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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.69 no.1 Rio de Janeiro  2017

 

ARTIGOS

 

O desenvolvimento do modo narrativo de pensamento em pré-adolescentes

 

The development of the narrative mode of thinking in preadolescents

 

El desarrollo del modo narrativo de pensamiento en preadolescentes

 

 

Lídia Suzana Rocha de MacedoI; Tania Mara SperbII

IDocente colaboradora. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIDocente colaboradora. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse estudo investiga o desenvolvimento do modo narrativo de pensamento em 33 pré-adolescentes (10-13 anos) por meio de narrativas autobiográficas, coletadas através de entrevistas individuais. Foram analisadas duas das principais características do modo narrativo de pensamento: a complexidade estrutural da narrativa e a presença de aspectos sociopsicológicos. A análise de clusters revelou dois grupos com níveis de desenvolvimento diferentes, um mais avançado do que o outro. As variáveis que mais contribuíram para a formação dos grupos foram: o uso do enredo mais simples com ênfase na intenção dos personagens ou de enredos mais complexos que enfatizam a intenção dos personagens ou fazem interpretações sobre os mesmos; a presença de interpretação das experiências; e a descrição de personagens por suas características físico-demográficas ou intencionais. Os resultados demonstram que a pré-adolescência marca o início da transição para um tipo mais interpretativo de pensamento.

Palavras-chave: Narrativa; Desenvolvimento cognitivo; Pré-adolescência.


ABSTRACT

This study investigates the development of the narrative mode of thinking in 33 preadolescents (10-13 years) by analyzing their autobiographical narratives collected through individual interviews. Two characteristics of the narrative mode of thinking were analyzed: the structural complexity of the narrative and the presence of socio-psychological aspects. Cluster analysis revealed that the sample could be divided into two groups with different development levels, one more advanced than the other. The variables that most contributed to forming these groups were: the use of a simpler plot focusing on characters' intentions or of a more complex plot focusing on characters' intentions or making interpretations about them; the attempt of interpreting experiences; and the description of the characters according to their physical-demographic or intentional characteristics. Results show that preadolescence represents the beginning of the transition to a more interpretative type of thinking.

Keywords: Narrative; Cognitive development; Preadolescence.


RESUMEN

El presente estudio investiga la comprensión de niños acerca de la covariación de los términos de la división sin la presencia explicita del número. El objetivo es verificar si hay diferencia en el desempeño cuando se incluyen cantidades que son expresadas por números o por códigos relativos. Participaron 72 estudiantes pertenecientes a una escuela particular de Recife (Brasil), distribuidos en tres grupos: Prescolar (Infantil 3), primero y segundo año. Estos grupos resolvieron 12 problemas de división considerando dos condiciones: C1 (con la presencia explicita del número) y C2 (con la presencia del código relativo). Los resultados revelan que los niños de 1º y 2º año presentan mejor desempeño cuando los problemas son presentados en la C2, a diferencia de los niños de prescolar (Infantil 3) que presentan mejor desempeño en la C1. Estos resultados apuntan a que el uso del código relativo parece ayudar a los niños en los años iniciales, principalmente a aquellos que están iniciando el aprendizaje de operaciones a pensar sobre las relaciones presentes en los enunciados de los problemas.

Palabras claves: Relaciones inversas; Problemas de división; Aprendizaje.


 

 

Introdução

O desenvolvimento sociocognitivo durante o período de nove a 13 anos, em suas especificidades, é um tema de pesquisa ainda pouco explorado. Na literatura nacional e internacional, pesquisas costumam incluir indivíduos desta faixa etária na infância ou na adolescência. Apesar da pré-adolescência envolver um conjunto de mudanças dramáticas, este é o período mais negligenciado pelos pesquisadores em comparação com outros períodos do desenvolvimento (Blum, Astone, Decker, & Mouli, 2014). É amplamente conhecido que a puberdade produz alterações hormonais e mudanças físicas que conduzem a restruturações na imagem corporal, autoconceito, autoestima, o que, por sua vez, instala a crise de identidade que se desenrola posteriormente. Na última década, contudo, pesquisas da área das neurociências revelaram que na puberdade ocorre o amadurecimento de áreas específicas do cérebro que estão implicadas no desenvolvimento da cognição social no contexto da vida diária, ampliando a capacidade de compreender outras pessoas (Blakemore, 2008). Mais de meio século antes dos exames de neuroimagem, Piaget (1971) propôs que a aquisição do pensamento formal iniciaria ao redor dos 11 anos. Pensar de modo abstrato é uma pré-condição para compreender e interpretar a intencionalidade humana e as experiências vividas. Este estudo investiga o desenvolvimento desta nova habilidade, por meio da análise das narrativas produzidas por pré-adolescentes acerca de suas experiências pessoais.

Bruner (1987; 1997a) propôs que existem dois modos distintos de pensamento, o paradigmático e o narrativo. O modo paradigmático de pensamento trata de compreender o mundo e seus fenômenos naturais, explicar suas causas e consequências. Caracteriza-se por fazer uso de procedimentos para assegurar a referência comprovável e testar a veracidade empírica, sendo adequado ao domínio científico. Já o modo narrativo é vital para a construção de significados sociopsicológicos, ou seja, é o tipo de pensamento que permite interpretar a vida, as relações com os outros e a própria existência. Para Bruner (1987; 1997a), há uma predisposição para organizar a experiência humana em forma narrativa e não existe outra forma de descrever o tempo vivido.

As histórias ajudam a compreender nossas próprias ações e desejos, na medida em que as construímos em um formato cultural que ajuda a tornar significativos os eventos de nossas vidas (McKeough, & Malcon, 2011). Trata-se de um uso autorreflexivo do modo narrativo de pensamento, o que requer um esforço mental extra que vai além do simples esforço para relembrar. É o que permite criar associações entre os eventos relembrados e outras partes mais distantes do passado da vida da pessoa, com o self e seu desenvolvimento, o que foi chamado de raciocínio autobiográfico por Habermas e seu grupo (Habermas, 2011; Habermas, & Bluck, 2000; Habermas, & Paha, 2001).

As pessoas também extraem sentidos do mundo contando histórias sobre o mesmo, utilizando o modo narrativo para interpretar a realidade. Cada cultura disponibiliza um conjunto de histórias de experiências humanas em que são descritas as ações de pessoas, os estados intencionais que as motivam e discutidas causas e consequências (Bruner, 1997b). Nestas histórias, pessoas e eventos são classificados conforme se apresentem em relação ao que é canônico (esperado relativo a regras), ou seja, se estão em acordo ou em desacordo (violação ao canônico). Essas características das histórias são integradas em uma estrutura mental ou esquema que é usado para perceber e interpretar o mundo social. Esse uso mais amplo do modo narrativo de pensamento foi chamado de pensamento interpretativo por McKeough e Malcolm (2011), o que inclui a composição e compreensão de histórias ficcionais, as histórias familiares, o raciocínio e a tomada de decisão social, e histórias de vida. Nesse artigo, manteremos o uso do termo modo narrativo de pensamento por entendermos que não há distinção entre os conceitos de pensamento interpretativo e modo narrativo de pensamento.

A principal característica do modo de pensamento narrativo, segundo McKeough e Malcon (2011), consiste na capacidade para interpretar a intencionalidade humana. Foi constatado um desenvolvimento gradual dessa capacidade durante os anos da adolescência (Genereux, & McKeough, 2007; McKeough, & Genereux, 2003). Para compreender o desenvolvimento dessa capacidade nesse período, faz-se necessário articular conhecimentos sobre o desenvolvimento do cérebro e sobre o desenvolvimento cognitivo e narrativo.

Bases para o desenvolvimento do modo narrativo de pensamento na pré-adolescência

A partir do uso de neuroimagens nas investigações, como explica Blakemore (2008), foi possível constatar que o cérebro humano continua a se desenvolver durante toda a adolescência e mais além. Mais especificamente, durante e após a puberdade ocorrem modificações em regiões pontuais do cérebro como o córtex pré-frontal, o córtex parietal e temporal superior. Regiões que estão diretamente implicadas na capacidade para compreender outras pessoas.

A partir de outra perspectiva, a da psicologia do desenvolvimento cognitivo, Piaget (1971) situou ao redor dos 11 anos o início da aquisição do pensamento formal que, como dito anteriormente, amplia a capacidade para pensar de modo abstrato. A teoria de Case (1985), cuja base é piagetiana, auxilia a compreender o desenvolvimento de estruturas do pensamento abstrato na pré-adolescência.

Segundo Case (1985), crianças entre nove e 11 anos estão num subestágio chamado de Consolidação Operacional. Para exemplificar como se caracteriza este subestágio, toma-se o problema da trave de equilíbrio (balança), em que se impõe considerar duas dimensões que se opõe (peso e distância do eixo). Para decidir qual é mais potente a criança (9-11 anos), terá de comparar duas medidas que terão de ser criadas (operações de 2ª ordem): a diferença de pesos e a diferença das distâncias em relação ao eixo. Estas operações dimensionais de segunda ordem também são chamadas de operações vetoriais. De acordo com essa teoria, assim que começam a se desenvolver operações de segunda ordem neste domínio, a criança começa a realizar operações de segunda ordem em outros domínios, como é o caso das analogias no domínio verbal e das operações matemáticas de razão. Este subestágio se caracteriza por operações de segunda ordem isoladas, pois ainda não é possível coordenar duas dessas operações, isto é, reunir estruturas abstratas. O início do domínio desta habilidade ocorre no subestágio seguinte chamado de Coordenação Operacional que caracteriza o pensamento de pré-adolescentes (11-13 anos). Ocorre aqui uma mudança qualitativa que permite ao pré-adolescente reunir estruturas abstratas quando há apenas um foco ou o foco é simples. Somente no subestágio seguinte, a Coordenação Bifocal (13-15 anos), o adolescente pode representar um número maior de elementos e estabelecer um número maior de objetivos secundários (por exemplo, coisas a resolver para seguir em frente com a tarefa).

A teoria de Case (1985) possui uma convergência com outra abordagem que combina psicologia cognitiva e narrativa. Segundo Habermas e Paha (2001), com a emergência da adolescência duas capacidades previamente independentes - relembrar o passado e compreender as pessoas - são coordenadas e o resultado disso é uma percepção crescente de que o passado não é simplesmente o que está armazenado, mas algo que requer interpretação. Dito de outro modo, relembrar o passado e compreender as pessoas requerem operações de segunda ordem, duas operações que são coordenadas durante a adolescência.

Aplicando a teoria de Case ao estudo de narrativas, Case, Bleiker, Henderson, Krohn e Bushey (1993) identificaram e descreveram uma tendência desenvolvimental na habilidade para usar dispositivos narrativos para construir histórias com duas linhas de história ou níveis de significado. Pesquisas subsequentes reuniram evidências que corroboram esse resultado (McKeough, & Genereux, 2003; Genereux, & McKeough, 2007; McKeough, & Malcon, 2011) e permitiram mapear as estruturas fundadoras do pensamento intencional no final da infância, identificar uma mudança qualitativa para o pensamento interpretativo no início da adolescência e descrever o aumento de complexidade do pensamento interpretativo ao longo da adolescência. Genereux e McKeough (2007) investigaram o desenvolvimento do modo narrativo de pensamento dos dez aos 17 anos em uma amostra de 151 participantes. Os participantes leram uma pequena história que incluía duas sub-histórias e diversos níveis de significado. A tarefa deles era fazer um resumo da história, descrever os dois personagens principais, extrair a moral da história e responder um questionário sobre interpretação com respostas de múltipla escolha. As respostas foram analisadas quanto à complexidade estrutural e aos conteúdos sociopsicológicos do modo narrativo de pensamento. Em relação à complexidade estrutural foi identificado um aumento gradual na habilidade para compreender em sua complexidade as múltiplas camadas de significado dentro da história. Também foi observada uma importante mudança no modo de avaliar aspectos sociopsicológicos, que vai do foco intencional (no imediato e em estados mentais específicos) para um foco gradualmente mais interpretativo (em estados mais duradouros, traços de caráter e interpretações psicológicas de segunda ordem).

O desenvolvimento de um modo narrativo específico de pensamento, o raciocínio autobiográfico, inicia-se na pré-adolescência e prossegue ao longo de toda a adolescência como explica Habermas (2011). Seu desenvolvimento permite que o relembrar se aproxime do self, ao maximizar as implicações dos episódios relembrados para com a identidade, associando-os ao próprio desenvolvimento. O desenvolvimento da habilidade de refletir sobre eventos do passado que têm significado para a vida da pessoa torna possível reunir uma coleção de eventos que poderiam fazer parte de uma autobiografia escrita. Ao final da adolescência, esses eventos cheios de significado, além de serem colocados em ordem cronológica, são contextualizados em relação à própria vida e envolvidos em argumentos que revelam motivações causais ou temáticas e suas implicações.

Das narrativas de experiências pessoais às narrativas autobiográficas

A estrutura básica de uma narrativa consiste numa sequência constituída com os elementos da história - personagens, eventos, ações e estados mentais - que são arranjados na configuração de uma trama ou plot (Bruner, 1997b). Durante o desenvolvimento, formas narrativas simples vão sendo substituídas por formas e estruturas mais complexas, ainda que em certas condições podem ser produzidas narrativas características de etapas anteriores: como no caso dos relatos de situações carregadas emocionalmente (Peterson, & Biggs, 1998) ou em casos de relatos a pedido (ou por insistência) de um adulto. Resume-se a seguir a trajetória de aquisição da estrutura da narrativa.

Entre 24 e 36 meses, a criança começa a produzir narrativas sobre as coisas que lhe acontecem (Peterson, & McCabe, 1991). Essas narrativas podem seguir um padrão cronológico (descrição simples de eventos que se sucedem) ou o "pulo de sapo", em que a história salta de um evento para outro, sem que se esclareçam aspectos importantes que o ouvinte terá de inferir (Peterson, & McCabe, 1983). Durante esse período, os pais auxiliam a criança a reconstituir a experiência vivida por ela, por meio de perguntas, pistas, confirmações, correções e ecos (Macedo, & Sperb, 2007). Ao redor de quatro anos, a criança toma a iniciativa de narrar suas experiências, independentemente do estímulo do adulto, que passa a aumentar a complexidade das perguntas e diminuir sua interferência (Miranda, 2000; Perroni, 1992). Entre quatro e cinco anos as narrativas evoluem: de uma lista de ações temporalmente desorganizadas para uma sequência temporal de eventos que terminam abruptamente no ponto culminante da história (Peterson, & McCabe, 1983); de avaliações que só descrevem reações emocionais para avaliações que incluem marcadores de intensidade e quantidade, e comparações (Umiker-Sebeok, 1979). Aos seis anos, predomina o padrão clássico em que o narrador orienta o ouvinte sobre quem, o quê, onde e quando ocorreram os eventos, incluindo a complicação da ação, a resolução e, eventualmente, um coda (retomada dos pontos principais da história no final) (Peterson, & McCabe, 1983). Após os oito anos, a criança passa a obedecer a uma estrutura gramatical de história e incluir objetivos, obstáculos a vencer e reações internas (Fivush, & Haden, 1997). Finalmente, entre nove e 11 anos, a criança quase alcança o nível de performance do adulto, em termos de estrutura narrativa de experiências pessoais, como definida por Labov e Waletzky (1967).

Em termos de estrutura, segundo Habermas e Paha (2001), a principal diferença entre narrativas de experiências pessoais e uma história de vida é que esta se propõe a cobrir uma vida inteira, cujo fio condutor são as transformações e particularidades da vida pessoal do narrador (Habermas, & Paha, 2001), exigências que não se aplicam quando se trata de narrar uma experiência pessoal. Quatro tipos de coerência são requeridos para que, segundo Habermas e Bluck (2000), as partes de uma história de vida estejam em relação umas com as outras e com o todo, e os eventos relacionados uns com os outros e com o desenvolvimento da pessoa. Ao redor de 11 anos já foram adquiridos dois tipos de coerência: coerência temporal e biográfica. A coerência temporal é o que permite ao ouvinte situar os eventos na vida do narrador. O conceito cultural de biografia refere-se à estrutura esquemática ordenada temporalmente de eventos biográficos que são esperados em idades específicas. Este conceito equivale ao de script de vida (Berntsen, & Rubin, 2004). O grande interesse de pré-adolescentes e adolescentes em diários, biografias e blogs constitui-se como evidência do poder de influência das formas culturais de construção de histórias de vida durante esse período (Fivush, Habermas, Waters, & Zaman, 2011).

Os dois outros tipos de coerência são adquiridos mais para o final da adolescência e início da vida adulta. A coerência motivacional-causal é o que fornece um senso de direção e de propósito na vida. É o que assinala a mudança, ligando o que tinha sido antes ao que veio a ser, em especial, em relação à pessoa e à personalidade do narrador. Por fim, a coerência temática que se estabelece quando é possível extrair continuidades ao longo das mudanças no curso da história de vida. A presença desses quatro tipos de coerência, o que foi chamado de coerência global (Habermas, & Bluck, 2000), é o que diferencia uma história de vida de uma lista de memórias não-relacionadas sobre a vida de alguém. Pré-adolescentes já sabem como narrar episódios únicos (Peterson, & McCabe, 1994), mas estão apenas iniciando a produção de narrativas autobiográficas, que podem apresentar já coerência temporal e biográfica. Por sua vez o uso de marcadores de mudança ou de continuidades em relação à pessoa do narrador, que fornecem coerência motivacional/causal e temática, não são esperados. Os pré-adolescentes na pesquisa de Habermas e Paha (2001), por exemplo, não forneceram um setting, apenas explicitaram a informação mínima requerida pelo pesquisador e forneceram sequências temporais de eventos autobiográficos como o nascimento e as principais transições da vida, seguindo um script cultural de biografia.

Pré-adolescentes de dez anos, segundo McKeough e Malcon (2011), costumam enfocar intenções imediatas e estados mentais, mas aos 12 anos começam a tomar os estados mentais em si como objetos de reflexão, isto é, utilizam o pensamento interpretativo. O pensamento interpretativo oferece justificativas psicológicas para as intenções ao fazer referências, por exemplo, aos estados ou traços psicológicos ou sua história pessoal (McKeough, & Genereux, 2003). Pré-adolescentes de dez anos costumam justificar que não participaram de jogos em função de: a) um traço geral como a timidez; b) um estado mental como ter ficado brabo com os amigos; c) uma regra social, como não ser correto discriminar pessoas, não as deixando participar. Porém, eles não costumam justificar. Por exemplo, ainda não há coordenação do traço de timidez com o passado pessoal da pessoa, o que começa a ocorrer aos 12 anos, quando eles podem fazer associações com histórias pessoais de rejeição ou exposição ao ridículo. Aos 12 anos, eles consideram simultaneamente experiências que ocorrem em diferentes épocas ou situações e delas extrair unidades de ordem mais elevada de significado, como a explicação de um traço psicológico ou de um estado psicológico duradouro (Habermas, & Paha, 2001; Genereux, & McKeough, 2007). Eles assumem uma metaposição em relação às intenções e aos desejos dos personagens, ao coordenar passado e presente para criar um traço duradouro. Habermas (2011) argumentou que quando adolescentes constroem uma categoria hierárquica como um traço duradouro, eles estabelecem coerência e marcam continuidade em suas histórias de vida. A pesquisa de Genereux e McKeough (2007) mostrou que adolescentes marcam o mesmo tipo de coerência e continuidade na vida de seus personagens ficcionais pelo mesmo processo de interpretar intenções de seu contexto cultural.

O objetivo deste estudo foi examinar o desenvolvimento do pensamento interpretativo em pré-adolescentes por meio da análise de suas narrativas autobiográficas. Para tal, foram avaliadas a complexidade estrutural e a presença de aspectos sociopsicológicos em cada narrativa, assim como, a influência de variáveis como idade e sexo.

 

Método

Participantes

A amostra deste estudo é um recorte de uma pesquisa mais ampla da qual participaram 189 famílias com filhos pré-adolescentes. A pesquisa foi realizada em três escolas particulares em bairros de classe média da cidade de Porto Alegre. Em termos de constituição familiar, a maioria dos filhos vivia com ambos os pais (71% casados; 17,5% divorciados/separados; 10,6% solteiros; 0,5% viúvos) e irmãos (67,7%). Foram convidados a construir narrativas autobiográficas trinta e três pré-adolescentes com idades entre dez e 13 anos, sendo 15 meninas e 18 meninos.

Instrumentos e materiais

Foi utilizado um gravador digital e realizada uma pré-tarefa (Habermas, & Paha, 2001) que utiliza nove cartões de papel e lápis. Esta pré-tarefa cria pistas que ativam a memória, o que facilita a construção da narrativa autobiográfica. O participante deve selecionar os cinco adjetivos que melhor o descrevem, as pessoas significativas de sua família e os sete acontecimentos mais marcantes de sua vida. Os adjetivos são escritos num cartão (cartão do self), as pessoas em outro (cartão da família) e cada acontecimento marcante é escrito em um cartão (descrição em uma linha). A seguir, o participante deve colocar os cartões relativos aos acontecimentos em ordem cronológica e posicionar o cartão da família à esquerda e o do self à direita. Então, pede-se que conte a história de sua vida, incluindo os sete acontecimentos escritos nos cartões. O participante avisa quando estiver pronto para que o gravador seja ligado e a partir desse ponto, não são feitas interrupções ou comentários.

Procedimentos

As narrativas autobiográficas foram coletadas individualmente na escola dos pré-adolescentes. No início de cada entrevista foram explicados o objetivo da entrevista e a necessidade de usar o gravador. Nenhum pré-adolescente desejou interromper a entrevista ou desistiu de participar. As entrevistas levaram um tempo médio de 15 minutos.

Procedimentos de análise dos dados

Após a transcrição das narrativas, iniciou-se a leitura para identificar quantos acontecimentos foram narrados em cada narrativa autobiográfica. Devido ao rapport utilizado cada narrativa poderia conter sete acontecimentos. Cada acontecimento ou episódio narrado foi analisado em relação à complexidade estrutural e à presença de aspectos sociopsicológicos (Mckeough, & Genereux, 2003).

Na avaliação da complexidade estrutural foram classificados: a) o nível de enredo da narrativa que pode enfatizar a ação (nível zero), a intenção (níveis 1, 2 e 3) ou a interpretação (níveis 4 e 5); b) o número de flashbacks dentro da história; c) se é uma história completa (ou não). Os níveis de enredo são: nível 1 - histórias que seguem sequências estereotipadas de ações (scripts) ordenadas temporalmente (causal ou referencial), com as ações ocorrendo apenas no mundo físico; nível 2 - histórias que têm ações movidas pelas intenções dos personagens, com referência implícita ou explícita a estados mentais, em que o problema é resolvido rapidamente no final; nível 3 - histórias que se iniciam com um problema, seguem-se complicações até encontrar uma solução (com referência implícita ou explícita a estados mentais) e que incluem um subproblema ou evento que acrescenta uma complicação e é acompanhado de estados mentais; nível 4 - histórias que possuem subenredos bem desenvolvidos, isto é, elas apresentam um problema cujas complicações incluem outros problemas e há uma resolução que dá conta dos dilemas inicias e subsequentes; nível 5 - histórias em que o foco passa dos estados mentais dos personagens para o porquê de um estado mental em particular ser mantido, o que delineia um perfil psicológico ou traço do personagem, que é duradouro e aparece em outras situações. Quanto ao flashback, este ocorre quando está se desenrolando a história principal por algum tempo e o narrador a interrompe para falar sobre algo que aconteceu antes. Então, a história principal continua novamente. No que concerne à completude da história, considera-se uma história completa quando estão apresentados: a situação que antecede à complicação da ação; a complicação da ação (ruptura do equilíbrio); o contexto da ação e os personagens envolvidos; a(s) tentativa(s) para reestabelecer o equilíbrio; a resolução ou desfecho.

Em relação à presença de aspectos sociopsicológicos, verificou-se se a experiência narrada foi interpretada (ou não) e as descrições dos personagens. A experiência narrada não foi interpretada quando, embora existam informações relevantes sobre o evento ou sobre a intenção imediata dos personagens, não ocorrem novos insights ou uma reinterpretação dos eventos da história e/ou das experiências psicológicas dos personagens. Há interpretação quando é revelado um novo insight psicológico para o significado da história e/ou sobre a própria natureza do personagem em termos do porquê experimenta a vida do modo como faz. As descrições dos personagens podem ser: física/demográfica, intencional ou interpretativa. Descritores físico-demográficos referem-se ao gênero, idade, parentesco, onde mora, onde estuda etc. Descritores intencionais fornecem informação psicológica sobre o personagem, mas não ajudam a compreender porque o personagem sente ou pensa de determinada maneira (papéis sociais, estados mentais transitórios, atitudes, habilidades, tendências comportamentais e traços gerais não diferenciados). Descritores interpretativos fornecem insight sobre a natureza única e duradoura do personagem e ajudam a compreender porque ele sente ou pensa de uma maneira em particular.

Para o cálculo da fidedignidade, dois juízes classificaram separadamente cada narrativa em relação aos parâmetros supracitados (em 20% da amostra). As eventuais diferenças entre eles foram resolvidas por um terceiro juiz. O Coeficiente Kappa entre os juízes foi de 0,63 a 0,81, índice considerado de bom a excelente (Robson, 2002).

Inicialmente, foram utilizadas estatísticas descritivas. A classificação das narrativas, no entanto, mostrou que se repetiam combinações de variáveis, formando padrões (por exemplo, nível de enredo 3; história incompleta; tipo não interpretativa; descritores intencionais). Depois de identificados os padrões, a análise de clusters examinou se os casos se agrupavam com base na similaridade entre eles. Na sequência, foi utilizado o teste T para identificar o poder de definição de cada variável na separação dos grupos.

Considerações éticas

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAAE 24142513.2.0000.5334). Foram garantidas a privacidade dos participantes (foram usados nomes fictícios) e a utilização das informações somente para fins de pesquisa. Os pré-adolescentes e suas famílias assinaram Termos de Consentimento Livre e Esclarecido que permitiram a utilização dos dados por um período de oito anos.

 

Resultados

Os resultados da análise da complexidade estrutural e dos aspectos sociopsicológicos da narrativa são apresentados acompanhados de exemplos extraídos das narrativas dos pré-adolescentes. No final, são apresentados os resultados da análise de clusters. A Tabela 1 apresenta os três critérios de análise da complexidade estrutural da narrativa: os cinco níveis de enredo nas narrativas autobiográficas dos pré-adolescentes, o número de flashbacks agregados em uma só história pelos pré-adolescentes e o número de histórias completas nas narrativas autobiográficas dos pré-adolescentes.

Em 69% das narrativas autobiográficas dos pré-adolescentes aparecem histórias que são sequências estereotipadas de eventos (scripts) ordenadas temporalmente (causal ou referencial), com as ações ocorrendo apenas no mundo físico (Nível 1). - "No Jardim B, quando entrei no colégio, tive um acidente onde eu caí de boca no chão e perdi os três dentes da frente" (Marcelo: 13 anos). Há 60% de narrativas autobiográficas que incluem histórias que têm ações movidas pelas intenções dos personagens, com referência implícita ou explícita a estados mentais, em que o problema é resolvido rapidamente no final (Nível 2). - "Nessas férias, eu vendi as minhas casas na praia. Na real, uma foi ano passado e uma foi esse ano, mas fiquei muito chateado porque não queria ficar na cidade, né" (Henrique: 13 anos). Em 42% das narrativas autobiográficas, as histórias iniciam com um problema, seguem-se complicações até encontrar uma solução (com referência implícita ou explícita a estados mentais) e as histórias incluem um subproblema ou evento que acrescenta uma complicação e é acompanhado de estados mentais (Nível 3). - "Depois eu tive assaltos muito seguidos, né, e, após isso, eu não consegui viver direito. Não conseguia andar na rua. Eu ficava preocupado. Parecia que todo mundo tava me seguindo, que eu ia ser assaltado, que iam tentar me matar" (Fábio: 13 anos). Em 18% das narrativas autobiográficas, as histórias possuem subenredos bem desenvolvidos que incluem um problema cujas complicações incluem outros problemas e há uma resolução que dá conta dos dilemas inicias e subsequentes (Nível 4).

E daí, passou uns tempos e eu conheci meu irmão, o Jader. Ele tava lá, né, e nasceu. No começo dos tempos, eu fiquei com ciúmes dele, porque ele era o segundo menino da família né. Era mais novo do que eu. Mas é que... eu não queria muito ter um irmão. Mas, com o tempo, eu fui percebendo que sem ele eu poderia ter perdido bastante coisa na minha vida que eu gostei, como ter um amigo. Que foi só depois dele que eu vi como ter um amigo. Mas, eu nunca tive muito amigo. Então, foi bem legal ter um irmão... (Carlos: 12 anos).

Em 9% das narrativas autobiográficas, o foco da história passa dos estados mentais dos personagens para o porquê de um estado mental em particular ser mantido, o que delineia um perfil psicológico ou traço do personagem, que é duradouro e aparece em outras situações (Nível 5).

A minha mãe, ela resolveu investir numa coisa que ela queria muito a vida toda dela, que era uma casa na praia. Todo mundo queria. Só que a gente não tinha aquele dinheiro naquele momento. Mas, mesmo assim, a gente comprou o terreno e começou a construir a casa. Só que nesse período foi um período de recesso econômico total. Aí, não podia pedir nada pra minha mãe. Aí, eu comecei a entender certo, que a minha mãe ela queria me dar as coisas, só que, às vezes, não era possível. Eu ficava triste com isso, então, eu não pedia. Até foi ruim isso, porque até hoje eu tenho dificuldade de pedir (Luiza: 13 anos).

Quanto ao número de flashbacks, 60% dos pré-adolescentes ficaram restritos ao acontecimento que estava sendo narrado. Em 27% das narrativas autobiográficas aparecem histórias que possuem outra história incluída (narrativa de Carlos) e em 9% das narrativas há histórias que possuem duas histórias agregadas à linha principal de história. As histórias inseridas continham poucas informações e eram incompletas.

No que concerne à estrutura das histórias, 57% dos pré-adolescentes só construíram histórias incompletas em suas narrativas autobiográficas. Muitas delas não possuem um desfecho, como a narrativa de Fábio, descrita acima. Há uma história completa em 33% das narrativas autobiográficas e em 9% há duas histórias completas. As narrativas de Carlos e de Luiza, supracitadas, são histórias completas. A Tabela 2 apresenta a análise dos aspectos sociopsicológicos da narrativa: se o pré-adolescente interpretou alguma das experiências que foi narrada e como são descritos os personagens, por meio de descritores físicos e/ou demográficos, intencionais ou interpretativos.

Em mais da metade das narrativas autobiográficas (60%) não aparecem interpretações para as experiências, ou seja, a descrição do evento retrata o que realmente ocorreu, sem elaborações posteriores. Aconteceram interpretações em 39% das narrativas autobiográficas (por exemplo, narrativa de Carlos). Para descrever os personagens envolvidos nos eventos, a maioria dos pré-adolescentes (78%) utilizou características físicas ou aspectos demográficos; 60% forneceram informações psicológicas que não ajudam a compreender o personagem (por exemplo, "[...] minha primeira viagem de avião, que eu viajei pro (cidade), na ida né, deu um frio na barriga assim, eu tava muito ansioso"); 12% deram informações que ajudam a compreender porque o personagem se sente ou pensa de uma maneira em particular. Em sua narrativa, Luiza usa descritores intencionais para descrever a mãe (por exemplo, há uma ênfase no que a mãe quer) e interpretativos ao se descrever ("até hoje eu tenho dificuldade de pedir").

A análise de clusters mostrou claramente dois agrupamentos, um composto por dez pré-adolescentes e o outro por 23. As variáveis idade e sexo não contribuíram para a formação destes dois grupos, mas sim, o uso de alguns padrões que só apareceram (ou predominaram) em um dos dois grupos. Estes padrões foram identificados por números: 1, 2, 3 e 4. A Tabela 3 mostra as variáveis que compõem cada um destes padrões e seu respectivo valor de contribuição para discriminar os grupos.

O uso do padrão 1 foi predominante no grupo com maior número de integrantes (23 pré-adolescentes). Já no grupo com menor número de integrantes (dez pré-adolescentes) predominaram os padrões 2, 3 e 4 (exclusivo desse grupo). Padrões mais complexos (níveis de enredo 4 e 5, com história completa, interpretação da experiência e descritores interpretativos dos personagens) foram pouco utilizados e apenas no grupo dos dez pré-adolescentes.

 

Discussão

Ao examinar os resultados em conjunto, revela-se um período de transição em que coexistem características do desenvolvimento cognitivo de crianças menores e evidências do desenvolvimento da capacidade de abstração. A análise das narrativas autobiográficas mostrou que o foco intencional (no imediato e em estados mentais específicos) caracteriza as narrativas da maioria dos pré-adolescentes, o que coincide com os resultados de outras pesquisas (Genereux, & McKeough, 2007; McKeough, & Genereux, 2003; McKeough & Malcon, 2011).

Em suas narrativas autobiográficas, os pré-adolescentes utilizaram concomitantemente padrões de estrutura narrativa mais simples e mais complexos. No que concerne aos níveis de enredo, chama a atenção a frequência do uso de níveis que caracterizam fases anteriores (4, 6 e 8 anos) quando são analisadas narrativas ficcionais (Genereux, & McKeough, 2007). Mais da metade dos pré-adolescentes também não conseguiu narrar uma história com estrutura completa. A estrutura narrativa de experiências pessoais conforme Labov e Waletsky (1967), no entanto, já deveria ter sido adquirida (9-11 anos). Habermas e Paha (2001) podem ter uma explicação plausível para essa discrepância nos resultados. Para os autores, narrativas autobiográficas não apresentam com clareza a estrutura narrativa típica de uma experiência pessoal conforme Labov e Waletsky (1967). Isso porque são constituídas por três tipos básicos de afirmações: sentenças que procuram responder "o que aconteceu depois", crônicas resumidas dos eventos, e comentários e argumentos fora da linha do tempo da história. Assim, é possível que a análise da estrutura do tipo Laboviano não seja a mais adequada ao gênero das narrativas autobiográficas. Futuras pesquisas podem elucidar esse ponto.

Desde o desenvolvimento cognitivo como proposto por Case (1985), a dificuldade em manejar duas linhas de história que ficou aparente em mais da metade da amostra sugere que esses pré-adolescentes ainda estão no subestágio de Consolidação Operacional. Já aqueles que conseguiram inserir histórias na linha de história principal estariam no subestágio seguinte Coordenação Operacional (11 a 13 anos). Em termos de raciocínio autobiográfico, os resultados confirmam resultados de pesquisas prévias que caracterizam as narrativas autobiográficas de pré-adolescentes pelo predomínio de marcadores temporais e da influência do script cultural de biografia, sendo menos evidenciada a presença de marcadores de mudança e continuidades em relação à personalidade ou ao self do narrador (Habermas, & Bluck, 2000; Habermas, & Paha, 2001).

Os resultados da análise de clusters permitiram divisar dois grupos, um composto de 23 pré-adolescentes e outro de dez pré-adolescentes, que apresentam níveis diferentes de desenvolvimento. Inicialmente, discute-se a questão das variáveis idade e sexo não terem contribuído para a formação destes dois grupos. As diferenças no nível de desenvolvimento do modo de pensamento narrativo desses pré-adolescentes não podem ser explicadas pela idade, pois há pré-adolescentes de 13 anos com uma performance inferior a outros de 11 anos. Em relação ao gênero, trabalhos anteriores que analisaram narrativas de crianças pré-escolares encontraram diferenças de gênero (Fivush & Haden, 1997; Macedo; 2006). Já na comparação de narrativas de pré-adolescentes, em que foram utilizadas diferentes metodologias, há as que encontraram diferenças de gênero (por exemplo, Zaman & Fivush, 2011) e que não encontraram (por exemplo, Macedo, 2011). Variáveis que não foram investigadas podem ter interferido nesses resultados, como diferenças de coeficiente intelectual e a qualidade da comunicação familiar no que tange ao hábito de conversar sobre experiências pessoais (Fivush 2008; Fivush, Haden, & Reese, 2006). São necessárias, portanto, novas investigações sobre a influência dessas variáveis.

No primeiro grupo (23 pré-adolescentes), foram construídas narrativas que correspondem apenas a um registro do que aconteceu, ou seja, ainda não iniciaram o que Bruner (1987) chamou de contínua interpretação e reinterpretação do vivido. Estes pré-adolescentes ainda não dispõem das condições cognitivas necessárias para criar as associações entre os eventos relembrados e outras partes do próprio passado, e com próprio self e seu desenvolvimento (Habermas, & Bluck, 2000). Em outras palavras, eles ainda não adquiriram o raciocínio autobiográfico, cujo desenvolvimento, segundo Habermas (2011), está apenas no início na pré-adolescência, o que os impede de captar o que Bruner (1987) chama de sentido do tempo vivido. Este grupo inclusive teve dificuldade para compreender o rapport inicial que solicitava a seleção dos acontecimentos mais marcantes da vida, o que não ocorreu com os pré-adolescentes do outro grupo (dez pré-adolescentes).

Apenas no grupo de dez pré-adolescentes foram construídas histórias completas. Este grupo conseguiu vencer a dificuldade imposta pela construção de uma história em que o narrador e o personagem principal são a mesma pessoa, que implica em uma condição reflexiva (Bruner, 1987). Esses pré-adolescentes também conseguiram interpretar algumas de suas experiências, o que foi feito utilizando marcadores de mudanças e de continuidades (Habermas, 2011). Fizeram referências a seu status desenvolvimental para explicar reações, habilidades ou sensibilidades, como mostra o trecho: "[...] quando era pequena, tinha ciúmes dos meus primos, porque eles estavam sempre com meus avós" (Juliane: 12 anos). Mostraram-se capazes de refletir sobre experiências específicas que podem ter tido influência em sua personalidade, como modelos de identificação, como se observa no trecho: - "Meu bisavô [...], ele me ensinou, ele teve uma boa presença na pessoa que eu sou hoje, pelo modo de ver as coisas, jeito calmo, essas coisas assim, que influenciam bastante" (Cristina: 13 anos). Entenderam a necessidade de explicitar seu background para auxiliar o narrador a contextualizar uma experiência. Por exemplo, para explicar como iniciou uma discussão com o colega que se tornou seu melhor amigo, o pré-adolescente fez a seguinte introdução: "Lá no interior a gente não falava palavrão assim... Eu nem sabia o que era um palavrão. Eu pensava que 'idiota' era palavrão. Daí, aqui em Porto Alegre que eu fiquei conhecendo" (Bernardo, 12 anos).

 

Considerações finais

Esse estudo inova ao estudar o desenvolvimento do modo narrativo de pensamento por meio da análise de narrativas autobiográficas, o que se mostrou uma via promissora de investigação. Assim, pesquisas futuras podem utilizar essa via para investigar as variações de todo o período da adolescência. Uma limitação desse estudo pode ter sido não incluir parâmetros para controlar outras variáveis que podem ter interferido nos resultados (por exemplo, teste de coeficiente intelectual; avaliação da qualidade da comunicação familiar). Esse estudo também ajuda a identificar características e peculiaridades de uma etapa do desenvolvimento, a pré-adolescência, que frequentemente é incorporada à infância ou à adolescência.

Finalmente, os resultados desse estudo servem para ilustrar como interagem diversos aspectos do desenvolvimento, como o narrativo (que inclui a comunicação familiar), do cérebro (da habilidade para compreender os outros, da memória autobiográfica), das estruturas abstratas de pensamento (da habilidade para operações de segunda ordem que possibilitam a interpretação) e da aquisição de conhecimentos culturais (script de vida; modelo de biografia). Como resultado dessa interação, desenvolve-se a habilidade de interpretar o que se vive, algo que vai além de uma habilidade cognitiva e que é vital para a manutenção da saúde mental. Essa habilidade interpretativa forma a base de um sistema que interliga autoconhecimento, a compreensão sobre si mesmo e sobre os outros, e a maneira de avaliar a própria vida (Fivush et al., 2011; Wilson, & Ross, 2003). Qualquer mudança em um elemento deste sistema modifica todos os demais. Por exemplo, a interpretação de cada experiência vivida tem o potencial de modificar a visão que a pessoa tem de si mesma e essa visão de si modificada implica na reinterpretação de experiências similares do passado, o que por sua vez irá modificar novamente a visão de si mesma. A pré-adolescência se constitui como um período crítico do desenvolvimento do modo narrativo de pensamento em que intervenções preventivas são bem-vindas, especialmente na escola. Apoia-se aqui a criação de espaços para a narrativa de experiências pessoais coordenados por profissionais treinados, ou seja, espaços para narrar, escutar e desenvolver o modo narrativo de pensamento.

 

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Endereço para correspondência:
Lídia Suzana Rocha de Macedo
lidiasrmacedo@gmail.com

Tania Mara Sperb
sperbt@terra.com.br

Submetido em: 15/12/2014
Revisto em: 22/04/2017
Aceito em: 03/06/2017

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