective was to describe and interpret the day care center conceptions in two Brazilian journals of Pediatrics: the Jornal de Pediatria and the Revista Paulista de Pediatria. The theoretical framework was constituted by the integration of three fields of knowledge: the theory of ideology, gender theory and social studies of childhood. Articles of day care center were mostly treated as a place used to supply the absence of the mother, especially for low-income families. Such interpretation usually occurs associated with the perception of risk of diseases and conditions, mobilizing senses of gravity, alarm and negativity toward the day care center. We conclude that the discourses produced and broadcasted by the Contemporary Pediatrics can be interpreted as supporting relations of gender and age domination.

Keywords: Ideology; Gender; Childhood; Pediatrics; Day care centers.


RESUMEN

El artículo pretende contribuir a la comprensión de la construcción social de la infancia brasileña, analizando los discursos de los diferentes actores sociales adultos sobre el bebé, su educación y cuidado. Nuestro objetivo fue describir y interpretar las concepciones acerca de las guarderías en dos periódicos brasileños de Pediatría - el Jornal de Pediatria y la Revista Paulista de Pediatria. El marco teórico se estableció mediante la integración de tres áreas de conocimiento: La teoría de la ideología, la teoría de género y los estudios sociales de la infancia. En los artículos, la guardería fue tratada predominantemente como un lugar utilizado para proveer la ausencia de la madre, especialmente para las familias de bajos ingresos. A menudo, esta interpretación se asocia con la percepción de riesgo de enfermedad y mueve los sentidos de gravedad, de negatividad en relación a la guardería. Llegamos a la conclusión de que los discursos elaborados y difundidos por la Pediatría contemporánea pueden interpretarse como ofreciendo soporte a las relaciones de dominación de género y edad.

Palabras clave: Ideología; Género; Infancia; Pediatría; Guardería.


 

 

Introdução

Esta pesquisa propõe descrever e interpretar, à luz da teoria da ideologia, o tratamento dado ao tema creche em 37 artigos acadêmicos publicados em duas revistas brasileiras de Pediatria, entre 1988 e 2009. Os periódicos são o Jornal de Pediatria, publicado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Revista Paulista de Pediatria, publicada pela Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP).

Nosso problema de pesquisa parte de uma indignação política com a pouca atenção atribuída à educação e ao cuidado da criança de 0 a 3 anos no âmbito das políticas públicas. Refere-se a uma preocupação com o tratamento dado pela sociedade brasileira à criança pequena, ao bebê no espaço público. A creche é, por excelência, a instituição de atendimento público à criança pequena, por direito universalmente reconhecido.

A escolha por analisar discursos veiculados por artigos de revistas brasileiras de Pediatria foi motivada por várias razões. Dentre elas, a escassez de estudos contemporâneos sobre eles no âmbito das pesquisas sobre ideologia. A despeito da importância dos discursos da Pediatria na formação da opinião pública, na constituição das pautas da mídia e da agenda de políticas públicas para a infância e maternidade, sua análise crítica no que tange a creche tem sido negligenciada.

No plano político, nossa compreensão é que entre os eixos que constroem as desigualdades sociais (classe, gênero, raça-etnia), a idade, ou o tempo social, não pode ser negligenciada. Consideramos que as sociedades ocidentais são adultocêntricas (Rosemberg, 1976) e que as relações de idade constituem, também, categoria útil para a análise das desigualdades sociais (Rosemberg, 2006a). Nesse contexto social, nossa hipótese é que temos dificuldade em lidar com a dimensão pública do bebê. Nossa pergunta política: a sociedade brasileira concebe o bebê como cidadão?

Para descrever e interpretar discursos sobre creche veiculados por revistas brasileiras de Pediatria, recorremos a três recortes teóricos que compartilham a mesma concepção crítica de sociedade, como aquela constituída por relações de dominação: a teoria de gênero de Joan Scott (1995), os Estudos Sociais sobre Infância, destacando os aportes de Sirota (2001, 2007) e Rosemberg (1976, 1997, 1999, 2006b) e a teoria de ideologia de John B. Thompson (1995).

 

Teorias: gênero, infância e ideologia

Na argumentação de seu artigo seminal - Gênero: uma categoria útil para análise histórica - Joan Scott apresenta seu conceito de gênero constituído por duas proposições fundamentais:

a primeira afirma que o "gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos". A segunda, que "o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder [...]" (Scott, 1995, p. 86).

Os símbolos culturalmente disponíveis evocam representações simbólicas de homens e mulheres, de luz e trevas, de bem e mal. E essas representações simbólicas são evocadas em quais contextos? Ao se observarem as diferenças sexuais em determinados contextos constituem-se imagens simbólicas transmitidas em nossa cultura, ao se associarem o masculino a determinadas imagens e o feminino a outras. E, em outros contextos tais imagens podem construir ideias de superioridade ou inferioridade de um gênero sobre o outro. Elas passam a ser incorporadas aos discursos como naturais e imutáveis.

Além disso, um conjunto de normas, as mais diversas, articula-se para determinar o que homens e mulheres podem fazer e em quais contextos. Normas religiosas que consideram a mulher de determinada maneira e homens de outra. Normas jurídicas que limitam e punem algumas práticas em detrimento de outras. Normas morais que são aplicadas de maneiras diferentes para homens e mulheres. Aqui podemos incluir as normas médicas que, em determinadas circunstâncias, se configuram como imperativos. Para além do sistema de parentesco e familiar, a diferença sexual percebida constrói, também, as próprias instituições e a organização social, incluindo, o mercado de trabalho, a educação, o sistema político e a economia. Scott (1995) observa que os significados coletivos e subjetivos de mulheres e homens, como categorias de identidade, são construídos socialmente, que as identidades mudam em relação ao tempo e contexto, que não podemos nos basear em modelos de socialização que veem gênero como um produto estável da educação da criança na família e na escola.

De modo semelhante ao conceito de Scott (1995), os estudos sociais sobre a infância consideram as crianças como um grupo oprimido pelos adultos, assim, o adultocentrismo como conceito desempenharia função semelhante que o machismo para o feminismo. Os Estudos Sociais sobre a Infância têm questionado os paradigmas que nortearam a área, propondo novas maneiras de se olhar para as relações de idade. As críticas e novas propostas desse campo focalizam, particularmente, a noção de infância (e não a criança) como uma construção social e não apenas um dado da natureza. Consideram também a criança como agente do processo de socialização, tratando-a como ator social. Propõem rever a produção de conhecimentos sobre a infância/criança e colocá-la, também, no centro das pesquisas. Ao analisar discursos proferidos por adultos sobre infância e crianças, é possível apreender a participação desses discursos na construção da própria infância e como podem servir para produzir e manter relações de dominação. No caso desta pesquisa, analisar discursos sobre creche em revistas brasileiras de Pediatria possibilitará apreender a retórica que poderá facilitar ou inibir a construção de uma política de creche com qualidade e equidade e que responda aos direitos das crianças à educação e das mulheres ao trabalho.

Para Rosemberg (1997, 2006a), no entanto, é preciso cautela nessa aproximação entre esses dois campos - gênero e idade. De seu ponto de vista, de um modo geral, teorias feministas generalizam, para a infância, componentes de gênero associados à vida produtiva e reprodutiva típicos da idade adulta. Rosemberg (1976, 1999) considera a infância uma categoria social subordinada à categoria adulto.

Ao refletir sobre a articulação entre relações de idade, de gênero, de classe e raciais, Rosemberg (1999) se inspira no conceito de não sincronia que Emily Hicks usou para interpretar relações de gênero e classe. Isto é, fugindo de interpretações cumulativas também criticadas por Scott (1995), Rosemberg (1999) considera que relações de idade podem não ser sincrônicas às de gênero, classe e raça. Esta não sincronia ou heterocronia pode ocorrer tanto no plano da história social, quanto no pessoal. Ou seja, nem todas as relações de dominação ocorrem simultaneamente, como também não são sincrônicas as reações de enfrentamento social a tais relações de dominação. Por exemplo, a organização do movimento operário antecede a do movimento mulheres, de negros e indígenas. Direitos específicos às crianças são internacionalmente reconhecidos apenas no século XX.

Para esta pesquisa o conceito e a teoria de ideologia constituem pontos chave, na medida em que fornecem pistas para interpretar os discursos sobre creche a serem descritos. Adotaram-se na pesquisa os aportes de John B. Thompson referentes ao conceito e à teoria de ideologia, bem como o método elaborado por esse autor para sustentar pesquisas empíricas sobre a questão.

Thompson (1995) conceitua ideologia como formas simbólicas que servem para criar ou manter rel   ações de poder assimétricas, desiguais ou injustas. Para o autor, as formas simbólicas não são ideológicas em si mesmas, mas o são quando, em situações específicas, servem para sustentar u estabelecer relações de dominação. Segundo Thompson (1995), as formas simbólicas são construções significativas que se referem a algo, no caso presente, às concepções de creche. Nosso objetivo é oferecer uma interpretação a esta percepção captada no discurso da Pediatria brasileira contemporânea, em nosso caso, situada no contexto da política brasileira para Educação Infantil, nomeadamente para as creches. Isto é, essa interpretação das creches, captada nos artigos acadêmicos de Pediatria, pode ser considerada como sustentadora do direito à educação de criança de 0 a 3 anos?

 

Contexto sócio-histórico: a Pediatria e a creche

A análise do contexto sócio-histórico de produção, circulação e recepção das formas simbólicas, discursos referentes à creche em artigos publicados em revistas brasileiras de Pediatria, apoiou-se em revisão de literatura acadêmica sobre os dois recortes que integram esta pesquisa: a Pediatria como campo de produção de discursos e práticas sobre o cuidado e a educação de crianças e a sua mídia acadêmica; a creche no contexto brasileiro contemporâneo.

Na bibliografia levantada sobre Pediatria e Puericultura localizamos um enfoque crítico a partir do qual a Pediatria/Puericultura vem sendo entendida como construtora e divulgadora de uma retórica que tem sustentado normatizações sobre o modo apropriado de se educar e cuidar de bebês e de se exercer a maternidade, e a paternidade. Esse modo vem definindo prioridades na agenda de políticas pública.

Os papéis de gênero se evidenciam, pois "os papéis sociais do pai e da mãe estabelecem distinções importantes para a investigação pediátrica, na medida em que se definem, também, a partir do papel de cuidador da criança" (Castellanos, 2003, p. 210). O cuidado é considerado peculiaridade feminina: "a relação com o mundo do trabalho e o papel de chefe de família conferem ao pai a posição de provedor e não de cuidador das crianças" (Castellanos, 2003, p. 211). Mulher e natureza se aproximam: "a proeminência da mãe como cuidadora natural de seus filhos parece coordenar-se harmonicamente com a ausência do pai na casa ou, ao menos, na consulta pediátrica" (Castellanos, 2003, p. 212).

Em paralelo à normalização das relações de gênero, a Pediatria "apresentar-se-ia como prática profissional capaz de garantir uma adultez propalada como tempo de saúde, completude e perfectibilidade" (Pereira, 2006, p. 15). Assim, a Pediatria seria atravessada por uma concepção adultocêntrica de infância, do mesmo modo que outras especialidades profissionais, que idealizam o mundo adulto. Conforme Rivorêdo (1998), na Pediatria, o mundo adulto idealizado é considerado racional, controlado, pouco emocional, livre, autônomo, com direitos e deveres reconhecidos. A esse mundo adulto opõe-se o mundo infantil, considerado fugaz, provisório, incompleto, irracional, dependente e submisso, indisciplinado e não-socializado.

A Pediatria, como outras especialidades médicas no Brasil, vem sendo objeto de reflexões críticas, tanto no que diz respeito à formação quanto ao exercício profissional. Assim, vem se criticando a situação do ensino médico brasileiro seja por sua duração ser insuficiente (L. A. D. Ciampo & I. R. L. D. Ciampo, 2010, p. 9), seja por seu foco em modelo "biomédico, cartesiano e organicista", sem contemplar o caráter social do ser humano em sua integralidade (FUNDAP, 1991, citado por Castellanos, 2003, p. 105). Para Rivorêdo, Oliveira e Mendes (2011), as escolas médicas continuam formando profissionais para consultórios privados e hospitais de alta complexidade, sem considerar a realidade brasileira.

No âmbito de nossa pesquisa os artigos acadêmicos analisados foram considerados como formas específicas de interpretações sobre a temática creche, ou seja, formas particulares de sujeitos determinados compreenderem um fenômeno e seu universo sócio-histórico. Assim, em Thompson (1995), os processos de interpretação são, sempre, simultaneamente, processos de reinterpretação, pois se trata da construção de significados sobre formas que são, elas próprias, produtos de processos anteriores de atribuição de significados.

 

Método

A pesquisa consiste em um estudo de revisão, que foi realizado com artigos publicados entre os anos 1988-2009. O corpus é constituído por 37 artigos publicados em português, por duas revistas brasileiras acadêmicas de Pediatria, ambas relacionadas a Sociedades de Pediatria: o Jornal de Pediatria, publicado pela Sociedade Brasileira de Pediatria e a Revista Paulista de Pediatria, pela Sociedade de Pediatria de São Paulo.

O processo se iniciou com o levantamento das revistas de Pediatria disponíveis no Brasil, em consulta ao acervo da Biblioteca da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo e ao portal do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde. Para tanto, foram utilizadas as palavras-chave Pediatra, Pediatria e Puericultura. Por essa via, foram localizadas 338 revistas em todo mundo, dentre as quais foram encontrados 23 títulos de revistas brasileiras de Pediatria.

Visando facilitar o acesso aos artigos foi efetuada uma redução na busca: decidiu-se analisar apenas as revistas com artigos disponibilizados em versão eletrônica, integral ou resumida. A busca na Internet permitiu verificar a disponibilidade, em março de 2010, de cinco títulos de revistas classificadas como sendo de Pediatria: a Pediatria Moderna e Pediatria, o Jornal de Pediatria, a Revista Paulista de Pediatria e a Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano. Ao analisar exemplares das revistas, considerou-se que a Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano não apresentava uma configuração equivalente à das demais, sendo multidisciplinar. Por isso, foi excluída logo de início.

Utilizando-se as palavras-chave creche, pré-escola, pré-escolar, berçário e maternal na base de dados BIREME - LILACS, efetuando-se a busca por título, palavras-chave e também nos portais nas quatro revistas acadêmicas acima mencionadas, foi possível localizar 111 artigos. Nesses artigos observou-se, porém, certo desequilíbrio na composição do eventual corpus, na medida em que apenas a revista Pediatria está disponível online desde seu primeiro número, de 1979. As demais estão disponíveis online a partir da década de 1990 - Pediatria Moderna e Jornal de Pediatria - ou apenas a partir dos anos 2000 (Revista Paulista de Pediatria). Além disso, a distribuição de frequência dos artigos publicados por ano e por revista indica uma grande variação do número de artigos por revista: de um lado, a Pediatria Moderna (PM), com apenas três artigos publicados referenciando a creche nesse período de 26 anos e, de outro, a Revista Paulista de Pediatria, que publicou 22 artigos.

A conciliatória das duas tendências resulta que 74% dos artigos encontrados entre 1995 e 2009 foram publicados em apenas duas revistas: o Jornal de Pediatria e a Revista Paulista de Pediatria. Diante do exposto, optou-se por pesquisar apenas os artigos disponibilizados nessas duas coleções, em que um(a) dos(as) autores(as) fosse Pediatra. Assim procedendo, chegou-se aos 37 artigos publicados nas duas coleções de revistas indicadas.

A Revista Brasileira de Pediatria foi criada em 1923, pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), sendo a mais antiga revista acadêmica em Pediatria do Brasil. A SBP tem sustentado a profissionalização do pediatra e a institucionalização da Pediatria no Brasil, fundada no Rio de Janeiro em 1910, para se dedicar ao estudo dos problemas e patologias infantis (Gusson & Lopes, 2010, p. 118; Martins, 2008, p. 144). Idealizada por Fernandes Figueira, seu primeiro presidente - nome de destaque na Pediatria brasileira -, a SBP filiou-se, de início, à Sociedade Internacional de Pediatria, como vinha ocorrendo em outros países da América Latina e do mundo (Gusson e Lopes, 2010, p. 118; Martins, 2008, p. 144). Atualmente, como outras Sociedades nacionais, a SBP está afiliada à Internacional Pediatric Association (IPA) e à Asociación Latinoamericana de Pediatria (ALAPE), fundadas em 1910 e 1963, respectivamente.

O Jornal de Pediatria foi criado, em 1934, pela Sociedade Brasileira de Pediatria, substituiu a Revista Brasileira de Pediatria (1923 a 1927), sendo publicado pelas Publicações Científicas Ltda do Rio de Janeiro. Publicação bimensal, o Jornal de Pediatria traz artigos originais, artigos de revisão e relatos de casos, abrangendo as diversas áreas da Pediatria. Atualmente, sua versão impressa atinge 20.000 leitores e instituições no Brasil e na América Latina.

 

As grades de análise

Foram utilizadas técnicas de análise de conteúdo, conforme Bardin (1994) e Rosemberg (1981), entendidas como um conjunto de procedimentos sistemáticos de descrição e caracterização de discursos, buscando objetividade e constância durante o processo de coleta de dados. Foram construídos sete manuais ou grades de análise, conforme a unidade de análise focalizada. Foram elas: periódico, autor(a), artigo, pesquisa, criança, creche e família. Cada unidade de análise delimita um foco ou tema para a descrição, que é auxiliada por um conjunto de categorias.

As unidades de análise e as categorias foram selecionadas a partir dos objetivos do presente trabalho, do referencial teórico e da análise sócio-histórica, além de ter como guia teses e dissertações de pesquisadores do NEGRI. Para definir as categorias, além do texto dos artigos, foram consultadas nos periódicos as capas, contracapas, orientações a colaboradores e, também, o portal da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

 

Resultados

Um primeiro conjunto de resultados foi agrupado em torno de componentes editoriais e acadêmicos referentes às revistas, seus artigos e autores (Quadro 2).

Dos artigos, 40,5% foram publicados no Jornal de Pediatria (JP) e 59,5% na Revista Paulista de Pediatria (RPP), periódicos indexados na base SciELO. Do total de 128 autores(as), 66,4% são mulheres e 43% homens. Em estudo encomendado pela SBP sobre o perfil do conjunto de pediatras brasileiros(as) elaborado por equipe da Fiocruz, realizado entre 1999 e 2000, 59,8% são mulheres (Castellanos, 2003; Machado & Vaz, 2001).

Quase todos os artigos foram escritos em colaboração: 97,3%. Ou seja, apenas um dos 37 artigos foi escrito por um único autor. Pouco mais da metade - 52,4% - são médicos e, dentre eles, boa parte são pediatras (45) ou 35,2% do conjunto de 128 autores(as). Depois de médicos(as), nutricionistas são os especialistas mais numerosos entre os(as) autores(as): 18,8%. O tema da nutrição foi o mais frequentemente tratado nos artigos (67,7%). Notamos, também, que dentre os(as) 128 autores(as), 43% tem pelo menos título de doutor.

 

Quadro 1

 

Ambas as revistas que forneceram o corpus a esta pesquisa são publicadas nas Regiões Sul (JP) e Sudeste (RPP). Assim, a totalidade dos artigos são publicados nessas regiões. Também é a Região Sudeste aquela privilegiada pelos artigos. Entre os 37 artigos, 29 (75,6%) pesquisas se referem, como contexto geográfico, à Região Sudeste, mais particularmente ao estado de São Paulo (59,5%), mais particularmente à cidade de São Paulo (29,7%). Paradoxalmente, o Rio de Janeiro (estado e cidade) foi raramente locus de pesquisa ou artigo referenciando a creche: apenas um.

Um percentual significativo dos artigos analisados está disponível integralmente na Internet: 40,5% no site JPED, 10,8% no site SPSP e 32,4% na base de dados SciELO Brasil. Além disso, a Plataforma Lattes informa que 17,4% deles comportam estrela, ou seja, seus(as) autores(as) consideram que eles se situam entre as suas publicações mais apreciadas. Assim, podemos afirmar que nosso corpus, composto por 37 artigos, dos quais 94,6% representam sínteses de pesquisa, constitui uma amostra integrada à produção contemporânea da Pediatria que referencia a creche. Não se trata, pois, de uma produção marginal ou desqualificada. Seus pontos de partida foram pesquisas acadêmicas. Seus/suas autores/as são qualificados/as. Os textos receberam o imprimatur de seus pares.

Dentre os 37 artigos do corpus, a creche é o único dos contextos de realização da pesquisa em 86,5% deles, isto é, são artigos que se referem especificamente a creches. Além disso, o tema creche é central em 25 (67,6%) dos artigos. Tais características nos permitiriam esperar uma conceituação explícita de creche. Mas, apenas em 19 artigos (51,3%) o termo creche é explicitamente conceituado.

Dentre os artigos que não conceituam explicitamente, mas tratam de Educação Infantil, observase em oito deles que o termo creche se refere a instituições que não se destinam exclusivamente a crianças de 0 a 3 anos. Isto é, não são creches, são instituições que acolhem a faixa etária de 0 a 6 anos ou de 0 a 5 anos (a partir de 2006).

Mesmo entre os 25 artigos em que o tema creche é central, publicados após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a conceituação - de creche - pode não ser adequada: em 14 deles (56,0% usando 25 como base de cálculo), o termo não adota a conceituação oficial. Isto fica reforçado pelo fato de que uma expressiva minoria (18,9%) de artigos menciona alguma legislação referente à creche e/ou Educação Infantil, sendo que apenas um menciona a Constituição Federal (associada a outras leis) e apenas dois (5,4%) mencionam a LDB.

O contexto legal está, frequentemente, ausente dos artigos que compuseram o corpus desta pesquisa. Lembrando que 32 dos 37 artigos se referem a creches ou redes de creches específicas, observando os resultados transcritos, chama nossa atenção que nenhum artigo se refere ao sistema privado de Educação Infantil com fins lucrativos, frequentado pela população dos estratos médios. A totalidade dos artigos que mencionaram a situação administrativa da creche ou rede de creches locus da pesquisa se referiu a creches públicas e/ou conveniadas, isto é, que atendem prioritariamente a população pobre ou de baixa renda.

 

Quadro 3

 

 

Quadro 4

 

 

Quadro 5

 

A maior parte (70,3%) dos artigos faz associação à pobreza e 67,6% se refere em algum momento à população de baixa renda. Exemplos retirados dos artigos:

É um fato amplamente reconhecido que a maior parte dos problemas que afetam o crescimento e desenvolvimento da criança e, até mesmo, sua sobrevivência, decorrem de situação socioeconômica desfavorável (Oria, 1988, p. 141).

Consciente dos problemas condicionados pela pobreza e baseado em estudos que mostram uma recuperação tanto física quanto mental das crianças quando se modifica o meio ambiente, este trabalho tem como propósito testar um programa de promoção nutricional dirigido a pré-escolares de baixa renda da região metropolitana de São Paulo (Souza & Taddei, 1998, p. 144).

Com exceção de três artigos que tratam de aspectos internos à creche e outros dois, que se referem a aspectos psicológicos, os demais 32 artigos (86,5%) usam o que denominam "creche" - que pode ser pré-escola, como vimos - como locus de pesquisa ou reflexão sobre situação de agravo à saúde de crianças. Situações de risco ou de patologia aparecem em quase todos os artigos (94,6%) e a expressão "fator de risco" (83,8%) aparece associada à creche.

Um pouco mais da metade dos artigos (56,9%), apresentam controvérsia quanto ao "fator de risco" associado à creche, ou seja, nem sempre a patologia observada é atribuída diretamente à creche.

Alguns fatores podem ter contribuído para essa alta prevalência, entre eles, pode-se citar o desconhecimento da condição nutricional e de anemia antes da criança ingressar na creche; o consumo de dieta com baixa quantidade de alimentos fonte de ferro hemínico; pequeno período de participação na creche [...] (Machado, Brasil, Palma, & Taddei, 2005, p. 24).

De um modo geral, os artigos são normativos, pois menos da metade deles (40,5%) não apresentam pontos positivos ou negativos associados à creche. Dentre aqueles que apresentam os pontos positivos apresentamos os exemplos abaixo:

A grande maioria das creches (93%) não tinham um alvará de saúde. [...] Em termos de infraestrutura, as creches estudadas parecem, no que foi levantado, adequadas ao atendimento das crianças (Barros, Halpern, & Menegon, 1998, p. 401, grifo nosso).

Crianças frequentadoras de creche obtêm praticamente 70% de suas necessidades nutricionais durante o período de permanência nessas instituições e recebem alimentação balanceada durante praticamente 10 horas do dia, com quantidades suficientes de nutrientes (Biscegli, Corrêa, Romera, & Candido, 2008, p. 128).

Dentre os pontos negativos transcrevemos alguns exemplos a seguir:

As creches são reconhecidas também como locais de disseminação de hepatite A. A doença apresenta-se geralmente em surtos comunitários epidêmicos, durante os quais a infecção é transmitida pessoa a pessoa, pela via fecal oral. Surtos de hepatite A em creches têm sido observados com maior frequência nos últimos anos, paralelamente ao aumento do número de crianças cuidadas em creches (Nesti & Goldbaum, 2007, p. 302).

A alta prevalência de anemia na amostra analisada sugere que o potencial institucional das creches estudadas não é devidamente explorado no sentido de promover a saúde infantil, funcionando ainda, preponderantemente, como política pública compensatória de atendimento às famílias de mães que trabalham fora (Ling, Ribeiro, Konstantyner, & Taddei, 2006, p. 333).

Resultados parciais de estudo em andamento sobre causas básicas de mortalidade em crianças frequentadoras da rede de creches do Município de São Paulo vêm mostrando que a primeira causa básica de morte nesta população são as doenças respiratórias, mais especificamente as pneumonias, e a segunda causa básica, as doenças diarreicas (Prado, Sigulem, Juliano, & Cury, 2002, p. 87).

A negatividade com respeito ao termo creche pode, raras vezes, estar associada ao uso de palavras que consideramos pejorativas:

As creches públicas costumam ser um reduto de crianças de classes socioeconômicas menos privilegiadas (Brunken, Guimarães, & Fisberg, 2002, p. 50, grifo nosso).

Crianças aglomeradas recebendo assistência de forma coletiva [...]. Com a proliferação de estabelecimentos que cuidam diariamente de crianças pequenas em grupo [...] (Nesti & Goldbaum, 2007, p. 306, grifos nossos).

Problematizando nossos achados: por que não se faz pesquisas em creches privadas? Seriam as creches públicas mais disponíveis e receptivas do que as creches privadas? Será que os pais e mães das crianças em creches públicas seriam mais maleáveis do que os de creches privadas? Por disporem de recursos reduzidos? Por serem usuários de estabelecimentos de Educação Infantil públicos? Por que se considera que "creches" públicas são sempre deficientes?

 

Quadro 6

 

Alguns atributos das crianças - idade, sexo e nível socioeconômico - foram explicitados na maioria dos artigos, ao mesmo tempo em que a cor/raça foi majoritariamente omitida. A grande maioria dos artigos (86,5%) usou crianças como sujeito de pesquisa, cujas idades extrapolava, por vezes, os limites da faixa etária legal para ser usuária de creche. Nos artigos analisados, tem-se a impressão de uma criança genérica, denominada como criança, lactente ou pré-escolar (termos que podiam se alternar), a quem não se deu voz (97,3%).

Alguns artigos utilizaram o termo gênero para se referir ao sexo, porém, esse uso do termo gênero não significa adotar uma perspectiva atenta às teorias de gênero, associando-o ao estudo de relações de poder. As mulheres estão mais frequentemente presentes nesses artigos do que os homens. Mas, que não nos enganemos: são mães. Assim, a criança é da mãe como a mãe é da criança. Se a família é mencionada de várias formas, seu membro privilegiado é a mãe/mulher, que aparece em 81,1% dos artigos. Complementarmente, o pai/homem está ausente de 75,7% dos artigos do corpus. Também estão geralmente ausentes os avós (em 86,5% dos artigos), bem como empregadas domésticas ou babás (94,6%).

Para se referir às mulheres, os artigos usam uma multiplicidade de expressões. Por exemplo, alguns como: "mulher que trabalha" (18,9%), outros como "mulher que trabalha e amamenta" (18,9%); "mãe que cuida","mães responsáveis","mães casadas"; mães e suas escolaridades, gestantes e "mães orientadas". Porém, a licença parental não é mencionada na maioria dos artigos (89,2%). Apenas dois artigos (5,4%) citam a licença maternidade, deles, apenas um (2,7%) critica sua duração. Nenhum artigo se refere à licença paternidade.

Sobre a creche como relacionada ao direito da mulher ao trabalho, a maioria dos artigos não o cita (86,5%). O salário maternidade é citado em apenas dois artigos. A mãe é apresentada como aquela que cuida e é responsável pela criança/filho, a quem se deve ensinar como cuidá-lo.

As mulheres trabalhadoras têm-na utilizado [a creche] como um apoio na educação de seus filhos (Antônio, Morcillo, Piedrabuena, & Carniel, 1996, p. 12).

Também seria interessante fornecer orientação dietética às mães e incentivar a prática de esportes nos finais de semana (Biscegli et al., 2009, p. 294).

Nota-se, de modo geral, ausência da voz de crianças, mães, pais, avós e empregadas. Mais que sujeitos de pesquisa, essas pessoas teriam sido "pacientes" de pesquisa. A despeito dessa ausência de voz, o artigo pode explicitar julgamento de valor bem duro com referência à atuação materna, familiar ou da própria creche:

Sabemos que a alimentação com alimentos sólidos em pré-escolares requer paciência e tempo para ofertá-los. A criança que frequenta creche nem sempre tem a seu favor esses fatores, pois se a mãe procurou esse serviço não tinha disponibilidade de tempo para cuidar do filho (Brunken et al., 2002, p. 54).

A maioria dos artigos (70,3%) apresenta sugestões diretamente no plano da saúde e da doença, como no seguinte exemplo:

Esforços e recursos financeiros devem ser especificamente concentrados na implementação de medidas que visem ao incremento do fornecimento de ferro [...] (Almeida et al., 2004, p. 233).

Entretanto, deve-se alertar para a necessidade da adoção de medidas preventivas contra a obesidade infantil [...] (Biscegli et al., 2009, p. 293).

Um artigo apenas (2,7%) faz sugestão no plano de trabalho:

O presente estudo mostra muito claramente a importância de criar uma estrutura de apoio à gestante e nutriz trabalhadora, para que a volta ao trabalho após a licença-gestante não signifique a interrupção precoce do aleitamento materno [...] (Issler, Enk, Azeredo, & Moraes, 1994, p. 290).

Não encontramos nos artigos nenhuma menção a ações específicas para o empresariado. Tampouco qualquer informação sobre o número de creches em empresas. Nem sobre o desejo e disponibilidade de mulheres para amamentar e um debate sobre a eventual tensão entre direitos das mulheres e das crianças, ou das mães e dos(as) filhos(as). Assim, boa parte das sugestões parecem exercícios burocráticos, como se estivessem ali para constar.

Outra particularidade que nos inquietou refere-se ao fato de que a maioria dos artigos (83,8%) se refere à reincidência da "patologia" ou de "risco" investigados como algo que se repete, como nos exemplos abaixo:

Mas existe também evidência razoável de que as crianças que frequentam creches apresentam taxas de morbidade mais altas do que aquelas cuidadas exclusivamente em casa (Barros et al., 1998, p. 397).

Seus benefícios sociais são reconhecidos. Entretanto, estudos vêm demonstrando que são instituições de risco para a saúde, pois as crianças usuárias, quando comparadas com aquelas que ficam em seus domicílios, apresentam um aumento tanto na frequência de episódios de doenças infecto-contagiosas quanto no risco de adquirir doenças de maior gravidade (Antônio et al., 1996, p. 246; Souza & Taddei, 1998, p. 144).

Esse dado nos leva a supor que esses artigos/pesquisas já sabem o que vão encontrar. E selecionaram instituições públicas de Educação Infantil porque sabem que vão encontrar o que procuram. E acrescentamos: se encontram o que procuram é também-mas não somente-porque a instituição acadêmica e seus agentes têm dado pouca atenção à creche como objeto de políticas públicas. Se as instituições públicas de Educação Infantil, que atendem crianças de famílias de baixa renda não comportam "riscos", onde os(as) pesquisadores(as) fariam suas pesquisas?

Mesmo que não se aceitem tais conclusões, parece-nos possível sugerir que os artigos aqui analisados fazem um uso instrumental das crianças: as crianças em instituições de Educação Infantil não são tratadas como agentes, sujeitos de direitos à voz e à educação, mas como objeto/paciente de pesquisas que permitem a seus autores dinamizarem seus próprios postos no mercado de trabalho. Tal interpretação permite-nos sugerir que o corpus aqui analisado sustenta e produz desigualdades de gênero e idade, o que nos permite identificá-los como produção ideológica.

 

Discussão

Segundo Thompson (1995), na análise, enfoca-se o aspecto referencial das formas simbólicas que, como citado anteriormente, são construções significativas que se referem a algo, no caso presente, à concepção de creche. Nosso objetivo é oferecer uma interpretação a esta interpretação captada no discurso da Pediatria brasileira contemporânea, interpretação nossa que se situa no contexto da política brasileira para Educação Infantil, nomeadamente para as creches. Isto é, esta interpretação das creches captada nos artigos acadêmicos de Pediatria pode ser considerada como sustentadora do direito à educação de criança de 0 a 3 anos?

No âmbito desta pesquisa, os artigos acadêmicos analisados foram considerados como forma específica de interpretações sobre a temática creche, ou seja, formas particulares de sujeitos determinados compreenderem um fenômeno e seu universo sócio-histórico. Assim, em Thompson (1995), os processos de interpretação são, sempre, simultaneamente, processos de reinterpretação, pois se trata da construção de significados sobre formas que são, elas próprias, produtos de processos anteriores de atribuição de significados.

Observamos que a creche referenciada nos artigos nem sempre é creche conforme a designação oficial e legal desde 1996. A creche foi predominantemente interpretada, nos textos analisados, explícita e implicitamente, como um local de risco utilizado para suprir a ausência da mãe, principalmente para famílias de baixa renda. Tal interpretação, usualmente aparece associada, no corpus, à percepção de riscos de enfermidades e patologias, mobilizando sentidos de gravidade, de alarme e de negatividade em relação à creche. A creche, via de regra não aparece como um direito da criança à educação. Ao eliminar do cenário creches e usuários dos estratos médios, os artigos analisados eliminam a possibilidade de tratar a creche para além da carência, como uma opção da família e um direito da criança. A creche é em si um mal. Os problemas que enfrenta, bem como as famílias usuárias e as próprias crianças não decorrem das desigualdades estruturais de nossa sociedade, mas dessa instituição. São intrínsecos a ela.

A creche aparece carregada de componentes de valor negativo, associando-a como instituição que se particulariza não pela idade que atende, tampouco por sua dimensão educacional, mas, sim, uma instituição pública ou conveniada, que atende crianças provenientes de famílias pobres ou situadas nos extremos inferiores da hierarquia socioeconômica. Nessas instituições, os artigos sumarizam pesquisas que investigaram temas relacionados a riscos para a saúde e o bem-estar das crianças. Não se perguntam nos artigos: o que ocorreria às famílias e às crianças se não dispusessem de creches? O que ocorre às crianças e famílias que não dispõem de creches? E acima de tudo, não perguntam -e respondem- por que as creches não são como deveriam ser? Por que as creches não são como a Pediatria gostaria que fossem? E como seriam essas creches, se elas existessem? O que fazer para atender essa faixa etária? Por que, politicamente, não é elaborado um plano de ação para melhoria das creches públicas? Tais perspectivas poderiam ao menos, ter respostas no plano discursivo e serem explicitadas nos artigos. Ao não entreverem, ao menos discursivamente, possibilidades para a ação coletiva, os artigos analisados compactuam com o silêncio. E o silêncio pode operar como estratégia da eternalização, outra estratégia de operação da reificação.

Recorrendo aos modos de operação da ideologia propostos por Thompson (1995), sugerimos como interpretação a reificação da concepção de creche, sua eternalização. Ela foi, é e sempre será uma instituição de risco. Em contrapartida, sua desqualificação qualifica o único modo de educação e cuidado legitimado: o realizado exclusivamente pela mãe. Processa-se, por oposição, à naturalização dos cuidados dispensados exclusivamente pela mãe.

A creche não aparece como um direito da criança, tampouco das mães. E os pais estão ausentes. Recorremos, novamente, a outra estratégia típica de construção simbólica da reificação: a eternalização dos cuidados maternos como aqueles que, em qualquer tempo ou sociedade, é, e sempre será, o melhor para a criança pequena.

Destacamos, finalmente, a criança, objeto de labor da Pediatria e delimitação do nicho dos pediatras no mercado de trabalho. Trata-se, antes de tudo, de um paciente, identificado pela

idade, sexo, pobreza. Trata-se de uma pessoa sem reação. Trata-se de uma pessoa sem voz, sem expressão. Trata-se de uma pessoa sem direitos: à creche e a certos cuidados éticos. Trata-se de um(a) não cidadão.

 

Referências

Almeida, C. A. N., Ricco, R. G., Ciampo, L. A. D., Souza, A. M., Pinho, A. P., & Oliveira, J. E. D. de. (2004). Fatores associados a anemia por deficiência de ferro em crianças pré-escolares brasileiras. Jornal de Pediatria, 80(3),229-234.         [ Links ]

Antônio, M. A. G. M., Morcillo, A. M., Piedrabuena, A. E., & Carniel, E. F. (1996). Análise do perfil de crescimento de 566 crianças com idade entre 3 meses e 3 anos matriculadas nas 14 creches municipais de Paulínia (SP Jornal de Pediatria, 72(4),245-250.         [ Links ]

Bardin, L. (1994). Análise de conteúdo (2a ed.). Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Barros, A. J. D., Halpern, R., & Menegon, O. E. (1998). Creches públicas e privadas de Pelotas, RS: aderência à norma técnica. Jornal de Pediatria, 74(5),397-403.         [ Links ]

Biscegli, T. S., Corrêa, C. E. C., Romera, J., & Candido, A. B. (2008). Estado nutricional e carência de ferro em crianças frequentadoras de creche antes e 15 meses após intervenção nutricional. Revista Paulista de Pediatria, 26(2),124-129.         [ Links ]

Biscegli, T. S., Corrêa, C. E. C., Romera, J., Candido, A. B., Santos, J. M., Candido, E. C. A., & Binotto, A. L. (2009). Estado nutricional e prevalência de enteroparasitoses em crianças matriculadas em creche. Revista Paulista de Pediatria, 27(3),289-295.         [ Links ]

Brunken, G. S., Guimarães, L. V., & Fisberg, M. (2002). Anemia em crianças menores de 3 anos que frequentam creches públicas em período integral. Jornal de Pediatria, 78(1),50-56.         [ Links ]

Castellanos, M. E. P. (2003). A pediatria e a construção social da infância: uma análise do discurso médico-pediátrico. Dissertação de mestrado não-publicada, Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, 297pp.         [ Links ]

Ciampo, L. A. D., & Ciampo, I. R. L. D. (2010). Curso de Medicina e ensino de pediatria nas escolas médicas brasileiras. Pediatria (São Paulo), 32(1),9-14.         [ Links ]

Gusson, A. C. T., & Lopes, J. C. (2010). Pediatria no século 21: uma especialidade em perigo. Revista Paulista de Pediatria, 28(1),115-20.         [ Links ]

Issler, R. M. S., Enk, I., Azeredo, P. R., & Moraes, J. A. (1994). Estudo comparativo do período de aleitamento materno de crianças em creches internas e externas. Jornal de Pediatria, 70(5),287-290.         [ Links ]

Ling, N. T., Ribeiro, L. C., Konstantyner, T., & Taddei, J. A. A. C. (2006). Anemia em lactentes que frequentam creches públicas e filantrópicas no Município de São Paulo -SP. Revista Paulista de Pediatria, 24(4),330-334.         [ Links ]

Machado, M. H., & Vaz, E. S. (Orgs.). (2001). Perfil dos pediatras no Brasil: Relatório final. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria.         [ Links ]

Machado, E. H. S., Brasil, A. L. D., Palma, D., & Taddei, J. A. A. C. (2005). Condição nutricional e prevalência de anemia em crianças matriculadas em creches beneficentes. Revista Paulista de Pediatria, 23(1),21-26.         [ Links ]

Martins, A. P. V. (2008). Vamos criar seu filho: os médicos puericultores e a pedagogia materna no século XX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 15(1),135-154.         [ Links ]

Nesti, M. M. M., & Goldbaum, M. (2007). As creches e pré-escolas e as doenças transmissíveis. Jornal de Pediatria, 83(4),299-312.         [ Links ]

Oria, H. (1988). Creches - perspectivas atuais. Revista Paulista de Pediatria, 6(23),141-148.         [ Links ]

Pereira, J. S. (2006). Historia da pediatria no Brasil: de final do século XIX a meados do século XX. Tese de doutorado não-publicada, Programa de Pós-Graduação do Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais, 211pp.         [ Links ]

Prado, S. R. L. A., Sigulem, D. M., Juliano, Y., & Cury, M. C. F. S. (2002). Razão de risco de morbidade e estado nutricional em crianças de creche. Revista Paulista de Pediatria, 20(2),84-89.         [ Links ]

Rivorêdo, C. R. S. F. (1998). Pediatria: Medicina para crianças? Saúde e Sociedade,7(2),33-45.         [ Links ]

Rivorêdo, C. R. S. F., Oliveira, G. N. de, & Mendes, R. T. (2011). A prática pediátrica no SUS: reflexões sobre o papel dos pediatras na Estratégia de Saúde da Família. Revista Ciência e Saúde Coletiva, 16(10),4221-4228.         [ Links ]

Rosemberg, F. (1976). Educação: para quem? Ciência e Cultura (Campinas), 28(12),1466-1471.         [ Links ]

Rosemberg, F. (1981). Da intimidade aos quiprocós: uma discussão em torno da análise de conteúdo. Cadernos CERU, 2,69-80.         [ Links ]

Rosemberg, F. (1997). Teorias de gênero e subordinação de idade: um ensaio. Pró-Posições, 7(3),17-23.         [ Links ]

Rosemberg, F. (1999). Expansão da educação infantil e processos de exclusão. Caderno de Pesquisa, 107,7-40.         [ Links ]

Rosemberg, F. (2006a). Gênero e Educação Infantil. Texto apresentado no Congresso Paulista de Educação Infantil (COPEDI). Lindóia, 06 a 09.         [ Links ]

Rosemberg, F. (2006b). Criança pequena e desigualdade social no Brasil. In M. C. Freitas (Org.), Desigualdade social e diversidade cultural na infância e na juventude (pp. 49-85). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Scott, J. W. (1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20(2),71-99.         [ Links ]

Sirota, R. (2001). Emergência de uma sociologia da infância: evolução do objeto e do olhar. Cadernos de Pesquisa, 112,7-31.         [ Links ]

Sirota, R. (2007). A indeterminação das fronteiras da idade. Perspectiva, 25(1),41-56.         [ Links ]

Souza, P. C., & Taddei, J. A. A. C. (1998). Efeito da frequência à creche nas condições de saúde e nutrição de pré-escolares residentes em favelas da periferia de São Paulo, 1996. Revista Paulista de Pediatria, 16(3),143-150.         [ Links ]

Thompson, J. B. (1995). Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era de meios de comunicação de massa (6a ed.). Petrópolis: Ed. Vozes.         [ Links ]

 

 

Endereços para correspondência:
Flávio Urra. flaviourra@hotmail.com

Submetido em: 11/03/2015
Revisto em: 18/12/2015
Aceito em: 15/05/2016

Creative Commons License