SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.69 número2Psicologia, Trabalho e Gestão?Coping religioso/espiritual: uma revisão sistemática de literatura (2003-2013) índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.69 no.2 Rio de Janeiro  2017

 

ARTIGOS

 

Maternidade e HIV: revisão da literatura brasileira (2000-2014)

 

Motherhood and HIV: Brazilian literature review (2000-2014)

 

Maternidad y SIDA: revisión de la literatura brasileña (2000-2014)

 

 

Daniela Centenaro LevandowskiI; Maria Cristina CanavarroII; Marco Daniel PereiraIII; Gabriela Nunes MaiaIV; Lara Monteiro SchuckV; Isabela Rodrigues SanchesVI

IDocente. Departamento de Psicologia. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Saúde. Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil. Bolsista Produtividade do CNPq
IIDocente Catedrática. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação. Universidade de Coimbra (FPCEUC). Coimbra. Portugal
IIIInvestigador Auxiliar. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação. Universidade de Coimbra (FPCEUC). Coimbra. Portugal
IVMestre em Ciências da Saúde. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde. Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
VPsicóloga. Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
VIPsicóloga. Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A vivência da maternidade exige uma reorganização psíquica e social que, somada à presença do HIV, pode acarretar uma sobrecarga emocional. Este estudo objetiva retratar a vivência da maternidade na vigência do HIV, por meio de uma revisão de estudos empíricos brasileiros publicados entre 2000 e 2014. Com base na análise de nove estudos, foram identificadas vivências típicas da transição para a maternidade, como preocupações com a saúde do bebê e satisfação com o papel materno, assim como vivências específicas impostas pelo HIV, particularmente frustração diante da não amamentação e ansiedade frente ao diagnóstico e ao tratamento antirretroviral do bebê. Sugere-se que futuros estudos sejam feitos com diferentes perfis de mães que vivem com HIV (por exemplo, de diferentes idades, níveis socioeconômicos, configurações familiares e paridade), bem como sobre a relação conjugal e o exercício da paternidade, temas ainda pouco explorados na literatura. Também estudos com desenho longitudinal são necessários para ampliar a compreensão da vivência da maternidade nesse contexto.

Palavras-chave: Brasil; Maternidade; HIV; Soropositividade para HIV.


ABSTRACT

Motherhood requires psychological and social reorganizations, which coexisting with a medical condition, such as HIV infection, may add an emotional burden. This study aims to describe the experience of motherhood in the context of HIV infection, through a literature review focused on Brazilian studies published between 2000 and 2014. Based on the analysis of the nine studies, typical experiences of the transition to motherhood were identified, such as concerns with baby's health and satisfaction with maternal role; additionally, particular experiences imposed by HIV, such as frustration of not breastfeeding and anxiety regarding the baby's diagnosis and antiretroviral treatment were also identified. Future studies should focus on different profiles of mothers with HIV (e.g., different ages, socioeconomic levels, family configurations and parity), and on couple's relationship and fathers' experience, themes scarcely explored by literature. Also, studies with longitudinal design are necessary to expand the understanding of the experience of motherhood in this context.

Keywords: Brazil; Motherhood; HIV; HIV seropositivity.


RESUMEN

La vivencia de la maternidad requiere una reorganización psíquica y social que, sumada a la presencia del VIH, puede resultar en una sobrecarga emocional. Este estudio objetiva retratar la vivencia de la maternidad en la vigencia del VIH, con base en una revisión de estudios empíricos brasileños publicados entre 2000 y 2014. En el análisis de nueve estudios fueron identificadas vivencias típicas de la transición hacia la maternidad, como preocupaciones con la salud del bebé y satisfacción con el papel materno, además de vivencias específicas impuestas por el VIH, particularmente frustración por no amamantar y ansiedad frente al diagnóstico y al tratamiento antirretroviral del bebé. Investigaciones futuras deben considerar diferentes perfiles de madres que viven con el VIH (por ejemplo, de diferentes edades, niveles socioeconómicos, estructuras familiares y paridad), así como sobre la relación de pareja y el ejercicio de la paternidad, temas todavía poco explorados en la literatura. También estudios con diseño longitudinal son necesarios para ampliar la comprensión de la vivencia de la maternidad en la presencia de esa condición de salud.

Palabras clave: Brasil; Maternidad; VIH; Seropositividad para VIH.


 

 

Introdução

A maternidade configura-se como uma experiência singular da identidade feminina, sendo um momento permeado por expectativas, dúvidas e receios, que acarretam importantes reorganizações psíquicas e sociais (Bazani, Silva, & Rissi, 2011; Darvill, Skirton, & Farrand, 2010), para além de mudanças de ordem biológica e socioeconômica (Piccinini, Gomes, De Nardi, & Lopes, 2008). Com efeito, ter um filho promove profundas alterações intra e interpessoais, com a possibilidade de revisões, ampliações e modificações de aspectos da identidade de cada membro da família (Canavarro, 2001). Contudo, aspectos de âmbito social também interferem na vivência da maternidade, facilitando-a ou dificultando-a. Como exemplos, podem ser mencionadas a qualidade dos serviços de saúde disponíveis e a presença de uma rede de apoio social (Scavone, 2001).

Todas as mudanças inerentes à gestação e à maternidade causam um impacto biopsicossocial importante nas mulheres e no meio em que vivem. Pensa-se que esse impacto pode ser maior quando, à ocorrência da gravidez, soma-se um diagnóstico sorológico positivo para o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV, Human Imunodefficiency Virus). No que se refere à gestação, estudos nacionais e internacionais apontaram para uma sobrecarga emocional das mulheres que vivem com HIV, sendo esse período permeado por medos, culpa e preconceitos (Bazani et al., 2011; Carvalho, & Piccinini, 2006; Murphy, 2009; Pereira, & Canavarro, 2012). As principais preocupações apresentadas por essas mulheres neste período referem-se à saúde do filho e à possibilidade de infecção da criança (D'Auria, Christian, & Miles, 2006; Moura, & Praça, 2006). Um estudo recente, de revisão da literatura brasileira, indicou a presença de experiências típicas do período gestacional, como contato afetivo com o bebê e preocupação com a sua saúde, assim como experiências particulares impostas pela presença do HIV, como frustração diante da expectativa da não amamentação (Levandowski et al., 2014). Dessa forma, na presença dessa condição clínica, cada mulher lidará de forma singular com a gestação, de acordo com fatores individuais, familiares, históricos e socioculturais (Wilson, 2007).

Assim como a gravidez, a maternidade na vigência do HIV também pode ser pensada como uma condição peculiar e de risco para as mulheres, seus bebês e famílias. Isso porque, além de todas as demandas e preocupações típicas relativas ao cuidado do bebê e à inerente reorganização conjugal e familiar, estarão presentes outras, relacionadas a essa condição de saúde, que poderão exigir adaptações da rotina e atenção especial à saúde da família (Sanders, 2008). Numa revisão recente da literatura, Levandowski et al. (2014) verificaram um número maior de estudos sobre o período gestacional, em comparação ao período pós-nascimento, quando se considera a presença do HIV. Face ao exposto, no presente estudo buscou-se retratar a vivência da maternidade na presença do HIV, por meio da realização de uma revisão da literatura brasileira dos últimos 15 anos (2000-2014). Definiu-se a vivência da maternidade quer pelos aspectos subjetivos das mães (desejos, sentimentos, preocupações, medos, percepções), quer dos objetivos, que envolvem a própria maternidade (tarefas de cuidado, organização financeira etc.) e, conjuntamente, também a infecção por HIV (diagnóstico, tratamento etc.). Assim, embora alguns autores indiquem que a vivência da maternidade se inicia ainda durante a gestação, neste estudo considerou-se o início dessa vivência a partir do nascimento do bebê, que, como mencionado, tem sido menos frequentemente o foco dos estudos da área. Desse modo, buscou-se responder às seguintes questões: o que estudos brasileiros têm mostrado em relação à forma como as mulheres vivenciam a maternidade na presença do HIV? Que sentimentos e preocupações estão presentes? Quais os desafios enfrentados por essas mulheres e suas famílias? A partir da análise dos principais resultados dos estudos revisados, objetivou-se ainda identificar aspectos relevantes para futuras investigações e intervenções psicológicas junto a esse público.

 

Materiais e método

Realizou-se uma busca de artigos brasileiros sobre a vivência da maternidade na vigência do HIV no período 2000-2014 nas bases de dados SciELO (Scientific Electronic Library Online) e Lilacs (Literatura Latinoamericana en Ciencias de la Salud). Para a pesquisa foram utilizados os seguintes descritores: HIV, soropositividade, gravidez e maternidade, em combinação (por exemplo, HIV "and" maternidade). Cabe ressaltar que foram considerados apenas estudos realizados por pesquisadores/profissionais brasileiros, publicados no idioma português e em periódicos brasileiros. A partir da consulta, realizada em março de 2015, foram localizados 174 registros (cf. Quadro 1).

Após a leitura dos resumos, procedeu-se inicialmente a uma exclusão "processual". Nessa etapa foram excluídos: resumos de teses e monografias, artigos duplicados nas bases de dados, artigos de autoria de pesquisadores não brasileiros, artigos cujo texto completo não estava disponível online e artigos não publicados em português. Em uma segunda etapa, procedeu-se a uma exclusão "temática", de acordo com o exposto na Figura 1. Na terceira etapa, procedeu-se igualmente a uma exclusão por "foco temático" (cf. Figura 1). Assim, foram excluídos artigos que abordavam dados epidemiológicos do HIV (por exemplo, prevalência, perfil dos indivíduos infectados, fatores de risco associados); diferentes aspectos e quadros clínicos associados à infecção; saúde sexual e reprodutiva, contracepção, vulnerabilidades e comportamentos de risco para a infecção pelo HIV; testagem anti-HIV (por exemplo, preditores para a realização, dificuldades de realização, taxas de realização, falhas na identificação da infecção); gerenciamento e avaliação de ações de controle da infecção, de sua transmissão e de atendimento ao público soropositivo; efeitos do tratamento antirretroviral para mulheres; percepções e atitudes dos profissionais frente à demanda reprodutiva de indivíduos que vivem com o HIV e intervenções de cunho preventivo à infecção pelo HIV.

Após essas exclusões, restaram para análise 16 artigos. Contudo, visando manter o foco do presente estudo, dentre esses foram excluídos seis artigos referentes à vivência da gestação na vigência do HIV, restando para análise 10 artigos que englobavam a temática do presente estudo. Dentre esses 10 artigos, optou-se ainda por excluir um estudo de revisão da literatura, para se poder analisar apenas artigos empíricos, permanecendo-se, assim, com nove artigos para análise.

 

Resultados e discussão

O Quadro 2 apresenta a autoria, o ano de publicação, o local de realização, o delineamento, os objetivos, o aporte teórico e os participantes dos nove artigos empíricos analisados. Na análise realizada, além desses aspectos, foram também considerados os principais achados desses estudos, apresentados a seguir.

Em relação ao período consultado, predominam estudos publicados de 2008 a 2012. Esse achado indica que a vivência da maternidade parece ter se tornado objeto de investigação para os pesquisadores brasileiros muito recentemente, o que exige novos esforços para o preenchimento de lacunas ainda encontradas na produção científica. O local de realização desses estudos é restrito a poucas cidades, havendo necessidade de novas investigações em outras localidades e regiões do país (como Sudeste e Norte), que não figuram nesse cenário. Este aspecto é de especial relevância dado que a região Sudeste é a de maior número de notificações de casos de HIV em gestantes, conforme informado pelo Boletim Epidemiológico HIV/AIDS (Brasil, 2014). O predomínio de estudos qualitativos remete para a importância de desenvolver estudos de natureza quantitativa.

Quanto aos participantes, fica evidente certa homogeneidade do público, uma vez que se encontram mães cujos bebês têm em geral até 12 meses de vida. Por outro lado, também chama atenção a inclusão de mulheres sem filhos e mesmo gestantes, o que poderia contribuir para um melhor conhecimento da tomada de decisão reprodutiva e da sua adaptação na transição para a maternidade. De igual modo, percebe-se a necessidade de realizar estudos para além do primeiro ano de vida da criança e que objetivem o contato direto com mães que vivem com o HIV, para o conhecimento das suas vivências. Ainda, como o foco principal dos estudos tem sido as mulheres adultas e envolvidas em algum relacionamento, percebe-se a necessidade de conhecer as experiências de mães de outras faixas etárias, como as adolescentes, bem como outros subgrupos dentro da população infectada, ou mesmo dos homens/pais a respeito do tema. Constatou-se também que um número bem pequeno de estudos brasileiros foi publicado sobre a temática nos últimos 15 anos, em comparação aos estudos sobre a vivência da gravidez na presença dessa condição de saúde, revistos recentemente por Levandowski et al. (2014).

Para a descrição dos principais objetivos e achados dos estudos revisados sobre a vivência da maternidade no contexto do HIV, optou-se por dividi-los por subtemas. As temáticas abordadas por esses estudos incluem: 1) percepção acerca do desempenho do papel materno e da experiência da maternidade; 2) percepção da relação estabelecida com o bebê; 3) sentimentos frente à proibição da amamentação; 4) sentimentos despertados pelo diagnóstico e a saúde do bebê; 5) sentimentos despertados pelo tratamento antirretroviral (TARv) do bebê; 6) sentimentos frente à revelação do diagnóstico sorológico à criança; e 7) percepção quanto ao apoio social. Uma descrição com maior detalhe das temáticas é apresentada a seguir.

Percepção acerca do desempenho do papel materno e da experiência da maternidade

Poucos estudos tiveram como foco a percepção das mulheres HIV+ sobre o desempenho do papel materno e a experiência da maternidade como um todo. Os estudos localizados apontaram tanto para felicidade e gratificação, como para medos e insegurança referentes ao desempenho desse papel. Por exemplo, um estudo realizado com mães gaúchas aos três meses de vida do bebê (Gonçalves & Piccinini, 2008) revelou um medo de inadequação no desempenho do papel materno, contrastando com a satisfação com a maternidade, a alegria e a completude. Essas mulheres avaliaram-se como boas mães, devido a características como dedicação, carinho, preocupação, paciência e ausência de maltrato do bebê. Os autores verificaram o uso de estratégias como esquecimento ou negação do diagnóstico sorológico, bem como manutenção do foco das preocupações na criança, para a manutenção das atividades diárias.

Faria e Piccinini (2010), em estudo com mães gaúchas também no primeiro trimestre de vida do bebê, encontraram relatos de felicidade e gratificação frente à maternidade, mesmo com a insegurança quanto aos cuidados iniciais do bebê, o que exigiu, algumas vezes, o recebimento de auxílio de outras pessoas. Essas mães sentiam-se satisfeitas com a forma como cuidavam de seus bebês, considerando-se parecidas com suas próprias mães. Ainda referiram conseguir identificar as suas necessidades. Além disso, conforme observaram Santos et al. (2012), em um estudo com 10 mulheres na cidade de Goiânia, a vivência da maternidade possibilitou uma ressignificação de suas vidas, promovendo mudanças de comportamento e da sua visão de mundo. As mulheres referiram o desejo de serem exemplos para suas crianças. De acordo com os autores, o bebê pode auxiliar no fortalecimento dessas mães para o enfrentamento do diagnóstico e do TARv.

Pelo exposto, a maternidade pode acarretar emoções positivas num contexto de adversidade, proporcionando um novo sentido para a vida e alívio para as angústias e demais efeitos adversos do HIV e seu tratamento. Por outro lado, pode reforçar medos e inseguranças. O foco nos cuidados do filho, embora possa trazer um senso de competência materna, também pode comprometer o cuidado pessoal, que pode ficar relegado a um plano secundário. De qualquer forma, tanto satisfação como medos e insegurança no desempenho do papel materno são experiências comuns às mães em geral (Patias, Gabriel, Weber & Dias, 2011; Travassos-Rodriguez & Féres-Carneiro, 2013), o que indica um certo grau de semelhanças na vivência da maternidade com as mulheres que não vivem com o HIV.

No desempenho do papel materno, um aspecto que permeia a experiência dessas mães, podendo acarretar dificuldades, é o temor de não sobreviver tempo suficiente para cuidar do filho ou de não ter condições mínimas de saúde para cuidá-lo. Esses achados foram encontrados entre mães em Porto Alegre (Gonçalves, & Piccinini, 2008) e Fortaleza (Galvão et al., 2010). Nestes dois estudos, por conta de sentimentos de medo e culpa pela não sobrevivência, para compensar a criança diante da provável ausência futura ou para compensar o fato de tê-la infectado, a superproteção foi evidenciada. Essa compensação também pode derivar da necessidade de preservar o status quo de "mulher de bem" na comunidade em que vive e perante os profissionais de saúde, uma vez que esses atores agem de maneira preconceituosa e emitem julgamentos morais sobre essas mulheres devido à contaminação pelo HIV.

Percebe-se que essa preocupação de não dispor de tempo suficiente ou condições de saúde para cuidar do filho pode, em parte, também ser observada no cotidiano de mães que não vivem com o HIV (por exemplo, Beltrame, & Donelli, 2012), embora de forma não tão pronunciada. De qualquer modo, presume-se que existam diferenças nessas preocupações entre mães infectadas e mães que já apresentam sintomas da Aids, assim como entre mães aderentes e não aderentes ao TARv. Todas essas particularidades deveriam ser consideradas em investigações futuras, a fim de que se possa compreender melhor essas nuances, inclusive durante o desenvolvimento da criança, como foco de intervenção. Isso porque tal aspecto poderia ser considerado um fator motivador para a adesão ao tratamento, por exemplo.

Percepção da relação estabelecida com o bebê

Dois estudos que abordaram, embora não diretamente, a percepção de mães HIV+ sobre a sua relação com o bebê também foram encontrados, indicando uma boa vinculação ao bebê e satisfação das mães com essa relação. Esses estudos, realizados no Rio Grande do Sul aos três meses de vida do bebê, indicaram satisfação das mães com o desenvolvimento da criança, isto é, com suas competências e aquisições desenvolvimentais (Faria, & Piccinini, 2010), e estabelecimento de um forte vínculo desde a gestação, manifestado pela satisfação com a comunicação e a interação com o bebê (Gonçalves, & Piccinini, 2008). Percebe-se que esses aspectos em nada diferem das vivências típicas da relação mãe-bebê.

Desse modo, tais achados abrem uma perspectiva diferenciada do fenômeno, servindo para indicar que a presença do HIV, embora possa ter um efeito abrangente sobre a vivência da maternidade, não se constitui a totalidade das experiências dessas mães. Nesse sentido, a literatura internacional (por exemplo, Sandelowski, & Barroso, 2003) tem indicado o bebê como um fator de proteção, na medida em que este muitas vezes se torna a principal razão dessas mulheres para viver, cuidar de si próprias e evitar comportamentos de risco. Assim, buscar o conhecimento da relação mãe-bebê e dos aspectos peculiares a esse contexto, bem como seus aspectos comuns a outras vivências, pode ser um caminho importante para a pesquisa e para a intervenção.

Sentimentos frente à proibição da amamentação

Uma das vivências mais peculiares da maternidade na vigência do HIV é a impossibilidade da amamentação por uma indicação clínica, visando a prevenção da transmissão vertical do HIV. Os sentimentos diante dessa situação foram investigados em oito estudos revisados. Destacaram-se sentimentos negativos, embora sentimentos de resignação e indiferença também tenham sido observados.

Mães baianas HIV+ consideraram essa proibição como a medida de cuidado mais difícil de ser implementada, especialmente quando produziam muito leite (Santos. & Bispo Junior, 2010). Da mesma forma, gestantes e puérperas de Fortaleza referiram tristeza, frustração, impotência, vergonha e sentimentos de incapacidade frente a essa impossibilidade (Paiva, & Galvão, 2004). Elas relataram uma interrupção em seu desejo de amamentar e expressaram o medo de não criar um vínculo com o filho ou não conseguir exercer a maternidade por completo. No entanto, aos poucos pareceram se resignar com a medida, justificando ser "o melhor para a criança". Nesse último estudo (Paiva, & Galvão, 2004), chamou a atenção o desconhecimento das usuárias acerca de seus direitos relacionados à administração de medicamentos, para evitar a lactação, e ao recebimento da fórmula láctea. Algumas mães chegaram a amamentar os filhos diante da não obtenção da fórmula nos serviços de saúde.

No mesmo sentido, Galvão et al. (2010), em Fortaleza, identificaram relatos de má orientação das mães em relação à não amamentação, o que gerou sentimento de impotência diante dessa medida profilática. O estudo de Gonçalves et al. (2012), também realizado em Fortaleza, constatou o despreparo da equipe de saúde em manejar e tranquilizar as ansiedades das mães diante da impossibilidade da amamentação.

Tais sentimentos podem ser entendidos pelo fato de que, historicamente, o aleitamento tem sido associado à maternidade, conforme indicado por Faria e Piccinini (2010) e Gonçalves et al. (2012). Além disso, representa um momento de ligação íntima entre mãe e bebê. Desse modo, a mulher que não pode amamentar pode se sentir menos mãe, menos feminina e até mesmo menos necessária e exclusiva para o bebê, já que, embora detenha o órgão que propicia o aleitamento, este fica "inutilizado" em sua função. Por outro lado, com o uso da mamadeira, qualquer pessoa poderá alimentar a criança.

Contudo, contrariando esses aspectos históricos e culturais, Paiva e Galvão (2004) também encontraram depoimentos de indiferença diante da não amamentação do bebê, muitas vezes vinculados a vivências anteriores de não aleitamento ou mesmo pela percepção de alívio que essa medida acarreta. Ausência de preocupações em relação a isso também foi encontrada entre mães gaúchas (Rigoni et al., 2008). Conforme esses autores, quando as mães não haviam sido elas mesmas amamentadas, haviam obtido o resultado positivo para HIV antes da gestação e/ou consideravam a amamentação mais uma das tarefas de cuidado do bebê, o processo de "mamadeirar" a criança mostrou-se mais fácil.

Sentimentos de angústia e falha parecem ser mais intensos entre aquelas mulheres que foram diagnosticadas durante a gestação ou mesmo no parto, pois isso exige uma dupla reorganização: ver-se portadora do HIV e adotar comportamentos diferenciados em relação ao cuidado da criança. Outro aspecto que interfere para o surgimento desses sentimentos, conforme Rigoni et al. (2008), é o temor que a amamentação com leite industrializado desperta em relação à saúde do bebê. Além disso, a presença de limitações financeiras e o desconhecimento e/ou não recebimento de suprimentos de alimentação, fornecidos pelos serviços de saúde, podem influenciar essa questão (Paiva, & Galvão, 2004). De qualquer forma, o medo pela infecção da criança acaba prevalecendo frente à frustração da não amamentação. Nesse sentido, Sant'Anna, Seidl e Galinkin (2008) apontam para a falta de sensibilidade de algumas campanhas de saúde, como a de incentivo ao aleitamento materno, que não leva em conta as mães que vivem com o HIV. Tudo isso pode acarretar maior sofrimento psicológico para essas mulheres, indicando a necessidade de preparação das equipes de saúde que atendem esse público.

Gonçalves e Piccinini (2008), entrevistando mães gaúchas, identificaram depoimentos de questionamento de pessoas próximas acerca dos motivos para a não amamentação do bebê. Também puérperas de Fortaleza apresentaram frustração e vergonha diante da não amamentação (Gonçalves et al., 2012), tendo vivenciado situações de cobrança social, que dificultaram esse momento de suas vidas. Assim, percebe-se que essa medida também se constitui um desafio para o sigilo frente à presença do HIV e para a avaliação que as demais pessoas fazem dessas mulheres como mães, pelos aspectos já mencionados.

Pelo exposto, a proibição da amamentação é um grande desafio a ser enfrentado pelas mães HIV+, mesmo quando é bem compreendida, por contrariar expectativas sociais e recomendações de cuidado do bebê historicamente arraigadas. O conhecimento existente sobre o tema permite estabelecê-lo como um aspecto relevante para a intervenção psicológica.

Sentimentos despertados pelo diagnóstico e a saúde do bebê

Outro tópico abordado por cinco estudos brasileiros diz respeito ao diagnóstico sorológico do bebê, isto é, à confirmação ou não da infecção por HIV. Os principais achados destacaram sentimentos de medo, culpa, ansiedade e preocupação diante desse diagnóstico, assim como confiança, alívio e expectativas positivas quanto a sua não confirmação. As oito mães entrevistadas por Galvão et al. (2010) em Fortaleza, cujos bebês tinham até 12 meses de vida, demonstraram intensa preocupação com esse diagnóstico. Resultados semelhantes foram encontrados por Gonçalves et al. (2012) entre mães cearenses e por Rigoni et al. (2008) e Gonçalves e Piccinini (2008) entre mães gaúchas. Estas últimas revelaram medo, culpa e ansiedade em relação à possibilidade de um diagnóstico positivo do bebê para o HIV, mesmo nos casos em que já havia sido dado um diagnóstico preliminar negativo.

O mesmo panorama foi encontrado por Faria e Piccinini (2010) entre mães gaúchas no que tange ao diagnóstico definitivo do bebê. Por outro lado, algumas dessas mães demonstraram também confiança no resultado negativo. Conforme Faria e Piccinini (2010), tal atitude poderia ser decorrente do sucesso do tratamento pessoal para o HIV, mas também da culpa e da dor que sentiriam pela transmissão, caso esta ocorresse. De acordo com Gonçalves e Piccinini (2008), a confiança de algumas entrevistadas quanto a não infecção do bebê decorre também do sucesso da profilaxia para a prevenção da transmissão vertical em gestações anteriores.

Embora a incerteza e a angústia frente ao diagnóstico do bebê pareçam uma constante para essas mães, sentimentos de alívio e satisfação diante do possível diagnóstico negativo também foram referidos nos estudos revisados. Mães gaúchas expressaram a sensação futura de "dever cumprido", assinalando a adesão ao TARv durante a gestação (Faria, & Piccinini, 2010). De forma oposta, também entre mães gaúchas, o já mencionado temor ante a infecção do bebê e ansiedade frente ao desconhecimento do seu diagnóstico definitivo foram citados como um motivo para não planejar uma próxima gestação (Gonçalves, & Piccinini, 2008).

Para além do HIV, a saúde do bebê apresentou-se como uma preocupação para as mães nos estudos revisados. Segundo Gonçalves e Piccinini (2008), problemas de saúde vinculados à necessidade de hospitalização intensificaram ansiedades e temores das mães, o que as levou a reforçar o cuidado da criança. Por outro lado, foram referidos como aspectos positivos o crescimento e a saúde do bebê, o fato de ele estar se alimentando bem e de não ter ficado doente. Preocupações comuns aos primeiros meses de vida, como a introdução de novos alimentos, o sono e a higiene, também foram encontradas pelos autores.

Como a confirmação do estado sorológico do bebê é um processo relativamente longo, percebe-se a necessidade de realizar estudos longitudinais, em particular de cunho misto (quanti e qualitativo), para conhecer como essas mães manejam essa situação até o momento do diagnóstico definitivo. Esta abordagem será fundamental, dadas as importantes repercussões das dúvidas e medos, assim como da própria confirmação da infecção, na saúde mental materna e na relação com o bebê. Ainda não se conhecem os sentimentos maternos em caso de diagnóstico definitivo negativo; pode-se pensar que, mesmo nessa situação, temores de reversão do quadro continuem a fazer parte das vivências dessas mães. Também não se conhecem as diferenças nos sentimentos daquelas mães que revelaram seu diagnóstico para a família e que não revelaram. Essas lacunas indicam a importância do seguimento do estudo desse tema.

Sentimentos despertados pelo tratamento antirretroviral do bebê

Outra particularidade da vivência da maternidade decorrente da presença do HIV é a necessidade de TARv do bebê, no seguimento ao tratamento dispensado à gestante, a fim de se alcançar o diagnóstico sorológico negativo. Estudos que abordaram essa temática revelaram tanto satisfação das mães frente a esse tratamento, como também angústia e medo diante das dificuldades que o acompanham.

Seis mães entrevistadas por Rigoni et al. (2008) em Porto Alegre/RS, cujos filhos tinham entre um e cinco meses de vida, demonstraram satisfação frente a esse tratamento, por permitir-lhes sentirem-se ativas no processo de cuidado do filho. Entretanto, por questões orgânicas do bebê, como náuseas, ou mesmo por questões pessoais, como esquecimento e preocupação com a duração do tratamento, foi referido sentimento de angústia durante a administração das medicações. As reações do bebê despertavam nas mães sentimentos de estar causando algum dano ou incômodo a ele. Resultados semelhantes foram apontados em Faria e Piccinini (2010) entre mães da mesma cidade. Mesmo com essas dificuldades, Gonçalves e Piccinini (2008), entre seis mães gaúchas, identificaram o cumprimento adequado de todas as medidas de cuidado à saúde do bebê, o que incluiu a realização de exames e a administração das medicações, na tentativa de fazer pelo filho tudo o que estivesse ao seu alcance. Inclusive situações como afastamento do filho ou necessidade de deixá-lo aos cuidados de outras pessoas despertavam insegurança nas mães quanto à qualidade do atendimento a ser dispensado à criança. Entretanto, conforme os autores, destacou-se o desconhecimento sobre o HIV e o tratamento de saúde da criança dentre as mães que haviam recebido o diagnóstico no parto ou logo após.

Ainda quanto ao tratamento do bebê, Araújo et al. (2008) encontraram, entre quatro mulheres (três puérperas) da cidade de Fortaleza, medos em relação à possibilidade de descoberta da soropositividade, o que gerou a adoção de algumas medidas para manter sigilo dessa condição, como esconder os medicamentos. Conforme Rigoni et al. (2008), pelo temor da revelação e do preconceito, essas mulheres podem se isolar e receber menos auxílio para o cuidado do bebê, o que repercute negativamente nas suas vivências. Estes autores observaram, entre mães gaúchas, a responsabilização pelo tratamento de saúde do bebê, embora aquelas que contassem com uma boa rede de apoio social, formada por pais, amigos e familiares, conseguissem seguir tal tratamento com mais tranquilidade e segurança.

Em conjunto, os achados destes estudos indicam que o TARv do bebê acarreta diversas dificuldades e desperta sentimentos variados nas mães, como medo das reações do bebê, do resultado, da descoberta do HIV pela família (nos casos de não revelação) e do preconceito, em caso de descoberta. Esse panorama indica que o tratamento, embora seja visto como um cuidado e aplaque as ansiedades maternas frente à possibilidade de infecção, acaba por se constituir em um fator estressor para algumas delas, o que poderá repercutir no seu estado emocional, na vivência da maternidade e na própria relação com a família e o bebê, merecendo atenção dos profissionais de saúde e pesquisadores.

Sentimentos frente à revelação do diagnóstico sorológico à criança

Uma questão importante que perpassa a vivência da maternidade na presença do HIV é a revelação do diagnóstico sorológico para a criança, à medida que ela cresce. Esse aspecto também emergiu nos estudos revisados, destacando-se preocupação das mães frente às reações do filho ao diagnóstico e eventuais repercussões dessa revelação na relação mãe-criança.

Como indicaram os achados de Gonçalves e Piccinini (2008) dentre mães gaúchas, existe uma preocupação com a repercussão da doença na relação futura com o filho e também com as reações do filho ao diagnóstico materno e pessoal (quando for o caso). Em conjunto, esses achados demonstram uma particularidade relevante da vivência da maternidade na vigência do HIV, que pode sobrecarregar emocionalmente as mulheres. Embora já existam alguns estudos sobre o processo de revelação do diagnóstico para crianças e adolescentes no Brasil, esses em geral focalizam a revelação do estado sorológico da própria criança/adolescente, não tanto da condição de saúde dos pais e mães para elas. Assim, entende-se que esse tema ainda carece de investigações, para que se consiga apreender os sentimentos de mães e pais envolvidos ao longo do processo, bem como as reações da criança/adolescente e as eventuais repercussões dessa revelação nas relações familiares e na vivência posterior da maternidade. Para que seja possível conhecer aspectos que facilitem ou dificultem esse processo, visando à realização de intervenções por parte dos profissionais de saúde e assistência social, estudos adicionais sobre esse tema são fundamentais.

Percepção quanto ao apoio social

Embora não tenha sido foco específico de nenhum estudo, a percepção quanto ao apoio social também foi evidenciada nos estudos revisados. Foram encontrados tanto relatos de apoio de amigos, vizinhos, da família de origem e/ou do marido, como também de restrição de apoio, ocasionada por diferentes motivos.

Mães gaúchas relataram satisfação com o apoio recebido de seus parceiros e familiares (Faria, & Piccinini, 2010). Elas referiram receber alguma forma de apoio desde a gestação (financeiro, emocional e prático), inclusive para o TARv (Gonçalves, & Piccinini, 2008). Como fontes de apoio, foram mencionados amigos, vizinhos, familiares, em especial mulheres, e outras pessoas próximas. O marido foi considerado como apoio, embora situações de conflito, de falta de diálogo, de separação e de ausência, por vezes relacionadas ao HIV, tenham sido identificadas, ocasionando a sua avaliação como a pessoa menos apoiadora.

Restrições na rede de apoio também foram observadas devido a desentendimentos, problemas de saúde, manutenção do segredo em relação à infecção ou mesmo mudança de cidade (Gonçalves, & Piccinini, 2008). Particularmente no estudo de Santos et al. (2012), realizado em Goiânia, constatou-se que a falta de diálogo e a presença de relações conflituosas foram promotoras de situações de violência, dificultando a vivência da maternidade concomitantemente ao diagnóstico positivo para HIV.

Diante de achados contraditórios e da importância do tema, novos estudos são necessários, para que se possa conhecer em que medida essas mães podem efetivamente contar com outras fontes de apoio para além da família, como profissionais e instituição de saúde e comunitárias, amigos, etc. Da mesma forma, de que modo o fornecimento e a necessidade e solicitação de apoio se modificam à medida que o bebê se desenvolve e são enfrentados diferentes desafios, como o tratamento de saúde, a comunicação do diagnóstico definitivo, a revelação da infecção para a criança etc., todos eles abordados nessa revisão.

Discussão geral e considerações finais

O objetivo desse estudo foi retratar a vivência da maternidade em situação de infecção por HIV, por meio da realização de uma revisão da literatura brasileira dos últimos 15 anos (2000-2014). Foram identificadas semelhanças na vivência da maternidade de mulheres HIV+ (especialmente nos primeiros meses de vida do bebê) em relação às vivências típicas desse período, tais como felicidade e satisfação com a maternidade, preocupação quanto à saúde do bebê e responsabilização pelos seus cuidados. Igualmente, vivências particulares e emocionalmente difíceis foram observadas, como a necessidade de realizar o TARv do bebê, a incerteza frente ao diagnóstico sorológico definitivo e a proibição da amamentação. Ainda, alguns impasses na relação mãe-criança foram identificados, especialmente no que tange à revelação do diagnóstico. Estes achados permitiram identificar aspectos relevantes para futuras investigações e intervenções psicológicas junto a essa população.

Implicações para a investigação

Embora os poucos estudos encontrados possibilitem um conhecimento importante dessa realidade, muito ainda se precisa conhecer a respeito da vivência da maternidade na vigência do HIV. De fato, foram constatadas diversas lacunas na produção científica brasileira. Em particular, estudos quantitativos, que avaliem aspectos relativos à saúde mental, à interação com o bebê, ao apoio social, à relação conjugal, dentre outros, necessitam ser realizados. De igual modo, estudos longitudinais também são necessários para descrever a vivência da maternidade e as nuances da relação mãe-bebê durante e após o TARv, tanto nos casos de confirmação como de não confirmação da transmissão.

Estudos sobre o apoio social recebido, percebido e solicitado também precisam ser implementados. Em relação a esse aspecto, será relevante contemplar, nas investigações, mulheres de diferentes faixas etárias, níveis socioeconômicos, configurações familiares e paridade. Outros aspectos a ter em conta para o conhecimento desses segmentos específicos de mães HIV+ são o tempo de diagnóstico, a forma de contaminação, a situação conjugal, a adesão ao TARv, a revelação ou não do diagnóstico para a família, experiências anteriores de maternidade e a própria condição de saúde (HIV+ ou já manifestando sintomas da aids). A realização de pesquisas considerando essas características permitiria ampliar o conhecimento da vivência da maternidade na vigência dessa condição de saúde e dos principais desafios que estas mulheres, casais e famílias enfrentam. Da mesma forma, permitiria verificar de que forma as repercussões de tal condição realmente se devem apenas à presença do HIV e à necessidade de tratamento, ou a outras situações de vulnerabilidade social às quais essas mulheres também podem estar expostas, como a discriminação e a pobreza.

Os planos futuros para além da infecção (incluindo as decisões reprodutivas), as estratégias de enfrentamento e o estado de saúde mental também se revelam tópicos importantes para investigação. É oportuno, ainda, direcionar esforços para conhecer as implicações psicológicas da maternidade na vigência do HIV em diferentes esferas da vida dessas mulheres (relação conjugal, vida profissional, relação com a família de origem, com os demais filhos, dentre outros). Por fim, devido à importância para a sobrevivência, estudos sobre a adesão ao TARv após o nascimento do bebê precisam ser implementados, a fim de se conhecer os determinantes (individuais, familiares, sociais, de assistência à saúde etc.) pelos quais normalmente o autocuidado dessas mulheres-mães fica prejudicado e de que modo poderia ser incrementada a adesão.

Implicações para a intervenção psicológica

Os estudos revisados demonstram que a presença do HIV repercute nas vivências da maternidade, ao acarretar novas demandas físicas e psíquicas àquelas já esperadas. Desse modo, pode-se pensar num possível impacto negativo dessa condição de saúde na interação mãe-bebê e, consequentemente, no desenvolvimento da díade, quando acompanhada de outros fatores de risco pessoal e social. A partir desse panorama, intervenções psicológicas junto a esse público são essenciais, pois várias são as questões com as quais essas mães precisam lidar após o nascimento do bebê.

Diante do exposto, fornecer um espaço de escuta e reflexão acerca dos diferentes sentimentos que perpassam a vivência da maternidade na presença do HIV se mostra relevante para a promoção do vínculo com o bebê e para o enfrentamento das diferentes situações relativas ao TARv. A impossibilidade do aleitamento reforça a importância desse apoio psicológico, diante da frustração e da tristeza das mães frente a essa medida. Desafiando o incentivo ao aleitamento presente nas campanhas de saúde brasileiras, é importante construir, junto a essas mulheres, a ideia de que o vínculo com o bebê pode ser estabelecido a partir de outros comportamentos e situações, para além da amamentação. Na abordagem dessas questões, intervenções em grupos, dirigidas para o fornecimento de informações, a troca de experiências e a expressão de sentimentos, poderiam amenizar temores e ansiedades. Seria importante garantir o caráter interdisciplinar desses grupos, especialmente pela necessidade de fornecer informações claras sobre o HIV, o TARv, as medidas de prevenção e as alternativas e direitos referentes à não amamentação.

Também intervenções para consolidar e/ou fortalecer a rede de apoio (por exemplo, relação de casal e familiar) e estimular capacidades de enfrentamento positivas frente aos inúmeros desafios psicossociais impostos pela presença do HIV para a vivência da maternidade deveriam ser oferecidas nos serviços de saúde. Nesse âmbito, o envolvimento do pai do bebê assume grande importância. Face à escassez de estudos sobre o pai e a percepção das mães HIV+ sobre ele, esse aspecto se mostra relevante para futuras intervenções, pois a qualidade conjugal e o desempenho do papel paterno repercutem na vivência da maternidade.

Embora o HIV represente, na maioria das vezes, risco de morte para as mulheres, nos estudos revisados a maternidade representou uma forma de valorização da vida e ensejou esperanças e expectativas de acompanhamento do crescimento do filho. Tal ímpeto poderia ser aproveitado pelos profissionais para a elaboração de intervenções que facilitem a adesão ao TARv, fortalecendo também a vinculação dessas mães aos serviços. Esse aspecto poderia ser trabalhado na perspectiva do autocuidado e do cuidado do bebê. A adoção de algumas medidas visando ao aprimoramento do atendimento, como a inclusão do parceiro, o fornecimento de informações claras e a postura respeitosa frente à usuária, também acarretaria em melhora na adesão ao TARv. Contudo, sabe-se que a adoção das medidas elencadas, bem como o planejamento de intervenções, exige educação continuada dos profissionais e recursos suficientes nos serviços de saúde para a sua implementação, o que nem sempre condiz com a realidade do país.

Em síntese, a vivência das mães HIV+ fornece para os psicólogos e demais profissionais da saúde um paradigma de compreensão dos efeitos de uma condição crônica e estigmatizante na saúde física e psicológica das mulheres, durante uma etapa importante do ciclo de vida. Porém, apesar de essa condição clínica assumir os contornos de um contexto adverso, este pode ser ressignificado e vivido como uma fonte de potencial para a mudança, como uma oportunidade para adotar um estilo de vida mais saudável. É tarefa dos profissionais de saúde ajudar a criar esses significados mais adaptativos para o enfrentamento da maternidade na vigência do HIV, com todos os desafios e possibilidades que ela acarreta.

 

Referências

Araújo, M. A., Silveira, C. B., Silveira, C. B., & Melo, S. P. (2008). Vivências de gestantes e puérperas com o diagnóstico do HIV. Revista Brasileira de Enfermagem, 61(5), 589-594. https://doi.org/10.1590/S0034-71672008000500010        [ Links ]

Bazani, A. C., Silva, P. M., & Rissi, M. R. (2011). A vivência da maternidade para uma mulher soropositiva para o HIV: Um estudo de caso. Saúde e Transformação Social, 2(3), 45-55.         [ Links ]

Beltrame, G. R., & Donelli, T. M. S. (2012). Maternidade e carreira: desafios frente à conciliação de papéis. Aletheia, 38-39, 206-217.         [ Links ]

Brasil. (2014). Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico HIV/AIDS, III(1). Brasília, DF: o autor. Recuperado de http://www.aids.gov.br/sites/default/files/anexos/publicacao/2014/56677/boletim_2014_final_pdf_15565.pdf. Acesso em 10 de julho de 2015.         [ Links ]

Brazelton, T., & Cramer, B. (1992). As primeiras relações (M. B. Cipolla, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Canavarro, M. C. (2001). Gravidez e maternidade: representações e tarefas de desenvolvimento. Em: M. C. Canavarro (Org.), Psicologia da gravidez e da maternidade (pp. 17-49). Coimbra: Quarteto.         [ Links ]

Carvalho, C. M. L., & Galvão, M. T. G. (2008). Enfrentamento da AIDS entre mulheres infectadas em Fortaleza -CE. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 42(1), 90-97. https://doi.org/10.1590/S0080-62342008000100012        [ Links ]

Carvalho, F. T., & Piccinini, C. A. (2006). Maternidade em situação de infecção pelo HIV: Um estudo sobre os sentimentos de gestantes. Interação em Psicologia, 10(2), 345-355. https://doi.org/10.5380/psi.v10i2.7693        [ Links ]

Darvill, R., Skirton, H., & Farrand, P. (2010). Psychological factors that impact on women's experiences of first-time motherhood: a qualitative study of the transition. Midwifery, 26(3), 357-366. https://doi.org/10.1016/j.midw.2008.07.006        [ Links ]

D'Auria, J. P., Christian, B. J., & Miles, M. S. (2006). Being there for my baby: Early responses of HIV-infected mothers with an HIV-exposed infant. National Association of Pediatric Nurse Practitioners, 20(1), 11-18. https://doi.org/10.1016/j.pedhc.2005.08.008        [ Links ]

Faria, E. R., & Piccinini, C. A. (2010). Maternidade no contexto do HIV/AIDS: gestação e terceiro mês de vida do bebê. Estudos de Psicologia (Campinas), 27(2), 147-159. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2010000200002        [ Links ]

Galvão, M. T., Cunha, G. H., & Machado, M. M. (2010). Dilemas e conflitos de ser mãe na vigência do HIV/Aids. Revista Brasileira de Enfermagem, 63(3), 371-376. https://doi.org/10.1590/S0034-71672010000300004        [ Links ]

Gonçalves, T. R., & Piccinini, C. A. (2008). Experiência da maternidade no contexto do HIV/AIDS aos três meses de vida do bebê. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 24(4), 459-470. https://doi.org/10.1590/S0102-37722008000400009        [ Links ]

Gonçalves, V. F., Teixeira, D. Q., Oliveira, P. F., & Sousa, T. H. (2012). Mulheres soropositivas para o HIV: Compreensão, sentimentos e vivência diante da maternidade. Revista Brasileira de Promoção de Saúde, 26(2), 281-289. https://doi.org/10.5020/18061230.2013.p281        [ Links ]

Lebovici, S. (1988). Maternidade. In G. Costa & G. Katz (Orgs.), Dinâmica das relações conjugais (pp.41-61). Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Levandowski, D. C., Pereira, M. D., Dores, S. D., Ritt, G. C., Schuck, L. M., & Sanches, I. R. (2014). Vivência da gravidez em situação de seropositividade para HIV: revisão da literatura brasileira. Análise Psicológica, 32(3), 259-277. https://doi.org/10.14417/ap.575        [ Links ]

Lopes, R. C. S., Donelli, T. S., Lima, C. M., & Piccinini, C. A. (2005). O antes e o depois: Expectativas e experiências de mães sobre o parto. Psicologia: Reflexão e Crítica, 18(2), 247-254. https://doi.org/10.1590/S0102-79722005000200013        [ Links ]

Moura, E. L., & Praça, N. S. (2006). Transmissão vertical do HIV: Expectativas e ações da gestante soropositiva. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 14(3), 405-413. https://doi.org/10.1590/S0104-11692006000300015        [ Links ]

Murphy, D. A. (2009). The impact of maternal HIV/AIDS on mothers, their children, and the parent-child relationship. The Source, 19(2), 2-8.         [ Links ]

Paiva, S. S., & Galvão, M. T. (2004). Sentimentos diante da não amamentação de gestantes e puérperas soropositivas para HIV. Texto & Contexto Enfermagem, 13(3), 414-419. https://doi.org/10.1590/S0104-07072004000300011        [ Links ]

Patias, N. D., Gabriel, M. R., Weber, B. T., & Dias, A. C. G. (2011). Considerações sobre a gestação e a maternidade na adolescência. Mudanças - Psicologia da Saúde, 19(1), 19-27. https://doi.org/10.15603/2176-1019/mud.v19n1-2p31-38        [ Links ]

Pereira, M., & Canavarro, M. C. (2012). Quality of life and emotional distress among HIV-positive women during transition to motherhood. The Spanish Journal of Psychology, 15(3), 1303-1314. https://doi.org/10.5209/rev_SJOP.2012.v15.n3.39416        [ Links ]

Piccinini, C. A., Gomes, A. G., De Nardi, T., & Lopes, R. C. (2008). Gestação e a constituição da maternidade. Psicologia em Estudo, 13(1), 63-72. https://doi.org/10.1590/S1413-73722008000100008        [ Links ]

Piccinini, C. A., Gomes, A. G., Moreira, L. E., & Lopes, R. S. (2004). Expectativas e sentimentos da gestante em relação a seu bebê. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 20(3), 223-232. https://doi.org/10.1590/S0102-37722004000300003        [ Links ]

Raphael-Leff, J. (1997). Gravidez: a história interior (R. D. Pereira, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Rigoni, E., Pereira, E. O., Carvalho, F. T., & Piccinini, C. A. (2008). Sentimentos de mães portadoras de HIV/AIDS em relação ao tratamento preventivo do bebê. Psico-USF, 13(1), 75-83. https://doi.org/10.1590/S1413-82712008000100010        [ Links ]

Sandelowski, M., & Barroso, J. (2003). Motherhood in the context of maternal HIV infection. Research in Nursing & Health, 26(6), 470-482. https://doi.org/10.1002/nur.10109        [ Links ]

Sanders, L. B. (2008). Women's voices: the lived experience of pregnancy and motherhood after diagnosis with HIV. Journal of the Association of Nurses in Aids Care, 19(1), 47-57. https://doi.org/10.1016/j.jana.2007.10.002        [ Links ]

Sant'Anna, A. C., Seidl, E. M., & Galinkin, A. L. (2008). Mulheres, soropositividade e escolhas reprodutivas. Estudos de Psicologia, 25(1), 101-109. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2008000100010        [ Links ]

Santos, S. F., & Bispo Junior, J. P. (2010). Desejo de maternidade entre mulheres com HIV/AIDS. Revista Baiana de Saúde Pública, 34(2), 299-310. https://doi.org/10.22278/2318-2660.2010.v34.n2.a36        [ Links ]

Santos, W. S., Medeiros, M., Munari, D. B., Oliveira, N. F., & Machado, A. R. (2012). A gravidez e a maternidade na vida de mulheres após o diagnóstico do HIV/Aids. Ciência, Cuidado e Saúde, 11(2), 250-258. https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v11i2.10476        [ Links ]

Scavone, L. (2001). Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 5(8), 47-60. https://doi.org/10.1590/S1414-32832001000100004        [ Links ]

Solomon, P., & Wilkins, S (2008). Participation among women living with HIV: a rehabilitation perspective. AIDS Care, 20(3), 292-296. https://doi.org/10.1080/09540120701660320        [ Links ]

Stern, D. N. (1997). A constelação da maternidade (M. V. A. Veronese, Trad.). Artmed. Porto Alegre. (Original publicado em 1995).         [ Links ]

Travassos-Rodriguez, F., & Féres-Carneiro, T. (2013). Maternidade tardia e ambivalência: algumas reflexões. Tempo Psicanalítico, 45(1), 111-121        [ Links ]

Wilson, S. (2007). 'When you have children, you're obliged to live': motherhood, chronic illness and biographical disruption. Sociology of Health & Illness, 29(4), 610-626. https://doi.org/10.1111/j.1467-9566.2007.01008.x        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1987). Os bebês e suas mães (J. L. Camargo, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1968).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Daniela Centenaro Levandowski
danielal@ufcspa.edu.br

Maria Cristina Canavarro
mccanavarro@fpce.uc.pt

Marco Daniel Pereira
marcopereira@fpce.uc.pt

Gabriela Nunes Maia
gabisnmaia@gmail.com

Lara Monteiro Schuck
s.mlara@hotmail.com

 Isabela Rodrigues Sanches
isabela_sanches@hotmail.com

Submetido em: 19/10/2015
Revisto em: 28/07/2017
Aceito em: 27/10/2017

Creative Commons License