SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.68 issue1Ideology: the conception of day care in journal of pediatricsPrevalence of violence against elderly in the Brazil: analytic review author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.68 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2016

 

ARTIGOS

 

Práticas grupais na esquizoanálise: cartografia, oficina e esquizodrama

 

Group practices in schizoanalysis: cartography, workshop and schizodrama

 

Prácticas grupales en el esquizoanálisis: cartografía, taller y esquizodrama

 

 

Domênico Uhng HurI; Douglas Alves VianaII

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Goiás (UFG). Goiânia. Estado de Goiás. Brasil
IIDiscente. Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Goiás (UFG). Goiânia. Estado de Goiás. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é conhecer como o dispositivo de grupo é trabalhado nas práticas grupais da psicologia brasileira influenciada pela esquizoanálise para discutir seu campo de dispersão e variação. Realizamos uma pesquisa bibliográfica sobre livros e artigos para mapear a configuração das práticas grupais esquizoanalíticas na produção acadêmica publicada no Brasil. Discriminamos quatro modalidades de trabalhos sobre as práticas grupais. Primeiro, os estudos teóricos e de transmissão, segundo, o dispositivo cartografia grupal, terceiro, o dispositivo oficina e, quarto, o esquizodrama. Concluímos que as práticas grupais fomentadas pela esquizoanálise têm como objetivo incitar processos psíquicos, afetivos, sociais, políticos com fins de transformação do instituído. Fomenta, a partir de processos de desterritorialização, a afirmação dos investimentos desejantes dos sujeitos e coletivos sociais.

Palavras-chave: Esquizoanálise; Intervenção; Grupo; Cartografia; Esquizodrama.


ABSTRACT

The purpose of this paper is to understand how the group device is worked in the group practices of Brazilian Psychology, influenced by schizoanalysis, to discuss the field of dispersion and variation. We carried out a bibliographical research on books and articles to map the configuration of schizoanalytic group practices in academic production published in Brazil. We identified four types of works on group practices. First, theoretical studies and transmission; second, the group cartography device; third, the workshop device and; fourth, the schizodrama. We concluded that schizoanalytic group practices aim to promote political, social, affective and psychic processes in order to transform the instituted. From processes of deterritorialization it promotes the affirmation of the desiring investments of the subjects and social collectives.

Keywords: Schizoanalysis; Intervention; Group; Cartography; Schizodrama.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo conocer cómo el dispositivo de grupo es trabajado en las prácticas grupales de la psicología brasileña, influenciada por el esquizoanálisis, para discutir su campo de dispersión y variación. Realizamos una investigación bibliográfica sobre libros y artículos para trazar la configuración de las prácticas grupales esquizoanalíticas en las publicaciones académicas de Brasil. Encontramos cuatro modalidades de trabajos sobre las prácticas grupales: los estudios teóricos y de transmisión, el dispositivo cartografía grupal, el dispositivo taller y el esquizodrama. Llegamos a la conclusión que las prácticas grupales fomentadas por el esquizoanálisis tienen como objetivo incitar procesos psíquicos, afectivos, sociales, políticos, etc. con fines de transformación del instituido. Desde los procesos de desterritorialización se fomenta la afirmación de los flujos deseantes de los sujetos y colectivos sociales.

Palabras clave: Esquizoanálisis; Intervención; Grupo; Cartografía; Esquizodrama.


 

 

A esquizoanálise é um campo de saber criado por Deleuze e Guattari (1976). É um campo de conhecimento mais próximo da Filosofia, da Estética e da crítica social, estando mais distante do âmbito técnico, das técnicas de intervenção. No entanto, muitos psicólogos brasileiros se referenciam na esquizoanálise para efetuar diversas modalidades de práticas interventivas no âmbito clínico-individual, grupal ou institucional. As intervenções estão referenciadas, no projeto esquizoanalítico, a buscar potencializar os pensamentos e afetos dos indivíduos e coletivos em suas tarefas. A esquizoanálise possui três tarefas principais: uma negativa e duas positivas (Baremblitt, 2014b; Deleuze & Guattari, 1976). A primeira, negativa, de caráter destrutivo, visa raspar e desconstruir as estruturas coercitivas e bloqueadoras do desejo nos âmbitos psíquico ou social. Visa desbloquear e suprimir as barreiras que causam algum tipo de sofrimento aos indivíduos, num exercício de desterritorialização das condutas instituídas. Os termos instituído e instituinte foram propostos por Lapassade (1977), tornando-se de uso corrente para os analistas institucionais. O instituído remete ao momento consolidado, estratificado, delimitado, enquanto o instituinte à emergência de um acontecimento, do movimento, da novidade e da diferença.

A segunda, positiva, tem um caráter cartográfico de mapear e compreender o funcionamento dos agenciamentos e das máquinas envolvidas no processo, como as máquinas sociais, técnicas e psíquicas, sempre apreendendo os fatores psicológicos articulados aos sociais. Máquina é um conceito utilizado por Deleuze e Guattari em substituição ao de estrutura. São sistemas corte-fluxo, de articulação de diferentes elementos e processos. "Não são totalidades fechadas sobre si mesmas. Mantêm relações determinadas com uma exterioridade espaço-temporal, bem como com universos de signos e campos de virtualidades" (Guattari, 2015, p. 383, tradução nossa).

Após a raspagem do que bloqueia e da apreensão de como as máquinas psicossociais funcionam e estão articuladas, a terceira tarefa visa conectar os investimentos libidinais aos agenciamentos sociais. Busca ligar o desejo ao meio, o dentro ao fora, possibilitando a fluidez entre interno e externo, mitigando a alienação do indivíduo sobre seu desejo, seu corpo e o próprio ambiente em que está inserido.

Tendo em vista essa perspectiva, as práticas psicológicas esquizoanalíticas adotam grande variação em solo brasileiro e não se reduzem a apenas um tipo. As práticas assumidas são tantas e diversificadas que consideramos que tal discussão mereça ser ampliada. Adiciona-se também o fato que, em significativa parte dos estudos publicados sobre intervenção em grupos, há certa escassez de uma discussão mais detalhada acerca de uma teoria da técnica. Por exemplo, uma explicitação mais detalhada dos processos que levam à conscientização de determinado coletivo social ou a condução dos grupos e da intervenção como um todo. Muitas vezes se visibiliza mais os princípios e objetivos da intervenção, seus pressupostos teóricos e resultados, mas não a discussão da teoria do processo, da técnica de intervenção no grupo ou do funcionamento do dispositivo.

Dessa forma, nosso objetivo, neste trabalho, é conhecer como os dispositivos grupais são trabalhados nas práticas da psicologia brasileira influenciada pela esquizoanálise para discutir seu campo de dispersão e variação. Objetivamos tal levantamento para realizar uma discussão sobre as modalidades de dispositivos grupais esquizoanalíticos trabalhados por psicólogos no país. Como é o funcionamento de tais dispositivos de intervenção? Como são trabalhados na prática do psicólogo?

Neste estudo realizamos uma cartografia (Passos, Kastrup, & Escossia, 2009) sobre a produção brasileira influenciada pela esquizoanálise. Conforme Rolnik (1989), a cartografia é um "[...] desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que os movimentos de transformação da paisagem" (p. 15). A cartografia foi operada através de uma pesquisa bibliográfica (Creswell, 2010) durante o primeiro semestre de 2014. Investigamos artigos em periódicos nacionais e livros sobre intervenção em grupos referenciados pela esquizoanálise. Buscamos rastrear e mapear como as práticas grupais esquizoanalíticas vêm se delineando na produção publicada no Brasil. Pesquisamos bases de dados que agrupam periódicos de Psicologia, como o SciELO, PePSIC e Portal de Periódicos da CAPES. Realizamos a pesquisa bibliográfica com as seguintes palavras-chave: "grupo" e "esquizoanálise", ou "esquizodrama". Em nossa busca nas bases de dados deparamo-nos com uma limitação, pois nem todos periódicos acadêmicos estão indexados nelas. Portanto, compreendemos que nossa análise é parcial, considerando que há trabalhos que não encontramos por não estarem nessas bases de dados ou por não estarem digitalizados e abertos ao acesso na internet. A amostra também pode ser considerada como de conveniência, pois como somos estudiosos do esquizodrama, tivemos acesso mais facilitado a esses textos, mesmo que alguns deles não constem nas bases de dados citadas acima.

Analisamos as práticas grupais narradas em cada artigo, cartografando-as de forma convergente à análise de conteúdo (Bardin, 1977; Vázquez, 1997). No primeiro momento, discriminamos as diferentes modalidades de intervenção, os distintos dispositivos, seu funcionamento. Operamos uma fragmentação do investigado em pequenas unidades para a constituição de unidades de conteúdos. No segundo momento, agrupamos as unidades de conteúdo em conjuntos gerais, resultando assim nas categorias que propomos neste texto.

Mesmo que neste trabalho operemos na superfície do registro-controle (Baremblitt, 1998), nosso intuito não foi o de reduzir e "encaixotar" o campo de intervenção em grupos a partir da perspectiva esquizoanalítica, mas sim conhecer como as práticas grupais vêm sendo desenvolvidas nesse campo. Pretendemos investigar suas configurações e delinear um sistema aberto que expresse um campo possível das práticas grupais influenciadas pela esquizoanálise. Consideramos que ao invés da consolidação de categorias fechadas, defrontamo-nos com um campo ramificado, marcado pela heterogeneidade, multiplicidade e diferença. E não pela identidade.

Parte considerável dos estudos encontrados refere-se às contribuições teóricas, éticas e políticas da esquizoanálise para questões gerais da Psicologia, não estando necessariamente relacionada às práticas grupais. Por ser um campo complexo, há muitos estudos que preferem discutir seus conceitos, concepções de sociedade e de subjetividade e como podem elucidar determinados fenômenos psicossociais. Nos trabalhos que utilizam o dispositivo de grupo, constatamos que há muitas diferenças em relação ao seu uso e funcionamento. Dessa forma, a partir dos artigos encontrados, categorizamos as discussões apresentadas sobre as práticas grupais em quatro diferentes estratos: estudos teóricos e transmissão, dispositivo cartografia grupal, dispositivo oficina e esquizodrama. Tais estratos não são estanques e estão em interface, por isso algumas práticas podem ser situadas em mais de um deles. Nesses casos, categorizamos no estrato que consideramos mais próximo. Outro dado que pode ser de interesse é a concentração regional dessa produção, localizada majoritariamente nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo.

 

Estudos teóricos e transmissão

Os estudos teóricos e de transmissão acerca da temática de grupos e esquizoanálise são diversos. Neste tópico citamos algumas obras que consideramos emblemáticas para descrever essa categoria. Apresentamos um recorte temporal apenas por medida didática.

Da década de 1980 devem ser citadas duas obras, organizadas por uma associação de vanguarda na articulação entre esquizoanálise e grupos no Brasil, o IBRAPSI -Instituto Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições. O IBRAPSI foi uma instituição que formou inúmeros esquizoanalistas, analistas institucionais, psicanalistas e coordenadores de grupo no Rio de Janeiro (Rodrigues, Fernandes, & Duarte, 2001).

A primeira obra, O inconsciente institucional (Baremblitt, 1984), resultou do 2º Simpósio Internacional de psicanálise, grupos e instituições, ocorrido em 1982 no Rio de Janeiro. Ela teve a participação de importantes analistas institucionais, como R. Lourau, O. Saidón, G. Mendel, H. C. Rodrigues, etc., que discutiram as práticas grupais e institucionais em uma série de mesas redondas. Dentre as diversas discussões, Baremblitt (1984) elenca dois aspectos importantes da esquizoanálise no trabalho com grupos: a desterritorialização e o agenciamento. Considera que:

Um processo revolucionário desejante tem de passar por (e gera uma) desterritorialização; linhas de fuga do desejo, conexões insólitas que fazem explodir, desterritorializam as formas concretas ou abstratas do poder. Por outro lado a idéia de dispositivo, que se relaciona com a de agenciamento, consiste na montagem espontânea de um artefato absolutamente novo que articula elementos absolutamente heterogêneos, desde grandes segmentos naturais, máquinas técnicas e sociais, até microscópicas funções subpessoais. Esses dispositivos podem ser os mecanismos que veiculizam a desterritorialização (Baremblitt, 1984, p. 55).

Compreende-se, a partir do citado acima, que a utilização do dispositivo de grupo no enfoque esquizoanalítico não tem como finalidade trazer processos de adaptação e normalização, senão o contrário: incitar processos de desterritorialização. Isto é, transformações nos âmbitos cognitivo, afetivo, social e político. As práticas grupais, nessa perspectiva, são tomadas como disruptivas e potencializadoras dos fluxos desejantes.

Já a segunda e clássica obra, Grupos: teoria e técnica (Baremblitt, 1986) teoriza o grupo a partir de diversos enfoques teóricos e autores, como por exemplo, para Pichon-Rivière, Bion, Anzieu, Lapassade, etc. Há um capítulo que discute o grupo na esquizoanálise (Vidal, 1986), mas que se restringe a trabalhar os conceitos de grupos sujeito e grupo sujeitado, fantasma de grupo e transversalidade de F. Guattari. Consideramos que tal discussão se refere mais ao período de analista institucional de Guattari, não agregando os principais conceitos que seriam formulados posteriormente em Capitalismo e esquizofrenia (Deleuze & Guattari, 1976, 1995).

Da década de 1990, citamos algumas obras que discutem os grupos a partir da esquizoanálise. O volume 4 da importante coleção Saúdeloucura (Lancetti, 1994) foi um número especial para a discussão de Grupos e coletivos. Discorremos brevemente sobre duas passagens presentes na coletânea. A primeira refere-se à teorização de Barros sobre o funcionamento do dispositivo analítico grupal. Compreende-o como uma máquina que pode operar na descristalização dos lugares e papeis, possibilitando a "irrupção do inesperado onde estava o já naturalizado" (Barros, 1994, p. 154). Portanto, atua como uma máquina que fomenta os picos de desterritorialização dos processos instituídos. A segunda refere-se à crítica de Baremblitt, na apresentação desse volume, às concepções assumidas por Bezerra Jr. (1994) e Costa (1989). Afirma que esses posicionamentos, que refletem a postura psicanalítica, reduzem a intervenção grupal apenas ao entendimento e condução dos processos grupais sem articulá-la às outras máquinas sociais e sem conseguir "transcender o despotismo psicanalítico" (Baremblitt, 1994, p. 12).

Obra primorosa que merece ser citada é o importante livro de Barros (2007), que foi produzida como tese de doutorado em 1994. A autora realiza uma cartografia dos distintos agenciamentos grupais, desde seus primórdios no século XX referenciada pela perspectiva da esquizoanálise. Analisa distintas práticas grupais, desde o training group de K. Lewin, passando pela psicanálise de grupo, psicodrama, humanismo, socioanálise, entre outras, trazendo contribuições da esquizoanálise ao dispositivo.

Produção mais recente e que merece ser citada é o extenso e formidável trabalho de Rodrigues (Rodrigues, 2002, 2007; Rodrigues & Barros, 2003) que se dedica à discussão e análise do "grupalismo" e "institucionalismo" no Brasil, transversalizando estudos históricos e conceituais sobre a análise institucional, esquizoanálise e seus dispositivos de intervenção.

Outro artigo teórico recente é o de Hur (2012), que visa discutir o dispositivo de grupo na esquizoanálise. Revisa as obras dos fundadores da esquizoanálise para compreender como apreendem o dispositivo grupo, discute o esquizodrama de Baremblitt (2004) e formula como diagrama a tetravalência do dispositivo. Ressalta que, por se tratar fundamentalmente de uma Filosofia, não há na esquizoanálise uma preocupação explícita com o dispositivo de grupo, havendo poucas referências sobre o funcionamento do grupo. Hur (2012) considera que as principais influências relacionam-se aos conceitos de agenciamento e dispositivo, pois possibilitam maior entendimento de como o dispositivo de grupo funciona. Deleuze (1989) define dispositivo como uma máquina, um agenciamento que tem como objetivo articular processos de diferentes naturezas. Funciona como uma máquina de produção de discursos e de ações-relações, em que se faz falar e se faz ver, sendo assim uma máquina de produção de subjetivação, atravessada por linhas de saber e poder (Hur, 2012).

Baremblitt (1984) e Barros (1994, 2007) ressaltam a função do dispositivo de grupo de fomentar processos de desterritorialização e a produção de linhas de fugas. Compreendem o grupo como uma máquina concreta que está articulada a outras máquinas sociais, nunca estando isolada. Tal máquina deve ser compreendida como um agenciamento de regimes e linhas de forças, que provoca distintos efeitos. Consideramos que o debate sobre as práticas grupais não deve se encerrar sobre o dispositivo grupal em si, mas sim compreender que efeitos são agenciados, mobilizados e intensificados.

 

Dispositivo cartografia grupal

No trabalho de análise sobre o conteúdo dos artigos, propomos um segundo estrato, no qual o foco para o pesquisador ou para o grupo atendido foi de mapear, compreender e autoanalisar os processos experimentados e o regime de forças atuantes. De modo geral, os textos apresentam reflexões baseadas em discussões e autoanálises no espaço grupal. Por isso, ao invés de denominar pelos termos correntes, como grupos de reflexão ou grupos de discussão optamos por chamar essa modalidade de dispositivo cartografia grupal.

O termo cartografia passou a ser utilizado na Psicologia brasileira devido às discussões de Deleuze e Guattari (1995) sobre o princípio da cartografia. A análise não deve mais escavar a tumba do faraó, utilizando os tradicionais métodos históricos, mas sim traçar linhas na superfície, mapear a "deriva dos continentes" (Deleuze, 1997, p. 76), numa espécie de substituição da história pela geografia. Se o método do historiador é a historiografia, o do geógrafo é a cartografia. Rolnik (1989) multiplicou o uso do termo cartografia, após a publicação de seu livro Cartografia sentimental. Com a publicação do livro de Passos, Kastrup e Escóssia (2009), Pistas sobre o método da cartografia, tal termo consolidou-se em pesquisas de todo o país. Então, nesse tópico foram agrupadas diversas práticas que têm como finalidade a cartografia tanto de práticas grupais diretas com coletivos sociais, como as que têm finalidade de análise institucional. Nessa categoria se encontra o maior número de relatos de práticas grupais encontrados nos artigos.

As cartografias grupais são realizadas em numerosos espaços com uma heterogeneidade de coletivos e contextos. Constata-se que, ao mesmo tempo em que proporciona dados sobre o coletivo, o próprio coletivo se autoanalisa e potencializa-se. Isso pode ser visto no artigo de Romagnoli e Magnani (2012), que cartografam as relações entre famílias atendidas por um estabelecimento de saúde e sua equipe. A cartografia grupal, além de compreender os processos em jogo, visa potencializar os atores envolvidos.

De forma convergente, Oliveira e Romagnoli (2014) realizam uma cartografia grupal no campo da arte. Cartografam as práticas de uma companhia teatral, tomando-a como um dispositivo-grupo. A intervenção mapeia suas práticas, bloqueios e processos de transformação. Consideram que o teatro e a arte podem promover revoluções moleculares e novos processos de subjetivação aos coletivos participantes.

Na mesma direção, Bocco e Lazzarotto (2004) relatam o trabalho realizado com um grupo de adolescentes que cumprem medida socioeducativa. A partir do fomento de linhas de desterritorialização, constroem tanto o processo de intervenção, como o dispositivo de grupo. Essa cartografia se traçou juntamente com o processo de elaborar as ansiedades e as inseguranças dogrupo como um todo, tanto dos pesquisadores como dos pesquisados. É interessante notar que ao mesmo tempo em que se desconstroem estereótipos e dicotomias é que o dispositivo-grupo vai se constituindo. Percebe-se, assim, que o funcionamento do dispositivo de intervenção é a própria construção do grupo. A denominação dada pelos pesquisadores, artesão-analista, é emblemática do processo de construção, de entrelaçamento de experiências para a constituição de uma trama comum.

Outro exemplo pode ser visto no trabalho de Guimarães, Meneghel e Oliveira (2006). Realizam uma cartografia dos processos de subjetivação e de estratégias de resistência na prisão. Entre variados procedimentos, utilizam o dispositivo de grupo. Apresentam os discursos dos participantes, problematizando-os por meio da perspectiva esquizoanalítica.

As cartografias grupais também são desenvolvidas em estabelecimentos de ensino. Hur, Alencar e Almeida (2012) utilizam variados dispositivos de intervenção, como o Grupo Operativo, Psicodrama Psicanalítico e Multiplicação Dramática, no referencial da esquizoanálise, com a finalidade de auxiliar o processo de aprendizagem de estudantes de diferentes áreas numa disciplina na universidade. Com os distintos dispositivos, sejam verbais ou dramáticos, mapeiam os possíveis bloqueios para a aprendizagem, sejam cognitivos e/ou afetivos, com o fim de potencializar o pensamento e afetos dos participantes. Os dispositivos grupais têm a finalidade de cartografar e acompanhar o processo para gerar uma potencialização da discussão, elaboração da aprendizagem e formação.

Consideramos, assim, que as cartografias grupais radicalizam o fato de que pesquisa e intervenção são indissociáveis. Pois a cartografia, como um dispositivo de pesquisa-intervenção, permite uma análise não apenas do campo investigado, mas também dos modos com que o pesquisador se relaciona com as práticas e contextos produzidos. Dessa forma, não há na cartografia grupal a separação entre teoria e prática ou entre sujeito e objeto. Parte-se da situação de heterogeneidade em sua complexidade, tratando de mapear as configurações e vetores de forças resultantes do processo de interação entre os distintos componentes do grupo. De forma geral, os trabalhos supracitados realizam cartografias que têm como foco os processos desencadeados no grupo. Mas, também há artigos que visam realizar uma cartografia institucional a partir do dispositivo de grupo. Seguem a mesma lógica de intervenção de incitar processos de reflexão e mudança nos participantes, focando também na análise de aspectos institucionais. Não separamos esses trabalhos em outra categoria, pois seguem a mesma lógica da cartografia grupal, ampliada ao âmbito institucional.

Minozzo, Kammzetser, Debastiani, Fait e Paulon (2012) buscam, com o dispositivo de grupo, analisar as práticas de cuidado desenvolvidas por profissionais de saúde e a sua correspondência com os processos de desinstitucionalização da loucura inscritos na reforma psiquiátrica brasileira.

As intervenções assumem explicitamente a tarefa de gerar mudanças no grupo. Constata-se que no percurso entre problematizar as práticas do cuidado presentes e inserir novos fatores para fomentar questões ainda não exploradas, emergem mudanças e reflexões significativas sobre o cuidar e a realidade institucional.

No campo da Enfermagem, Fortuna et al. (2012) pretendem cartografar o movimento institucional no trabalho da Estratégia Saúde da Família (ESF), no que tange as práticas de cuidado. Trabalham com uma equipe da ESF formada por profissionais de diversas áreas. Nos encontros grupais buscou-se "captar os modos de passagem das linhas, quaisquer que sejam [...]" (Fortuna et al., 2012, p. 658). As técnicas foram utilizadas para possibilitar que os temas fossem discutidos da forma mais livre possível. Os processos individuais mobilizados são vistos como "meio" para mapear as práticas de cuidado instituídas. Vislumbram que saídas e mudanças significativas são geradas no grupo através da produção de rupturas do instituído e da homogeneidade dominante.

Em outro trabalho, Fortuna, Franceschini, Mishima, Matumoto e Pereira (2011) têm o objetivo de cartografar os movimentos de educação permanente em saúde numa rede de uma região distrital de São Paulo. A utilização do dispositivo-grupo teve como finalidade coletar dados sobre aspectos da instituição Educação Permanente em Saúde (EPS). A intervenção grupal foi realizada pelo referencial de Pichon-Rivière e da esquizoanálise. Orientou-se pela tarefa de produzir análises coletivas da vivência dos facilitadores de EPS e os processos de subjetivação decorrentes. Introduziram-se analisadores artificiais para trazer à tona questões políticas, afetivas e conflitos, gerando reflexões do grupo a respeito dos mesmos. Cartografou-se ansiedades, defesas e bloqueios que dificultam o trabalho institucional e os riscos da captura da autonomia.

Em síntese constatamos que no dispositivo da cartografia grupal buscam-se mapear os discursos, afetos e as práticas coletivas, instituídas e instituintes, rastrear o regime de forças em que se está inserido, com a finalidade de incitar processos instituintes e de construção coletiva. De forma geral os pesquisadores se colocam de forma horizontalizada frente ao grupo analisado. As técnicas interventivas utilizadas servem para facilitar o processo de expressão do grupo, em que seu processo é visto como gerador de mudanças na própria construção do grupo. Fomenta que o instituído passe a instituinte, a gerar linhas de fuga ou ao menos que o coletivo perceba os processos de estratificação em que se encontra e vislumbre possibilidades de transformação. Por outro lado, os autores fazem um relato bastante sintético no que se refere à forma de funcionamento do dispositivo de intervenção utilizado. Parte significativa dos trabalhos não detalhou como funciona o dispositivo de intervenção, preferindo desenvolver os enfoques teórico, social e político acerca do que está sendo analisado e os resultados da intervenção.

 

Dispositivo Oficina

Outra modalidade de intervenção grupal com o enfoque esquizoanalítico encontrada em nossa pesquisa bibliográfica é denominada, pelos próprios autores, de oficina. As oficinas são dispositivos grupais bastante utilizados por psicólogos, com finalidades psicoterápicas ou não. Cedraz e Dimenstein (2005) afirmam que a constituição das oficinas está relacionada à reforma psiquiátrica e as políticas de humanização na Saúde Mental. As oficinas são dispositivos de reabilitação psicossocial que atuam "por meio de ações que passam fundamentalmente pela inserção do paciente psiquiátrico no trabalho e/ou em atividades artísticas, artesanais, ou em dar-lhe acesso aos meios de comunicação etc." (Rauter, 2000, p. 268). Santos e Romagnoli (2012) acrescentam que, de acordo com o Ministério da Saúde, uma oficina se caracteriza como uma atividade grupal de socialização, expressão e inserção social. As oficinas se inserem em uma nova concepção de Saúde Mental que busca a reabilitação psicossocial, podendo ser catalisadora de novos processos de subjetivação aos indivíduos envolvidos, na qual se visa a reinserção de forma ativa (p. 33).

Nos artigos investigados, as práticas das oficinas estão marcadas por uma indeterminação e uma fluidez em seu funcionamento. A esquizoanálise é utilizada como uma lente que enuncia os processos subjetivos, grupais e institucionais. Ela não opera como uma teoria da técnica, mas sim como uma teoria da análise do processo. Entra como uma ferramenta que possibilita ao pesquisador compreender que processos a intervenção mobilizou no grupo e nos indivíduos. Também é utilizada como uma inspiração para a criação das oficinas. Denominamos, assim, esse estrato como dispositivo oficina. Em alguns artigos, os autores afirmam realizar nas oficinas uma cartografia do processo. Mesmo que as narrativas possam estar relacionadas à cartografia grupal, optamos por criar outra categoria, pois consideramos que o dispositivo das oficinas traz um agenciamento formado por outras linhas.

De modo geral, os autores compreendem as oficinas como dispositivos de trabalhos coletivos, nos quais se busca incitar processos expressivos, produtivos e novos modos de subjetivação. Constatamos que a singularidade das oficinas é trabalhar explicitamente com mecanismos que não ficam apenas no registro da linguagem, mas que envolvem outras instâncias, como o corpo, a música, dança, teatro, artesanato, artes plásticas (Santos & Romagnoli, 2012). Exemplo de uma instância assignificante que tem efeitos impactantes no acontecer grupal de uma oficina é o da música: "Música-sensação que faz do corpo um corpo dançante e cantante, abrindo caminhos para que percorram forças, delineiem-se realidades não representativas, campo de sensações." (Santos & Romagnoli, 2012, p. 38). Constata-se que a música, a sensação, o ritmo e o corpo constituem processos intensivos e assignificantes, que vão além do registro do simbólico. Transversalizam outros registros intimamente relacionados a processos estéticos e de criação. A oficina é compreendida como o espaço de encontros entre distintos corpos que mobiliza aspectos que vão além da representação e que a partir de suas conexões produzem novos processos e intensidades.

Citamos algumas oficinas. Ramão, Meneghel e Oliveira (2005) narram as oficinas realizadas com mulheres negras em situação de violência de gênero. Organizaram oficinas de confecção de máscaras, de relato de histórias de orixás femininos e de ritualização dessas narrativas como forma de atualização de processos que podem potencializar essas mulheres. Santos e Romagnoli (2012) descrevem as oficinas realizadas com usuários do Centro de Referência em Saúde Mental. Foram propostas no formato de teatro, onde as participantes tinham liberdade para atuarem como quisessem: cantar, dar aula, entre outras performances. A performatividade, a música e a inserção do corpo em cena entram como aspectos que visam potencializar os processos intensivos e de subjetivação. Já Cedraz e Dimenstein (2005) realizam uma análise crítica das oficinas realizadas num Centro de Atenção Psicossocial, para discutir se as oficinas constituem ou não um dispositivo de promoção de mudança da lógica manicomial. Devido a sua constituição como um espaço fluido e múltiplo de possibilidades, Cedraz e Dimenstein (2005) defendem que os princípios políticos do dispositivo oficina devem ser claros e sempre reavaliados, devido ao risco das oficinas se tornarem meras atividades ocupacionais. Ou pior, mecanismos de reprodução da lógica institucional. Por isso, as autoras defendem uma perspectiva de oficina transformadora:

É imprescindível fazer das oficinas espaços de discussão e desconstrução dos valores que fundamentam nossas idéias e práticas, abrindo possibilidades para que cada um possa estabelecer novas conexões, criar territórios existenciais atravessados por outros valores que não sejam somente os que aprisionam numa vida aparentemente sem riscos (Cedraz & Dimenstein, 2005, p. 233)

Constata-se que os distintos autores defendem que o dispositivo oficina possui uma implicação política de proporcionar processos de desterritorialização e criação, não meramente ocupacionais. São utilizadas técnicas que priorizam atividades estéticas, como o teatro e expressões artísticas em geral, podendo resultar em novos processos de subjetivação. Consideramos assim que as oficinas referem-se a práticas grupais que estão relacionadas à criação e expressão de algo, em que a esquizoanálise entra como base ontológica e ferramenta teórica de leitura dos processos.

 

Esquizodrama

Por mais que o esquizodrama possa estar difundido nos outros estratos discutidos, optamos por separá-lo, por ser um campo novo e instituinte no território da esquizoanálise e que está se disseminando no Brasil. Muitos trabalhos tratam de apresentá-lo e discuti-lo, no âmbito teórico ou no relato de algum tipo de intervenção. As principais referências encontradas sobre o esquizodrama são os artigos de seu criador, Baremblitt (2002, 2013, 2014a, 2014b). Igualmente, é de grande importância o trabalho de Bichuetti (1999), que incursiona sobre suas experiências e reflexões esquizodramáticas na saúde mental. Também encontramos artigos que focalizam na apresentação da obra de Baremblitt e o esquizodrama (Hur, 2012, 2013, 2014).

Baremblitt, a partir de sua experiência clínico-política e intensa bricolagem teórica, criou no Brasil o esquizodrama. Para ele, o esquizodrama funciona como um conjunto de estratégias, táticas e técnicas que buscam atuar sobre os aspectos subjetivos, sociais, semióticos e tecnológicos de seus dispositivos para proporcionar experiências de desterritorialização dos agenciamentos instituídos. Visa incitar a produção de linhas de fuga e desejantes que levem a novos processos de subjetivação. Objetiva o protagonismo e a potencialização de seus participantes, os atos dionisíacos e criadores do pensamento e dos afetos, para que nesses processos de afetar e ser afetados sejam intensificados os agenciamentos e encontros (Baremblitt, 2002, 2013). Baremblitt (2004), através das práticas esquizodramáticas, criou novos conceitos, compreendidos como esquizoemas.

A partir da análise dos textos, consideramos que o esquizodrama é formado principalmente por dois polos. O primeiro, teórico, é a efetuação da articulação entre proposições da esquizoanálise com distintas práticas de intervenção clínica e grupal, produzindo novos regimes de enunciados e novas práticas de intervenção. O segundo, dramático, é uma atualização do Teatro da Crueldade de Artaud (1938/2006) no espaço da intervenção. Crueldade para Artaud não significa trazer a violência física à cena, mas sim intensificar os fluxos e potências corpóreas e de vida. A crueldade de intensificar e trazer os afetos à tona. A crueldade de desconstruir os valores pressupostos e instituídos é um exercício de violentar o pensamento, suas imagens de pensamento instituídas. Portanto, o esquizodrama performatiza as tarefas preconizadas pela esquizoanálise, incitando os processos de desterritorialização para a potencialização dos pensamentos, afetos e corpos dos que sofrem a intervenção.

[...] el Esquizodrama criticará y embestirá y actuará contra: a) lo estratificado, codificado, sobre-codificado, subjetivado e individualizado, repetitivo y padronizado; b) lo instituido, organizado, establecido, habitual y consagrado, equipamientos de poder etc. En la segunda de sus tareas (siempre inmanentes y sincrónicas con las primeras), el Esquizodrama se propone "abrir camino", aliar y respaldar, intensificar y deflagrar las "fuerzas positivas y las voluntades afirmativas" (como diría Nietzsche) singulares de los diferentes tipos de participantes y colectividades para la producción de producción, su dominio y manejo sobre la producción de reproducción y anti-producción. Se trata de la invención, siempre singular, de nuevas modalidades de composición y potenciación de la naturaleza (Baremblitt, 2014a, p. 21).

Constata-se que na operação do esquizodrama há duas tarefas. A primeira refere-se às tarefas destrutivas de raspagem do instituído e dos bloqueios. E a segunda, às tarefas positivas, relacionadas à potencialização das afirmações desejantes e virtudes dos coletivos, incitando assim processos de transformação e criação. Baremblitt (2014b) elabora diferentes dispositivos de intervenção, que utilizam não apenas recursos verbais, mas também recursos corporais, artísticos e políticos. Traz distintas referências, não apenas de teorias da psicologia, mas também da literatura, do teatro, da bioenergética e até mesmo de rituais de umbanda e vodu. Desse modo há diferentes dimensões nos distintos dispositivos do esquizodrama "em que pode haver a situação face-a-face grupal, ou da performance psicodramática dos atores em cena, ou até de uma dança com tambores tribais, que aparentemente pode parecer ser uma experiência caótica" (Hur, 2012, p. 23). Tais dispositivos produzem linhas de fuga frente aos processos codificados e instituídos que bloqueiam os investimentos desejantes.

Baremblitt buscou corporificar diversos conceitos da esquizoanálise em dispositivos (Hur, 2014). Se para ele a esquizoanálise é a arte de criar conceitos, o esquizodrama é a arte de criar dispositivos (Baremblitt, 2002). Um exemplo de dispositivo inédito é o da "Rostridad", inventado a partir da crítica de Deleuze e Guattari (1995) aos processos de codificação do rosto, no platô denominado "Rostidade". A crítica incide sobre como o corpo é reduzido à configuração do rosto, reduzindo assim sua multiplicidade de afecções e possibilidades à face instituída e codificada. Do ponto de vista social, também criticam a constituição de um rosto padrão, que se torna norma, que é a representação de Jesus Cristo, face que expressa a dominância do homem macho ariano civilizado de traços finos. Devido a tal discussão, Baremblitt criou um dispositivo que visa a desterritorialização desse rosto cristalizado e estratificado, a partir de um jogo com espelho, imagens e luminosidades:

Utiliza um espelho especial que ao mesmo tempo reflete e refrata a imagem. Coloca assim duplas de pessoas face-a-face com o espelho entre elas. Em um ambiente semicerrado e de acordo com as variações de iluminação sobre o espelho resulta-se no assombroso fenômeno imagético de conjunção das faces. De tal forma que Gregório busca intensificar os distintos afetos de estranheza que emergem da configuração imagética facial mais bizarra para a dupla, trazendo assim à tona um afeto ainda não significado, ou melhor, um aspecto assignificante. A consigna é que tal aspecto deve ser ainda mais intensificado e objeto de um processo de figuração, seja por via de uma dramatização, um jogo de palavras, uma poesia, um desenho, etc. Emergem assim múltiplos sentidos para a experiência, que às vezes são verbalizados, outras vezes não, sempre abrindo para o campo da indeterminação e novidade em que há uma produção intensiva de sentidos para a experiência vivida (Hur, 2014, p. 1032).

Consideramos que o dispositivo da Rostridad é o Teatro da crueldade atualizado, pois sua maquinaria incita processos de desterritorialização do próprio rosto, num exercício de intensificação do estranho e do desconhecido em nós. A crueldade em não nos reconhecermos e estranharmos o próprio rosto, ou melhor, apenas a partir do estranhamento da face é que passamos a conhecer o próprio rosto e corpo. A desconstrução do codificado para perceber os fluxos em movimento. Portanto, nos distintos dispositivos trabalhados com os coletivos busca-se incitar processos de desterritorialização para que se fomente a produção de linhas de fuga e o movimento desejante. Fantasias, delírios e afetos são produzidos, a princípio de forma não significada, mas no seu experienciar podem passar por um processo de produção de sentidos. A propagação desses fluxos resulta na intensificação da potência desejante dos sujeitos, consequentemente na potencialização dos seus pensamentos, afetos, corpos e possibilidades existenciais (Baremblitt, 2014b; Hur, 2014). Além das transformações cognitivas, afetivas, existenciais, Baremblitt (2014a, 2014b) ressalta o caráter político do esquizodrama, de crítica ao Capitalismo Mundial Integrado, ao neoliberalismo e aos diversos fundamentalismos que assolam o mundo. Portanto, considera que a atuação micropolítica do esquizodrama pode ressoar nos grandes estratos, podendo propiciar também transformações macropolíticas.

A produção sobre esquizodrama vem crescendo, mas seu registro na forma de artigos em periódicos acadêmicos ainda é pequeno. Há muitas monografias e textos no site da Fundação Gregório Baremblitt (http://www.fgbbh.org.br) e trabalhos sobre esquizodrama em congressos da área. Dissertações e teses sobre o assunto ainda são escassas, mas estão começando a ser produzidas.

 

Considerações Finais

Neste artigo buscamos cartografar as distintas práticas grupais realizadas a partir da esquizoanálise na Psicologia brasileira. Utilizamos como método uma pesquisa bibliográfica sobre livros e artigos publicados em periódicos para conhecer a produção acadêmica esquizoanalítica sobre os dispositivos de grupos.

Todos os trabalhos investigados compreendem que a esquizoanálise opera como um repertório teórico, estético, ético e político de análise dos processos desejantes, subjetivos, sociais e políticos envolvidos no processo de intervenção. Na maior parte dos artigos não há maior desenvolvimento sobre o modo de funcionamento dos dispositivos, uma teorização sobre seus efeitos. Os resultados são apresentados como positivos no que se refere a colocar o pensamento, os afetos e os corpos em movimento, em sair do instituído para o instituinte, da territorialização para desterritorialização, do fixo para o fluido. Também se coloca um constante movimento na procura de destituição dos saberes instituídos e de uma relação horizontalizada e autogestionária entre coordenadores e participantes. Consideramos que um importante problema de investigação para futuras pesquisas é desenvolver uma análise mais pormenorizada de como, na intervenção grupal, se dá a transição de uma condição territorializada e estratificada para uma mais autônoma, nômade e fluida.

O funcionamento dos dispositivos de intervenção referenciados pela esquizoanálise não é descrito de forma única e totalizada. Em nossa investigação foi possível constatar que cada pesquisador, ao realizar a intervenção, adota uma conduta que não segue uma predeterminação fixa. Por isso é desenvolvida uma variedade de práticas distintas. Do material encontrado discriminamos quatro modalidades de práticas grupais. Primeiro, os estudos teóricos e de transmissão, segundo, o dispositivo cartografia grupal, terceiro, o dispositivo oficina e, quarto, o esquizodrama. São estratos que não são estanques entre si, porque uma mesma intervenção pode estar contemplada em mais de uma categoria. Entretanto, propomos esses quatro campos como um mapa referencial em variação contínua das práticas grupais esquizoanalíticas no país. O primeiro refere-se aos estudos conceituais e reflexões teóricas sobre o dispositivo de grupo. Esses estudos têm como finalidade a compreensão dos processos grupais, a teleologia das intervenções, bem como a transmissão desse conhecimento. No segundo, agrupa-se uma série de práticas heterogêneas que, a partir do dispositivo de grupo, busca analisar e cartografar o acontecer grupal e institucional. A cartografia grupal tem como finalidade mapear e rastrear os distintos processos fomentados no coletivo social. Intensifica o método da pesquisa-intervenção, em que se torna impossível pensar uma das dimensões sem a outra. O terceiro, dispositivo oficina, refere-se a uma prática que enfatiza os processos de criação e estéticos, adicionando assim máquinas de expressão artística, musical, corporal, que incitam fenômenos que vão além do registro do simbólico. As cartografias grupais, como as oficinas, utilizam a esquizoanálise como ferramenta teórica para analisar e discutir os processos emergentes dos coletivos sociais. Finalmente, o quarto tipo, o esquizodrama, é um novo campo na Psicologia criado por Baremblitt, um Teatro da crueldade clínico-grupal. Propõe-se a ser um campo de criação de dispositivos de intervenção, não se restringindo a ser uma aplicação dos conceitos esquizoanalíticos, mas criando uma infinidade de outros esquizoemas e concepções a partir da dramatização e performatização dos conceitos filosóficos da esquizoanálise. O esquizodrama não é um psicodrama esquizoanalítico, nem uma esquizoanálise aplicada, mas sim um campo que vem se singularizando com suas experimentações e com seus novos conceitos.

De forma geral compreende-se que as práticas grupais fomentadas pela esquizoanálise têm como objetivo incitar processos psíquicos, afetivos, sociais e políticos com fins de transformação do instituído, do sofrimento vivenciado, para modalidades de vida mais potencializadas e produtivas. A partir de processos de desterritorialização fomenta a afirmação dos investimentos desejantes e novos processos de subjetivação aos indivíduos e coletivos sociais. Utilizam distintos conceitos e dispositivos de intervenção para a consecução de seus objetivos, não tendo uma única fórmula pressuposta, mas sendo um convite à inventividade de novas formas de agir, ser, devir, desejar e existir.

Com este trabalho visamos tirar uma foto, efêmera, de como se constituem algumas práticas grupais referenciadas pela esquizoanálise. Este é um estudo localizado historicamente e regionalmente, que não abarcou todos os textos sobre esquizoanálise e grupos no Brasil, mas apenas os artigos que estão presentes nas principais bases de dados e os livros mais difundidos nas bibliotecas universitárias. Sabemos que há muitas práticas grupais esquizoanalíticas sendo realizadas e que não foram registradas em artigos, capítulos ou trabalhos completos em congressos. Também temos conhecimento do risco do caráter redutor que essas categorias podem aparentar. Mas repetimos que ao invés de totalizar e delimitar, a função das categorias propostas é de criar demarcações móveis no território, territórios movediços, de como as práticas grupais vêm sendo operacionalizadas, e que obviamente, de acordo com sua operacionalização e ângulo de perspectiva, podem ser modificadas.

 

Referências

Artaud, A. (2006). O teatro e seu duplo (3a ed.). São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1938).         [ Links ]

Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Baremblitt, G. F. (Org.). (1984). O Inconsciente institucional. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Baremblitt, G. F. (Org.). (1986). Grupos: teoria e técnica (2a ed.). Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

Baremblitt, G. F. (1994). Apresentação. In A. Lancetti (Org.), Saúdeloucura 4: grupos e coletivos (pp. 3-20). São Paulo: Editora Hucitec.         [ Links ]

Baremblitt, G. F. (1998). Introdução à Esquizoanálise. Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari.         [ Links ]

Baremblitt, G. F. (2002). Dez proposições descartáveis acerca do esquizodrama. Disponível em http://artigosgregorio.blogspot.com.br/2008/02/dez-proposies-descartveis-acerca-do.html. Acesso em 08 de agosto de 2014.         [ Links ]

Baremblitt, G. F. (2004). Psicoanálisis y esquizoanálisis (un ensayo de comparación crítica). Buenos Aires: Asociación Madres de Plaza de Mayo.         [ Links ]

Baremblitt, G. F. (2013). Dix propositions jetables sur le squizodrame. Chimères, 80, Squizodrame et schizo-scènes, 31-42.         [ Links ]

Baremblitt, G. F. (2014a). Presentación del esquizodrama. Teoría y crítica de la psicología, 4,17-23. Disponível em http://teocripsi.com/documents/4BAREMBLITT.pdf. Acesso em 08 de agosto de 2014.         [ Links ]

Baremblitt, G. F. (2014b). Dilemas de los aprendices de los hechiceros (dudas en la pragmática auto-inventiva de los jóvenes esquizoanalistas y esquizodramatistas. Teoría y crítica de la psicología, 4,23-50. Disponível em http://teocripsi.com/documents/4BAREMBLITT2.pdf. Acesso em 08 de agosto de 2014.         [ Links ]

Barros, R. D. B. (1994). Grupos e produção. In A. Lancetti (Org.), Saúdeloucura 4: grupos e coletivos (pp. 145-154). São Paulo: Editora Hucitec.         [ Links ]

Barros, R. D. B. (2007). Grupo: a Afirmação de um Simulacro. Porto Alegre: Sulina/Ed UFGRS.         [ Links ]

Bezerra Jr., B. (1994). Grupos: cultura psicológica e psicanálise. In A. Lancetti (Org.), Saúdeloucura 4: grupos e coletivos (pp. 129-144). São Paulo: Editora Hucitec.         [ Links ]

Bichuetti, J. (1999). Lembranças da Loucura. Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari.         [ Links ]

Bocco, F., & Lazzarotto, G. D. R. (2004). (Infr) atores juvenis: artesãos da análise. Psicologia e Sociedade, 16(2). Disponível em http://www.scielo.br/pdf/psoc/v16n2/a06v16n2.pdf. Acesso em 15 de abril de 2014.         [ Links ]

Cedraz, A., & Dimenstein, M. (2005). Oficinas terapêuticas no cenário da Reforma Psiquiátrica: modalidades desinstitucionalizantes ou não? Mal-Estar e subjetividade, 5(2),300-327. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/pdf/malestar/v5n2/06.pdf. Acesso em 10 de março de 2014.         [ Links ]

Costa, J. F. (1989). Psicanálise e contexto cultural. Rio de Janeiro: Campus.         [ Links ]

Creswell, J. (2010). Projeto de pesquisa: Métodos qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Deleuze, G. (1989). Qu'est-ce qu'un disposif? In Michel Foucault philosophe: Rencontre internationale. Paris 9, 10, 11 janvier 1988 (pp. 185-195). Paris: Seuil.         [ Links ]

Deleuze, G. (1997). Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1976). O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1995). Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (Vols. 1-5). São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Fortuna, C. M., Matumoto, S., Camargo-Borges, C., Pereira, M. J. B., Mishima, S. M., Kawata, L. S., Silveira, F., & Oliveira, N. F. (2012). Notas cartográficas do trabalho na Estratégia Saúde da Família: relações entre trabalhadores e população. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 46(3),657-664. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v46n3/en_18.pdf. Acesso em 08 de agosto de 2014.         [ Links ]

Fortuna, C. M., Franceschini, T. R. C., Mishima, S. M., Matumoto, S., & Pereira, M. J. B. (2011). Movimentos da educação permanente em saúde, desencadeados a partir da formação de facilitadores. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 19(2),411-420. Disponível em www.scielo.br/pdf/rlae/v19n2/pt_25. Acesso em 08 de agosto de 2014.         [ Links ]

Guattari, F. (2015). ¿Qué es la Ecosofía?: textos presentados y agenciados por Stéphane Nadaud. Buenos Aires: Cactus editorial.         [ Links ]

Guimarães, C. F., Meneghel, S. N., & Oliveira, C. S. (2006). Subjetividade e estratégias de resistência na prisão. Psicologia: ciência e profissão, 26(4),632-645. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/pcp/v26n4/v26n4a10.pdf. Acesso em 11 de março de 2014.         [ Links ]

Hur, D. U. (2012). O dispositivo de grupo na Esquizoanálise: tetravalência e esquizodrama. Vínculo, 9(1),18-26. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/pdf/vinculo/v9n1/a04.pdf. Acesso em 08 de agosto de 2014.         [ Links ]

Hur, D. U. (2013). Contributions of Schizoanalysis for Critical Psychology in Brazil. Annual Review of Critical Psychology, 10,203-218. Disponível em http://www.discourseunit.com/arcp10/Brazil%20V%20203-218.pdf. Acesso em 08 de agosto de 2014.         [ Links ]

Hur, D. U. (2014). Trajetórias de um pensador nômade: Gregório Baremblitt. Estudos e pesquisas em Psicologia, 14(3),1021-1038. Disponível em http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/13899/10615. Acesso em 8 de novembro de 2014.         [ Links ]

Hur, D. U., Alencar, A. K., & Almeida, H. B. (2012). Experiência de formação com dispositivos psicanalíticos de grupo com não psicólogos. SPAGESP, 13(2),77-85. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rspagesp/v13n2/v13n2a09.pdf. Acesso em 05 de maio de 2014.         [ Links ]

Lancetti, A. (Org.). Saúdeloucura 4: grupos e coletivos. São Paulo: Editora Hucitec.         [ Links ]

Lapassade, G. (1977). Grupos, organizações e instituições. Rio de Janeiro: Francisco Alves.         [ Links ]

Minozzo, F., Kammzetser, C. S., Debastiani, C., Fait, C. S., & Paulon, S. M. (2012). Grupos de saúde mental na atenção primária à saúde. Fractal: Revista de Psicologia, 24(2),323-340. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/fractal/v24n2/a08v24n2.pdf. Acesso em 08 de agosto de 2014.         [ Links ]

Oliveira, L. S., & Romagnoli, R. C. (2014). Sustentando a diferença: teatro, conexões e invenção de mundos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 66(3), 59-73. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v66n3/06.pdf. Acesso em 08 de agosto de 2014.         [ Links ]

Passos, E., Kastrup, V., & Escossia, L. (2009). Pistas do método da cartografia. Porto Alegre: Sulina.         [ Links ]

Ramão, S. R, Meneghel, S. N., & Oliveira, C. (2005). Nos caminhos de Iansã: cartografando a subjetividade de mulheres em situação de violência de gênero. Psicologia e sociedade, 7(2). Disponível em http://www.scielo.br/pdf/psoc/v17n2/27047.pdf. Acesso em 17 de abril de 2014.         [ Links ]

Rauter, C. (2000). Oficinas para quê? Uma proposta ético-estético-política para oficinas terapêuticas. In P. Amarante (Org.), Ensaios: Subjetividade, saúde mental, sociedade (pp. 267-277). Rio de Janeiro: Fiocruz.         [ Links ]

Rodrigues, H. B. C. (2002). No Rastro dos Cavalos do Diabo. Memória e história para uma reinvenção de percursos do paradigma do grupalismo-institucionalismo no Brasil. Tese de doutorado não-publicada, Programa de Pós Graduação em Programa de Pós Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, Universidade de São Paulo, 540pp.         [ Links ]

Rodrigues, H. B. C. (2007). Sejamos realistas, tentemos o impossível! Desencaminhando a Psicologia através da Análise Institucional. In A. M. Jacó-Vilela, A. A. L. Ferreira & F. Portugal. (Orgs.), História da Psicologia: rumos e percursos (2a ed., pp. 515-563). Rio de Janeiro, RJ: Nau.         [ Links ]

Rodrigues, H. B. C., & Barros, R. D. B. (2003). Socioanálise e práticas grupais no Brasil: um casamento de heterogêneos. Psicologia clínica, 15 (1), 61-74.         [ Links ]

Rodrigues, H. B. C., Fernandes, P. J., & Duarte, M. G. S. (2001). Os psicanalistas argentinos no Rio de Janeiro: problematizando uma denominação. In A.M. Jacó-Vilela, A.C. Cerezzo, & H.B.C. Rodrigues (Orgs.), Clio-Psyché hoje. Fazeres e Dizeres psi na história do Brasil (pp. 139-152). Rio de Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ.         [ Links ]

Rolnik, S. (1989). Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade.         [ Links ]

Romagnoli, R. C., & Magnani, N. R. (2012). Nós e linhas: pesquisando a relação família-equipe. Fractal: Revista de Psicologia, 24(2),287-306. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/fractal/v24n2/a06v24n2.pdf. Acesso em 05 de maio de 2014.         [ Links ]

Santos, N. A., & Romagnoli, R. C. (2012). Quando a invenção pede passagem: ritmo e corpo nas oficinas de teatro do Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) Noroeste de Belo Horizonte. Mental, 10(18), 29-52. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/pdf/mental/v10n18/a03v10n18.pdf. Acesso em 30 de março de 2014.         [ Links ]

Vázquez, F. (1997). El dispositiu d'anàlisi de dades: l'Anàlisi de contingut temàtic/categorial (Investigació i Coneixement Psicosocial) [Mimeografado]         [ Links ].

Vidal, P. V. (1986). O conceito de grupo na obra de Guattari e Deleuze. In G. F. Baremblitt (Org.), Grupos: teoria e técnica (2a ed., pp. 43-57). Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

 

 

Endereços para correspondência:
Domênico Uhng Hur domenicohur@hotmail.com
Douglas Alves Viana dogaosky@hotmail.com

Submetido em: 10/01/2016
Revisto em: 19/05/2016
Aceito em: 21/05/2016

Creative Commons License