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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.69 no.2 Rio de Janeiro  2017

 

ARTIGOS

 

Religiosidade e o desenvolvimento da autoconsciência em universitários

 

Religiosity and the development of self-awareness in college students

 

Religiosidad y el desarrollo de la autoconsciencia en universitarios

 

 

Alexsandro Medeiros do NascimentoI; Antonio RoazziII

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife. Estado de Pernambuco. Brasil
IIProfessor Titular. Departamento de Psicologia. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife. Estado de Pernambuco. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo objetivou investigar as relações entre religiosidade e autoconsciência situacional e disposicional, fundamentando-se na hipótese de uma possível coevolução conjunta na ontogênese em estudantes universitários de distintas orientações religiosas. A amostra foi composta por 958 universitários (52,1% de sexo feminino), os quais responderam ao protocolo de pesquisa contendo Questionário Sociodemográfico, Escala de Autoconsciência Situacional, Escala de Autoconsciência Disposicional e Escala de Religiosidade Global, e os dados foram analisados através de Análise Fatorial, Anova One-Way seguida do teste das diferenças honestamente significativas (DHS) de Tukey e coeficiente de correlação de Pearson. Os achados levantaram evidências de uma sistemática interrelação entre fatores de autoconsciência situacional e disposicional e dimensões de religiosidade, corroborando a hipótese de um papel protetivo da religiosidade ao desenvolvimento dos processos autofocalizadores humanos.

Palavras-chave: Religiosidade; Autoconsciência situacional; Autoconsciência disposicional; Estímulos autofocalizadores; Desenvolvimento cognitivo.


ABSTRACT

The present study aimed to investigate the relationship between religiosity and situational and dispositional self-focus, based on the hypothesis of a possible joint co-evolution in ontogeny in university students of different religious orientations. The sample consisted of 958 college students (52.1% females), which responded to the research protocol containing Sociodemographic Questionnaire, Situational Self-focus Scale, Dispositional Self-focus Scale and Global Religiosity Scale. Data were analyzed using factor analysis one-way ANOVA, followed by the Tukey's Honestly Significantly Different (DHS) test and Pearson correlation coefficient. The findings raised evidence of a systematic interrelation between factors of situational and dispositional self-focus and dimensions of religiosity, supporting the hypothesis of a protective role of religiosity in the development of human self-focused attention processes.

Keywords: Religiosity; Situational self-focus; Dispositional self-focus; Self-focusing stimuli; Cognitive development.


RESUMEN

El presente estudio está enfocado a la investigación de las relaciones entre religiosidad y autoconsciencia situacional y de disposición, basado en la hipótesis de una posible coevolución conjunta en la ontogénesis en estudiantes universitarios de diversas orientaciones religiosas. La muestra está compuesta de 958 universitarios (52,1% de sexo femenino), que respondieron al protocolo de investigación que contiene el Cuestionario Sociodemográfico, Escala de Autoconsciencia Situacional, Escala de Autoconsciencia de Disposición y Escala de Religiosidad Global, se analizaron los datos por medio de Análisis Factorial, ANOVA One-Way seguida del test de diferencias honestamente significativas (DHS) de Tukey y el coeficiente de correlación de Pearson. Los hallazgos mostraron evidencias de una interrelación sistemática entre factores de autoconsciencia situacional y de disposición y dimensiones de religiosidad, corroborando la hipótesis de un papel protector de la religiosidad en el desarrollo de procesos auto enfocadores humanos.

Palabras clave: Religiosidad; Autoconsciencia situacional; Autoconsciencia de disposición; Estímulos auto enfocadores; Desarrollo cognitivo.


 

 

Introdução

A religião, desde os primórdios do processo de hominização, forneceu às sociedades humanas quadros de referência para organização da vida em geral, com seus mistérios fundantes, interrogações epistêmicas sobre os inícios absolutos e fins últimos, sobre os segredos da cura e das etapas de realização da existência integral ao longo do ciclo vital - nascimento, casamento, procriação, morte, passagem para outros níveis de realidade, entre outros tópicos importantes à navegação pessoal através da vida (Davies, 2005; James, 1902/1985; Leary, 2004; Nascimento, 2008).

Com o advento da ciência e o crescente declínio do poder religioso na condução da vida pública, inicia-se um debate de natureza epistemológica entre os dois saberes, cada um dos quais reivindicando a primazia na descrição da realidade e na modelação ética da vida em sociedade, que às vezes tem tomado os contornos de verdadeira guerra entre saberes, opondo cientistas e religiosos em geral, com profecias de ocaso da religião, nem sempre confirmadas ao longo do desenrolar do tempo histórico (Ávila, 2007; Barbour, 2004; Fontana, 2003; Hill, & Pargament, 2003; Nascimento, Rego & Falcão, 2002; Paiva, 2000; 2002). De fato, a controvérsia permanece, com um ressurgimento do fenômeno religioso em novéis formas com um vigor inconteste neste início de milênio (Emmons & Paloutzian, 2003; Paloutzian, & Park, 2005) e, em especial, nas plagas brasileiras, como atestam inúmeros trabalhos de cientistas sociais (Nascimento, Paula & Roazzi, 2017; Nascimento, & Roazzi, 2014; Paiva, 2007; Teixeira & Menezes, 2006).

Se, por um lado, as questões de natureza metafísica sobre a validade das afirmações religiosas, apesar de sua presença fiel na crítica científica ao fenômeno religioso (ver Barbour, 2004), não compõem o fiel da balança das discussões contemporâneas, a pergunta mais pragmática à maneira de James (1902/1985) sobre os efeitos da religião na vida humana moral e societária não tem achado resposta conclusiva, havendo o debate levado em alguns momentos a becos sem saída, com afirmações categóricas e muitas vezes preconceituosas sob disfarce de dados de pesquisa sobre os supostos efeitos ou deletérios ou benéficos da religião sobre o indivíduo (Ávila, 2007), nem sempre a psicologia contribuindo de modo frutífero ao debate (Barrett, 2017; Paloutzian, 2017; Whitehouse, 2008; Xygalatas, 2014).

A gama extensa de investigações multidisciplinares em curso na atualidade sugere um quadro ainda em vias de ser esboçado com maior consenso que indica ser a religiosidade um fator de modelamento do self em suas dimensões públicas e privadas, intersubjetivas e propriamente psicológicas (Buss, 2001), colocando o construto em rota de aproximação ao olhar investigativo dos pesquisadores cognitivos (Barrett, 2011; Gervais, & Norenzayan, 2012; Nascimento, & Roazzi, 2014).

A despeito do inquietante e robusto debate sobre a definição de religiosidade em contraste a termos historicamente intercambiados com o mesmo na literatura como religião e espiritualidade, tem se observado grandes avanços na operacionalização do construto nas pesquisas de corte psicológico, em especial, na proposição teórica e validação de inúmeros instrumentos psicométricos para concretizar uma agenda de pesquisa em psicologia da religião e nos estudos cognitivos contemporâneos, para sistematização do estatuto teórico deste construto (Baumsteiger, & Chenneville, 2015; Hill, & Pargament, 2003; Klein, Hood, Silver, Keller, & Sreib, 2016; Nascimento & Roazzi, 2014; Spilka, Hood Junior, Hunsberger, & Gorsuch, 2003), e de toda uma rede de construtos subsidiários, como religião, espiritualidade, bem-estar espiritual, saúde espiritual, imagem de Deus, ateísmo, secularização, micro-agressões ateístas, discriminação ateísta, entre muitos outros de interesse da pesquisa psicológica, e cognitiva em particular (Amiri, Abbasi, Gharibzadeh Zarghani, & Azizi, 2015; Brewster, Hammer, Sawyer, Eklund, & Plamar, 2016Dhar, Chaturvedi, & Nandan, 2011; Mirghafourvand, Charandabi, Sharajabad, & Sanaati, 2016; Pagano Junior, 2015; Schreiber, & Edward, 2015).

Desde os primórdios do campo psicológico em seus estudos iniciais do fenômeno religioso tem se observado a natureza fuzzy (não clara), dos limites semânticos de religiosidade, o qual tem áreas extensas de comunalidade com espiritualidade, percebidas tanto na perspectiva de atores sociais e suas teologias nativas (Zinnbauer et al., 1997) quanto em análises conceituais de scholars nos estudos em psicologia e religião (Marler, & Hadaway, 2002; Nascimento, 2008; Streib, & Hood, 2016). Há uma notável concordância nos resultados destes dois diferentes corpus quanto à grande convergência de significados entre religiosidade e espiritualidade - o que enseja certa intercambialidade no uso dos termos, inclusive em termos de medidas psicométricas, ao mesmo tempo em que há claras áreas de singularização dos conceitos, que devem ser melhor exploradas e operacionalizadas empiricamente, dadas possíveis diferenças em seus impactos sobre cognição, emoção, motivação e comportamento (Barrett, 2017; Doane & Elliott, 2015; Galen, 2015; Kallio, 2015; Miller-Perrin & Mancuso, 2015; Nascimento, & Roazzi, 2014; Spilka et al., 2003; Streib, & Hood, 2016).

Spilka et al. (2003) discutem a impossibilidade de obtenção de consenso sobre o significado de religião e a dificuldade de se enfeixar sistemas complexos de crença, comportamento e experiência debaixo da mesma rubrica teórica, estando o debate sobre o significado de religião (consequentemente, sobre religiosidade e toda a rede de construtos derivativa) ainda em aberto ao presente no estado da arte em psicologia da religião. Todavia, percepções estáveis sobre a semântica do termo já se precipitam na literatura: espiritualidade concerne a crenças, valores e comportamento, enquanto religiosidade versa sobre envolvimento da pessoa com instituição e tradição religiosa.

Tais distinções não são absolutas e se sobrepõem largamente ou, antes, se pressupõem mutuamente, devendo religiosidade reivindicar formas singulares de espiritualidade, e espiritualidade positivar a concretização de ideário ou observâncias religiosas, conforme reflexão de Nascimento (2008). Contudo, faz-se mister a clareza de que espiritualidade tem um contorno mais pessoal, implica numa singular engajamento em compromissos de valor e significado; ser espiritual não requer um arcabouço ou pertença institucional, nem crença em deidade(s), sendo religiosidade um subconjunto de espiritualidade, pois a pressupõem, enquanto esta última pode se realizar de forma não religiosa também (Nascimento et al., 2017; Spilka et al., 2003; Streib, & Hood, 2016; Zinnbauer et al., 1997).

Pessoas religiosas, ou seja, com níveis bem edificados de religiosidade, são menos tendentes ao uso de substâncias ilegais, abuso de álcool ou de comportamentos relacionados à promiscuidade sexual; também possuem melhores índices de saúde mental e física, satisfação com a vida em geral ou por domínios específicos desta, bem-estar espiritual e qualidade de vida relacionada à saúde, maior e melhor sobrevida a enfermidades letais, coping a estressores relacionados a saúde, e menores índices de depressão (Amiri, et al., 2015; Baumsteiger, & Chenneville, 2015; Dhar, Chaturvedi & Nandan, 2011; Mirghafourvand et al., 2016; Nascimento et al., 2017; Schreiber, & Edward, 2015; Silva Junior, Nascimento, Roazzi, & Silva Junior, 2016; Spilka et al., 2003; Streib, & Hood, 2016).

No que tange a aspectos cognitivos do self humano, pesquisa recente tem mapeado ser a religiosidade um fator de desenvolvimento da cognição, intervindo beneficamente nos níveis de autoconsciência reflexiva, qualidade da experiência interna em estados incomuns da consciência, modelação de estados de consciência fenomenal relacionados à morte, habilidades imaginativas, apego, qualidade da interação social, teoria da mente em crianças na primeira infância, fator desenvolvimental à mediação cognitiva de autofoco e fator protetivo à ruminação e pensamento ruminativo em adultos (Escobar et al., 2015; Magalhães, & Nascimento, 2017; Nascimento, 2008; Nascimento, & Roazzi, 2013; Roazzi, Nascimento, & Gusmão, 2013).

Essa hipótese da importância da religiosidade sobre a organização e dinâmica funcional do self humano ganha reforços adicionais dos estudos de autoconsciência. O tópico da autoconsciência, definida operacionalmente como prestar atenção a si mesmo (Duval, Silvia & Lalwani, 2001; Morin, 2004; Nascimento et al., 2017), teve seu momento inaugural nos estudos psicológicos contemporâneos com o advento da Teoria da Autoconsciência Objetiva de Duval e Wicklund (1972), onde a mesma é concebida como um processo autoavaliativo em que o foco da atenção incide sobre um autoaspecto do self e este é comparado com um padrão de correção preconizado pela ambiência social de pertença, culminando o processo com um juízo de discrepância self-padrão com distintas consequências comportamentais e cognitivas a depender da distância do estado atual do self em relação ao padrão correspondente.

Desde então, tem-se descrito a autoconsciência em termos de suas dimensões públicas e privadas (Buss, 2001), suas dimensões estado e traço (Fenigstein, Scheier & Buss, 1975), sua dimensionalidade e dicotomias organizacionais, em especial, suas dimensões de ruminação e reflexão (Nascimento, 2008; Trapnell, & Campbell, 1999) e conscientização e atentividade (Nascimento, 2008), sua natureza intrínseca, se uni ou multidimensional (Duval, & Wicklund, 1972; Duval et al., 2001), seus enlaces a outros processos psicológicos como experiência interna (Magalhães, & Nascimento, 2017) e os estados do humor (Nascimento et al., 2017). Apesar de recentes avanços e modificações na teoria original com a teorização do enlace da autoconsciência aos sistemas de atribuição causal (Duval et al., 2001), há consenso de ser a autoconsciência um sistema cognitivo que permite ao self prestar atenção a si mesmo e se automonitorar e autorregular, sendo, portanto, um parâmetro cognitivo central (Morin, 2004) e fundamental à estabilidade do self e da cognição, e ao bem-estar psicológico (Jiménez, 1999).

Levando-se em conta a distinção entre autoconsciência disposicional (self-consciousness) enquanto traço estável da personalidade e não controlável externamente por fatores ambientais, e autoconsciência situacional como estado de consciência disparado e controlado por estímulos autofocalizadores do ambiente (Govern, & Marsch, 2001), pouco se sabe sobre o enlace entre as dimensões estado e traço do autofoco, tampouco que classes de estímulos devam contribuir para a sua edificação na cognição, conforme Nascimento (2008).

Rimé e LeBon (1984), em discussão sobre os fatores situacionais envolvidos no desenvolvimento da autoconsciência disposicional, levantaram a possibilidade de que exposição continuada a estímulos autofocalizadores (o que manteria os indivíduos em permanente estado de autoconsciência situacional) levaria a um incremento na disposição ao autofoco (self-consciousness). Seguindo essa pista teórica, Schaller (1997) descreveu a hipótese de ser a fama um fator situacional indutor de autoconsciência situacional crônica, pelo fato de os famosos e as celebridades, estão sistematicamente sendo observados e avaliados por outras pessoas, consequentemente, permanecem num estado continuado de atenção a si mesmas.

Morin (2000) estende essa hipótese à exposição continuada a audiências e num estudo experimental com amostras de professores universitários e atores (grupos experimentais) e pessoas sem experiência de confronto com audiências (grupo controle) encontra estarem relacionadas autoconsciência pública (self-consciousness) em homens e frequência de exposição a audiências, revelando rotas altamente individualizadas no desenvolvimento da autoconsciência entre indivíduos, e especialmente diferenças importantes no desenvolvimento deste sistema cognitivo por sexo, o qual deve ter alguma relação com as histórias de organização dos ambientes e das práticas sociais diferenciadas a que são submetidos os meninos e as meninas durante a socialização inicial e a vida societária posterior, altamente marcada pela questão do gênero. Outras pesquisas do mesmo autor têm levantado subsídios adicionais e confirmações empíricas para a hipótese de um desenvolvimento da autoconsciência altamente sujeito às variações na organização dos ambientes físicos quanto aos estímulos autofocalizadores (Morin, 1997; 1998; Morin, & Craig, 2000).

Seguindo-se indicação de Nascimento (2008), firma-se neste presente estudo a hipótese de a religiosidade ser um potente organizador das ambiências física e social, bem como do meio cognitivo interno dos indivíduos, em especial, sobre a ontogênese da autoconsciência em suas dimensões traço e estado. Conforme hipótese teórica anunciada por Nascimento (2008), a filiação e participação mais ou menos frequente do indivíduo em uma determinada tradição de religião institucionalizada (adesão religiosa) já o expõe a uma frequente exposição a audiências e a frequentes ocasiões de interação social face a face, nas quais a tomada de perspectiva e as avaliações refletidas colocam-se como fontes importantes de disparo de autoconsciência (Morin, 2004). O exercício continuado de participação nos ritos e nas devoções, tanto públicas nos locais de culto e privadas, atingem o indivíduo diretamente em seu sistema de comportamento (comportamento religioso), levando-o a um exercício tenaz de autoavaliação segundo regras e prescrições ético-religiosas favorecendo altamente o disparo e manutenção de estados autoconscientes em sentido corrente (on-line) na interação social religiosa imediata, como também postergado no tempo pela ação dos mecanismos cognitivos de mediação como a autofala e as imagens mentais (Morin, 1998; 2004).

O aprofundamento da vivência religiosa disponibiliza ao indivíduo o aprendizado mais ou menos sistemático de práticas religiosas litúrgicas, cúlticas e devocionais que prescrevem estratégias de manipulação consciente de vários padrões cognitivos funcionais e fenomenológicos relacionados ao sistema consciência-autoconsciência (Fontana, 2003), como também para modificação intencional do padrão fenomenológico de atenção, percepção, cognição e consciência para obtenção de informações por canais supranaturais (Cardeña, Lynn, & Krippner, 2004) ou comunhão suprapessoal com o Divino (Shanon, 2002). O exercício sistemático da religiosidade abre oportunidades cognitivas de vivências de estados diversificados dos parâmetros cognitivos da consciência (Shanon, 2002), favorecendo a emergência de experiências místicas (Ávila, 2007; Emmons, & Paloutzian, 2003; Fontana, 2003; Hill, & Pargament, 2003; James, 1902/1985; Paloutzian, & Park, 2005) e êxtase religioso (Ávila, 2007; Maréchal, 2004).

Tais estados alterados da consciência e da realidade são usualmente vivenciados com a concorrência de fenômenos cognitivos inusuais ligados à sensorialidade, criatividade, pensamento e sinestesia (Shanon, 2002), insights de natureza filosófica e perceptos incomuns relacionados à natureza do real e da consciência, com abundante afluxo de experiências de tipo visual como visões e sonhos lúcidos (Cardeña et al., 2004), com consequentes diminuição do medo da morte e da extinção do self (Nascimento, 2008; Weil, 1995). Tais vivências de estados incomuns do self e da realidade (experiência mística) permitem a autoexperienciação em formas muito diversas dos padrões da vigília, não havendo ainda estudo sistemático sobre os mecanismos de mediação de autoconsciência neles, conforme notificam Nascimento (2008) e Morin (2004).

Por fim, a religiosidade em seu caráter de experiência complexa traz importantes mecanismos de natureza motivacional e afetiva (fé) e cognitiva (vinculação epistêmica ou opção preferencial pelo saber religioso) que na confluência com as demais dimensões da religiosidade dantes assinaladas (adesão religiosa, comportamento religioso e experiência mística), que evidenciam-se como fontes importantes de alimentação de estados autoconscientes que demandam uma atenção à pesquisa cognitiva sobre seu possível papel modelador desses ditos estados, e de seus mediadores, em particular as imagens mentais (Morin, 2004; Nascimento, & Roazzi, 2013).

Reunidos esses elementos teóricos, o presente estudo objetivou investigar as relações entre religiosidade e autoconsciência situacional e disposicional, em termos de uma possível coevolução conjunta na ontogênese em estudantes universitários de distintas orientações religiosas. Buscou-se encaminhar o teste empírico das seguintes hipóteses: Hipótese 1. Religiosidade em níveis mais altos está relacionada com níveis mais altos de Autoconsciência Situacional e Autoconsciência Disposicional; Hipótese 2. Religiosidade em termos de adesão religiosa está relacionada com formas não ansiosas de autofoco (reflexão; conscientização e atentividade), e não adesão religiosa com formas ansiosas de autofoco (ruminação); Hipótese 3. Religiosidade está correlacionada positivamente com formas não ansiosas de autofoco (reflexão; conscientização e atentividade) e negativamente com formas ansiosas de autofoco (ruminação); e, Hipótese 4. Religiosidade em termos de tempo de filiação está relacionada positivamente com formas não ansiosas de autofoco (reflexão; conscientização e atentividade) e negativamente com formas ansiosas de autofoco (ruminação).

 

Método

Participantes

A amostra de pesquisa foi composta por 958 estudantes universitários de instituições de ensino superior públicas e privadas (52,1% de sexo feminino), os quais responderam ao protocolo de pesquisa em suas duas formas (Completa e Resumida) para o teste das hipóteses relacionadas às medidas de autoconsciência, adesão religiosa e tempo de adesão religiosa. Para o exame das hipóteses envolvendo a medida de religiosidade global, extraiu-se um contingente de 258 participantes da amostra supracitada que respondeu à forma Completa do protocolo que continha a Escala de Religiosidade Global (ERG). No que concerne à orientação religiosa, os participantes declararam ser Católicos Romanos (43,2%), Evangélicos (13,7%), Espíritas (6,6%), Outras religiões (2,2%), e Sem religião (30,8%), restando um pequeno contingente que não relatou sua orientação religiosa atual (3,5%). As idades reportadas variaram de 17 a 55 anos, com média etária de 24,57 (DP = 6,68).

Instrumentos

Os participantes responderam a um questionário autoadministrado distribuído pelo pesquisador na forma de uma apostila em duas formas (Resumida e Completa) contendo o Questionário Sociodemográfico com questões sobre a orientação religiosa atual e história religiosa dos respondentes, incluindo tempo de pertença a religião atual, e as medidas psicométricas usadas neste estudo:

Escala de Autoconsciência Situacional (EAS) - Escala Likert de 13 itens, construída e validada por Nascimento (2008) para mensuração de diferenças individuais na capacidade cognitiva de autofoco enquanto estado (situacional), com três fatores cobrindo tipos de autofoco não ansioso (reflexão) e ansioso (ruminação) e mediação cognitiva de autoconsciência por imagem mental (mediação icônica). O instrumento é respondido em escala Likert de 5 pontos, indo de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente). Item típico da escala: "Neste instante, eu avalio algum aspecto que me diz respeito" (Item 1, Reflexão). A análise da consistência interna pelo Alfa de Cronbach revelou adequados níveis de fidedignidade com alfas de 0,74, 0,74 e 0,69 para os fatores de autofoco - reflexão, ruminação e mediação icônica, respectivamente.

Escala de Autoconsciência Disposicional (EAD) - Escala Likert de 20 itens construída e validada por Nascimento (2008) no intuito de mensuração de diferenças individuais nas capacidades de autofoco enquanto traço (disposicional), com ênfase nas dimensões de disposição a se estar consciente de si mesmo (conscientização), atentividade ou vetor dos sistemas atencionais voltado ao self (atentividade) e mediação cognitiva de autoconsciência (mediação cognitiva). O instrumento é respondido em escala Likert de 5 pontos, indo de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente). Item típico da escala: "Eu conheço as razões por trás das coisas que eu faço" (Item 11, Conscientização). A análise da consistência interna pelo Alfa de Cronbach revelou adequados níveis de fidedignidade com alfas de 0,71, 0,74 e 0,66 para os fatores de autofoco - Conscientização, Atentividade e Mediação Cognitiva, respectivamente.

Escala de Religiosidade Global (ERG) - Escala construída e validada por Nascimento (2008) e desenhada para ser uma medida geral e unidimensional do construto "religiosidade", esta escala de tipo Likert composta de 5 itens correspondentes aos aspectos mais nucleares da dinâmica psicológica da religiosidade - Adesão Religiosa, Comportamento Religioso, Experiência Mística, Fé e Vinculação Epistêmica -, mensura diferenças individuais na capacidade do indivíduo vivenciar em termos psicológicos uma experiência de encontro com o Sagrado mediada institucionalmente e através de uma forma religiosa definida (tradição religiosa ou igreja). O instrumento é respondido em escala Likert de 05 pontos, indo de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente). Item típico da escala: Itens típicos da escala são "Deposito minha confiança e esperança em um Poder mais alto que eu" (Item 4, Fé). A análise da consistência interna pelo Alfa de Cronbach revelou excelente nível de fidedignidade com alfa de 0,85, acima do corte psicométrico usual de 0,70 (Hair Jr. et al., 2005).

Procedimentos

Uma vez liberado o projeto para execução pelo Comitê de Ética da UFPE (Registro CEP/CCS/UFPE no 132/06), após apresentação dos objetivos da pesquisa e assinatura dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, os participantes responderam às duas formas do protocolo de pesquisa (Completa e Resumida), necessitando do tempo médio de 1 hora para a forma completa e de 30 minutos para a forma reduzida para resposta aos protocolos. Todo o processo de pesquisa observou os procedimentos éticos exigidos na pesquisa com sujeitos humanos.

 

Resultados

O primeiro momento das análises consistiu do levantamento das medidas de tendência central (médias e desvios-padrões) nas respostas às escalas de EAS e EAD para verificação de possíveis diferenças destas medidas de acordo com a orientação religiosa atual, tanto entre os indivíduos com e sem filiação à religião institucionalizada no presente (adesão religiosa), quanto entre distintas filiações religiosas, dentre os maiores agrupamentos religiosos representados na amostra, a saber, Católicos, Evangélicos e Espíritas, listados por sua representatividade numérica respectivamente. Os resultados podem ser vistos na Tabela 1.

A observação das maiores e menores médias em negrito na Tabela 1 ajuda no levantamento de elementos para consideração das relações entre filiação/adesão religiosa e níveis de autoconsciência dos respondentes investigados. De imediato, destaca-se a presença das maiores médias ao interior da medida de disposição ao autofoco e, em especial, da disposição em focalizar a atenção sobre si mesmo (atentividade) com o escore mais alto acessado pelos espíritas (4,29) e o menor pelos respondentes sem religião (4,06). Quanto às menores médias encontradas, destacam-se suas ocorrências ao interior do autofoco situacional, e em especial, de seu fator de autofoco ansioso/ruminativo, com a menor média acessada pelos espíritas (2,59) e a segunda menor pelos protestantes (2.,68). Quando tomadas em seus valores totais, ficam salientados os menores escores das médias para a autoconsciência situacional em seus fatores de Ruminação e Mediação Icônica (2,75 e 2,97, respectivamente) e os maiores para autoconsciência disposicional em seus fatores de Conscientização e Atentividade (3,90 e 4,13, respectivamente).

Os dados de comparação das médias segundo os vários fatores de autoconsciência sugeriram um padrão de otimização das medidas de autoconsciência para os indivíduos religiosos, os quais parecem ser mais autoconscientes que os sem religião, estando os últimos mais propensos a um autofoco ansioso (ruminação) acompanhando o grupo católico, embora sejam mais reflexivos em média que os espíritas.

Essa tendência encontrada pela comparação entre as médias de serem os indivíduos sem religião (sem adesão religiosa no presente) menos autoconscientes de maneira neutra ou não ansiosa que os religiosos (filiados à religião institucionalizada no presente) em geral e mais tendentes à atividade ruminativa foi examinada e aprofundada por uma Anova One-Way seguida do teste das diferenças honestamente significativas (DHS) de Tukey para comparação e descrição das diferenças nas médias. Os resultados dessas análises específicas podem ser avaliados na Tabela 2.

Os resultados da ANOVA permitiram um aprofundamento da compreensão sobre as relações entre autoconsciência e religiosidade, com a perseveração, após sua realização, de alguns achados da análise anterior no que se refere a uma diferenciação nas medidas de autoconsciência entre o grupo dos religiosos e o dos sem religião na atualidade. Neles, dois fatores de autoconsciência demonstraram diferenças estatisticamente significantes em suas médias entre os grupos, o fator Mediação Icônica da escala EAS e o fator Conscientização da escala EAD (ver coeficientes em negrito na Tabela 2), com níveis de significância respectivos de p < 0,05 e p < 0. Os resultados do teste de Tukey discriminaram mais amplamente a natureza das diferenças encontradas na Análise de Variância, quando foram encontradas que em nível estatisticamente significante as médias de Mediação Icônica da escala EAS dos indivíduos filiados ao Catolicismo são mais altas que as congêneres dos sem religião (p < 0,05), e que as médias de resposta ao fator Conscientização da escala EAD são sistematicamente maiores entre católicos e evangélicos que as encontradas nos indivíduos sem adesão religiosa no presente (p < 0,01 e p < 0,001, respectivamente), com uma tendência ao acirramento desse último achado na subamostra dos evangélicos (ver Tabela 2).

O significado cognitivo destes achados se esboça na percepção de que, pelo menos no que se refere aos grupos de religiosidade cristã representados na amostra, há uma especificidade na organização dos processos de autofoco que os distingue dos indivíduos que reportaram não ter filiação religiosa no presente, quando alguns de seus fatores, um na interface estado e outro na interface traço, parecem estar relacionados a níveis incrementados de experiência religiosa, sendo a religiosidade um possível fator de modulação da autoconsciência, possivelmente por ser um fator de orientação e organização dos comportamentos e dos ambientes em que os mesmos se dão (Morin, 2000; Nascimento, 2008). Assim, em claro detrimento da performance autofocalizadora dos sem religião, religiosos católicos além de estarem mais tendentes a estarem conscientes de seus autoaspectos, também usam de modo situacional imagens mentais para se autoavaliarem e se autoobservarem mentalmente, semelhantemente aos religiosos de matriz evangélica que são, inclusive, mais autoconscientes em média que os sem religião e com uma otimização de sua performance autofocalizadora em relação aos seu coirmãos cristãos católicos romanos.

As análises prosseguiram no exame das inter-associações (correlações) entre os fatores de EAS e EAD e os itens da ERG através do coeficiente de correlação r de Pearson, quando se atentou para os coeficientes da matriz de correlações construída a partir das respostas a estas medidas, a fim de se reunir mais elementos que permitam um juízo mais abalizado da hipótese de que a religiosidade está positivamente correlacionada com medidas de autofoco não-ansioso e com os processos que as mediam, em especial as imagens mentais. Os resultados desta análise estão listados na Tabela 3.

Conforme esperado, pelo menos quatro coeficientes r vincularam os fatores de autoconsciência a níveis otimizados de religiosidade, em especial a três de seus itens conforme são medidos na escala ERG. Examinando-se a matriz de correlações veiculada na Tabela 3, observa-se uma relação mais estreita vinculando o fator Conscientização a três itens de religiosidade, conforme é medida pelas respostas associadas à Adesão Religiosa (r = 0,143), ao Comportamento Religioso (r = 0,149) e à Vinculação Epistêmica (r = 0,155), como também a que associa de modo estatisticamente significante Comportamento Religioso também com Mediação Icônica (r = 0,124), todos os coeficientes correlacionados a um nível de significância de p < 0,05. Os demais coeficientes envolvendo as relações entre os restantes das variáveis evidenciaram nível zero de correlação (não estão correlacionadas).

Essa nova camada analítica sedimenta uma percepção crescente ao longo das análises reportadas de ser a religiosidade altamente favorável ao desenvolvimento da autoconsciência e vice-versa; se não é possível segundo o delineamento ex-post-facto empregado no estudo (Hair Junior, Anderson, Tatham, & Black, 2005) e a natureza das análises utilizadas para teste dessas hipóteses desenvolvimentais específicas uma afirmação de causalidade em quaisquer das direções possíveis, contudo, faz-se mister a percepção da continuidade entre os achados que associam certos aspectos do autofoco a níveis mais altos de religiosidade. Em relação aos respondentes destas medidas, é lícito salientar que níveis mais altos de disposição a consciência de seus autoaspectos e traços gerais (conscientização) está mais presente entre os indivíduos que estão filiados a uma corrente religiosa formal e institucionalizada e que por causa disso, organizam mais suas atividades práticas (comportamento), mentais e volitivas (vinculação epistêmica) segundo os seus ditames espirituais, ético-morais e existenciais, da mesma maneira que o uso mais sistemático de imagens mentais para acompanhamento de atividades de automonitoração (mediação icônica) são mais afins aos religiosamente orientados comportamentalmente.

A reflexão sobre possíveis influências da religiosidade na composição dos ambientes físico e social ao longo do desenvolvimento cognitivo dos indivíduos, e consequentemente seu impacto sobre os níveis de autoatenção pela disponibilização diferenciada de estímulos autofocalizadores (Morin, 1997; 2000), foi aprofundada com análises que enfocaram diretamente o tempo de exposição à influência diretriz do discurso e prática religiosos específicos segundo as principais famílias religiosas representadas na amostra na relação com os fatores de EAS e EAD através do coeficiente de Correlação de Pearson, com o teste enfocando as respostas às medidas citadas apenas daqueles indivíduos que relataram permanência exclusiva dentro de uma mesma orientação religiosa, isto é, os que não vivenciaram conversão religiosa inter-religiões e que nunca deixaram sua religião de origem. Os resultados encontram-se na Tabela 4.

A análise da matriz de correlações veiculada na Tabela 4 adiciona novos elementos à discussão das relações entre autoconsciência e religiosidade, com a observação de que em níveis estatisticamente significantes indivíduos com mais tempo de adesão religiosa e pertencimento formal a religiões institucionalizadas, consequentemente com funcionamentos cotidianos em ambientes sociais e mesmo físicos que levam essa marca modeladora, são os mais propensos a estarem conscientes de seus atributos e características pessoais, isto é, experienciam mais a si mesmos em geral em seus fluxos de consciência (r = 0,092). Com nível de significância também de p < 0,05, dentre as famílias religiosas listadas para exame, os católicos são aqueles cujos coeficientes de correlação os vinculam em nível estatisticamente significante à disposição ao autofoco de tipo autoexperienciativo (conscientização), ou seja, quão mais tempo de adesão formal e participação na vida religiosa espiritual e comunitária da religião católica, mais tendentes a conhecerem e experienciarem a si mesmos (r = 0,123). As demais variáveis se mostraram associadas em nível zero (não relacionadas estatisticamente).

 

Discussão

O estudo pôde reunir elementos que fortalecem a defesa para uma relação importante em nível desenvolvimental entre constituição de uma religiosidade pessoal e estruturação e instrumentalização mais robusta de processos autofocalizadores. Religiosidade mostrou-se positivamente relacionada a ambas as formas de autofoco (estado e traço) em níveis estatisticamente significantes (Hipótese 1), com especial interesse para o fato de que os respondentes mais religiosos pareceram ser mais tendentes ao autoconhecimento e à autoexperiencização (conscientização, ver Hipóteses 2 e 3), além de usarem para fins autoinspecionais em sentido situacional de mecanismos mediadores de visualização interna (mediação icônica, ver Hipóteses 2 e 3) que têm sido postulados pela literatura sociocognitiva (Morin, 1998; 2004). Além disso, o exame das médias pelo Tukey e as correlações do Teste de Pearson revelaram relação estatisticamente significante entre níveis mais altos de religiosidade e formas não ansiosas de autofoco (Hipóteses 2 e 3), o que pode indiciar ser a religiosidade um fator de proteção para a saúde mental e manejo significativo do stress da vida cotidiana, como tem sido encontrado em inúmeros estudos cognitivos e psicopatológicos e da psicologia da religião Ávila, 2007; Emmons, & Paloutzian, 2003; Fontana, 2003; Hill, & Pargament, 2003; Paloutzian, & Park, 2005).

Em consonância com a Hipótese 2, os achados sugerem também que indivíduos sem religião em média tendem a usarem menos o canal imagético para se autoanalizarem que os religiosos cristãos da amostra, o que resulta em déficits importantes no manejo do autoconceito segundo estudos de Markus e Kunda (1986), e Morin (1995; 2004), além de fenomenologia autoconsciente mais pobre devido à utilização de um único canal mediador (autofala) e de material autorrelacionado exclusivamente abstrato oriundo do código verbal (Nascimento, 2008) para fins de autoinspeção, o que os remete a uma dificultação de acesso a informações importantes relativas aos autoaspectos públicos como comportamento, aparência e gestualidade (Morin, 1998) e imageria autoscópica do self físico (Nascimento, 2008; Nascimento, & Roazzi, 2013). Em especial às imagens da face própria inscritas nos self-schemata da memória (Morin, 1998), importantes para sedimentação e níveis qualitativos mais sofisticados de apreensão de si no fluxo da consciência e manutenção de um senso de identidade através do tempo e de individualidade, o que os torna possivelmente menos tendentes a um autoconhecimento mais efetivo também (ver Hipóteses 2 e 3). Uma vez que há uma relação estreita entre imagens mentais e o sistema cognitivo da consciência (Nascimento, 2008), a perda do elo entre os dois sistemas por falhas na operacionalização da mediação cognitiva de autofoco (Morin, 2004) deve empobrecer em significativo a auto-observação e, consequentemente, levar a um autoconceito menos elaborado e sofisticado (Morin, 1995).

Os achados que relacionam tempo de envolvimento com religião institucionalizada e níveis de autoconsciência não só reforçam a hipótese de indivíduos com mais tempo de exercício da religiosidade se autoconhecerem mais (conscientização), fato bastante defendido tanto pelos próprios religiosos quanto pelos cientistas da religião (Fontana, 2003), como levanta indícios adicionais para a suposição teórica da pesquisa sociocognitiva de estar o desenvolvimento da autoconsciência relacionada a frequência de exposição a estímulos autofocalizadores - o que implica em diferenciação de disponibilização de tais estímulos consoante a arranjos ambientais específicos (Morin, 1997; Nascimento, 2008; Rimé, & LeBon, 1984; Schaller, 1997), exatamente o que as análises do tempo de envolvimento religioso sugerem, com uma diferenciação na organização da autoconsciência também dentro do grupo dos universitários religiosos, com um maior índice de conscientização evidenciado ao grupo católico (ver Hipótese 4).

Todavia, não se encontrou uma relação entre não adesão a religião e níveis altos de ruminação, o que por um lado explica-se pelo fato de a religião não ser o único caminho desenvolvimental de sedimento de um autofoco benigno podendo a reflexão se edificar com o suporte de engajamento em atividades reflexivas como leituras filosóficas, psicoterapia, participação em grupos reflexivos como grupos de autoajuda, envolvimento com atividades artísticas etc., conforme Nascimento (2008). Conquanto permaneça válida a hipótese de a religião ser um potente mecanismo de fomento de autoconsciência, o conhecimento dos efeitos do não engajamento em atividades religiosas permanece insipiente, e o estudo documentou sistemático déficit de autoconsciências não ansiosas no grupo dos sem religião, o que demanda um esforço futuro de documentação destes efeitos desenvolvimentais a longo prazo de níveis baixos de religiosidade.

O estudo levantou evidências em favor da hipótese de Nascimento (2008) de a religião promover otimização de autoconsciência reflexiva, explicável pelo seu papel de orientação de todo o campo existencial de indivíduos orientados religiosamente, incluindo-se aí diferenças significativas na disponibilização de estímulos autofocalizadores propiciados pelos ritos, comportamentos e observâncias religiosas. Este impacto se singulariza inclusive nas diversas tradições religiosas, o que possivelmente denota níveis de eficácia diferenciados entre diferentes religiões em promoção do desenvolvimento da autoconsciência, fato que precisa ser melhor elucidado em estudos futuros que abranjam outras religiões além das três documentadas neste estudo. Ao presente, e com a corroboração das hipóteses do estudo, a religião tem evidenciado ser ainda ao tempo da pós-modernidade um poderoso organizador da vida humana e do desenvolvimento cognitivo, alcançando a esfera dos aspectos mais nucleares desta - os processos reflexivos que mais graficamente traduzem nossa humanidade, a autoconsciência.

 

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Endereço para correspondência:
Alexsandro Medeiros do Nascimento
alexmeden@hotmail.com

Antonio Roazzi
roazzi@gmail.com

Submetido em: 30/10/2015
Revisto em: 14/08/2017
Aceito em: 22/09/2017

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