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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.69 no.3 Rio de Janeiro  2017

 

ARTIGOS

 

Processos de significação de crianças sobre famílias homoparentais

 

Children's meaning-making process about gay families

 

Proceso de significación de niños sobre familias de paternidad homosexual

 

 

Pedro Pinheiro Borges NetoI; Maria Isabel PedrosaII

IPsicólogo. Mestre em Psicologia. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife. Estado de Pernambuco. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife. Estado de Pernambuco. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As crianças têm sido postas no centro do debate sobre a homoparentalidade, porém não lhes é dada a possibilidade de expor o que pensam. Surge o interesse de investigá-las, pressupondo que elas produzem significados acerca da realidade e que suas construções se dão na interação social, em contexto cultural. Assim, propomo-nos a ouvi-las. Participaram da pesquisa 12 crianças, de seis a nove anos, em situação de acolhimento institucional na cidade de Recife-PE, as quais formaram grupos de conversa videogravados sobre a história And Tango makes three - dois pinguins machos que adotam Tango, uma pinguim neném. Os resultados analisados qualitativamente apontam que, para as crianças, homoafetividade e homoparentalidade mantêm certa distância. A homoafetividade é marcada com selo de proibição; a homoparentalidade é percebida com estranhamento, seguido por um desejo de assimilação do novo conteúdo. A família homoparental foi concebida como um ambiente cercado de afetos e cuidados com o filho.

Palavras-chave: Criança; Processos de significação; Família; Homoparentalidade.


ABSTRACT

Children have been put at the center of the debate on homoparenthood, but they are not given the opportunity to explain what they think. Therefore it is relevant to investigate them, assuming that they produce meanings about reality and that their constructions take place in social interaction culturally contextualized. And we were open to hear them. The participants were 12 children between 6 and 9 years of age, institutionally sheltered in Recife-PE, who took part in videotaped conversation groups on the story "And Tango Makes Three" - two male penguins who adopt Tango, a baby penguin. The results qualitatively analyzed show that, for the children, homoaffectivity and homoparenthood maintain a certain distance. Homoaffectivity is stigmatized as forbidden; homoparenthood is perceived as a strange feeling, followed by a desire for assimilation of new content. The homoparental family is conceived as an atmosphere of affection and care for the children.

Keywords: Children; Meaning-making process; Family; Homoparenthood.


RESUMEN

Los niños se han puesto en el centro del debate sobre la paternidad homosexual, pero no se les da la oportunidad de explicar lo que piensan. Surge el interés de investigarlos, asumiendo que producen significados acerca de la realidad, y sus construcciones se dan en la interacción social, en contexto cultural. Por lo tanto, propusemos escucharlos. Los participantes de la investigación fueron 12 niños, 6-9 años en situación de acogimiento institucional en la ciudad de Recife-PE, los cuales formaron grupos de discusión sobre la historia "And Tango Makes Three" - dos pingüinos machos que adoptan Tango, un pingüino bebé. Los resultados analizados cualitativamente muestran que, para los niños, la homo afectividad y la paternidad homosexual mantienen cierta distancia. La homo afectividad está marcada con el sello de la prohibición; la paternidad homosexual se percibe con distanciamiento, seguido por un deseo de nueva asimilación de contenidos. La familia de paternidad homosexual está diseñada como un entorno rodeado de afecto y cuidados para el niño.

Palabras clave: Niños; Procesos de significación; Familia; Paternidad homosexual.


 

 

Introdução

O tema família, em suas diferentes possibilidades de existência, tem-se tornado alvo de interesse de pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento, bem como motivo de debates na sociedade em geral. O tema tem ganhado notoriedade, recentemente, a partir de discussões sobre as ditas "famílias modernas" ou "novas configurações familiares". Segundo Santos, Scorsolini-Comin e Santos (2013), tais famílias caracterizar-se-iam por se diferenciar do modelo hegemônico de família nuclear (pai, mãe e filhos) - ainda que este esteja, cada vez mais, distante da realidade - surgido, a partir de determinada conjuntura social, política e econômica.

Uma configuração familiar em especial tem gerado grande polêmica: aquela formada por um casal homoafetivo. Essa relação é, por vezes, posta em dúvida ou negada em seu status de família (Cadete, Ferreira & Silva, 2012). A situação gera ainda maior discussão quando se considera a possibilidade da existência de filhos. Como indicado por diferentes estudos, de modo geral, este parece ser o ponto central da discussão: as possíveis repercussões negativas para a criança educada por casal homoafetivo (Cecílio, Scorsolini-Comin & Santos, 2013; Costa et al., 2013).

Em estudo realizado com estudantes dos cursos de Serviço Social e de Direito, Cerqueira-Santos e Santana (2015) revelam que 64,6% dos estudantes de Direito e 55,5% dos estudantes de Serviço social acreditam que crianças filhas de casais homoafetivos serão humilhadas por outras crianças e 40% dos estudantes do curso de Direito acreditam que a criança filha de casal homoafetivo apresentará "comportamentos homossexuais" desde pequena.

Fato curioso é que, apesar de ser a criança posta como principal alvo de preocupação em questões controversas (como o caso de mudanças na estrutura familiar), raramente permite-se que ela fale acerca dessa temática, como aponta o sociólogo William Corsaro (1997/2011). Este silêncio também se fez presente, e ainda se faz, no reduzido número de pesquisas científicas que se propõem a escutar a criança, tornando-a não só objeto de conhecimento, mas também colaboradora e coconstrutora de conhecimento. Segundo Cruz (2008), a não escuta das crianças deve-se a alguns fatores, dentre eles a percepção de que são seres incompletos, pouco competentes socialmente e dependentes do desejo do adulto. Essa autora afirma, porém, que tais concepções têm sofrido modificações nas últimas décadas, quando a criança passa a ser compreendida como alguém que, desde tenra idade, possui percepções, sentimentos e desejos frente aos diferentes fenômenos, construindo significações acerca da realidade a partir de suas interações sociais, em um contexto culturalmente estruturado (Rossetti-Ferreira, Amorim, & Silva, 2004).

No que diz respeito à criança, ressaltamos seu papel de coconstrutora e, por oportuno, trazemos a concepção de reprodução interpretativa do já citado William Corsaro (1997/2011, p. 53): "as crianças apropriam-se criativamente de informações do mundo adulto para produzir suas próprias culturas de pares. [...] as crianças transformam as informações do mundo adulto a fim de responder às preocupações de seu mundo". Assim sendo, como nos indica Cruz (2008), em virtude da multiplicidade de contextos culturais nos quais as crianças estão inseridas, a investigação dos significados produzidos pelas crianças pode revelar aspectos inusitados e surpreendentes de sua compreensão da realidade social e de seus processos de construção e transformação. Surge-nos, desse modo, a questão: Que significações têm as crianças sobre homoparentalidade? Antes, contudo, é necessária uma breve explicitação de nossa compreensão sobre processos de significação.

Delimitação teórica do fenômeno em foco

O estudo dos processos de significação é de grande interesse não só da Psicologia, mas também de outras áreas do conhecimento, como Filosofia, Linguística e Semiótica, talvez por isso, com grande número de teorias e proposições por vezes conflitantes. O grande interesse sobre os processos de significação deve-se, talvez, à forte relação que têm com a especificidade humana e seu funcionamento psíquico.

Alguns estudos têm focado-se na tentativa de explicar a aquisição ontogenética do que chamam de função simbólica ou semiótica (a capacidade de utilizar os signos), bem como na própria natureza do signo e nas condições para sua existência. Todavia, em virtude dos objetivos da presente investigação, apresentaremos circunscritamente um conjunto de proposições acerca da construção, compartilhamento e transformação dos significados socialmente produzidos. Tomaremos por base a perspectiva teórico-metodológica da Rede de Significações (RedSig), que tem se ancorado em autores da perspectiva histórico-cultural e social da Psicologia (Rossetti-Ferreira et al., 2004).

A primeira proposição acerca da "natureza" dos processos de significação é que estes ocorrem em contextos de interação social, entendida esta como um processo que decorre da sociabilidade, ou seja, da propriedade que permite ao ser social regular o outro e ser por este regulado. O campo interacional, então, circunscreve a construção de significados (Carvalho, Império-Hamburger, & Pedrosa, 1998). Assim sendo, é por meio do outro que a criança terá acesso aos significados culturalmente já produzidos. Todavia, longe de um mecanismo de simples adaptação ou internalização por parte da criança, a apropriação de significados se dá de maneira ativa, tornando-se a criança "inescapavelmente" coprodutora dessas significações (Smolka, 2004; Rossetti-Ferreira et al., 2004).

A partir da RedSig, destacam-se três aspectos fundamentais do processo de significação: matriz sócio-histórica, contexto e pessoa.

Tal qual proposta por Rossetti-Ferreira et al. (2004, p. 26), a matriz sócio-histórica caracteriza-se por ser "de natureza semiótica, composta por elementos sociais, econômicos, políticos, históricos e culturais", mantendo uma inter-relação dialética entre elementos discursivos e condições socioeconômicas. Diferentemente da ideia tida por muitos, a matriz sócio-histórica não possui caráter homogêneo nem tão pouco determinístico. Pelo contrário: seus discursos constituintes são polifônicos e polissêmicos, e as condições socioeconômicas as mais diversas. A matriz sócio-histórica possui ainda outra característica que nos possibilita articular as dimensões macro e micro, pessoa e contexto sócio-histórico: a sua materialidade e concretude. A matriz faz-se presente e se atualiza nas interações cotidianas das pessoas, podendo ser apreendida na organização de espaços, discursos e por meio do próprio corpo.

Assim sendo, torna-se clara a articulação e relação de mútua constituição entre o contexto sócio-histórico e as pessoas, outro conceito da RedSig. As autoras propõem o termo "pessoa", em vez de sujeito e indivíduo, a fim de chamar a atenção para um ser humano fundamentalmente relacional. Além da ideia de relação, o conceito de pessoa traz a concepção de humano múltiplo, no qual convivem diferentes vozes, uma vez que por diversas vozes ele foi constituído.

Nesse sentido, mesmo que constituída dentro de uma matriz sócio-histórica e em diferentes contextos, em virtude da polissemia das significações e da particularidade do lugar espaço temporal e discursivo por ela ocupado, a pessoa mantém sua singularidade, possibilitando realizar sua própria interpretação da realidade vivida. Isso nos remete ao mencionado conceito de reprodução interpretativa de Corsaro (1997/2011), na medida em que traz, para além de uma reprodução do já instituído, uma interpretação do vivido, garantindo particularidades, em nosso caso, a cada criança.

Ressaltamos ainda a dimensão temporal dos processos de significação. Ao falarem do papel do tempo, Rossetti-Ferreira et al. (2004) postulam a existência de quatro dimensões temporais que se encontram superpostas e inscritas nos diferentes contextos e espaços, atualizando-se continuamente no aqui-agora, conferindo ao presente uma plenitude temporal. Tais dimensões são: o tempo histórico, "locus do imaginário social, construído durante períodos relativamente longos de uma sociedade" (p. 27), sendo responsável pelas formações discursivas e ideológicas); o tempo vivido, que serefere às experiências e práticas discursivas construídas ao longo de nosso processo de socialização, compartilhadas por amigos, parentes e pessoas próximas; e, em terceiro lugar, o tempo prospectivo, referindo-se a expectativas, desejos e metas pessoais e coletivas. Essas três dimensões temporais articulam-se e atualizam-se, por fim, no tempo presente ou microgenético, caracterizado pelas trocas discursivas interpessoais no aqui-agora.

Essas dimensões encontram-se, atualizam-se e perpassam os contextos e campos de interação, delimitando e possibilitando a construção dos significados. Portanto, a compreensão dessas diferentes dimensões temporais torna-se não só pertinente, mas relevante ao estudo dos processos de significação e, portanto, pertinente para a presente pesquisa, que se propôs a: 1) identificar as significações de crianças sobre a família homoparental; 2) examinar de que maneira tais significações se articulam com os contextos macro e microcultural no qual estão inseridas.

 

Método

Concebendo a criança enquanto sujeito ativo na apropriação e na construção de significados, propomo-nos a escutá-la. Mas, como fazê-lo? Almeida, Maehara e Rossetti-Ferreira (2011) afirmam que, no estudo com crianças, faz-se necessária flexibilidade, tanto por parte do pesquisador, quanto do método por ele utilizado, sendo interessante o uso de procedimentos variados, lúdicos, que despertem o interesse da criança e que sejam adequados a sua faixa etária e a seu contexto sociocultural, oferecendo-lhe diferentes meios de expressão.

Para além de um jogo automatizado de perguntas e respostas, buscou-se estabelecer com as crianças uma relação de confiança que nos permitiria acessar os significados por elas compartilhados por meio de um modo de expressão autêntico (Solon, Costa, & Rossetti-Ferreira, 2008). Em síntese, grande parte do esforço desprendido na criação do presente método girou em torno de dois pontos: 1) encontrar um modo interessante, para as crianças, de apresentação do tema "família homoparental" como mote para a conversa; 2) propiciar um clima favorável para que elas pudessem conversar entre si e com o pesquisador de maneira sincera e sem constrangimentos. Deste modo, procedeu-se à proposta metodológica abaixo descrita.

Sujeitos: participaram da pesquisa 12 crianças (quatro meninos e oito meninas) na faixa-etária de seis a nove anos em situação de acolhimento institucional na cidade de Recife-PE. A escolha dessas crianças decorreu do fato de que ao menos parte delas encontrava-se disponível para a adoção, sendo-lhe uma possibilidade a inserção em uma família homoparental. Ademais, já que o acolhimento institucional e possível inserção da criança em família substituta visam ao melhor interesse da criança como apregoa o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990), faz-se necessário propiciar espaços de escuta da criança, a fim de conhecer esse interesse em nome do qual se diz agir. A escolha da faixa etária, por sua vez, deveu-se ao fato de crianças dessas idades já possuírem domínio sobre a fala enquanto instrumento de expressão. Os sujeitos selecionados a participar da pesquisa foram aqueles que residiam nas duas instituições da cidade com maior número de crianças na faixa etária pesquisada.1

Procedimentos de coleta:2 a coleta foi realizada em dois encontros. O primeiro objetivou a aproximação entre as crianças e o pesquisador, bem como a apresentação da proposta de pesquisa a elas. No segundo encontro, formaram-se grupos de crianças cuja composição foi determinada por sorteio. Em decorrência de situações imprevistas de rotinas da instituição, o quantitativo de crianças por grupo não foi o mesmo: formaram-se um total de quatro grupos: dois trios, uma dupla e um quarteto.

O segundo encontro foi dividido em dois momentos: no primeiro, o pesquisador propunha às crianças que fizessem, cada uma, o desenho de "uma família" e que falassem sobre o desenho, respondendo à pergunta: o que tem que ter em uma família? Em seguida, perguntava-lhes se existiam outras possibilidades de "ser família", pergunta essa que engendrava o segundo momento, no qual o pesquisador apresentava-lhes uma história (formato de ebook) sobre uma família homoparental, objetivando, durante e após a exibição, o diálogo espontâneo sobre o assunto. A história infantil serviu, portanto, de "gatilho" para a conversa. Ela se intitula And Tango makes three" (E com Tango somos três), de autoria de Justin Richardson e Peter Parnell (2005), e conta a história de um casal de pinguins machos, Roy e Silo, que adotam Tango, uma pinguim neném. Os dois pinguins constroem seu ninho à espera de um filhote, porém, logo se dão conta que, diferentemente dos demais casais, não podem colocar ovos e, por isso, não teriam o filho tão desejado. Contudo, graças ao cuidador do zoológico onde vivem, o desejo da parentalidade se torna possível, uma vez que o funcionário coloca em seu ninho um ovo que precisava de cuidados. Após certo tempo, nasce Tango, que será motivo de grande alegria para Roy e Silo, e de grande interesse por parte dos visitantes do zoológico, afinal é a primeira pinguim a ter dois pais.

A história encontrava-se disponível apenas em inglês, cabendo ao pesquisador a narrativa da história, em português, para as crianças. Com o intuito de favorecer o engajamento das crianças na atividade de contação da história, propunha-se a elas que dessem nomes aos pinguins, tanto ao casal de pinguins machos, (originalmente Roy e Silo), quanto a pinguim-fêmea (originalmente Tango), filha deste casal. Assim, nos diferentes episódios que serão descritos, diferentes serão os nomes dos personagens, conforme o grupo de crianças.

As conversas com as crianças foram videogravadas, constituindo a base de dados em um total de 4h08min. A videogravação permitia observar em detalhes posturas corporais, expressões faciais e entonações vocais, que se constituíram como importantes elementos de análise para a compreensão dos significados compartilhados no grupo.

Procedimentos de análise: seleção, recorte, transcrição e análise qualitativa de episódios interativos basearam-se nas reflexões de Pedrosa e Carvalho (2005). Assim, os trechos de videogravações selecionados para análise foram pertinentes aos objetivos traçados e resultaram em episódios, caracterizados por sequências interativas de crianças e pesquisador, nas quais se buscava alçar os significados atribuídos por elas às famílias homoparentais. A transcrição de tais episódios foi minuciosa, registrando-se posturas corporais, expressões faciais e entonações vocais associadas às suas falas. Pela extensão do material analisado, serão discutidos neste artigo apenas sete episódios, retirados de um conjunto maior, reveladores de indícios que apoiaram as conclusões apresentadas.

 

Resultados e discussão

Ao falarmos em significação, como nos afirma Smolka (2004), entramos em um terreno pantanoso. De modo geral, um grande questionamento refere-se à relação entre significação e linguagem: há aqueles que entendem a significação como inexoravelmente atrelada à linguagem; outros, porém, defendem que a significação transcenderia a linguagem (Furlan, 2004), mas não negando a importância que a palavra teria.

Em uma primeira aproximação dos significados das crianças, deparamos com um sentido oriundo não de palavras, mas de expressão emocional: o riso. Frequentemente, nos quatro grupos realizados, ao se aperceberem e/ou serem informados de que os dois pinguins machos estavam apaixonados, as crianças reagiam com um misto de estranhamento e vergonha, emergindo o riso como uma forma de expressão do sentimento de certo constrangimento; em outros momentos, o riso parecia emergir como que oriundo de certa sensação de poder compartilhar com o pesquisador, a partir de sua postura permissiva, a possibilidade de falar sobre um tema que lhes é proibido, um tabu: a homoafetividade.

Nesse sentido, é interessante desde já trazer a tona um dos pontos centrais dos resultados desse trabalho. Ao falarmos do cotidiano social em famílias homoparentais, de certo modo, parecemos admitir a possibilidade de que a condição/orientação afetivo-sexual da pessoa irá diferenciar seu modo de ser pai ou mãe. Assim, sexualidade e/ou conjugalidade e parentalidade parecem manter, em nossos discursos, uma relação intrínseca, apontando para a antiga e instigante relação entre família e sexualidade (Santos et al., 2013). Tal relação talvez derive do fato de que, durante séculos e ainda hoje, no imaginário popular, a formação de um grupo familiar passa, quase que obrigatoriamente, pela geração de filhos, geração esta preferencialmente realizada internamente pelos membros do próprio grupo familiar. Curioso, porém, foi perceber que, para as crianças participantes da pesquisa, homossexualidade e homoparentalidade encontram-se, de certo modo, separadas, inclusive no que diz respeito à carga afetivo-valorativa atribuída a cada uma delas. Assim, antes de falarmos sobre homoparentalidade, faz-se necessário entendermos a concepção das crianças sobre homoafetividade.

Episódio #1: Homem com homem dá lobisomem...

Mikaely (F/7; 9) e Breno (M/6; 6)3. P1 e P24:

P1, contando a história e mostrando as figuras do livro às crianças, diz: "O nome deles era Roy e Silo. Só que eu achei esses nomes feios: vamos dar outro nome pra eles?" Vitoria diz, em tom de voz baixo: "Bora... Roy é bonitinho...". P1 comenta: "Roy, tu gosta? Então, o nome dele vai ser Roy, um pinguim-menino chamado Roy. Tu (dirigindo-se a Breno) diz agora um nome para o outro". Breno ri. Mikaely fala: "Tio, Justin... Tio, Justin... T-I-O, Justin", chamando a atenção de P1. Este responde: "Hummm... Justin... Gostasse de Justin?". Mikaely acrescenta: Justin Bieber... ele tá parecendo um frango agora com aquele cabelo assim (indica o jeito do cabelo). P1 pergunta: "E o que é frango?". Mikaely olha para P1, como se considerasse a pergunta boba. P1 continua: "É sério, eu não sei". Mikaely ri e comenta: "Tem frango que é galinha, né tia? (dirigindo-se a P2, que fazia a videogravação). Tem frango que é galinha, né... E tem frango que é um homem namorando outro homem" (ri, colocando a mão sobre a boca). P1 diz: "E é!? E pode?". Mikaely responde: "Pode não". P1 continua: "Por quê?". Mikaely vocaliza: "Haaa". P1 comenta: "Não sei, ué... queria que vocês me dissessem". Mikaely aponta: "Ó, esse aqui é Roy, esse aqui é Justin.... por exemplo, aí eles são frango (risos), aí esse aqui vai namorar com esse. Não pode, porque homem com homem é lobisomem, mulher com mulher é jacaré e bicha com bicha é lagartixa, entendeu?". P1 pergunta: "E se fossem duas mulheres? Também não podia, não?". Mikaely responde: "Não, porque é sapatão". P1 continua: "Peraí, quando dois homens namoram eles são frango, e duas mulheres...?". Mikaely completa: "Sapatão". P1 continua: "Mas aqui é história de pinguim. Pinguim pode também?". Mikaely: "Pode" (balança a cabeça em sinal positivo). P1 dá sequência à sua pergunta: "Ou isso só vale pra gente?". Mikaely: Só vale pra gente... P2 interfere para lembrar a necessidade de as outras crianças serem incluídas na conversa: "E tu Breno, o que tu acha?". P1 reforça a participação das outras crianças: "Hein, Breno, tu acha que dois pinguins-meninos podem namorar?". Breno reponde: "Pode não". P1 continua: "Por quê?", Breno reage: "Porque..." (silêncio).

O episódio acima descrito parece bastante elucidativo no que tange: 1) aos elementos que são apropriados pelas crianças da trama de significados culturalmente compartilhados acerca da homoafetividade; 2) bem como aos meios pelos quais tais significados são disseminados e transmitidos entre as gerações. Em primeiro lugar, é possível percebermos que a homoafetividade é primariamente apreendida, não enquanto práticas relativas à orientação/condição sexual, mas sim a partir de características identitárias (neste caso, físicas), possivelmente relacionadas a papéis/performances de gênero. Mikaely comenta acerca do cabelo do cantor canadense Justin Bieber (atualmente bastante reconhecido, principalmente entre o público infanto-juvenil): não é sua relação com outro homem que primariamente a fez caracterizá-lo como "frango" (termo pernambucano popular e potencialmente pejorativo para designar homens homossexuais), mas sim o seu cabelo.

Possivelmente, para Mikaely, o cabelo utilizado pelo cantor canadense não estaria adequado a alguém do gênero masculino, sendo um indicativo, portanto, de uma possível homossexualidade. Assim, para a menina e para parte da sociedade, determinadas características dissonantes com o papel de gênero que são atribuídas a alguém, em decorrência do sexo biológico, tornam-se indicativas da sua orientação ou condição sexual. Curiosamente, em pesquisa realizada por Scardua e Souza Filho (2006) junto a estudantes universitários (portanto, adolescentes ou adultos) do Rio de Janeiro acerca da homossexualidade, as características de gênero aparecem como categoria de pouca frequência e porcentagem quando se agrupa as respostas dos participantes ante a palavra/estímulo homossexualidade. Talvez aí possa residir uma distinção preliminar entre crianças e adultos acerca da percepção da homossexualidade.

Questionada sobre o que seria "ser frango", Mikaely nos oferece resposta sem nenhuma palavra, mas reveladora: reage como se a pergunta feita pelo pesquisador fosse boba, desacreditando que ele não soubesse o que seria "ser frango". Tal atitude da menina, expressa em sua fisionomia, parece indicar que no seu modo de entender as noções relativas à homossexualidade são de conhecimento geral, partilhada por todos, caracterizando-se - em uma interpretação ousada - como conhecimento de grande importância, haja vista "todos saberem".

A ausência de palavras na resposta da menina também nos é indicativo de uma possível característica da percepção das crianças entrevistadas sobre a homoafetividade: a quase ausência, em seus discursos, de elementos que justifiquem a proibição da homoafetividade. Como pode ser observado no episódio acima, quando questionadas se seria permitida a relação homoafetiva ("Tu acha que dois pinguins-meninos podem namorar?"), as crianças comumente respondem que não. Novamente questionadas sobre o motivo da proibição ("Por que não?"), costumam responder com o silêncio ou simplesmente informam não saber ("sei não... sei lá").

A esse respeito, cabem duas considerações. Em primeiro lugar, podemos pensar que talvez seja esse um dos possíveis percursos de apropriação das normas sociais: inicialmente, apropriamo-nos das regras; só então, apreendemos os seus discursos legitimadores. Ainda é possível que essa característica seja particular à homoafetividade ou a temas socialmente considerados tabus, haja vista que, em sendo "tabus", eles se referem a valores importantes da sociedade, pontos centrais de uma cultura; ao mesmo tempo e, talvez por isso, os discursos acerca da problemática circulam de modo pouco claro, nas entrelinhas.

No caso de Mikaely, contudo, a menina apresentou-nos uma justificativa: "Não pode porque homem com homem é lobisomem, mulher com mulher é jacaré e bicha com bicha é lagartixa, entendeu?". A sentença trazida por Mikaely é um dito popular bastante simples que se utiliza da rima: um jogo de palavras de tom jocoso, engraçado. Ao nos questionarmos acerca dos modos de transmissão de crenças e valores culturalmente produzidos, podemos pensar que discursos mais formais e de cunho instrutivo, nos quais um adulto assume postura de ensino, seriam os meios mais frequentes e eficazes. Com Mikaely, porém, percebemos que, por vezes, os recursos que trazem em si alguma ludicidade (como jogos de palavras com rimas e jocosos) também são eficientes modos de transmissão e de apropriação de normas e valores sociais para crianças (Lira & Pedrosa 2016; Pereira & Pedrosa, 2015, 2016; Pontes & Magalhães, 2003).

A própria significação do que é família também é transmitida às crianças de modo eficaz por meio de outros instrumentos lúdicos da cultura. Em momento anterior à contação da história, tal qual descrito no método, realizava-se junto às crianças uma proposta de diálogo sobre o que era família, utilizando como mote e meio de expressão secundário o desenho. Nesse contexto ocorreu o seguinte episódio:

Episódio #2: Família, família, papai, mamãe, titia5...

Mikaely (F/7; 9) e Breno (M/6; 6):

Após finalizar o desenho, Mikaely diz, segurando o desenho: "Aí, ó, já fiz!". P1 vocaliza em sinal de interesse: "Hummm". Mikaely cantarola: "Mãe, pai, filho, irmã, eu também sou da família..." A menina é interrompida por P1, que replica: "Também sou da família?". Mikaely responde: "É assim, ô (começa a cantar batendo as mãos e fazendo o gestual como em brincadeira frequente entre crianças): O trem maluco quando sai de Pernambuco vai fazendo vuco-vuco até chegar no Ceará...". Após o término de toda a estrofe, P1 pergunta: "E a família?". Mikaely diz: "Gosto não. Explica aí Breno (referindo-se ao desenho dele)" [...]. P1 retoma a conversa: "Então, vamos lá: se alguém me perguntasse agora: P1, o que os meninos disseram que é família? O que é para eu responder para as pessoas?", Mikaely diz: "Que é família!". P1 pergunta: "Que família é família?", Mikaely começa a cantar: "Família, família, papai, mamãe, titia ... (canta até o fim da estrofe) Malhação é assim, sabia?". P1 indaga: "E é?", Mikaely (com cara de certo espanto): "O senhor não assiste não, é?", P1: responde: "Não, faz tempo que eu não assisto. Como é malhação?", Mikaely comenta: "É a nova, não é a velha não.". P1 vocaliza: Ahhhh (em sinal de compreensão). Mikaely fala: "Assim: tem uma família, tão grande, tão grande que o senhor nem imagina...". P1 e P2: "E é?". P1 continua: "Quem é que tem?", Mikaely responde: "Sofia...". P2: "E Sofia é o que?", Mikaely diz: "Sofia é filha da mulé.". P2 continua: "É só da mulher?", Mikaely diz: "Não, do homem". P2: "Hummm. E quem mais que tem?", Mikaely (cantando e desenhando): "Família, família. Gostei dessa música, sabia?". P2 instiga outra criança: "E tu Breno? Assiste?", Mikaely reage: "Claro que assiste. Só não assiste muito até o final, porque ele tem que subir que tem aula pra ele. Aí, dia de final de semana ele fica, só que aí não tem malhação, só tem Flor do Caribe",6 P2: "Ahhh" (em sinal de compreensão). Mikaely (cantando): "Família, família... (para de cantar). O senhor assiste Flor do Caribe também não, tio?", P1 responde: "Às vezes, eu assisto". Breno pergunta: "E a senhora" (dirigindo-se a P2). Esta responde: "Às vezes eu assisto, não assisto todo dia não...". Mikaely: "A senhora conhece Cassiano?", P2 responde: "Conheço". Mikaely continua: "O senhor conhece Esther?", P1: "Hummm" (em sinal afirmativo). Mikaely: "O senhor conhece Seu Samuel?", P1 responde: "Conheço". Mikaely: "O senhor conhece Dona Lindaura?", P1: "Essa eu não sei. Ela é o que da novela?", Mikaely: "É a mãe de Cassiano; é a mãe de Esther", P2 pergunta: "E é a mesma mãe a de Cassiano e a mãe de Esther?", Mikaely: "Não; eles são namorados, não são irmãos", P1 pergunta: "Ah! Irmão não pode namorar não?", Mikaely: "Pode não", P1 pergunta: "Por que não pode? É proibido?", Mikaely fala: "Sabia que não pode namorar irmão com irmão?", P1: "E é?", Mikaely: (com certo ar desdém e crítica): "Só porque é irmão, aí não pode. Eu vou namorar quando eu tiver irmão" (ri, colando a mão sobre a boca, como que cometera uma transgressão). P1 e P2 também riem.

Do episódio acima descrito, é possível perceber como as significações culturalmente compartilhadas do que é ser uma família chegam às crianças: as brincadeiras/cantigas de crianças, música e telenovelas. Esse episódio revela-nos que é tanto a partir das interações face a face entre crianças e/ou adultos - contexto costumeiro de aprendizagem de cantigas e brincadeiras populares (Pontes & Magalhães, 2003) -, quanto a partir de grandes veículos de comunicação de massa - como a telenovela (Oliveira Júnior, Moraes, & Coimbra, 2015) -, que são compartilhados os significados sobre os modos de ser família.

Todas as "fontes de significações" citadas guardam em comum um aspecto: a ludicidade, ou em outros termos, são meios de entretenimento tanto de crianças, como de adultos. Ao menos no recorte feito por Mikaely, ambas as canções trazem a ideia de família composta pelo modelo tradicional "pai, mãe, filho". Damos especial destaque às telenovelas, tão próprias do cenário cultural brasileiro e que possibilitam uma ampla propagação de elementos culturais. Sua presença no cotidiano do brasileiro é tão forte que, ao saber que os pesquisadores não assistiam à novela, Mikaely reage com espanto.

Por fim, destacamos um trecho final da conversa com Mikaely, o qual parece corroborar a ideia de que no que concerne a temas "polêmicos" cabe às crianças, inicialmente, apropriarem-se da regra e só então apresentarem as justificativas. A atitude de Mikaely ante o tabu do incesto (reconhecimento da regra, ausência de justificativa para a regra e expressão emocional de riso) assemelha-se bastante às posturas adotadas por ela ante a homoafetividade, talvez porque ambos tragam em si a noção de proibido. Passemos às significações acerca da homoparentalidade propriamente dita.

Episódio #3: É dois, é?

Alane (F/9; 2), Alana (F/7; 4) e Paulo (M/8; 6):

P1, em um momento da contação da história, diz: "Pronto! E aí nasceu o pinguinzinho, que é um...? Um menino, não foi isso que vocês disseram? E o nome desse pinguinzinho, vocês sabem como era? Tango, Tango é o nome desse pinguinzinho e ele era o único pinguim do zoológico a ter dois pais...". Alane expressa uma fisionomia de estranheza e questionamento. P1 dirige-se a ela: "É, ele tinha dois pais. Como é o nome dos pais dele que a gente disse no começo?". Alane pergunta: "É dois, é?", P1 responde: "É, dois pais". Alane indaga: "Uma mãe e um pai?". P1 reafirma: "Não, na história tá dizendo que são dois pais. Por quê?". Alane balança a cabeça em sinal negativo. P1 pergunta: "Tinha que ser um pai e uma mãe?", Alane balança a cabeça em sinal positivo. P1 pergunta: "Que tu acha, Alana? Tinha que ser isso?", Alana se aproxima do monitor do computador, mas Alane aponta para a figura, dizendo: "Dois pais!" (e esboça um sorriso). P1: "Olha, ele tinha dois pais, esse pinguim que nasceu". Paulo retruca: "É não. É um pai e uma mãe". P1: "É um pai e uma mãe?", Paulo diz: "É!". P1 continua: "Mas os pais dele, vamos ver aqui (aponta para o monitor)..." Paulo o interrompe: "É um padrinho e um pai". P1 diz: "Na história tá dizendo, eu não sei se é verdade, mas na história tá dizendo que Golfo e Golfinho - aqueles dois pinguins meninos que a gente deu o nome, se lembra? Eles que são os pais de Tango... Pelo menos é o que tá dizendo na história...", P1 continua: "E por que não podia ser dois pais? Pode não, é?", Alane balança a cabeça em sinal negativo. P1: "Por quê?", Alane: "Porque não...". Enquanto isso, Alane aproxima-se de Alana e lhe fala algo ao ouvido, em tom de voz baixo, cobrindo a boca com a mão. Alana, então, ri e se vira para o pesquisador. Este, dirigindo-se a Alana, também em tom de voz baixa, pergunta: "Que foi que tu disse?". Alana responde ao ouvido do pesquisador: "Eles são frango...". P1 pergunta: "Ele é frango, é?", Alana responde: "Dois namoradinhos...".

Uma primeira reação apresentada pelas crianças no que se refere à homoparentalidade, possivelmente em decorrência do estranhamento, foi uma tentativa de compreensão por meio de aproximação do modelo familiar homoparental ao amplamente difundido modelo heteroparental. Quase que inevitavelmente, remetemo-nos ao processo denominado por Piaget de assimilação (Piaget, 1964/2012): frente a uma nova informação (homoparentalidade), entramos em uma espécie de conflito cognitivo - no qual o novo nos desafia à compreensão -, fazendo com que busquemos "encaixá-la" em nossos esquemas previamente construídos (família heteroparental). Assim, quando o pesquisador comenta que o pinguim que nasceu tinha dois pais, Paulo reage dizendo: "É não. É um pai e uma mãe". Novamente confrontado, Paulo, mais uma vez, tenta assimilar a nova informação e diz: "É um padrinho e um pai". Daí por diante, o diálogo corrobora os episódios já descritos, apresentando como empecilho à homoparentalidade a homoafetividade. O tom de segredo e tabu também é evidente com os comentários de Alane ao pé do ouvido da colega.

As crianças também reconhecem outro empecilho à constituição da família homoparental: certa impossibilidade de filhos gerados pelo próprio par que compõe o casal. Todavia, não são apenas laços consanguíneos que constituem famílias. Vejamos o que nos dizem as crianças.

Episódio #4: É cuidando que se vira pai...

Mikaely (F/7; 9) e Breno (M/6; 6):

O pesquisador contava a história e, em certo momento, comentou: "Assim como vocês ficaram espantados porque o ninho tava vazio, o Roy e o Justin também ficaram muito espantados porque eles viam que no ninho deles não tinha nenhum ovo". Breno pergunta: "Por quê?". P1 devolve a pergunta às crianças: "Por quê? Por que o ninho não tinha nenhum ovo! Será?". Mikaely responde: "Porque menino não choca ovo". P1 repete o que disse a menina, mas em tom de pergunta: "Menino não choca ovo?". Mikaely acrescenta: "Homem não fica grávido". P1 pergunta: "E ter filho? Mas mesmo sem ficar grávido, pode ter filho?", Mikaely afirma: "Pode". P1 indaga: "E como é que faz para ter filho se não fica grávido?". Mikaely diz: "Cuida, tio". P1 continua perguntando: "E se cuidar... vira filho, é?", Mikaely: "É". P1 diz: "Não entendi", Mikaely: "Também não entendi, não".

A impossibilidade de geração de filhos biológicos pelo casal homoafetivo (afinal, "menino não choca ovo") não parece, na concepção de Mikaely, ser sinônimo de impossibilidade de filiação. A menina reconhece, ainda que sem explicações ("Também não entendi, não"), outra dimensão da parentalidade: o cuidado. É a partir dele que se constituirá a história da família de Justin, Roy e Tango.

Episódio #5: Adoção de pinguins

Luciano (M/9; 5), Paula (F/6; 5) e Samara (F/7; 2):

O pesquisador comenta em um dos momentos iniciais da história: "Agora, vê só: eles queriam ter um bebê, sendo que vocês disseram que eles eram dois machos e que por isso eles não podiam ter um bebê. Como é que eles faziam então pra ter um bebê, já que eles são dois machos e não podem ter?", Luciano responde: "Sei não". P1 (simultaneamente à fala de Luciano) continua falando: "Que vocês acham que eles podiam fazer? Como é que eles fazem pra ter um bebê?". Samara comenta: "Porque eles estão sentados pra sair um pintinho...". Paula responde em tom de quem foi instigada: "Tio, tio... se o outro fosse fêmea e o outro fosse macho e pega e dá um bebê, assim...". P1 pergunta: "Se um fosse uma fêmea e outro fosse um macho... que que tem?", Paula conclui: "Ia ficar com o bebê que o outro que desse..."

Episódio #6: Eu também vou ter duas famílias...

Luciano (M/9; 5), Paula (F/6; 5) e Samara (F/7; 2):

P1 diz: "Vou fazer só uma última pergunta, pode ser? O que vocês acham que a pinguim Simone achava dos dois pinguins que criaram ela, dos dois pais dela?". Luciano fala "Acho que...", Samara opina: "Acho que Simone gosta deles". P1: "Que Simone gosta deles... Que tu acha, Paula?", Paula responde: "Simone quer ir pra família dela". P1: "Eles não são a família dela?", Luciano diz: "Num é" (mas o tom de sua fala era de afirmação, como se ele dissesse: "São sim"). Paula acrescenta: "Mas ela pode ter outra família". P1 vocaliza: "Hummm", E Samara diz: "Pode ser de outra família, de outro filho". P1: "Ela pode ter outra família?" (olhando para Luciano). Luciano responde: "É, mas só que ela quis essa". P1: "Ela quis essa, foi? E pode ter duas famílias?", Luciano responde: "Pode...! Não!". P1: "Pode ou não pode?", Luciano conclui: "Pode...". P1 indaga: "E é legal?", Luciano (com expressão pensativa): "Pode". P1: "Que foi? Fizesse uma cara...", Luciano fala: "Eu vou ter..." (com expressão pensativa e tom de voz baixo), P1: "Tu vai ter duas famílias?", Luciano responde: "Vou... é fácil". P1: "Como é que faz pra ter duas famílias?" (Silêncio).

De maneira clara, em ambos os episódios, a adoção - ou seja, a inserção em uma família substituta - parece ser compreendida pelas crianças como a possibilidade de existência de mais de um pai ou de mais de uma mãe; nesse ponto, a significação de família homoparental se intersecta à significação de adoção, uma vez que com a adoção ou em famílias homoparentais tem-se dois pais e/ou duas mães. O tema adoção foi trazido pela própria história, pois lá se relata que ovo foi deixado no ninho pelo cuidador do zoológico: nenhum dos machos podia pôr o ovo. Contudo, o episódio #6 parece-nos ser merecedor de destaque no que concerne ao seu potencial de exemplificação da temporalidade prospectiva das significações, na medida em que a concepção de Luciano acerca da possibilidade de se ter ou não duas famílias está atrelada a uma expectativa sua quanto ao futuro: a possibilidade de ele próprio vir a ter duas famílias. Assim, as significações não se constroem apenas a partir do que já foi vivido, mas também de nossos desejos e expectativas do que ainda podemos viver.

Realçando o que já foi anunciado ao longo deste trabalho, a homoafetividade e a homoparentalidade tratam de fatos de certo modo distintos, inclusive na reação emocional/valorativa das crianças. Se, no que se refere à homoafetividade, as reações eram sempre de vergonha e proibição, no que se refere à homoparentalidade, as expressões eram comumente de estranhamento, seguido de curiosidade; em alguns episódios, a homoparentalidade foi tratada com obviedade e naturalidade:

Episódio #7: Pode ser pai; só não pode namorar!

Mikaely (F/7; 9) e Breno (M/6; 6):

O pesquisador continuando um diálogo, pergunta à criança: "Aí, tu falou que tem uma família aqui (apontando para o monitor). E o que tem da família aqui?", Mikaely: "Pai, Pai e filho". P1 continua: "E pode pai, pai e filho?", Mikaely: "Pode..." (com expressão de obviedade). P1: "Mesmo os pais namorando?", Mikaely responde: "Não". P1 comenta: "Ah! Então os pais não podem namorar?", Mikaely afirma: "Não". Breno acrescenta: "Só a mãe e o pai". P1 continua o diálogo: "Perái: os pais não podem namorar, mas eles podem ser pais do bebê?", Breno responde: "É!" (em tom convicto). Mikaely concorda, balançando a cabeça em sinal positivo. P2 interfere: "E uma criança pode ter duas mães?", Mikaely responde: "Pode" (com expressão de obviedade). P2: "E as duas mães podem namorar?", Mikaely balança a cabeça em sinal negativo e fala: "Proibido". P2 indaga: "Por que não pode?" Mikaely diz: "Porque vai ser sapatão...", P2 vocaliza: "Ahhhhh" (em sinal de compreensão). P1 pergunta: "E é ruim ser sapatão?", Mikaely afirma: "É... é muito ruim... não gosto não". P1 pergunta: "Por quê?" Mikaely: "Porque eu não sou frango".

Além da separação entre homoafetividade e homoparentalidade, o episódio é ilustrativo da incidência do preconceito sobre a homoafetividade e uma de suas possíveis consequências: Mikaely afirma que "ser sapatão" é proibido, algo negativo, ruim. Quando questionada, a menina afirma que não gosta de "sapatão", pois "não sou frango". De certo modo, "gostar" ou "não gostar" de "sapatão" parece, em seu discurso, estar atrelado a uma noção de identificação, de pertencimento ao mesmo grupo. Assim, só gostaria de "sapatão" e "frango" quem também fosse. O preconceito parece disseminar-se em um ciclo vicioso: não conheço homossexuais ou famílias homoparentais; ser homossexual é algo ruim; só "gosta" de homossexuais quem também o é, portanto, não devo desejar conhecer homossexuais ou famílias homoparentais. Este seja talvez um ponto importante a ser mencionado: a pouca visibilidade dada às famílias homoparentais como oriunda e promotora do estranhamento e preconceito.

 

Considerações finais

A busca pela compreensão das significações acerca de um determinado objeto social sempre acaba por nos lançar o desafio da complexidade: as mais diferentes, e por vezes contraditórias, significações articulam-se de variadas maneiras, formando um emaranhado que buscamos desvendar. Nesse processo, experiências subjetivas singulares emergem em meio a um contexto compartilhado com os demais indivíduos e a partir dele, sejam estes do presente, do passado ou prospetivo, próximos ou distantes.

O desafio torna-se ainda maior ao tentarmos apreender este objeto social a partir da óptica daquelas que estão iniciando seu percurso de inserção na trama social: as crianças. Como todo "novato", as crianças parecem ser tratadas pela maior parte dos "veteranos" (os adultos) como incapazes de compreender o funcionamento das regras do jogo. Ao contrário, as crianças trazem em si o estranhamento necessário ao conhecimento. Assim, apreender as significações de crianças sobre famílias homoparentais é revelador e surpreendente.

Para elas, homoafetividade e homoparentalidade mantém entre si certa distância: a primeira é marcada com selo de proibição, ainda que não apresentem justificativas elaboradas, as quais serão ainda, futuramente, por elas (crianças) apreendidas. Mais do que a valoração negativa, sobressai o estranhamento e a vergonha de falar de assunto que, desde a mais tenra idade, é tido como tabu.

Acerca da homoparentalidade, não muita coisa lhes foi dita pelos "veteranos": trata-se, portanto de um conteúdo novo, sem muitas regras, permitindo à criança construir de modo mais autônomo suas significações. Assim, sabem as crianças que a configuração familiar homoparental não é a mais usual (como a de pai, mãe e filhos), daí certo estranhamento, seguido pelo desejo de assimilação do novo conteúdo. O estranhamento, contudo, não implica rejeição. Ao contrário, a família homoparental é percebida como um ambiente positivo e cercado de afetos e cuidados com os filhos, que acabam por amar seus pais e por eles serem amados - ainda que os pais ou mães não possam amar-se entre si, afinal "homem com homem dá lobisomem e mulher com mulher dá jacaré...". Ainda que venha de outra família, a criança parece disponível para ter uma nova, mesmo que esta última tenha uma configuração homoparental, como pode ser depreendido do comentário de Luciano, no Episódio #6, em conversa sobre a possibilidade de a personagem pinguim ter outra família ("É, mas só que ela quis essa"), tornado-se filha a partir do cuidado que lhe foi oferecido pelos seus dois pais ou duas mães.

Desse modo, as significações de crianças acerca de famílias homoparentais parecem-nos revelar a grande competência dos "novatos" em apreender as regras do jogo social (o que pode e o que não pode). Ante o desconhecido, porém, as regras estão por ser construídas e, então, as crianças revelam sua flexibilidade em perceber e aceitar com naturalidade a diversidade, mesmo que esta, inicialmente, pareça- lhes um pouco confusa: "Dois pais? Um pai e um tio? Um pai e um padrinho?".

 

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Endereço para correspondência:
Pedro Pinheiro Borges Neto
pedro_borgesneto@hotmail.com

Maria Isabel Patrício de Carvalho Pedrosa
mariaisabel.pedrosa5@gmail.com

Submetido em: 28/02/2016
Revisto em: 04/08/2017
Aceito em: 06/08/2017

 

 

1 As instituições com o perfil da pesquisa foram indicadas pelo Núcleo de Orientação e Fiscalização das Entidades (NOFE) do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Comarca da Capital.
2 A coleta de dados apenas teve início após a aprovação do parecer sobre o projeto de pesquisa, emitido por membro do Comitê de Ética em Pesquisa, e ter sido liberado para a coleta pelo Comitê. Parecer nº 335.179, em 24 de julho de 2013 (CAAE: 17628813.5.0000.5208).
3 Os nomes utilizados são fictícios. Para os dados de caracterização das crianças, adotamos a convenção (gênero socialmente atribuído/anos; meses).
4 Para os pesquisadores, adotou-se a convenção P1 e P2.
5 Música "Família", do álbum "Cabeça Dinossauro" da banda brasileira "Titãs", lançado originalmente em 1987. À época da coleta de dados, era a música de abertura da novela "Malhação", da Rede Globo.
6 Outra telenovela em exibição na TV.

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