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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versión On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.68 no.3 Rio de Janeiro dic. 2016

 

ARTIGOS

 

Grupo multifamiliar no contexto dos Transtornos Alimentares: a experiência compartilhada

 

Multifamily group in the context of Eating Disorders: a shared experience

 

Grupo multifamiliar en el contexto de los Trastornos Alimenticios: la experiencia compartida

 

 

Manoel Antônio SantosI; Carolina LeonidasII; Lilian Regiane de Souza CostaIII

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Ribeirão Preto. Estado de São Paulo. Brasil
IIDocente. Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais (IELACHS), Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Uberaba, Minas Gerais, Brasil
IIIDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Ribeirão Preto. Estado de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teve por objetivo explorar a experiência compartilhada por cuidadores que participam de um grupo de apoio para familiares de pessoas diagnosticadas com transtornos alimentares (TAs), buscando identificar os sentimentos vivenciados e as possíveis ressignificações de suas experiências como cuidadores. Foram analisadas cinco sessões do Grupo de Apoio Psicológico aos Familiares, das quais participaram 23 familiares de pacientes cadastrados em um serviço especializado em TAs do interior do estado de São Paulo. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo temática e interpretados à luz do referencial psicodinâmico. Os resultados indicam que os familiares buscam compreender as causas do problema, percebem o filho afetado pelo transtorno como emocionalmente imaturo, experimentam sentimento de culpa e déficits de autocuidado, beneficiam-se da presença do pai e de outros familiares que não as mães no cenário do tratamento e tiram proveito do grupo para fortalecer seu papel de cuidadores familiares. Evidenciou-se que o espaço do grupo pode funcionar como alternativa importante na construção de relacionamentos mais saudáveis, induzindo mudanças na dinâmica familiar.

Palavras-chave: Transtornos alimentares; Grupo multifamiliar; Cuidador; Família.


ABSTRACT

This study aimed to explore the experience shared by caregivers who participated in a support group for family members of people who have eating disorders (ED), seeking to identify the feelings experienced and possible reinterpretations of their experiences as caregivers. Five group sessions of Family Support Group, attended by 23 relatives of patients registered in a specialized ED service in the state of São Paulo, Brazil, were analyzed. Data were subjected to thematic content analysis and interpreted in the light of a psychodynamic framework. The results indicate that family members seek to understand the causes of the problem, perceive the son/daughter affected by the disorder as an emotionally immature person, experience feelings of guilt and deficits of self-care, benefit from the presence of the father and other family members other than mothers in the setting of treatment and take advantage of the group to strengthen their role as family caregivers. It was evident that the group can function as an important alternative in building healthier relationships, eliciting changes in family dynamics.

Keywords: Eating disorders; Multifamily group; Caregiver; Family.


RESUMEN

Este estudio trata de explorar la experiencia compartida por los cuidadores que participaron en un grupo de apoyo para familiares de personas diagnosticadas con trastornos alimenticios (TA), buscando identificar los sentimientos experimentados y la posible reinterpretación de sus experiencias como cuidadores. Fueron analizadas cinco sesiones del Grupo de Apoyo Psicológico a Familiares, al que asistieron 23 familiares de pacientes registrados en una clínica especializada en TA en el estado de São Paulo, Brasil. Los datos fueron sometidos a análisis de contenido temático e interpretados a la luz de la teoría psicodinámica. Los resultados indican que los miembros de la familia tratan de comprender las causas del problema, perciben el miembro afectado por el trastorno como emocionalmente inmaduro, experimentan sentimientos de culpa y déficits de auto-cuidado, se benefician de la presencia del padre durante el tratamiento y de otros miembros de la familia que no sean las madres, y aprovechan el grupo para reforzar su papel como cuidadores familiares. Se hizo evidente que el grupo puede funcionar como una alternativa importante en la construcción de relaciones más sanas, induciendo cambios en la dinámica familiar.

Palabras clave: Trastornos alimenticios; Grupo multifamiliar; Cuidador; Familia.


 

 

Introdução

Transtornos alimentares (TAs) são psicopatologias que envolvem alterações graves no comportamento alimentar (Andrade & Santos, 2009; Scorsolini-Comin & Santos, 2012). A dinâmica familiar é considerada um dos fatores precipitadores e/ou mantenedores desses quadros (Vanderlinden & Vandereycken, 1993). Frequentemente as famílias são marcadas por relacionamentos do tipo fusional entre mãe e filha, nos quais o exercício da função paterna encontra-se enfraquecido ou ausente (Leonidas & Santos, 2013; Limbert, 2010; Marcos & Cantero, 2009). Os laços familiares tendem a ser muito estreitos e as fronteiras entre os subsistemas familiares (conjugal, parental e fraterno) mostram-se indiferenciadas (Valdanha, Scorsolini-Comin, Peres, & Santos, 2013). Esse funcionamento dificulta a separação e individuação dos membros, que apresentam também uma tendência a evitar conflitos explícitos e a expressão emocional dos mesmos (Leonidas & Santos, 2013; Leonidas, Crepaldi, & Santos, 2013).

Em meio a um ambiente familiar muitas vezes marcado por tensões e conflitos crônicos não solucionados, umas das possíveis estratégias defensivas encontradas pelos pais são as tentativas reiteradas de controle dos comportamentos do(a) filho(a) acometido(a) pelo transtorno. Esses pais, com frequência, apresentam estilos de comunicação negativos, acrescidos de discrepâncias na fixação dos valores e normas familiares, além de evidenciarem distorções e confusões nas interações cotidianas vivenciadas com os membros da família (Benninghoven, Tetsch, Kunzendorf, & Jantscheck, 2007; Dallos & Denford, 2008).

Dallos e Denford (2008) sugerem que os relacionamentos nas famílias com um membro acometido por TA se processam sobre uma base falsa ou frágil, com predomínio de vínculos problemáticos, discussões frequentes, triangulação, desconforto e relação negativa com a alimentação. Os autores também sugerem que mulheres acometidas por esses quadros vivenciam sensações frequentes de conflitos reais ou iminentes entre os pais, além de se sentirem aprisionadas no centro desses conflitos e coagidas a tomar partido de um dos genitores. Hipotetiza-se que a relação de superenvolvimento entre mãe e filha seja um reflexo de tensões implícitas na relação do casal parental, que se encontram encobertas pela sintomatologia da filha. Dessa forma, pode-se considerar que o quadro psicopatológico muitas vezes acaba funcionando para os pais como um modo de evasão de seus próprios problemas e conflitos não resolvidos (McGoldrick, Gerson, & Petry, 2008). Essa função psíquica desempenhada pelos sintomas da filha contribuiria para a perpetuação do problema, pois assim se preservaria a homeostase do subsistema conjugal, mantendo-o intacto.

Os irmãos que não apresentam o quadro psicopatológico também podem ser indiretamente afetados, pelo fato de os pais devotarem maior atenção ao filho acometido (Areemit, Katzman, Pinhas, & Kaufan, 2010). A emergência do TA exige que os pais reorganizem o funcionamento familiar de forma a oferecer mais cuidados ao membro adoecido, o que pode contribuir para que os outros filhos se sintam negligenciados em suas necessidades e vivenciem sentimentos de desamparo, abandono e exclusão do núcleo familiar.

Considerando-se o exposto, nota-se por que a família é considerada como parte da equação etiológica responsável pelo surgimento e manutenção dos TAs, uma vez que apresenta padrões de interação e funcionamento muito particulares, que resultam em dificuldades na comunicação e fronteiras rarefeitas e indefinidas entre os membros. Percebe-se, portanto, a necessidade de incluir a família no plano de tratamento oferecido a pacientes diagnosticados com TAs, buscando oferecer um espaço no qual os membros possam sentir-se acolhidos e apoiados (Souza & Santos, 2007; 2009). Esse espaço de cuidado oferecido aos familiares deve ter como propósito ajudá-los a encontrar estratégias adaptativas de elaboração de seus conflitos e angústias, potencializando seus recursos e descobrindo novas fontes de satisfação das necessidades e impulsos primários. O trabalho deve buscar ampliar a qualidade e a extensão dos relacionamentos vivenciados nos âmbitos intra e extrafamiliar, considerando que muitas vezes as relações estabelecidas com o meio externo são empobrecidas porque se restringem ao ambiente doméstico permeado por conflitos (Leonidas & Santos, 2014).

Atualmente, o contexto familiar tem sido valorizado, tanto em termos de agente promotor de práticas de atenção à saúde (Oliveira & Bastos, 2000), como por seu papel como rede primária de apoio na reestruturação das políticas sociais (Serapioni, 2005). Desse modo, a oferta de um espaço de escuta aos familiares, além de poder fornecer continência às angústias experimentadas por eles, pode assumir a função de ajudá-los a reorganizar seus papéis como cuidadores, com a possibilidade de descobrirem maneiras mais saudáveis de lidar com o membro adoecido. Nessa perspectiva, a inclusão da família no tratamento pode ser um importante instrumento terapêutico, na medida em que permite que o núcleo familiar se torne aliado da equipe multidisciplinar nos esforços empreendidos para a recuperação do paciente (Cobelo, 2004).

Para a inclusão dos familiares no tratamento, é necessário planejar estratégias de intervenção que se mostrem exequíveis nas condições objetivas em que se organiza a assistência multidisciplinar e que considerem também as possibilidades e limites individuais dos próprios cuidadores. Para a sistematização de estratégias clínicas efetivas, são necessários estudos que se proponham a contribuir para a produção de conhecimentos, por meio de abordagens tanto quantitativas como qualitativas, sobre as necessidades específicas dos familiares, para que eles possam apoiar efetivamente o tratamento do membro acometido (Benninghoven et al., 2007; Rosa & Santos, 2011; Souza, Moura, Nascimento, Lauand, & Santos, 2013).

Dentre as possíveis intervenções junto aos familiares, estratégias interventivas em grupo têm se mostrado uma alternativa eficaz no oferecimento de suporte a cuidadores no contexto de saúde. Principalmente, porque as relações construídas no contexto grupal podem prover modelos e estratégias mais saudáveis de relacionamento com seus próprios conteúdos afetivos e com o ambiente (Narvaz, 2010). Nessa vertente, este estudo teve por objetivo explorar a experiência compartilhada pelos participantes de um grupo de apoio para familiares de pessoas diagnosticadas com TAs, buscando identificar os sentimentos vivenciados por esses familiares e o modo como as sessões grupais puderam contribuir para que os participantes ressignificassem sua experiência como cuidadores familiares.

 

Método

Delineamento metodológico

Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, de abordagem qualitativa. O método qualitativo foi escolhido por se tratar de um estudo desenvolvido em condições naturalísticas, segundo os pressupostos do paradigma interpretativo em pesquisa (Bogdan & Biklen, 1994).

Utilizou-se como estratégia metodológica o estudo de caso (Stake, 2005) e o enfoque psicodinâmico para análise dos dados (Gabbard, 1992; Goulart & Santos, 2012). Foram analisadas cinco sessões do Grupo de Apoio Psicológico aos Familiares dos pacientes com TAs, cadastrados no Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares (Grata) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (HC-FMRP-USP). A análise dos dados focalizou os temas discutidos no grupo, extraídos a partir da experiência vivida dos participantes. Entende-se que os encontros realizados no contexto da assistência aos TAs constituem uma oportunidade de examinar, em condições naturalísticas, os pensamentos, sentimentos e ações dos familiares em relação à problemática de saúde mental vivenciada no ambiente familiar.

 

Cenário do estudo

O Grata é um serviço multidisciplinar criado em 1983 junto ao ambulatório de Nutrologia do HC-FMRP-USP e que, desde então, se mantém em atividade ininterrupta. O Grupo de Apoio Psicológico aos Familiares é uma das atividades assistenciais propostas pelo Grata e ocorre em paralelo ao Grupo de Apoio Psicológico aos Pacientes (Goulart & Santos, 2012). Também são oferecidos, para os pacientes, grupos de orientação nutricional e atendimentos ambulatoriais individuais, sob a responsabilidade de médicos nutrólogos, psiquiatras, nutricionistas e psicólogos.

O grupo multifamiliar é coordenado por duas psicólogas que integram a equipe de Psicologia do serviço. Tem frequência semanal e é obrigatório para os familiares que acompanham o membro adoecido no dia do retorno ambulatorial. Os retornos são variáveis e dependem do grau de comprometimento clínico do(a) paciente. Portanto, cada sessão grupal apresenta uma configuração diferente de participantes e temas discutidos, embora seja recorrente a permanência de alguns familiares em vários encontros consecutivos.

O grupo multifamiliar tem como objetivo prover informações relacionadas aos TAs e ao tratamento, além de oferecer acolhimento para as questões emocionais suscitadas pelo convívio familiar com o membro adoecido. Considera-se que esse convívio, somado as responsabilidades do papel de cuidador, gera intensa sobrecarga para os familiares (Cobelo, 2004; Dallos & Denford, 2008; Huke & Slade, 2006). Os assuntos abordados são trazidos espontaneamente pelos participantes, que são estimulados pelas coordenadoras a compartilharem suas experiências e sentimentos com os demais integrantes do grupo. Cada encontro tem duração de, aproximadamente, 75 minutos. A condução do grupo é fundamentada no referencial psicodinâmico (Cahn, 1998).

O grupo multifamiliar não visa apenas contribuir para incrementar a adesão do paciente identificado ao tratamento. Trata-se, sobretudo, de uma estratégia clínica utilizada para desenvolver e otimizar os recursos dos cuidadores, de modo que possam desempenhar sua função intermediadora entre o espaço terapêutico e o ambiente familiar. Por meio desse dispositivo, os coordenadores tentam pactuar uma postura proativa e de corresponsabilidade, incluindo a família como parceira no tratamento, engajando-a assim na busca da melhora.

Participantes

Participou do estudo a totalidade de familiares presentes nas cinco sessões de grupo analisadas (n = 23). Conforme mencionado anteriormente, a frequência dos familiares nos encontros varia de acordo com o retorno ambulatorial do(a) membro(a) da família diagnosticado(a) com TA. No que concerne à composição do grupo durante os encontros selecionados, a maioria dos participantes (n = 16) era constituída por mães, que compareceram ao serviço com o propósito de acompanhar e apoiar o tratamento de suas filhas. A figura masculina esteve presente em menor proporção: três pais, um tio (que assumiu papel de tutor após a morte do pai da paciente) e três parceiros (dois namorados e um marido). As mães, em sua maioria, eram acompanhantes das pacientes do sexo feminino, já que apenas dois pacientes eram do sexo masculino. A idade dos participantes variou entre 22 e 63 anos, prevalecendo a faixa etária entre 46 e 55 anos. Em relação à escolaridade, dentre os 23 participantes a maioria havia completado o Ensino Médio. Quanto à ocupação profissional, a maioria era dona de casa. Todos os participantes masculinos exerciam atividade remunerada e havia uma mãe aposentada.

Procedimento

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição hospitalar. Antes de dar início ao encontro semanal, o convite para participar da pesquisa foi endereçado aos membros do grupo. Os familiares foram informados de que eram livres para aceitar participar ou não participarem do estudo, sendo-lhes assegurado o direito de receberem a intervenção grupal caso não se sentissem à vontade para colaborar. Quando havia concordância por parte de todos os integrantes do grupo, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido era lido e assinado, sendo garantidos os requisitos da preservação do anonimato e de confidencialidade das informações fornecidas no contexto grupal. Só foram utilizadas as informações dos grupos nos quais todos os participantes concordaram em participar da pesquisa.

Nesta investigação foram analisados os relatos obtidos em cinco sessões grupais audiogravadas e transcritas na íntegra pelas coordenadoras, logo após o término dos encontros. Também foi realizado diário de campo referente a cada sessão, contendo anotações acerca das interações observadas entre os participantes, comportamento não verbal, clima grupal e intercorrências, entre outros apontamentos.

O número de sessões analisadas foi determinado pelo critério de saturação dos dados. A coleta foi interrompida no momento em que os dados empíricos começaram a evidenciar redundâncias e não adicionavam informações novas que possibilitassem ampliar a compreensão do fenômeno investigado (Fontanella, Ricas, & Turato, 2008).

O corpus de pesquisa, constituído pelo conjunto de transcrições literais das conversações mantidas durante os encontros grupais, foi submetido à análise de conteúdo na modalidade temática (Bardin, 1979). No processo de análise foram tomados os cuidados, preconizados por Borsa e Nunes (2008), em relação às peculiaridades da posição assumida pelo sujeito-pesquisador na pesquisa em psicologia clínica. Os pesquisadores ocupavam um lugar específico no contexto naturalístico no qual os dados foram produzidos, uma vez que eram coordenadores do grupo de apoio investigado. O duplo lugar assumido - de coordenadores e, por um período de tempo, também pesquisadores do grupo - delimita tanto limites como possibilidades, que devem ser levadas em consideração nas análises realizadas.

Foram seguidos os passos metodológicos propostos por Bardin (1979):

Pré-análise: trata-se da organização preliminar do material que constituirá o corpus de análise. Inicialmente, foi realizada uma leitura geral, denominada flutuante, dos relatos coligidos. Em seguida, esse material foi cuidadosa e exaustivamente lido e, após sucessivas leituras, procurou-se identificar as questões emergentes nos relatos.

Descrição analítica: o material pré-organizado foi submetido a um exame aprofundado, em uma busca de sistematização. Os dados foram agregados por similaridades de conteúdo, gerando categorias temáticas que permitiram destacar os resultados e, na próxima etapa, atribuir significados para os trechos principais (núcleos de significado).

Interpretação referencial: foi realizado um trabalho de integração e síntese dos principais resultados. Os achados foram interpretados à luz da teoria psicodinâmica.

Em suma, após a leitura do material, foi feita a reunião e síntese dos conteúdos e transformação destes em categorias de análise, sendo estas construídas a posteriori, com base nos conteúdos dos relatos dos familiares a fim de promover um melhor entendimento sobre os dados obtidos.

Uma vez estabelecidas as categorias de análise pelos pesquisadores (etapa preliminar), foi realizada, posteriormente, uma etapa de validação das classificações feitas, a fim de assegurar a fidedignidade do procedimento de categorização. Para tanto, realizou-se uma avaliação do sistema de categorias proposto inicialmente. Participaram dessa avaliação cinco pesquisadores que trabalharam de maneira independente e às cegas, obedecendo rigorosamente o protocolo oferecido, que solicitava que classificassem os excertos de falas nas categorias preestabelecidas. Os avaliadores tinham liberdade de propor novas categorias, se julgassem necessário. Só foram adotadas as categorias e classificações que contaram com um índice de, no mínimo, 80% de concordância interjuízes.

 

Resultados e discussão

Foram construídas seis categorias temáticas: Buscando compreender as causas do problema; Percebendo o familiar afetado pelo transtorno; Vivenciando sentimentos negativos; Identificando déficits de autocuidado nos cuidadores; Beneficiando-se da presença do pai e de outros familiares no cenário do tratamento; Fortalecendo o papel de cuidador familiar. Essas categorias serão apresentadas e, concomitantemente, discutidas com o apoio da literatura e do referencial teórico assumido.

Buscando compreender as causas do problema

No início dos encontros e, principalmente, nas falas dos participantes novatos foram frequentes os relatos com enfoque na busca de explicações causais para o problema. Alguns relatos dão testemunho dessa preocupação:

Será que essa doença tem cura? Já ouvi muita gente falar que não, mas eu queria que ela conseguisse ficar bem... (pai).

Não sei o que acontece, elas [as filhas] são tão inteligentes e não conseguem entender que precisam comer (mãe).

A etiopatogenia dos transtornos mentais, como a anorexia nervosa e a bulimia, é multifatorial e comporta elevado grau de indeterminação. Talvez por ainda desconhecerem essa dimensão multifatorial, os novatos são os que mais se expressaram em relação à busca de compreensão das causas do transtorno. Os demais participantes parecem já ter assimilado esse conhecimento, aprendendo que não existe uma resposta simples e universal para a questão sobre a origem do problema. Isso não significa que a busca de fatores singulares, tanto na trajetória pessoal como na história familiar, deva ser desencorajada. Em todos os momentos do tratamento, é preciso oferecer acolhimento às ansiedades manifestadas pelos cuidadores familiares, que buscam respostas para suas inquietações, acentuadas pelo desconhecimento do que se passa com o paciente identificado.

O esforço para obter uma compreensão do transtorno e a especulação em relação às suas possíveis "causas" também foram relatados por Huke e Slade (2006). O grupo funciona como caixa de ressonância e, ao mesmo tempo, espaço de continência para as preocupações dos familiares e as ansiedades emergentes. O acolhimento proporcionado pelos membros do grupo - sejam os coordenadores ou os próprios familiares - pode se dar, inclusive, por meio do fornecimento ativo de informações sobre a condição dos(as) pacientes, que se mostrem relevantes para contextualizar e garantir a continuidade do tratamento dos(as) filhos(as).

Percebendo o familiar afetado pelo transtorno

A análise dos relatos das mães e pais participantes do grupo desvelou que seus(suas) filhos(as) são percebidos como imaturos e extremamente dependentes, o que os leva muitas vezes a desconsiderarem suas potencialidades e desejos de individualização. Mães e pais, em vários momentos, evidenciaram perceberem seus filhos como seres infantilizados, vendo-os como excessivamente demandantes de proteção e cuidado. Isso incrementa as tentativas de exercerem controle coercitivo sobre eles, ao mesmo tempo em que intensifica a sobrecarga dos cuidadores.

Esse dado corrobora achados obtidos por outros estudos (Leonidas & Santos, 2014; Leonidas, Crepaldi, & Santos, 2013). Essa percepção dos cuidadores familiares sobre os indivíduos que estão sob seus cuidados pode criar dificuldades para que estes encontrem um espaço seguro para crescerem e desenvolverem seus próprios esquemas de autonomia, avançando assim em seu processo de maturação. Afinal, cuidar não é fazer pelo outro, mas ajudar o outro que vivencia uma condição de limitação a suprir suas necessidades vitais, porém estimulando a pessoa cuidada a conquistar sua autonomia (Brasil, 2008).

A literatura claramente aponta para as dificuldades do casal parental, e especialmente das mães, em contribuir para o processo de separação-individuação mãe-filha. Há também indícios de uma tendência de reedição do padrão de envolvimento afetivo simbiótico entre mãe e filhas nos vínculos amorosos construídos pelas pacientes. Estas tendem a reproduzir na relação com o parceiro a relação ambivalente que mantinham com a figura materna (Leonidas, Crepaldi, & Santos, 2013). No presente estudo, notou-se que os pais participantes se esforçam para desempenharem a função interditora da relação simbiótica entre mãe e filha, porém retrocedem ao se perceberem fragilizados. Esses achados indicam a importância de reforçar estratégias que permitam intervir na relação simbiótica mãe-filha, de modo a ajudar a dupla a descobrir novas estratégias de relacionamento, contribuindo para que se produza uma nova percepção de que é possível cuidar e ser cuidado sem se misturar emocionalmente com o outro. Do ponto de vista dos pais, é fundamental valorizar seus sentimentos e fomentar uma maior aproximação em relação às questões afetivas da família e, especialmente, fortalecer o vínculo pai-filha.

Vivenciando sentimentos negativos

Neste estudo, observou-se que, na medida em que se fortalecem os vínculos estabelecidos entre os participantes e se oferecem esclarecimentos progressivos sobre o manejo da problemática, começam a emergir falas que desvelam sentimentos latentes, tais como vergonha, tristeza, desamparo e pesar. A análise dos dados evidenciou igualmente o inconformismo dos familiares: "eu não acredito que isso foi acontecer justo em minha família"; incredulidade em relação ao fato de se tratar realmente de uma "doença": "elas não comem porque não querem"; desespero: "não sei mais o que fazer"; e temor face ao desconhecido: "tenho medo de que aconteça com ela o que aconteceu com aquela modelo".

Nota-se que as mães apresentam forte propensão à autoculpabilização, isto é, experimentam sentimento de culpa em relação ao quadro psicopatológico apresentado pelos(as) filhos(as). Trata-se de um sentimento difuso e difícil de ser percebido de forma consciente, uma vez que envolve questionamentos penosos a respeito de sua competência no desempenho do papel materno e, portanto, não é uma vivência relatada com facilidade. No entanto, após algumas sessões de grupo, é possível perceber falas nas quais emergem suas dúvidas a respeito de serem ou não "boas mães".

Eu não me sinto culpada, mas será que eu não estou conseguindo dizer "não" quando necessário? Meu filho fala que eu passo muito a mão na cabeça da F. (filha acometida pelo TA), deixo ela fazer o que quer, mas se ela está nessa situação, eu também não posso deixar de fazer o que ela me pede (mãe).

A relação de superenvolvimento entre mãe e filha também contribui para exacerbar os sentimentos de culpa, sendo possível pressupor que os sintomas de TAs podem representar uma tentativa frustrada de retomar o processo de separação-individuação por parte das filhas. Estas se sentem aprisionadas no vínculo fusional e mortífero estabelecido com a mãe, configurando o que Lane (2002) denominou de "mãe-aranha". Esse vínculo adesivo e engolfador acaba por empobrecer o ego, obstruindo o acesso a uma identidade própria. Por se tratar de um sintoma, no sentido psicanalítico, em vez de quebra da continuidade da relação indiferenciada, o que ocorre é exatamente o oposto, ou seja, a relação simbiótica mãe-filha torna-se ainda mais adesiva e indiferenciada, acarretando no empobrecimento do ego.

A relação com a figura materna é um dos aspectos mais abordados no âmbito dos TAs (Valdanha et al., 2013). A mãe é comumente descrita como sendo excessivamente intrusiva em relação à criança, em especial durante as fases primordiais do desenvolvimento psicoafetivo, o que dificulta a aquisição de um senso de identidade sólido, estável e diferenciado (Nodin & Leal, 2005). Geralmente, a criança que irá futuramente desenvolver um quadro de anorexia nervosa foi bem tratada do ponto de satisfação de suas necessidades físicas, porém não de acordo com as suas próprias necessidades, mas sim conforme as vontades e decisões de sua mãe. Isso faz com que elas se tornem incapazes de identificar suas sensações corporais, mantendo um vínculo precário com o próprio corpo.

Identificando déficits de autocuidado nos cuidadores

Autocuidado significa cuidar de si próprio. Refere-se ao conjunto de atitudes e comportamentos que a pessoa tem e desempenha em seu próprio benefício, com a finalidade de promover sua saúde e preservar a vida. Nessa vertente, o cuidar do outro representa a essência do desprendimento e da doação, ao passo que o cuidar de si representa a essência da existência humana (Brasil, 2008).

Se o familiar não está sendo capaz de observar sua própria experiência e identificar o que pode fazer por si mesmo, não consegue avaliar genuinamente as condições e oferecer de fato ajuda ao outro. As mães relatam dificuldades em voltarem sua atenção às suas próprias necessidades subjetivas, alegando que, em razão da preocupação exacerbada com as filhas adoecidas, acabam não dispondo de tempo suficiente para cuidar de si mesmas. Como consequência, não só o autocuidado, mas também as demais relações interpessoais ficam prejudicadas, incluindo a própria relação conjugal. Para ilustrar isso, pode-se recorrer ao relato de uma das mães, que mencionou não ter tempo sequer para conversar com o marido, sendo que o único momento em que o casal se encontra a sós é na hora de dormir. Nesse momento, porém, o filho com TA costuma ouvir o que os pais conversam, espreitando furtivamente atrás da porta do quarto.

Estudos sugerem que a família como um todo fica envolvida e, em alguns casos, torna-se cativa dos conflitos vivenciados pela pessoa acometida pelo TA (Souza & Santos, 2006, 2007). Nessa direção, a família facilmente se torna "refém" do problema, o que tende a paralisá-la. Com frequência, permanece confinada em uma dinâmica que tende a perpetuar a sintomatologia do filho, exaurindo suas energias livres em torno de um padrão de relacionamento que, ao invés de ser benéfico, dá sustentabilidade aos sintomas psicopatológicos do membro acometido. Nessa vertente, estudos têm evidenciado a importância de explorar a relação entre os sintomas de TAs e o tipo de apego prevalecente entre os familiares (Dallos & Denford, 2008; Valdanha et al., 2013).

Os profissionais devem estar atentos a essa dinâmica de funcionamento familiar para não se deixarem capturar. Por outro lado, devem regular sua proximidade afetiva em relação aos pacientes (Souza & Santos, 2013a; 2013b), de modo a não se distanciarem demasiadamente, o que os impediria de suprir as necessidades de cuidados apresentadas pelos familiares.

Já está bem estabelecido na literatura que a qualidade da relação com a figura materna é um aspecto crucial no mundo relacional da pessoa com TA (Nodin & Leal, 2005). Como essa é uma perturbação que afeta, predominantemente, as adolescentes, resulta em um problema na transmissão intergeracional da feminilidade. Assim, é importante trabalhar as dificuldades de autocuidado apresentadas pelas mães, para que elas possam funcionar como modelos de identificação positiva para suas filhas. O autocuidado não se refere somente àquilo que a pessoa a ser cuidada pode fazer por si. Refere-se também aos cuidados que o cuidador deve ter consigo, com a finalidade de preservar a sua saúde e melhorar a qualidade de vida (Brasil, 2008).

Beneficiando-se da presença do pai e de outros familiares no cenário do tratamento

Como já pontuado anteriormente, nos encontros do grupo multifamiliar analisados, a maior parte dos participantes era constituída por mães. Efetivamente, são poucos os pais que comparecem ao serviço de atendimento. Esse predomínio materno, além de expressar um aspecto frequentemente descrito no contexto da assistência aos TAs - a fusão e consequente perda dos limites psíquicos entre mãe e filha -, também parece reforçar a ideia socialmente construída de que o cuidado com a saúde dos filhos seria uma função exclusiva da mãe. Ressalva-se que essa construção de gênero não é exclusividade do contexto dos TAs, mas um fenômeno generalizado na assistência em saúde, particularmente no caso da criança e do adolescente. Considerando-se os papéis sociais desempenhados, percebe-se que nas famílias estudadas a função de trabalhar para prover o sustento da família é prioritariamente dos homens, ao passo que a função de cuidar da casa e dos filhos cabe às mulheres. Como o atendimento transcorre no horário comercial, há incompatibilidade com o horário de trabalho dos pais. Nesse sentido, a equipe multidisciplinar depara-se com o desafio de trazer os pais (genitores do sexo masculino) e os parceiros íntimos das pacientes ao alcance do tratamento, tanto para ampliar a rede de apoio social (Leonidas & Santos, 2013), quanto para evitar conluios inconscientes com a dupla mãe-filha. Assim, novas possibilidades de vinculação poderiam ser modeladas, em substituição aos padrões de relacionamento disfuncional que vigoram na família como um todo.

Nas sessões analisadas no presente estudo, percebeu-se que a presença de pais (genitores do sexo masculino) no grupo provocou falas que levaram as mães a refletirem sobre outros âmbitos de suas vidas, para além dos cuidados com os filhos e o lar. Foi possível notar que, quando há figuras masculinas presentes, assuntos como trabalho, lazer e o próprio relacionamento do casal são estimulados, tirando o foco unicamente no filho adoecido e permitindo transcender uma existência restrita ao "ser pai/mãe de um(a) filho(a) com TA". Assim, pode-se pensar que o pai auxiliaria a parceira a olhar para outros aspectos de sua vida de relações que, eventualmente, podem estar sendo negligenciados em função da atenção excessivamente canalizada para o filho adoecido.

A literatura evidencia que nas famílias que têm um membro afetado pelo TA o pai tende a ser frágil e passivo, predominando uma estrutura de personalidade obsessiva. Contrastando com a figura materna, ele é descrito como um indivíduo caloroso, embora preferencialmente permissivo, com baixa tolerância à exposição emocional e à explicitação dos conflitos (Benninghoven et al., 2007), e sem disposição para interferir nas decisões familiares (Nodin & Leal, 2005). Já na perspectiva da filha, há marcada ambivalência quanto à representação paterna. No nível manifesto, essa representação é muito investida do ponto de vista afetivo e funcional, porém, no nível latente, é sentida como negativa e indesejável.

Foram poucos os parceiros íntimos de pacientes presentes nos grupos analisados (apenas três, sendo dois esposos e um namorado). Esses parceiros relataram a necessidade de, muitas vezes, exercerem funções paternais, ou até maternais, em relação às companheiras. Entretanto, o relato dos parceiros trazia, por vezes, um desejo de proteção tão intenso que parecia invadir os limites da parceira, fazendo com que os mesmos, de forma inadvertida, assumissem o lugar da mãe "invasiva". Com a adoção dessa postura, a relação conjugal parece ficar empobrecida e negligenciada.

Pode-se exemplificar esse padrão de relacionamento com uma experiência compartilhada em uma das sessões do grupo. Após dizer que é o responsável por todos os cuidados em relação à alimentação, à assiduidade da paciente no tratamento e ao seguimento das recomendações médicas e nutricionais, um dos maridos revelou ao grupo que há seis anos não se relacionava sexualmente com a esposa. Evidenciou-se que, ao assumir o papel de cuidador, as fronteiras do relacionamento conjugal foram obliteradas, não deixando espaço para vicejar a relação afetiva e o interesse sexual. Para esse marido, o grupo pareceu funcionar como um espaço de conscientização e ampliação da percepção a respeito do empobrecimento de sua relação conjugal, possibilitando o encontro de novas formas de cuidar da esposa acometida que não impliquem necessariamente em um distanciamento emocional - e até mesmo físico - do casal parental.

O TA produz impacto considerável no parceiro da pessoa acometida, uma vez que esta se torna altamente dependente, necessitando de apoio contínuo e supervisão constante. Por essa razão, os parceiros afetivos têm de conviver com diversas emoções desencadeadas pelo convívio cotidiano, tais como raiva, tristeza, vergonha, ansiedade, depressão e culpa (Maxwell et al., 2011). Huke e Slade (2006) investigaram parceiros íntimos de mulheres com bulimia e constataram que havia dificuldades acentuadas de convivência. A manutenção por parte das pacientes do segredo em relação aos seus sintomas bulímicos contribui para acirrar as tensões do relacionamento conjugal. Corroborando os resultados obtidos no presente estudo, esses autores também notaram que a experiência dos parceiros é marcada por sentimentos de impotência, solidão, desamparo e culpa. Considerando essas vicissitudes, Bulik, Baucom e Kirby (2012) preconizam que o tratamento da anorexia nervosa pode ser potencializado quando for possível a abordagem do casal.

Fortalecendo o papel de cuidador familiar

O cuidador familiar pode ser visto como a pessoa que assume a responsabilidade em cuidar, proporcionando suporte e visando à melhoria da qualidade de vida da pessoa sob seus cuidados (Brasil, 2008). Os laços que se estabelecem entre os próprios familiares no contexto grupal permitem que eles percebam suas potencialidades como cuidadores (Souza & Santos, 2006; 2010). E, assim, passem a valorizar a importância do papel que desempenham, de forma a se sentirem encorajados a utilizar seus recursos internos no apoio ao membro acometido, favorecendo sua recuperação (Souza et al., 2013; Souza & Santos, 2007; 2012).

Também se observou que o impacto dos relatos positivos nos membros que estão ingressando no grupo é imediato e promove um clima de união e universalidade, pois instila esperança naqueles familiares que se sentem impotentes ou deprimidos por não verem perspectivas de melhora ou superação da situação problemática (Bechelli & Santos, 2001). É importante que cada membro do grupo reconheça que, além de ser um recurso potencial para auxiliar na recuperação do paciente, deve se perceber como alguém que poderá obter benefícios para si mesmo. Isto porque o Grupo de Apoio Psicológico aos Familiares promove o autoconhecimento e possibilita a ressignificação de atitudes percebidas como negativas ou, ainda, uma experiência corretiva de condutas não adaptativas. Esses resultados também foram relatados em outro estudo (Santos, Scorsolini-Comin, & Gazignato, 2014). Do cuidador exige-se um tipo de cuidado que ultrapasse o suprimento de necessidades relacionadas apenas ao corpo físico. Mesmo quando há sofrimento físico decorrente de uma doença ou limitação, é preciso dirigir sua atenção aos fatores emocionais e à história de vida da pessoa a ser cuidada (Brasil, 2008).

As transcrições das sessões grupais foram complementadas pelas observações e percepções das coordenadoras a respeito das interações estabelecidas pelos participantes do grupo. Tais observações foram sistematizadas nos registros do diário de campo, permitindo melhor compreensão da posição que cada integrante na família ocupa e de sua participação no processo de inscrição familiar do membro adoecido. A idade da maior parte dos integrantes do grupo (entre 46 e 55 anos) merece ser considerada igualmente, pois as pessoas dessa geração frequentemente apresentam aptidão para se protegerem, educarem, apoiarem-se mutuamente em suas necessidades, assim como tomarem conta uma das outras, incentivando a adoção de novos caminhos e estratégias de resolução de problemas (Bechelli & Santos, 2001).

 

Considerações finais

A análise dos diálogos produzidos no contexto do grupo multifamiliar, que reúne cuidadores familiares de pessoas com grave perturbação de o comportamento alimentar, permitiu elucidar algumas razões pelas quais esse espaço pode funcionar como uma valiosa alternativa na construção de relacionamentos mais saudáveis e indutores de mudança na dinâmica familiar. Os resultados indicam que os familiares participantes buscam compreender as causas do problema, percebem o filho afetado pelo transtorno como emocionalmente imaturo, experimentam sentimentos de culpa e déficits de autocuidado, beneficiam-se da presença do pai e de outros familiares que não as mães, no cenário do tratamento e tiram proveito do grupo para fortalecer seu papel de cuidadores familiares.

Os resultados sugerem que os laços estabelecidos pelos familiares no contexto grupal permitem que eles percebam suas potencialidades como cuidadores e valorizem a importância do papel que desempenham. No manejo do grupo, recomenda-se que os coordenadores enfatizem esses aspectos, de modo que os participantes se sintam legitimados e encorajados a utilizar seus recursos internos para apoiarem o membro acometido pelo transtorno. O grupo valoriza a construção de um espaço de escuta como estratégia para o fortalecimento dos familiares. Não se trata, evidentemente, de apontar erros ou falhas, o que só contribuiria para incrementar a autoculpabilização dos pais, mas de identificar e aproveitar os recursos de que a família dispõe, empoderando-a como agente de mudança e melhora da saúde do membro adoecido.

O grupo de apoio aparece, então, como uma possibilidade de enfrentamento do "aprisionamento" vivenciado pelas famílias, que relatam sentimentos de viverem exclusivamente em função do transtorno do(a) filho(a). Nesse sentido, no manejo do grupo, devem-se apoiar os participantes a descobrirem novas formas de estabelecerem conexões entre si e a sustentarem relações emocionais mais saudáveis e satisfatórias, com base no respeito ao espaço e à individualidade. Além disso, o grupo é também um espaço de troca de experiências de sucessos e insucessos, que frequentemente permeiam o longo e sinuoso caminho do tratamento dos TAs. Ele pode se transformar, em certas circunstâncias, em fonte de compartilhamento de conselhos, dicas, posturas, atitudes, crenças, valores e novos aprendizados, que podem conduzir à resolução dos problemas comuns entre os participantes.

De modo geral, considera-se que os resultados do presente estudo trazem algumas pistas que podem auxiliar na compreensão da dinâmica que rege as famílias com um membro com TA. Nesse sentido, os achados favorecem a ampliação das estratégias utilizadas pelos profissionais responsáveis pela assistência às pessoas acometidas, como a psicoterapia individual, a reabilitação nutricional e a psicofarmacoterapia.

Os impactos dos resultados para a população estudada podem ser verificados nos relatos dos familiares participantes. Estes indicam que, após ingressarem no grupo, puderam perceber que o modo como lidavam com os sintomas dos(as) filhos(as) era pouco produtivo ou acabava por acentuar as dificuldades. Além disso, outros benefícios foram percebidos. Os participantes contam que é muito importante contar com informações qualificadas sobre o transtorno e o tratamento, e que adquiriram uma consciência crítica em relação a seus limites e possibilidades de atuação nesse contexto. Além desses benefícios, alguns participantes relataram que, na medida em que o tratamento dos(as) filhos(as) avançava, sentiam sua sobrecarga diminuir, e que os sentimentos de impotência e desamparo já não eram tão preponderantes.

Em termos dos riscos para os participantes do grupo, pode-se ponderar que são mínimos, uma vez que os relatos foram obtidos no contexto de uma intervenção que ocorre regularmente, como parte da assistência oferecida pelo serviço. O que o estudo acrescentou a essa situação foi a possibilidade de utilização do material clínico como objeto de pesquisa. Nesse sentido, presume-se que possa existir um risco de produzir algum desconforto nos participantes pelo fato de terem sua vida familiar investigada.

Para finalizar, considera-se que o grupo estudado, além de funcionar como uma fonte de apoio aos familiares, é um campo com alto potencial para a pesquisa clínica, na medida em que oferece um material denso e rico, que permite explorar o universo das famílias que enfrentam uma complexa problemática de saúde mental.

 

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Endereço para correspondência:
Manoel Antônio Santos
manoelmasantos@gmail.com

Carolina Leonidas
carol.leonidas@gmail.com

Lilian Regina de Souza Costa
liliancosta_10@hotmail.com

Submetido em: 23/04/2015
Aceito em: 21/04/2016

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