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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.68 no.3 Rio de Janeiro dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Composição de corpos afetados: a potência da dança

 

Composition of affected bodies: the power of dancing

 

Composición de cuerpos afectados: la potencia de la danza

 

 

Ana Claudia Lima MonteiroI; Gabriela Cabral PalettaII

IDocente. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIGraduanda. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste estudo pensamos a dança como um agente privilegiado de produção de corpos e subjetividades. Para tanto, acompanhamos a montagem de um espetáculo de dança que tinha como tema o amor, o suicídio e o decorrer do processo de sua produção. Tal processo responde à convocação da arte e a instaura, uma vez que o bailarino é, ao mesmo tempo, aquele que faz a dança existir, mas também existe a partir dela. Propomos em nosso trabalho a constituição simultânea dos bailarinos e da própria dança, instaurando um corpo afetado neste espaço de negociação. Durante os ensaios, vivenciamos o processo de construção coletiva dos bailarinos, dos pesquisadores e também dos afetos envolvidos em tais encontros. Trazemos aqui nossa narrativa, que compõe uma tessitura na qual corpos e subjetividades emergem da composição singular de atores múltiplos e heterogêneos.

Palavras-chave: Psicologia; Dança; Corpo; Subjetividade; Saberes localizados.


ABSTRACT

In this study, we think of dancing as a privileged agent in the production of bodies and subjectivities. For that purpose, we tagged along the process of putting together a dance spectacle and its production, which has as themes love and suicide. This process responds to the convocation of art and establishes it, since the dancer at the same time allows the dance to exist and exists because of it. We propose in our work the simultaneous constitution of the dancers and the dance itself, establishing a body affected in this space of negotiation. During the rehearsals, we lived the process of mutual construction of the dancers, the researchers, and the affections involved in those meetings. We present here our narrative, which composes a "tessitura" in which the bodies and the subjectivities emerge from the singular composition of multiple and heterogenic actors.

Keywords: Psychology; Dance; Body; Subjectivity; Situated knowledge.


RESUMEN

En este estudio pensamos la danza como un agente en la producción de cuerpos y subjetividades. Para ello, acompañamos el montaje de un espectáculo de danza cuyos temas eran el amor y el suicidio. Tal proceso responde a la llamada del arte y lo establece, puesto que el bailarín es, al mismo tiempo, hace que la danza exista y existe a partir de ella. Proponemos en nuestro trabajo la constitución simultánea de los bailarines y de la danza misma, estableciendo un cuerpo afectado en este espacio de negociación. Durante los ensayos, experimentamos el proceso de construcción colectiva de los bailarines, de los investigadores y también de los afectos implicados en tales encuentros. Presentamos aquí nuestra narrativa, que compone una "tessitura" en la cual cuerpos y subjetividades emergen de la singular composición de actores múltiples y heterogéneos.

Palabra clave: Psicología; Danza; Cuerpo; Subjetividad; Conocimiento situado.


 

 

Introdução

Neste artigo trazemos a nossa experiência de pesquisa com a Companhia de Dança cuja proposta é criar espetáculos que sempre trazem reflexões acerca das tensões sociais vivenciadas em nossa cultura. Acompanhamos os ensaios e montagem de um destes espetáculos o qual apresentava como temas centrais o amor e o suicídio. Em nossas idas a campo percebemos a existência de diversas narrativas que circulavam na produção do espetáculo. Tais narrativas compunham um percurso acidentado, uma vez que contavam com os afetos dos bailarinos que doavam seus corpos para experimentações diversas. Estas levam em conta muitos elementos - desvios, acidentes, dificuldades, interações, escolhas, um tempo do corpo dos próprios bailarinos - que se tornam invisíveis no momento da apresentação do espetáculo. O momento do espetáculo é entendido como ponto de culminância do trabalho do bailarino, pois este incorpora o espetáculo, o faz existir num corpo articulado aos vários elementos da cena e, neste instante, o espectador se afeta, se torna parte integrante deste movimento de coafetação. Neste momento a obra de arte se constitui, agregando atores díspares numa mesma cena, e produz o ato de dançar e de ser afetado pela dança.

No texto Da dupla autonomia das obras da natureza, tradução livre do original De la double autonomie des oeuvres de la nature: prolongation du dialogue avec Bob Verschueren, Despret (2010) nos apresenta o agenciamento da seguinte forma:

O conceito de agenciamento [...] não é mais posto como uma maneira de classificar os seres (aqueles que seriam ontologicamente agentes dotados de intencionalidade e aqueles que seriam ontologicamente pacientes e desprovidos desta última): ele é relacional, variável e se inscreve sempre num contexto (p. 4, tradução nossa).

Esse conceito de agenciamento nos remete à composição do mundo a partir da articulação de elementos díspares numa relação produtora de novas formas de existência e encontra-se articulado à ideia de produção da obra de arte porque compreendemos esta como possibilidade de composições inesperadas entre os atores envolvidos em sua produção. Portanto, o agenciamento não se refere à matéria ou ontologia das coisas, mas à possibilidade de relação entre os atores estabelecida em um dado momento (Despret, 2010). Em nossa pesquisa, consideramos os agenciamentos cujas existências tornam o espetáculo possível, tanto em sua processualidade, implicada numa constante produção de um corpo dançante, com suas múltiplas conexões; quanto na apresentação, na qual está em jogo o momento em que as relações se encontram numa espécie de "culminância", quando há a pretensão de afetar o público.

Nosso campo está vinculado a uma Organização Não Governamental (ONG) localizada numa cidade na região serrana do Rio de Janeiro. Coordenada por um assistente social, bailarino e coreógrafo, a proposta da ONG é dar à comunidade da cidade aulas de dança contemporânea, teatro, capoeira e contação de histórias, apostando na arte como potência transformadora da vida das pessoas. Segundo o próprio coordenador, seu trabalho não pode se desvincular de questões surgidas num contexto social e, portanto, diz respeito não apenas aos bailarinos, mas a todos que, de alguma maneira, participam do espetáculo. Dentre todas as atividades desenvolvidas pela ONG, em nossa pesquisa conhecemos apenas a Companhia de Dança, composta por bailarinos experientes e que já atuaram no palco em outros espetáculos.

Como foi dito antes, acompanhamos os ensaios da produção de um dos espetáculos desta companhia cujo um dos temas era o suicídio. Não apenas neste espetáculo a discussão político-social é trabalhada, mas este é um dos focos desta companhia, dada a preocupação do diretor em pensar o espetáculo sempre como uma forma de fazer da arte algo que cause impacto tanto no público quanto nos bailarinos, fazendo-os refletir sobre as dificuldades sociais que nos permeiam.

Seguindo este caminho, pudemos também assistir um espetáculo anterior que abordava a questão da sexualidade na juventude, além de conhecer por meio de fotos e vídeos outro espetáculo sobre abuso sexual. Assim percebemos uma preocupação com questões que, de alguma maneira, pertencem à nossa vida social e fazem parte das experiências do coreógrafo enquanto assistente social, para além do simples fato de produzir coreografias de dança ou movimentos puramente estéticos.

Os espetáculos são construídos levando em consideração não apenas as capacidades técnicas dos bailarinos, mas também suas próprias sensações acerca do tema abordado. Os bailarinos são afetados pelo tema do espetáculo muito antes da apresentação, na própria construção deste. Isto significa que os bailarinos negociam seus afetos com o tema e com o próprio corpo na processualidade da produção da dança. Vale frisar: esse tema não está dado anteriormente à construção do corpo disponibilizado a dançar, mas, corpos, afetos e dança estão mesclados num processo de mútua construção. Além disso, as relações entre os próprios bailarinos também são negociadas no decorrer da produção.

Por outro lado, nosso trabalho não está desvinculado de nossa prática e das atividades relacionadas à produção de conhecimento no espaço universitário. Apesar de aparentemente óbvia, esta colocação visa esclarecer o local de onde partimos, não apenas para explicitar que este texto encontra-se vinculado a uma pesquisa universitária, mas para marcar o lugar de onde falamos. A partir de nosso posicionamento, apostamos na força da localização e não em sua fraqueza (Haraway, 1995). Com isso, apostamos no fortalecimento das narrativas locais como única possibilidade de constituição de saberes implicados em suas práticas de construção ao invés de dizer que nossa pesquisa é local para enfatizar a especificidade do dito, enfraquecendo nossas narrativas. Em outras palavras, todo saber é localizado, marcado pelas relações que o constituem e todo descolamento deste contexto enfraquece sua existência, ao se pretender universalista e, consequentemente, abstrato. Um saber localizado é sempre mais potente por não abrir mão de sua existência prática, sendo desse modo, possibilita a emergência daquilo que não está prescrito. Por outro lado, um saber localizado busca, a partir de sua narrativa, a construção de um mundo possível, no qual elementos singulares tenham sua importância colocada em evidência. Como nos diz Stengers (1989), ao nos depararmos com aquilo que nos interroga, no campo da ciência, devemos ter os ouvidos atentos e a paciência de um caçador solitário para poder nos relacionar com nosso campo. Não se trata de "extorquir" o testemunho de nossos pesquisados, mas, ao contrário, trata-se de construir conjuntamente com eles a pesquisa. Somente desta maneira é possível o contágio, as afetações com toda a tensão pertinente ao campo. Neste sentido, nosso objetivo também consiste em formar pesquisadores cujo papel é atuar numa proposta teórica denominada "PesquisarCom" (Moraes, 2010).

Além de apresentar brevemente nossa proposta metodológica, é importante também frisar que nossa ida ao campo não ocorre de maneira neutra. Tínhamos como um dos principais objetivos experienciar a construção coletiva de um corpo que dança. Nossa entrada no campo de pesquisa buscou conhecer as articulações entre corpo e subjetividade no momento em que se constrói um espetáculo de dança. A escolha desta companhia também não é aleatória, ela ocorre porque o diretor constrói espetáculos tendo como marca questões sociais, como dissemos acima. Portanto, os afetos estão presentes e são fundamentais em tal construção. Estes são alguns dos norteadores de nosso trabalho.

Em relação a nosso posicionamento teórico, compreendemos que, a cada intervenção, estamos produzindo novas formas de existência no mundo. Esta proposta serve como instrumento para pensar a prática da Psicologia como produção de subjetividade e não de descoberta de um sujeito psíquico pré-estabelecido. O exercício desta prática leva em consideração não apenas as relações dos homens entre si, nem do sujeito com sua interioridade, mas questiona a relação entre subjetividade e interioridade, assim como a relação entre subjetividade e corpo; produzindo no pesquisador um posicionamento crítico em relação à sua própria prática, fazendo-o questionar o lugar desse ator-pesquisador, cujo olhar seria diferenciado dos investigados. Neste sentido, o pesquisador é capaz de interrogar os pesquisados, fazendo com que as relações entre teoria e prática sejam sempre negociáveis. Esta proposta resulta num aprendizado empírico sobre a atuação do psicólogo para além dos muros da academia e também um questionamento de seu lugar de saber.

Portanto, estar no campo de pesquisa nos convoca a pensar, nos causa um estranhamento, para além de um espaço ao qual buscamos as respostas às nossas perguntas. A tensão entre o estudado na academia e o presenciado no campo deve sempre nos causar estranhamento, trazendo pontos de tensão entre o campo e a teoria. O campo não é dado de antemão, ele é sempre o produto do encontro entre atores díspares. Estar no lugar de pesquisador é um ponto que nos exige a arte dos malabaristas: o equilíbrio em meio ao movimento. Tínhamos, portanto, como certeza em nossa busca, a disposição de conhecer os modos como a dança produz mudanças nas relações entre o sujeito e o mundo, porém, mesmo este nosso primeiro pressuposto deveria ser colocado à prova constantemente. Ao fim deste texto, cabe a retomada deste posicionamento e as consequências disto para o nosso trabalho.

 

Percurso de um caminho acidentado

Para definir nossa metodologia, buscamos apoio principalmente em dois autores: Latour e Despret. Em primeiro lugar, é necessário afirmar a pesquisa como capacidade de reinventar e retraduzir nossas práticas (Despret, 1999) e não apenas como o prolongamento de nossas teorias. Fazer pesquisa é intervir no campo ao qual propomos nossa inserção. Neste primeiro pressuposto, apontamos para o posicionamento do pesquisador: este não é neutro, ao contrário, sua inserção no campo já é, por si mesma, algo a ser discutido com os pesquisados (Moraes, 2010).

Em seu livro Jamais fomos modernos, Latour (1994) aponta que não devemos privilegiar nenhum dos atores apresentados a nós, ao contrário, devemos estar inseridos no campo e atentos para tudo aquilo que produz agência (Latour, 2008). Qualquer coisa pode ser conectada e produz efeitos diferenciados daqueles produzidos isoladamente e é passível de investigação. Não há privilégio de forma, de material ou de lugar ocupado por estes atores.

Assim, nossa proposta não visa isolar os componentes investigados, mas, ao contrário, busca exercer uma relação com tais componentes no próprio campo. Isto significa que os atores envolvidos se encontram em processo e articulam-se de maneira singular. Em outras palavras, somos nós, pesquisadores, a delimitar um campo de pesquisa e a construir o dispositivo no momento que articulamos nossos problemas com o campo. Em nosso caso, a Companhia de Dança já existia e produzia suas próprias questões e se apresentava numa dinâmica intrínseca. Ao constituir um campo de pesquisa, nos encontramos sempre num paradoxo: o campo é anterior à pesquisa? Sim e não. Sim, porque o mundo não começa no momento de sua delimitação como campo de pesquisa. E não, porque aquelas relações cujo estabelecimento ocorre no momento da constituição do campo não existiam da maneira como o traduzimos.1 Neste caso, pesquisar significa entrar num processo já existente para compreender as relações e vínculos estabelecidos, mas, ao mesmo tempo, criar um novo campo, tendo como novos atores os próprios pesquisadores. Trazer à tona estas tensões nos ajuda a compreender que não há posicionamento ingênuo no campo de pesquisa e isso nos torna sempre atores, tradutores do campo de pesquisa.

Em nosso caso, encontramos junto à Companhia Corpo em Cena o campo ao qual nos propiciou colocar nossa proposta teórico-metodológica em risco. Tínhamos como pressuposto o processo desencadeado pelo ato da dança como o que produz efeitos para além de uma compreensão puramente corporal da mesma. Neste sentido, a constituição de um corpo que dança vai além da proposta de se pensar a dança como algo sem materialidade, ou seja, como pura técnica, adquirida e exprimida mecanicamente. A dança não é um mero intermediário entre o corpo e a arte de se expressar por meio do movimento, mas, ao contrário, corpo e dança, ao se articularem, modificam-se. Nenhum corpo dança da mesma maneira que outro, e nem toda dança se expressa de uma única maneira em todos os corpos. A técnica adquirida no ato de dançar cria relações, portanto a dança não pode ser invisibilizada no corpo, ao contrário disso, ela deve contar como produção deste corpo cuja forma de existir não seria a mesma sem a dança. Por outro lado, este corpo também não seria algo demarcado, circunscrito nos limites de nossa pele. Pensar a relação entre corpo e dança é também pensar na construção de um "corpodança", impossível de ser pensado de outra maneira. Um corpo articulado com a dança adquire novas potencialidades, se apresenta como outro em relação àquele corpo sem a dança.

Nesta perspectiva, encontramos a possibilidade de seguir um corpo que, ao se constituir na dança, também possui uma subjetividade atravessada por esta experiência. Falamos em "corpodança", podemos também falar em "corpodançasujeito". Estas articulações se compõem e é impossível pensar a separação sem levar em conta as relações presentes. Uma subjetividade se constitui neste encontro e se articula de maneira singular com o mundo ao seu redor. Compreendemos a necessidade dos cortes para o estabelecimento de focos de intervenção, porém, defendemos também que estes cortes são sempre arbitrários e negociáveis, não estão dados desde sempre. Ao seguirmos os atores, encontramos muitas articulações a serem consideradas, estas contam para nossas narrativas e é por isso que enfatizamos, mais uma vez, as narrativas localizadas. A forma apresentada do corpo, da dança e da subjetividade só se constitui no relacionamento com nosso campo e como vemos estas relações em sua processualidade. Por outro lado, ao afirmar as narrativas locais, temos o cuidado de não universalizar o que é dito, pois sempre são possíveis um outro olhar e uma nova perspectiva. Portanto, marcar nosso lugar diz menos de nossas limitações e mais de nossa colocação num campo ético-político, por não reivindicarmos o lugar de únicos porta-vozes acerca do pesquisado. Buscamos fazer proliferar as vozes acerca desta relação entre corpo, dança e subjetividade, criar novos espaços de discussão e encontro, propor alianças, discutir tensões. Neste sentido, buscamos proliferar as versões (Despret, 1999).

Esta proposta nos leva a compreender a importância das negociações em nosso campo. Neste sentido, discutimos não apenas a nossa inserção enquanto pesquisadores, mas também a relação com os atores, como estes pensam e como se veem neste espaço da dança. Para tanto, ocorreram rodas de conversa com os bailarinos e a posterior apresentação do relatório final de pesquisa, além da participação destes numa roda de conversa dentro da Universidade. Acreditamos em novos posicionamentos possíveis a respeito da relação estabelecida entre corpo e subjetividade, uma vez que os atores envolvidos em nossa pesquisa também opinaram a respeito da construção dos personagens e sua incorporação. Esta experiência nos possibilitou criar uma relação única com os pesquisados, compreendendo, algumas vezes, os nossos pressupostos acerca da relação entre corpo e subjetividade como uma questão nossa e não deles.

Os encontros produzidos com o campo, nos quais éramos participantes ativos, também geraram uma desacomodação, no sentido de nos impactar com a não previsibilidade do desenrolar coreográfico. Esta desacomodação não se expressou apenas através das palavras, mas, ocorreu também em nossos "corposafetos". Isto gerou uma grande dificuldade em transformar numa narrativa o que tinha acontecido nos corpos. Encontrar palavras para expressar os afetos é sempre pisar em terreno movediço. Neste sentido, a troca de impressões se tornou fundamental para tecer estas relações sempre tão fugidias. Tais trocas foram mais enriquecedoras para a pesquisa do que nossos próprios relatos individuais por sermos capazes de refletir sobre nossos afetos. Fomos também capazes de compreender de maneira diferente nossas impressões acerca do campo. Portanto, todos os encontros foram feitos de forma coletiva, tendo, no mínimo, três participantes do projeto, incentivando a diversidade das impressões e dos afetos percebidos por cada um. A discussão sobre os diários de campo colocou em contraposição experiências e impressões diferenciadas, enriquecendo nosso contato com o campo. Desta forma, produzimos um fazer em Psicologia não reduzido a "fatores psicológicos", mas aberto a muitos atores, tais como o espaço físico, a pele, os acessórios da dança, o palco, o cansaço dos bailarinos, o cheiro da sala de aula, nossos olhares atentos, dentre outros. Como fica claro nas palavras escritas anteriormente, esta proposta de pensar a Psicologia nos apresenta uma Psicologia híbrida, que leva em conta a construção de um coletivo e não somente a constituição de um sujeito.

 

Costurando corpos, subjetividades e narrativas

O espetáculo é como uma tapeçaria tecida pelos atores que se articulam e se entrelaçam. Teremos, pois, as linhas mais variadas e belas. As narrativas constituem os bailarinos a cada novo encontro, de uma nova maneira. A narrativa, para Michel Serres, tem uma importância especial: é a forma como entendemos a história, considerando as variações de temporalidade e espacialidade. Desta forma, a historicidade se apresenta como um arranjo de múltiplas intensidades tensionadas. Em seu livro Incandescente, Serres (2005) nos apresenta a narrativa como forma de conectar o tempo da montanha e o tempo da casa, aos pés dela; o tempo do homem e o tempo do muro da casa; o tempo da criança e o tempo da boneca. Nesta narrativa, as diversas intensidades temporais são relacionadas, apresentando não apenas sua justaposição, mas seus imbricamentos. Em outras palavras, o tempo da montanha e da casa não são intensivamente os mesmos, mas engendram a paisagem no momento em que os avistamos, fazendo das temporalidades apresentadas o cenário tanto para a casa, quanto para o morador desta casa quanto para a menina que brinca com sua boneca. Esta junção temporal, ao mesmo tempo estabiliza a cena e nos remete à fragilidade desta estabilização: esta cena não possui uma temporalidade única e se desfará em momentos distintos. O homem deixará de existir certamente daqui a 100 anos, enquanto que a casa lhe ultrapassa, e a montanha ultrapassará a casa, pelo menos, em milhares de anos.

Desta forma, a narrativa se constitui destes arranjos temporais distintos. Narrar é sempre compor paisagens temporais, junções de temporalidades distintas. Da mesma maneira, tecer uma tapeçaria exige texturas distintas alinhadas para formar a tela. Exige que as cores se alinhem de uma maneira e não de outra. Determina o lugar dos nós e laçadas, coloca numa mesma paisagem, perspectivas temporais diferenciadas.

As paisagens penetram as narrativas e as narrativas penetram as paisagens (Serres, 2008). Da mesma forma, relações entre interioridade e exterioridade são intercambiáveis (Serres, 2001). Em relação ao nosso trabalho, podemos pensar a constituição dos bailarinos ocorrendo da mesma maneira. A dança encontra-se neste lugar onde ainda não se pode distinguir quem dança daquilo que é dançado. Desta forma, o corpo dançante traça uma narrativa cuja compreensão ocorre na medida do reconhecimento da indistinção inicial entre o que age sobre o corpo e a ação do corpo sobre as coisas.

A partir disso, podemos pensar também o corpo como uma narrativa, pois cada corpo possui suas marcas, traçadas por suas histórias e experiências, como tatuagens (Serres, 2001). Os corpos são marcados pelos seus traços constituintes, por aquilo que lhe toca. Em última instância, não podemos falar do corpo a não ser por suas afetações. Como nos mostra Latour (2008), o corpo precisa ser efetuado, precisa ser feito. Essa construção ocorre apenas a partir dos agenciamentos produzidos. Este corpo se constitui como possibilidade a cada encontro, a cada tensão que o faz existir. No caso da dança, podemos pensar os movimentos exercidos pelos bailarinos como uma forma deles adquirirem seus corpos. A cada ensaio, o corpo se torna capaz de executar os movimentos a partir da repetição incessante dos movimentos (Serres, 2004). Porém, esta produção não ocorre da mesma maneira em todos os corpos, as resistências, limitações e possibilidades são sempre singulares. Se, por um lado, a técnica do balé clássico busca a formação de corpos capazes de executar todos os movimentos exigidos por ela, a dança contemporânea, apesar de não abrir mão de alto grau de técnica, alia esta às possibilidades singulares de cada dançarino. Nesta forma artística, o coreógrafo pode explorar as capacidades técnicas dos bailarinos maximizando suas potencialidades e minimizando suas dificuldades. Com isso, teremos tantas variações dos movimentos e das linhas de cada experiência quanto mais variados forem os corpos adquiridos pelos bailarinos na dança.

A cada ensaio, o corpo se estrutura de uma nova forma, aprende e repete os movimentos impressos nele. As pegadas e saltos que compõem a coreografia, impossíveis num primeiro momento, num outro são encontrados fáceis através do tato, da repetição e são incorporados pelos bailarinos, exatamente desta maneira: incorporados, fazem parte de seu corpo. Como exemplo, podemos citar uma determinada pegada na qual a bailarina batia nas vigas do teto da sala (na sala de aula havia vigas muito baixas, diferente do palco). Antes era necessário pedir para a bailarina tomar cuidado com o teto do estúdio, depois o corpo já estava localizado naquele espaço. Os fios que constituem a linha são, em última instância, cada nova narrativa contada pelos agenciamentos articulados pelos vários atores heterogêneos, na composição de um corpo que dança. Assim, o teto se articula de uma forma tão importante quanto o bailarino que executa a pegada. Podemos ainda citar alguns outros atores, tais como, a pele, o tônus, as articulações, o espaço físico, os toques no processo da montagem e aprendizagem da coreografia. Linhas com os mais diversos espectros e com os mais interessantes e dinâmicos dégradés.

A tela a ser constituída, em nosso caso, é o enredo da história, a cena final, na qual os atores se estabilizam, é também a constituição de uma paisagem, com suas diversas temporalidades. A tela se constitui sempre como a paisagem, modificando-se a cada passar da agulha, sendo costurada e perpassada pelas narrativas em jogo, se agenciando. Pudemos perceber a constituição desta tela, sempre negociada, quando ouvimos um dos coreógrafos nos contar que a intenção inicial era a de um espetáculo flamenco. Porém, esta proposta se modificou por ser negociada no encontro com os bailarinos jovens da dança contemporânea, fazendo de cada um o vetor potente da produção do espetáculo. Os corpos da dança contemporânea têm, agora, novas marcas e possibilidades, assim como a construção do espetáculo. Foi preciso mesclar técnicas de uma dança e de outra para que, segundo as palavras do coreógrafo, o espetáculo não se tornasse um "arremedo de dança flamenca ou de dança contemporânea". Esta negociação foi feita a cada encontro, na elaboração de cada cena, levando em consideração também os limites dos bailarinos, do espaço físico e dos objetos usados em cena, como cadeiras, cordas, papéis, iluminação, música, além do vestuário, o qual também se apresenta como componente fundamental. Desta forma, o enquadramento dado pelo enredo do espetáculo foi sendo moldado e negociado também em relação ao tipo de dança que seria dançada. Nossa tela foi se constituindo lentamente levando em consideração todos os atores pertencentes a esta composição.

Pensemos ainda sobre a tela da tapeçaria. Ela vem pré-formatada, crua, dividida em quadrados impiedosamente iguais. Sozinha, nada é além de tela. Como nos diz Serres (2008), o formato é "algo cuja repetição formula uma lei; uma medida generalizada reúne o conjunto dessas unidades" (p. 19). O formato é aquilo que torna possível a comparação e ao mesmo tempo potencializa os corpos. Serres, ao falar sobre o formato, nos apresenta o tripalium, instrumento utilizado para domar cavalos e bois, os primeiros para colocar-lhes ferraduras e os segundos para queimar-lhes os chifres. Esta palavra dá origem à palavra trabalho e nos mostra, ao mesmo tempo, a violência do ato de formatar. Por outro lado, há também a importância do formato para que haja seu ultrapassamento. Em relação à nossa pesquisa, podemos falar da dança como este lugar da constituição do corpo dançante e criativo. Porém, para isso, é necessária sua submissão ao formato e à repetição incessante dos movimentos da dança. Em outras palavras, somente com aulas constantes e com reproduções intermináveis é possível construir um espetáculo que se apresentasse com elementos de dança contemporânea (como os pés descalços e algumas pegadas) e elementos de dança flamenca (como os sapatos de salto das bailarinas e a música). Serres (2008), mais uma vez, nos indaga: o que é o corpo "treinado" dos atletas? É algo que se compõe na repetição? Para ele, não apenas isso, mas um corpo que exerce sua potência ao transpor limites. Portanto, a forma rígida não se constitui como uma limitação, mas sim como ponto de partida. A mudança do status da tela só se torna possível com o enlaçado das linhas, com os transpasses das agulhas, com a imaginação do tecelão, com os nós que lhe são atados. Todo o traçado de criação, porém, ocorre sobre esta tela, plana, imóvel, formatada. A potência de transformação apresentada na dança possui, como pano de fundo, um formato que lhe sustenta, um corpo constituído nas negociações estabelecidas e, ao mesmo tempo, imposição de limites concernente à própria dança. Como dissemos anteriormente, nenhum corpo dança igual ao outro, ainda que a técnica seja a mesma e as repetições sejam exaustivas. Isto nos coloca uma questão: este mesmo corpo potencializado pela dança, também se enrijece com o formato? Longe de termos uma resposta para esta pergunta, queremos apontar para este lugar de frágil equilíbrio no qual não existe uma proposta única ou mesmo uma única forma de narrar nossas pesquisas. Mesmo apontando para a dança como potência do corpo, não podemos negar que existem outras maneiras de relacionar o corpo com a dança.

 

O espetáculo: a solicitação de sua realização

Para completar o ciclo de criação de uma obra, pensamos logo na necessidade de expô-la a uma plateia e esperamos que ela capte o sentido e os sentimentos envolvidos no ato de concepção de tal espetáculo, quando aquele objeto da arte foi produzido no e com o corpo do artista, quando houve a solicitação de sua completude. Porém, não é apenas enquanto está em processo de construção que a obra convoca o artista, ela persiste e se transforma. Quando exibida e apresentada, a arte provoca inúmeros outros agenciamentos e conexões a cada olhar recebido. A arte não é didática, mas é capaz de receber sentidos singulares a cada momento, em cada encontro, por isso está sendo renovada sempre. Isso nos ajuda a entender as dúvidas e inquietações relatadas pelos bailarinos às vésperas da estreia do espetáculo e trazidas anteriormente. Sua incompletude se dá nesse momento da entrada no jogo das relações deste novo componente: o expectador - com possibilidades infinitas - que, nesse desequilibrante equilíbrio, faz da obra algo a ser completado nos instantes de contato com a plateia. Sem esquecer também que, enquanto assistíamos aos ensaios, também éramos convocados a nos colocar neste lugar de expectador, nossos olhares não eram apenas olhares de pesquisadores, mas também eram entendidos como olhares de uma plateia. Estranho lugar este no qual nos constituímos, ao mesmo tempo, pesquisadores e plateia. Se, no primeiro caso, nos víamos também desta maneira, no segundo, tratou-se de um total deslocamento, não previsto, mas que só pôde ser trazido à tona no momento da narrativa de nossa experiência. Como obra de arte, a dança exigia sua realização e, neste sentido, éramos também solicitados, afetados por tal chamado. Neste momento, mescla-se a figura do "pesquisadorexpectador", que também busca a realização da obra e também é solicitado por ela.

Para compreendermos este apelo à obra, buscamos no pensamento de Despret (2010) o sustentáculo teórico de nossas inquietações. Retornaremos a esta questão mais adiante. Porém, antes de continuarmos a pensar sobre a apresentação do espetáculo - e sua solicitação - propomos dar um passo anterior, um questionamento acerca da própria obra de arte: como avaliamos aquilo que é ou não artístico? Se considerarmos arte aquilo que é recebido e aceito como tal pelo universo institucionalizado da arte, como considerar as produções de outras sociedades como artísticas sendo elas mesmas consideradas sem valor artístico por aqueles que a produzem? Para nos ajudar com esta questão, Despret nos dá o exemplo de um escudo: para nós, hoje, ele tem um valor estético indiscutível, mas em contexto de batalha ele não possui este valor. Lá ele produz medo, fascina, ele nos defende do inimigo. Ele é, portanto, um agente, mediador de outras agências.

Essas considerações são importantes para nosso texto por nos fazer pensar na obra de arte como algo não imóvel, dada de antemão, ela também recoloca os lugares, ela faz as divisões entre quem será plateia e quem será produtor da obra. Estes lugares não são estanques, ao contrário, é sempre pela solicitação da obra de arte que eles são colocados. Muitas obras contemporâneas exploram estas relações e subvertem estes papéis. Desta forma, a obra necessita de um fazer constante, de agenciamentos transformadores para que ela se mantenha viva. É neste paradoxo, nesta linha tênue entre sua desvirtuação e sua sobrevivência, que se situa o lugar da beleza da obra de arte: se, ao mesmo tempo, é preciso mudar para se manter em existência, há um limite para estas mudanças, muitas mudanças podem transformar a obra de arte de tal maneira que ela corre o risco de se desfazer. Neste sentido, um escudo, visto hoje como arte, pode, da mesma maneira, retornar ao seu lugar de uso, desfazendo-se em formas de utilização.

Por outro lado, a aparência de vontade dada à obra, quando dizemos de sua solicitação, também se apresenta como um terreno movediço, pois, numa leitura rápida, esta convocação da obra de arte pode ser mal interpretada como uma intenção implícita na obra. Não é disso que se trata, o chamado à obra não se caracteriza nem por um dualismo e nem mesmo por uma passividade do artista. No caso do espetáculo, pudemos perceber o chamado à obra como sendo construído e negociado todo o tempo e não como algo imputado ao coreógrafo. Desta forma, pudemos ouvir o coreógrafo nos dizendo que ele queria fazer um espetáculo sobre uma poesia lida anteriormente, sobre o suicídio e a forma como este ato atrai as pessoas. Ele nos disse ter passado muito tempo antes de poder concretizar este espetáculo e que, mesmo em sua realização, observou o quanto o tema lhe pesava. Na construção da história, o tema também pesava para os bailarinos. A solicitação da obra de arte se distribuiu, foi negociada tendo em vista todos os atores que a compuseram. Desta forma, a obra de arte se torna agente e tem a capacidade de insistir num sentido até mesmo ontológico, como ser, ela é mediadora e o artista acaba por se tornar paciente deste chamado à produção. Ser paciente não significa se posicionar numa passividade, mas, em vez disso, ser aquele capaz de negociar. No caso do coreógrafo, pudemos perceber a existência de um tempo necessário à emergência da obra e não apenas isso, mas também uma composição de atores singular.

A obra pode fascinar, capturar e pregar peças no seu destinatário, mas é a agência contida na matéria-prima a norteadora do artista. No nosso caso, isto se torna mais interessante quando a própria matéria-prima utilizada é o corpo e seus agenciamentos. O corpo do bailarino, como dissemos, é constituído nas fronteiras da dança, em sua relação com o mundo. Toda a história contada no palco passa também pelos corpos dos bailarinos. Portanto, no espetáculo assume-se um compromisso com a construção de uma história a ser contada, assume-se uma responsabilidade dada àquele que acolhe a este chamamento, além de assumir-se também um compromisso com o próprio corpo dançante e disponível a este chamado. A história será construída a cada movimento, não tendo uma preparação prévia daquilo que será realizado. Agora o artista prepara e explora a forma da obra. Trazendo esta questão para o nosso trabalho, as articulações entre os bailarinos, os elementos de cena, seus vestuários, a própria dança, a música, se prestam a este chamamento, numa construção conjunta, compartilhando também a responsabilidade de sua construção.

Nesse contexto, o bailarino não é um objeto da dança, ou um conceito produzido por ela, mas um personagem que se modifica. Ele também se torna paciente no decorrer do processo de produção, responde à convocação da arte e a instaura no sentido de formar e organizar as demandas estabelecidas durante o próprio processo de confecção e instauração. Obra e artista entram em simbiose e se reconstituem a cada momento, ali, juntos: o bailarino não é a causa da dança e tampouco ela é suficiente em sua causa própria. Ele é responsável no sentido de aprender a responder à obra, por meio de sua realização ou de sua falha (Despret, 2010). Da mesma forma, a plateia também é chamada a este encontro, seus movimentos, tensões e afetações também estão presentes e constituem a obra de arte.

Neste momento, retomamos então aquilo escrito há algumas páginas: o nosso papel de "pesquisadorexpectador". Nossa presença nos ensaios também produziu agência, o que ficou muito claro por meio da fala do coordenador da ONG quando disse que, mediante nossas reações nos ensaios aos quais estávamos presentes, os bailarinos avaliavam e chegavam a modificar o modo como estava sendo instaurada a cena. Quando dizemos que o corpo que dança não se produz sozinho com a dança, mas sim com todos os elementos em jogo (tais como a música, o palco, o vestuário, o parceiro, o espaço físico, as afecções etc.), ou seja, com os elementos com os quais produz agência, estamos distribuindo a subjetividade e sua produção, de forma a não poder torná-la inteiramente interiorizável. Consequentemente, é possível pensar a prática do psicólogo de uma maneira completamente nova. Éramos também afetados, produtores daquele espaço em constante negociação com os bailarinos (inclusive no momento da estreia, quando nos sentamos em lugares selecionados por eles). E junto deles pudemos perceber a não necessidade de marcação definida na divisão entre corpo e subjetividade, mas "misturas imprecisas em superfície de corpo e alma" (Serres, 2001, p. 20). A construção de todos estes questionamentos e a possibilidade de pesquisar sobre este corpo que dança só se tornou possível porque estávamos imersos no campo, construindo a pesquisa juntos, pesquisadores e pesquisados, sempre negociando este nosso papel no trabalho realizado. Assim, em vez de nos preocuparmos em "purificar" este lugar do pesquisador, tentando anular esta mescla entre pesquisador e expectador, somos convidados a trazer este posicionamento de forma afirmativa. Portanto, sabemos de nossa incapacidade de neutralidade e apostamos em nossos afetos, sabemos que eles estão sempre presentes. Somos convidados a compor estes afetos e não os ignorar. Nosso saber não se constitui apenas no campo da racionalidade, nós também construímos um mundo com nossos afetos (Despret, 1999). A afirmação de sermos sempre "pesquisadoresexpectadores" nos coloca no lugar de construção de um mundo no qual as relações entre corpo e subjetividade são afirmadas como potentes. Não se trata de negar nossas afetações, mas, ao contrário, de contar também com elas, pois, um corpo que dança não se reduz a um corpo biológico, com músculos e cérebro ordenadores dos movimentos, mas é também um mundo no qual as saias e sapatos de dança flamenca compõem um corpo tanto quanto seus músculos. Da mesma maneira, este corpo se constitui de seus encontros, dos olhares de espanto e admiração, das cumplicidades entre bailarinos e também de suas desavenças. É composto pelos aplausos, pelas luzes de cena e pelas interjeições, seja de gosto ou de desgosto.

Portanto, até o momento da estreia, do contato com o público, a obra está sendo compreendida, respondida e instaurada. E mesmo na apresentação isso não se esgota, apesar de aparecer de outra maneira. Retomando a nossa analogia, a apresentação do espetáculo pode se comparar à tela de uma tapeçaria e possui, portanto, certa completude. No momento da estreia entram outros elementos em cena, pois os bailarinos podem estar cansados, alguns imprevistos podem acontecer: poucos dias antes da apresentação, uma bailarina se machucou e foi substituída às pressas. Algumas partes tiveram que ser adaptadas. Cada ator, isoladamente, podendo ser a sapatilha, medo, dor ou psicólogo, está trazendo uma nova maneira de responder à realização desta obra. Como pudemos participar da construção do espetáculo, com suas vicissitudes, com todo o percurso necessário para que aqueles corpos estivessem engendrados na proposta coreográfica, fomos também responsáveis pela realização do mesmo. No decorrer de nossa pesquisa, pudemos testemunhar alguns destes movimentos de instauração e também as tensões, dificuldades e hesitações presentes na composição da obra.

Falando um pouco mais deste percurso, uma questão nos chamou atenção e se relaciona intimamente com esta ideia do chamado da obra de arte. Logo no começo de nossa inserção no campo, fomos apresentados à proposta de um espetáculo flamenco, proposta essa que foi sendo mudada no decorrer da produção. Como um dos coreógrafos é profissional de dança flamenca e o outro (assim como os bailarinos) é profissional de dança contemporânea, algo novo foi criado, como apontamos antes: não havia tempo hábil para se criar um corpo de dança flamenca para o espetáculo. Foi preciso mesclar técnicas de uma dança e de outra para que, segundo as palavras do coreógrafo, o espetáculo não se tornasse um "arremedo de dança flamenca ou de dança contemporânea". Porém, toda esta negociação também foi feita em relação aos bailarinos executantes de cada movimento e que iam desempenhar os papéis no espetáculo. Soubemos depois da vontade do diretor da companhia de colocar uma das bailarinas no papel da noiva para contracenar com o bailarino principal. Porém, o coreógrafo escolheu outra bailarina, alterando toda a dinâmica da companhia, uma vez que eles não estavam acostumados a contracenar como parceiros de dança. Esta relação precisou de tempo para ser construída. As pegadas eram mais difíceis e era visível a dificuldade nos ensaios. Em outra cena, testemunhamos o oposto disso: num determinado momento do espetáculo, o bailarino principal seria "manipulado" por outro. Este outro era o coreógrafo de dança flamenca, que acabara de conhecer a companhia. Os movimentos não aconteciam de maneira harmoniosa. A certa altura dos ensaios, este coreógrafo foi substituído por outro bailarino, irmão deste que seria manipulado. A cena então se transformou numa das mais bonitas de todo o espetáculo. A sincronia é visível e o espectador tem a nítida impressão da existência de fios ligando os dois bailarinos. Em todos estes momentos, percebemos o quanto o espetáculo ia sendo construído conjuntamente, sua existência era sempre hesitante, mas, mesmo assim, sua existência era fortificada no momento da solidificação das relações dos atores envolvidos na montagem do espetáculo.

Seguimos nossos encontros até o último ensaio antes da apresentação, porém, neste momento, presenciamos uma situação um pouco diferente: faltava uma semana para o espetáculo e os bailarinos estavam bastante tensos. Um dos motivos para tal tensão estava relacionado ao imprevisto da bailarina machucada. Sem dúvida, este era um fator de extrema tensão, apesar de sabermos disso somente depois do encontro. Durante os ensaios, a tensão permanecia presente, diferente dos outros ensaios presenciados por nós. Parecia que toda a fluidez sentida antes tinha se dissipado, eram os momentos finais de "treino" e os bailarinos se deparariam com o público, ator de fundamental importância para a completude, mesmo instável, da obra. O maior temor em relação ao espetáculo, como dissemos, era seu tema: o suicídio, e percebemos o receio dos bailarinos em apresentar tal tema para a plateia. A preocupação maior consistia em afetar àquelas pessoas que já tivessem passado por situações semelhantes em sua vida e, portanto, não suportariam ver este tema encenado. Porém, devido à proposta da própria companhia, de não pensar apenas nas questões da dança, mas nas discussões políticas e sociais que nos cercam - palavras ditas por seu diretor artístico -, eles deveriam correr o risco de produzir efeitos indesejáveis, risco, aliás, ao qual corre toda obra de arte.

Uma das estratégias utilizadas pelos bailarinos, neste momento de dúvida e inquietação, foi pedir para nós, "pesquisadoresexpectadores", nos sentarmos em lugares diferentes na plateia, para "sentir" a reação do público. Desta maneira, nós também nos tornamos instrumentos do próprio espetáculo, sendo agentes da sua produção. Portanto, nossa interferência ocorreu não apenas nos ensaios, interferimos também no espetáculo. Neste momento éramos também atores na cena da apresentação e não apenas pesquisadores. Muitos efeitos podem ser relatados deste momento, dentre eles, o fato de que, ao assistirmos aos ensaios, em alguns momentos esperávamos das cenas mais impactantes uma performance mais dramática no palco. Isso nos fez refletir não apenas sobre nosso lugar de pesquisador, mas também nossa suposta "neutralidade" em relação ao pesquisado. Podemos refletir, neste momento, que talvez esperássemos um público "mais comprometido" com a produção artística, em vez disso, percebemos certa "leveza" em relação ao tema proposto. A plateia, como novo componente nos agenciamentos produzidos com o campo, também muda as relações estabelecidas com nossos pesquisados, ela se apresenta como um novo ator, alterando, inclusive, nossa perspectiva em relação ao espetáculo. O tema do suicídio foi atravessado por muitos outros componentes da plateia e, dentre estes, percebemos o carinho e respeito do público com os bailarinos. Para nós, parecia haver um acolhimento da plateia ao espetáculo muito mais por sua relação com a companhia do que propriamente com o tema do suicídio.

 

Produção a partir dos encontros: como nos compomos com nosso campo

Como dissemos no início deste texto, tínhamos como pressuposto o fato da dança produzir não somente corpos, como também subjetividades. Tal questão foi posta à prova em nosso campo de pesquisa. Neste movimento de arriscar nossas teorias numa prática de pesquisa de campo, pudemos colher as narrativas aqui apresentadas, que culminam no florescimento de algumas questões que tentamos tratar até agora como: qual o nosso lugar enquanto pesquisadoras? E qual é o lugar das nossas metodologias e produções? Como estabelecer uma relação com o campo que seja intercambiável? Para além destas perguntas, ficou clara também toda uma discussão teórica daquilo que concerniu habitar a montagem daquele espetáculo e os afetos que daí surgiram. Podemos dizer que, se, por um lado, nos sentimos extremamente afetados pelos ensaios presenciados, possibilitando perceber as alterações e negociações feitas na composição do espetáculo; por outro lado, nos encontramos ainda num lugar incômodo em relação àquilo que nos era demandado.

Sobre a constituição de um corpo que se afeta e é afetado pela dança, pudemos presenciar momentos preciosos aos quais nos instigaram e nos incentivaram a pesquisar mais sobre isso. Como exemplo, podemos citar a fala do diretor da companhia num dos ensaios a respeito de um de seus bailarinos. Este havia chegado em suas aulas de dança porque era reconhecidamente um "garoto problema" que dava muito trabalho na escola e tinha sido diagnosticado com TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). Este menino chegou nas aulas de dança bastante agitado, atrapalhando todo mundo, até que chegou um momento no qual o professor o desafiou a fazer o que os bailarinos mais avançados faziam. Ele foi prontamente atendido, e com maestria. Deste momento em diante, este bailarino produziu uma nova relação não apenas com seu corpo, mas com sua vida. Uma patologia se transformou em arte e produziu novas relações de existência. Este bailarino não deixou de ser agitado, mas sua agitação ganhou outros espaços e, vale dizer, a facilidade com a qual ele executa os movimentos que lhe são exigidos é muitas vezes desconcertante.

Para finalizar, porém, é importante dizer que nossa inserção no campo como "pesquisadoras da Psicologia" não ocorreu de maneira tranquila, muitas vezes víamos pontos de interrogação no rosto dos bailarinos, pois eles não sabiam muito bem porque estávamos ali. Isto não é um problema, a princípio, mas tivemos que lidar com estas incertezas. Tivemos também que repensar nosso lugar naquela pesquisa, uma vez que a nossa presença se apresentou como parte da composição do campo. E, algumas vezes, nós mesmos nos perguntávamos qual era nosso papel ali. Havia, ainda, uma tentação de "se colocar no lugar de psicólogo", vontade compartilhada em alguns momentos pelo próprio diretor da companhia, que chegou a nos perguntar se sabíamos como era o comportamento de uma pessoa abusada, por exemplo. Esta demanda não deve ser acolhida sem ser problematizada, pois somos convocados a nos tornar "detetives" das relações e das vidas. Em contraposição àquilo que pesquisávamos, éramos convocados a decifrar os afetos. Percebíamos, porém, que tais afetos eram o tempo todo intercambiáveis, se compunham pelas relações instáveis entre corpos e subjetividades. Ao invés de descobrirmos os afetos mais íntimos, vimos emergir uma multiplicidade de afetos que só foram possíveis a partir daqueles movimentos, daqueles temas, daqueles encontros, parciais e localizados. Deste modo, podemos afirmar que nossos objetivos foram alcançados ao vislumbrarmos tais relações afetivas sem a necessidade de uma "descoberta" acerca do um corpo abusado, por exemplo. Saímos do campo investigativo para adentar no campo da produção. Porém, sabemos também que isto nos diz do lugar do psicólogo no mundo. Como fechamento deste texto, então, deixamos uma questão em vez de uma resposta: será possível construir uma psicologia que leve em consideração estes mal-entendidos, sem sucumbir à demanda? É na aposta desta possibilidade que continuamos a construir nossas pesquisas, tendo como proposta a possibilidade de sempre recomeçar.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Ana Claudia Lima Monteiro
anaclmonteiro@gmail.com

Gabriela Cabral Paletta
gabrielapaletta@gmail.com

Submetido em: 09/05/2015
Revisto em: 14/10/2016
Aceito em: 21/10/2016

 

 

1 O conceito de tradução trazido aqui faz parte da proposta teórico-metodológica de Bruno Latour e encontra-se bem explicitado no livro Ciência em ação (Latour, 2000).

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