SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.69 número3Processos de significação de crianças sobre famílias homoparentaisVinculação aos pais, competências sociais e ideação suicida em adolescentes índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.69 no.3 Rio de Janeiro  2017

 

ARTIGOS

 

Ideologia, futebol e violência: uma análise do relatório "Preservar o espetáculo, garantindo a segurança e o direito à cidadania"

 

Ideology, football and violence: an analysis of the "Preservar o espetáculo, garantindo a segurança e o direito à cidadania" report

 

Ideología, fútbol y violencia: un análisis del informe "Preservar o espetáculo, garantindo a segurança e o direito à cidadania"

 

 

Felipe Tavares Paes LopesI; Heloísa Helena Baldy dos ReisII

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura. Universidade de Sorocaba (Uniso). Sorocaba. Estado de São Paulo. Brasil
IILivre-docente. Faculdade de Educação Física. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas. Estado de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho aborda a discussão sobre violência e segurança nos espetáculos futebolísticos a partir do campo teórico da ideologia. Mais exatamente, objetiva analisar e interpretar o potencial ideológico do principal relatório publicado pela Comissão Paz no Esporte, que tem como finalidade apoiar e acompanhar a implantação da Política Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos Espetáculos Esportivos. Para tanto, adotamos o referencial teórico-metodológico desenvolvido por John B. Thompson. Entre outros aspectos, os resultados nos indicam que o referido relatório dissimula as controvérsias relacionadas à violência no futebol, legitima um modelo panóptico de estádio e autoriza o controle social dos torcedores organizados, mantendo-os em uma situação de dominação.

Palavras-chave: Ideologia; Dominação; Futebol; Segurança; Violência.


ABSTRACT

This paper focuses on the discussion about violence and safety in football spectacles from the theoretical field of ideology. Rather, it aims to analyze and interpret the ideological potential of the main report published by the Peace in Sport Committee, which aims to support and monitor the implementation of the National Policy of Violence Prevention and Safety in Sports Spectacles. To answer it, we adopted the theory and the methodology developed by John B. Thompson. Among other aspects, the results indicate that the report dissimulates the controversies related to soccer violence, legitimizes a panoptic model of stadium and authorizes the social control of the "torcedores organizados", keeping them in a situation of domination.

Keywords: Ideology; Domination; Soccer; Safety; Violence.


RESUMEN

Este trabajo aborda la discusión sobre violencia y seguridad en los espectáculos futbolísticos desde el campo teórico de la ideología. Más exactamente, tiene como objeto analizar e interpretar el potencial ideológico del más importante informe publicado por la Comisión Paz en el Deporte, que tiene como finalidad apoyar y acompañar la implementación de la Política Nacional de Prevención de la Violencia y Seguridad en los Espectáculos Deportivos. Para eso, adoptamos el referencial teórico-metodológico desarrollado por John B. Thompson. Entre otros aspectos, los resultados nos indican que el informe disimula las controversias relacionadas con la violencia en el fútbol, legitima un modelo panóptico de estadio y autoriza el control social de los hinchas organizados, manteniéndolos en una situación de dominación.

Palabras Clave: Ideología; Dominación; Fútbol; Seguridad; Violencia.


 

 

Introdução

Este trabalho aborda a discussão sobre violência e segurança nos espetáculos futebolísticos a partir do campo teórico da ideologia. O conceito de ideologia foi utilizado pela primeira vez no final do século XVIII, pelo filósofo francês Destutt de Tracy, para descrever seu projeto de uma nova ciência, interessada na análise sistemática das ideias e sensações (Thompson, 2000). Desde então, esse conceito tem assumindo uma ampla variedade de significados, nem sempre compatíveis entre si, o que faz dele um "terreno minado" (Guareschi, 2007). No campo de estudos sobre futebol, as discussões sobre ideologia foram fortemente influenciadas pela tradição marxista quando esse campo se consolidou no Brasil, na década de 1980. Para Roberto Ramos (1984), por exemplo, o futebol é um aparelho ideológico do Estado, que mistifica a realidade e legitima o modo de produção capitalista. Tratar-se-ia, portanto, de uma forma de inviabilizar o pensamento crítico e manter a dominação e exploração de classe.

No entanto, ainda na década de 1980, alguns antropólogos vinculados ao Museu Nacional do Rio de Janeiro passaram a rebater e a criticar a tese do futebol como "ópio do povo". O livro Universo do Futebol, organizado por Roberto DaMatta, marcou esse momento de virada. Em tal livro, o artigo de Luiz Felipe Baêta Neves Flores (1982) retoma as discussões sobre futebol e ideologia, entendendo que tal esporte é um universo aberto, podendo se relacionar a duas formas de ideologias: a da permanência e a da transformação social. Nas décadas seguintes, essa "perspectiva ritualística" do futebol se fortaleceu e ele passou a ser entendido como um espaço de formação de identidades, pertencimento, emoção, prazer, criação e imaginação (Lovisolo, 2011).

Já no campo da Psicologia Social, o conceito de ideologia foi incorporado tardiamente, após anos de predomínio da tradição norte-americana, que privilegiava estudos experimentais e individualizantes. Na verdade, "o conceito e a teoria da ideologia se fizeram mais presentes na Psicologia Social a partir da década de 70, quando muitos autores, principalmente da Europa e da América Latina, começaram a incorporar o tema em seus estudos e pesquisas" (Guareschi, 2007, p. 89). De acordo com Maritza Monteiro (2003), essa incorporação se deveu, possivelmente, à sua popularidade em outras disciplinas das Ciências Sociais e Humanas - que o consideravam, sobretudo, em sua concepção crítica.

Diferentemente das concepções neutras de ideologia - que a compreendem como uma forma de investigação ou como um aspecto da vida social que não é nem mais nem menos atraente ou problemático do que qualquer outro -, as concepções críticas imputam aos fenômenos caracterizados como ideológicos um criticismo implícito ou sua própria condenação. Inserindo-se nesse segundo grupo de concepções, John B. Thompson (2000) definiu ideologia como sendo o sentido a serviço da dominação - entendo por dominação relações de poder que são sistematicamente assimétricas. A partir dessa definição, uma forma simbólica será ideológica quando estabelecer e sustentar relações de dominação. Para tanto, ela pode operar de diversas formas, por exemplo, através da legitimação, da dissimulação, da unificação, da fragmentação e da reificação. Segundo Thompson (2000), esses modos de operação da ideologia podem associar-se a diversas estratégias de construção simbólica e podem sobrepor-se e reforçar-se mutuamente.

Diante das vantagens analíticas dessa concepção de ideologia, alguns psicólogos sociais brasileiros (Guareschi, 2007; Rosemberg & Andrade, 2007) têm optado por utilizá-la para desenvolver seus estudos. Entre outras vantagens, essa concepção evita uma tendência, prevalente na literatura, de pensar a ideologia como uma característica ou atributo intrínseco de certas formas simbólicas ou sistemas simbólicos, tais como o conservadorismo, o liberalismo, o comunismo etc. Na proposta de Thompson (2000), nenhuma forma simbólica é ideológica ou contestatória em si mesma: se ela é ideológica ou contestatória, e o quanto o é depende da maneira como é usada e entendida em contextos sociais específicos. Além disso, na sua proposta, o processo de apropriação e recepção das formas simbólicas é ativo e potencialmente crítico. Outra vantagem da concepção de Thompson é que ela rechaça a ideia de que a ideologia seja sempre uma pura ilusão, como uma imagem invertida e distorcida da realidade. Ela também cria um elo apenas contingente entre essa noção e dominação de classe, uma vez que, no mundo atual, essa dominação é apenas um eixo da desigualdade e da exploração.

Adotando a concepção de ideologia de Thompson, investigamos, em produções anteriores, as dimensões ideológicas dos discursos enunciados na discussão sobre violência e segurança realizada nos meios de comunicação de massa, já que esses meios constituem um local privilegiado para a análise da construção de problemas sociais. Neste artigo, voltamos nossa atenção para a forma como essa discussão é simbolicamente construída na chamada Comissão Paz no Esporte1, dos ministérios do Esporte e da Justiça, já que tal comissão tem como finalidade apoiar e acompanhar a implantação da Política Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos Espetáculos Esportivos. Mais concretamente, analisamos e interpretamos o potencial ideológico de um documento publicado em 2006: o relatório "Preservar o espetáculo, garantindo a segurança e o direito à cidadania" (a partir daqui, PEGSDC).

A escolha por estudar o PEGSDC justifica-se por três razões: primeira, porque se trata da mais importante produção da Comissão Paz no Esporte, servindo de base para várias experiências, a título de projeto piloto, em partidas realizadas no estado de São Paulo, que é habitualmente percebido como um dos mais afetados pelo problema da violência no futebol (Lopes, 2013). Segunda, porque, mesmo quase dez anos após a sua publicação, até o momento, ele não tem recebido a atenção da literatura acadêmica, que tem se limitado à análise do Estatuto de Defesa do Torcedor, modificado, posteriormente, pela Lei no 12.299/2010. Terceira, porque o Ministério do Esporte tem sinalizado, conforme ficou claro em eventos que ele promoveu em 2014 e dos quais participamos, que, nos próximos anos, o PEGSDC deve ser revisado. Sendo assim, sua análise e avaliação constituem um ponto chave para a reformulação da Política Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos Espetáculos Esportivos e para a criação de novos programas e projetos de prevenção da violência no futebol brasileiro.

 

Contexto sócio-histórico

Uma vez justificada a opção por analisar o PEGSDC, cabe, agora, apresentarmos o contexto no qual ele está inserido. Afinal, esse relatório, como qualquer outra forma simbólica, não subsiste num vácuo. Pelo contrário, está em articulação e embate com outras formas simbólicas no processo de construção de políticas de segurança para os espetáculos futebolísticos. Sendo assim, é importante assinalarmos que esse processo é marcado por constantes trocas de acusações entre os diversos grupos sociais nele envolvidos. Por exemplo, os integrantes das torcidas organizadas são habitualmente rotulados pelos jornalistas de "vândalos", "marginais" e "vagabundos". Por sua vez, esses torcedores, muitas vezes, percebem a polícia como sendo violenta e autoritária. Apesar dessas constantes trocas de acusações, a pluralidade de pontos de vista presentes no debate público sobre as referidas políticas nem sempre é percebida. Afinal, ocorrem num espaço socialmente estruturado, marcado por assimetrias, divisões e diferenças coletivas relativamente estáveis, isto é, em um espaço onde a distribuição e o acesso a recursos, poder, oportunidades e possibilidades de realização não costumam ser iguais a todos os grupos sociais. Os meios de comunicação, por exemplo, costumam dar voz somente às autoridades policiais e públicas, excluindo os torcedores organizados (Lopes, 2013).

Foi dentro desse contexto, marcado por profundas assimetrias sociais, que ocorreu o processo de criação da Comissão Paz no Esporte. Tal comissão foi criada, em 2004, por decreto do então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Ao analisar o referido processo de criação, Heloisa Reis (2006) observou que, embora esse decreto presidencial tenha sido um grande avanço em matéria de legislação específica, o fato de grande parte dos membros (dez ao todo) da Comissão Paz no Esporte não ser publicamente reconhecida coloca em dúvida o seu cumprimento legal. Afinal, ele prevê "cinco representantes da sociedade civil organizada e autoridades de notória experiência no tema, escolhidos dentre pessoas reconhecidas por sua atuação na área de segurança nos estádios" (Decreto no 4.960/04, como citado em Reis, 2006, p. 104).

De qualquer modo, desde sua formalização, a Comissão Paz no Esporte tem promovido debates e reuniões plenárias com especialistas em segurança no esporte, realizado visitas técnicas a estádios (no Brasil e no exterior) e analisado leis e procedimentos de diversos países. E foi a partir desses debates, reuniões, visitas e análises que o seu então coordenador-executivo, Marco Aurélio Klein, elaborou o PEGSDC. Diante disso, podemos dizer que tal relatório está inserido num "campo pré-interpretado" (Thompson, 2000), ou seja, num contexto mais abrangente de explicações acerca da segurança no espetáculo futebolístico, participando de e dialogando com um debate que tem história.

No Brasil, o futebol passou a ser estudado de forma mais sistematizada na década de 1980. Todavia, foi somente na segunda metade dos anos 1990 que o campo científico começou a se debruçar sobre a violência envolvendo torcedores. Contudo, no período, essa violência já ocupava as manchetes dos principais periódicos brasileiros, sugerindo-nos certa morosidade da academia em antecipar sua atenção a temas de mobilização social (Lopes, 2013). Apesar dessa morosidade, a questão da violência no futebol brasileiro tem ensejado férteis reflexões, que têm contribuído para uma melhor compreensão das diversas dimensões do fenômeno. Por exemplo, estudos em perspectiva histórica (Hollanda, 2009) mostraram que, desde a chegada do futebol ao Brasil, já existiam registros de confusões e brigas entre torcedores - como ocorria quando os times da zona sul carioca iam jogar nos subúrbios da cidade.

Outros estudos (Murad, 2012) indicaram que, a partir da década de 1970, essas brigas ganharam uma dimensão mais militarizada e que, nos últimos anos, o número de homicídios de torcedores foi ampliado significativamente devido, principalmente, ao uso de armas de fogo. Pesquisas recentes (Toledo, 2012) levantaram a hipótese desse recrudescimento da violência estar relacionado à atual crise da ética do trabalho "tradicional" e ao subsequente descomprometimento dos jovens com o corpo historicamente reificado pela moralidade do trabalho. Violência que, conforme apontaram pesquisas em Psicologia Social (Lopes, 2013), tornou-se objeto de preocupação pública permanente a partir do final da década de 1980, quando ela passou a ser associada a um grupo específico: as torcidas organizadas.

A primeira geração de torcidas organizadas surgiu no Rio de Janeiro e em São Paulo entre as décadas de 1940 e 1960 e praticamente não existe mais. Eram grupos comunitários, com não mais do que duas centenas de componentes, muitos associados ao clube, que se reuniam em dias de jogos para apoiar incondicionalmente o time, sem violência. A segunda geração surgiu no final da década de 1960 e é muito atuante até hoje. As torcidas dessa segunda geração nasceram reivindicando autonomia face aos clubes e adotando um novo estilo de torcer, a fim de demarcar distinção em relação às da primeira geração. Ao longo dos anos, foram se tornando mais profissionais, burocráticas e empresariais (Teixeira, 2003; Teixeira & Hollanda, 2016).

Nos anos 1990, as torcidas organizadas cresceram significativamente e, hoje em dia, algumas delas chegam a ter dezenas de milhares de associados. A maior parte deles é homem, jovem e se ampara num estilo de vida "de periferia" (Toledo, 2012). Tais torcidas costumam acompanhar o clube em todos os jogos, planejar o espetáculo nas arquibancadas com antecedência e realizar ações sociais - como campanhas para doação de sangue. No entanto, há indicativos da presença do crime organizado em algumas delas (Murad, 2012). Além disso, conforme já antecipamos, elas são constantemente rotuladas de violentas. Apesar disso, de acordo com Mauricio Murad (2017), apenas entre 5 a 7% de seus integrantes engajam-se em ações violentas, alimentadas, segundo ele, pela corrupção e pela impunidade.

No cenário internacional, estudos baseados na obra de Norbert Elias (Dunning, 2013) indicaram que essas ações produzem uma excitação agradável, são fontes de reconhecimento e status dentro de alguns grupos e estão relacionadas a um ideal de "masculinidade agressiva". Sem entrar nas críticas feitas a esses estudos, é importante sublinhar que autores argentinos - como Pablo Alabarces (2012) - argumentam que esse ideal de masculinidade tem no aguante (capacidade de aguentar a dor) seu principal valor e princípio orientador. Assim, para eles, o envolvimento em combates físicos não é apenas uma forma de os torcedores se inserirem numa rede de favores e de obterem dinheiro, mas de participarem de uma comunidade moral. Combates que não são, de modo algum, a única forma de violência no futebol, já que existem diversas outras situações que podem ser consideradas violentas, ainda que algumas delas já nem mais a percebamos como tais, de tão acostumados que já estamos. Por exemplo, o alto valor do preço dos ingressos é apontado pelos torcedores organizados como uma forma de violência, já que exclui o torcedor pobre do espetáculo futebolístico (Lopes, 2013).

 

Metodologia

Uma vez contextualizado o PEGSDC, cabe, agora, indicarmos os caminhos metodológicos percorridos. Considerando que a metodologia não tem status próprio, mas precisa ser definida em função de um contexto teórico determinado, adotamos não apenas a conceituação de ideologia do Thompson (2000), mas, também, a sua proposta metodológica: a hermenêutica de profundidade. Proposta que busca contemplar tanto as características estruturais das formas simbólicas quanto as suas condições sociais e históricas de produção, transmissão e recepção. Para tanto, divide-se em três fases principais, "que devem ser vistas não tanto como estágios separados de um método sequencial, mas antes como dimensões analiticamente distintas de um processo interpretativo complexo" (p. 365).

A primeira fase é a análise sócio-histórica, que, neste trabalho, buscou analisar o contexto em que está inserido o PEGSDC, enfocando as relações de dominação que o caracterizam. Para realizar essa análise, fizemos um levantamento bibliográfico acerca do tema da violência e segurança no futebol em seis bases de dados2. Ainda que de forma resumida, os resultados desse levantamento foram apresentados no tópico anterior.

A segunda fase é a análise formal ou discursiva, que buscou identificar as características estruturais do PEGSDC, seus padrões e suas relações. Para realizar essa análise, construímos três "quadros de sistematização" no programa Microsoft Excel. O primeiro deles visava apresentar os discursos do PEGSDC sobre os problemas relacionados ao espetáculo futebolístico. Para tanto, foi dividido em colunas que buscaram resumir quais seriam esses problemas, se eles ainda persistiriam e quais os atores vinculados, bem como indicar os trechos em que são descritos e explicados. O segundo buscou apresentar os discursos do PEGSDC sobre os modelos tidos como referência para o Brasil. Para tanto, foi estruturado em colunas que buscaram resumir quais seriam esses modelos, bem como indicar os trechos em que são descritos e justificados. E o terceiro buscou apresentar os discursos do PEGSDC sobre as recomendações para o futebol brasileiro. Para isso, foi divido em colunas que buscaram resumir essas recomendações, bem como indicar os trechos em que são descritas. A partir desses quadros, empreendemos uma discussão acerca das principais estratégias de construção simbólica empregadas nesses discursos.

A terceira fase da HP é interpretação/reinterpretação, que buscou explicitar como essas construções simbólicas podem estar ligadas a certos modos de operação da ideologia. Para realizar essa interpretação/reinterpretação, desenvolvemos uma síntese, por construção criativa, dos resultados das duas fases anteriores. Com isto, objetivamos explicitar as conexões possíveis entre os sentidos mobilizados pelo PEGSDC e as relações de dominação que estruturam seu contexto de produção, circulação e recepção. Por uma questão de (falta de) espaço, optamos por condensar os resultados das duas últimas fases no tópico subsequente.

 

Análise e interpretação

Seguindo os itens apresentados anteriormente, estruturamos a apresentação dos resultados da análise e reinterpretação do PEGSDC em três partes. Comecemos pelo diagnóstico feito da violência no futebol brasileiro.

Construção simbólica da violência nos espetáculos futebolísticos no Brasil e dos atores sociais envolvidos nessa violência

Entre outros aspectos, pudemos notar que o passado do futebol brasileiro é simbolicamente construído como um período de paz, como uma espécie de paraíso perdido. Para realizar tal construção, o PEGSDC emprega a estratégia discursiva da dissimulação, que, no caso, opera apagando os vestígios de atos de vandalismo e violência que ocorreram no passado, desconsiderando, consequentemente, uma série de informações já disponíveis sobre o período. Esta dissimulação indica-nos que o PEGSDC não incorpora em suas análises parte significativa dos resultados apresentados pela produção científica brasileira sobre as origens da violência no futebol (não à toa, tal produção praticamente não aparece nas referências bibliográficas). Ao desconsiderar tais informações, o PEGSDC impõe sua interpretação dessas origens como um fato consumado, ou seja, como algo certo e indubitável. Isto é reforçado pelo fato de o passado ser apresentado como uma coisa, que ocorre na ausência de um sujeito que o interprete.

Mas, se o passado é descrito como uma espécie de paraíso perdido, o presente é, inversamente, tratado a partir de uma narrativa melodramática, que visa chamar a atenção do leitor para as péssimas condições dos estádios brasileiros e para o caráter extremo e hediondo da violência que ocorre dentro e fora deles, sugerindo que ela é inaceitável e moralmente intolerável (Loseke, 2008). Ao fazer isto, tal narrativa confere, consequentemente, um senso de urgência aos problemas relacionados aos espetáculos futebolísticos. Entre outras metáforas utilizadas na construção dessa narrativa, destacamos a da guerra, que reveste os espetáculos futebolísticos com a imagem da hostilidade e do perigo, ao mesmo tempo em que oculta outras características tradicionalmente imputadas a eles: como a festa, a alegria e a celebração. Esta metáfora é explicitamente evocada por meio de expressões como "guerra entre torcedores", "aparato de guerra montado pela polícia" e "cenário de guerra" ou, menos diretamente, através de vocábulos usualmente utilizados para descrever ou evocar esse tipo de situação, tais como: "mortes", "agressão", "emboscada", "grupos armados", "invasão", "cânticos guerreiro", "batalhas", "comportamento belicoso", "ataques", "tiros", "bombas", "feridos", "vandalismo", "terror", "depredação", "vítimas", "violência", "confrontos" etc.

Assim como essa metáfora, outros trechos enfatizam as consequências extremas da violência no futebol, dramatizando-a. O seguinte é ilustrativo: "estudamos os principais problemas, analisando mais suas causas do que seus efeitos, estes sobejamente projetados nas arquibancadas vazias e nas ruas em clima de terror em dias de grandes jogos" (Klein, 2005-2006, p. 3). Clima de terror nas ruas e arquibancadas esvaziadas, estes seriam os efeitos da referida violência. Graças a ela, novas gerações seriam "impedidas de 'viver a fantástica experiência do futebol ao vivo'" (Klein, 2005-2006, p. 20). Aqui, novamente a complexidade do problema é reduzida e as controvérsias silenciadas. Ainda que, em outros trechos, a (falta de) infraestrutura seja apontada como um importante fator para o (suposto) esvaziamento dos estádios3, outros possíveis fatores explicativos não são sequer mencionados - como, por exemplo, a dificuldade do torcedor em voltar para a casa em função dos horários inadequados impostos pela televisão em jogos do meio da semana ou o alto preço dos ingressos.

O caráter extremo e hediondo das consequências da violência envolvendo torcedores de futebol é reforçado pela caracterização feita de suas vítimas. Estas são construídas como puras, frágeis e indefesas. Pessoas que sofrem horrivelmente e não têm nenhuma responsabilidade no sofrimento experimentado, sendo, portanto, merecedoras de compaixão e proteção. Por exemplo, em momento algum, o PEGSDC aborda os torcedores violentos que morreram em confronto com outros torcedores ou com a polícia. Tampouco trata do sofrimento dos torcedores organizados que tenham sido vitimados pela violência no futebol. As vítimas destacadas são o "torcedor-comum", as "famílias", a "sociedade" e seus "filhos", ou seja, o enfoque recai sobre a "nossa" dor, e não na do "outro".

Outra estratégia empregada pelo PEGSDC para caracterizar a violência no futebol como intolerável é a de tratar qualquer pessoa como vítima potencial dessa violência. Toda a sociedade, sem exceção, estaria sujeita a ela. Tal generalização possui um efeito retórico notável: encoraja o leitor a sentir medo (dado que ele e as pessoas que ama podem ser vítimas dessa violência a qualquer momento) e, ao fazer isto, motiva-o a levar realmente a sério tal violência como um problema social (Loseke, 2008).

Em geral, a ação de provocar medo é atribuída aos torcedores organizados. Em diversos trechos, esses torcedores são semanticamente fundidos à figura do torcedor violento. Essa fusão contribui para construí-los como pessoas perigosas e ameaçadoras, as quais somos, implicitamente, convocados a expurgar. A construção do torcedor organizado como uma ameaça é reforçada pela associação desse torcedor à ideia de irracionalidade, conforme ilustra o extrato a seguir: "Torcidas Organizadas podem representar beleza, paixão e animação num jogo de futebol. Entretanto, podem, a continuar a insanidade da violência gratuita e a impunidade, significar prejuízo, tragédia, desespero e morte" (Klein, 2005-2006, p. 35). Ao colocar a irracionalidade - expressa através do substantivo "insanidade" - como uma característica genérica e natural da (suposta) violência das torcidas organizadas -, o PEGSDC retira o aspecto propriamente humano dos integrantes dessas torcidas, animalizando-os.

Além disso, ao definir tal violência como "gratuita", ajuda a ocultar as relações e os processos psicossociais que a motivaram, fazendo crer que ela é sem explicação. Ideia que, ao mesmo tempo, reforça a noção de que os torcedores organizados são irracionais e individualiza o problema. Afinal, se o problema estivesse na estrutura e nas forças sociais, aí teríamos uma explicação. Em última instância, o fato de (supostamente) não haver uma boa razão para o comportamento violento das torcidas organizadas contribui para vilanizar essas torcidas, sinalizando uma maldade inata de seus integrantes. Vilanização que parece participar de um processo de estigmatização mais amplo, que exacerba a diferença dos torcedores organizados em relação ao resto da sociedade, sobre-estimando a diferença "deles" - "perigosos desviantes" - em relação a "nós" - admitidos como "normais".

O Poder Público, por outro lado, é usualmente construído como racional, humanitário e "desinteressado" (trabalha em nome apenas da sociedade), o que contribui para legitimá-lo. Legitimação reforçada pela estratégia da dissimulação, que opera passando por cima da violência policial, que praticamente não aparece no documento, ficando na penumbra. Nos raros momentos em que a polícia é colocada como parte do problema, suas ações são descritas de modo a despertar uma valoração positiva (ou menos negativa). Por exemplo, o PEGSDC fala em "terror" provocado pelo conflito com a tropa de choque, mas esse é definido como "inevitável", ou seja, a polícia não poderia ter agido de outra forma. Ela não agiu; apenas reagiu. Trata-se de um fatalismo que, em última instância, retira sua carga de responsabilidade em uma situação valorada negativamente.

Construção simbólica dos modelos de referência para os espetáculos futebolísticos no Brasil

A principal referência para a forma e o conteúdo do PEGSDC é o Relatório Taylor (a partir daqui RT), que mudou as condições dos estádios britânicos a partir de 1990. Escrito após ocorrer uma série de tragédias na década anterior, o RT recomendou, entre outras medidas, que os clubes escoceses da primeira divisão e os ingleses da primeira e segunda divisão colocassem assentos em todos os setores de seus estádios e retirassem os alambrados. Para ajudar nos custos das reformas, o governo comprometeu-se a reduzir alguns impostos, como o das apostas no futebol (Giulianotti, 2002). A fim de legitimar o RT, o PEGSDC faz uma série de apreciações positivas sobre ele e sobre seu autor, o juiz Taylor, e o apresenta como sendo um "divisor de águas". Esta é a ideia central de uma narrativa que fragmenta o futebol inglês em dois períodos: um passado deteriorado, anterior ao RT, que seria similar ao que (supostamente) ocorre atualmente no Brasil; e um presente glorioso, posterior à elaboração e adoção do relatório.

Para construir o processo de deterioração do futebol inglês, o PEGSDC recorre novamente à estratégia da dramatização. Já para construir sua situação presente, recorre, principalmente, à da dissimulação. Por exemplo, embora indique que ainda ocorram problemas relacionados ao hooliganismo - sobretudo fora do Reino Unido -, não menciona as diversas críticas feitas ao RT. Tampouco menciona as críticas feitas à Lei do Tumulto no Futebol, adotada após confusões envolvendo torcedores ingleses na Euro 2000 e em copas europeias de clubes do período. Tais críticas refletem o descontentamento de alguns atores com os novos rumos do futebol britânico, que argumentam que ele está cada vez mais elitizado, uniformizado e pasteurizado (Giulianotti, 2002). Ou ainda que foi adotado um modelo de controle do hooliganismo que descarta o princípio de presunção de inocência e que, ainda por cima, levou a um deslocamento espaço-temporal dos incidentes violentos, aumentando os custos das operações de segurança e tornando seus resultados menos previsíveis (Tsoukala, 2014).

Não é nossa intenção examinar aqui as razões de o "modelo britânico" ter sido apresentado de forma acrítica. Mas não deixa de ser revelador que, em sua visita à Inglaterra, Marco Aurélio Klein tenha sido recebido, basicamente, pelas autoridades responsáveis pelo combate ao hooliganismo, que, evidentemente, têm interesse em fazer crer que o referido modelo é eficaz. Difícil não notar uma correspondência entre esse interesse e a narrativa adotada, que busca, a todo instante, legitimar o "modelo britânico". Talvez, se outros atores tivessem sido consultados - como acadêmicos e representantes de associações independentes de torcedores - o discurso sobre tal modelo fosse menos otimista. Impossível saber. Mas é possível mostrar, tal como buscamos fazer até agora, que as vozes dissonantes foram silenciadas.

Outra importante referência para o PEGSDC é a teoria da "vidraça quebrada", que serviu de base para aquela que ficou conhecida como política de "tolerância zero". Esta foi adotada e exibida com alarde no início dos anos noventa pelo então prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, sendo, posteriormente, acolhida e "aclimatada" em diversas regiões do mundo. Tal teoria defende a ampliação do rigor penal através de uma cadeia de raciocínio que leva a crer que a permissividade com os pequenos delitos serve de estímulo para outros mais graves, isto é, seria por meio do combate rigoroso aos distúrbios cotidianos que se conseguiria diminuir as "patologias criminais". Ao mesmo tempo em que legitima um aparelho penal intrusivo e onipresente, convocando o "punho de ferro" do Estado penal, essa cadeia de raciocínio passa por cima dos processos sociais geradores de comportamentos delinquentes, obscurecendo, consequentemente, a (ir)responsabilidade do Estado nesses processos. Aqui, a delinquência seria a causa da deterioração social e não o inverso. Lógica que acaba por privilegiar o Estado penal em detrimento do Estado social (Wacquant, 2001).

No contexto do futebol, a teoria da "vidraça quebrada" expressar-se-ia na (suposta) relação entre permissividade com a violência simbólica (cânticos ofensivos, xingamentos, ameaças etc.) e aumento da violência física. Assim, para reduzir esta última violência, seria preciso "tolerância zero" com a primeira. Embora a referida relação fundamente muitas das recomendações do PEGSDC, ela, em momento algum, é provada. Pelo contrário, é apresentada como se fosse natural. Naturalização que dissimula seu caráter controverso. Eric Dunning (2013, p. 227), por exemplo, observa que "a 'permissividade' talvez tenha diminuído em quase todos os aspectos da vida britânica durante o governo Thatcher, em especial no futebol, que se tornou cada vez mais policiado e normatizado de 1960, 1970 e 1980". Período justamente em que ocorreu o maior crescimento dos índices de violência no futebol britânico.

Além do RT e da política de "tolerância zero", o modelo de organização esportiva dos Estados Unidos é tomado como referência para o Brasil. A fim de legitimar esse modelo, o PEGSDC passa novamente por cima das contradições e controvérsias existentes, ocultando os (possíveis) efeitos negativos de tal modelo. Na verdade, limita-se a mencionar o aumento de público nas arenas esportivas norte-americanas e sua alta taxa de ocupação média atual. Após defender o referido modelo, o PEGSDC afirma que, apesar das diferenças econômicas e culturais entre Estados Unidos e Brasil, sua aplicação daria certo aqui. Para justificar sua posição, faz um paralelo com as transformações ocorridas nos cinemas e teatros brasileiros. Transformações que ele narra a partir de uma história que celebra o presente ao mesmo tempo em que dramatiza o passado.

A fim de não tornar o texto excessivamente repetitivo e cansativo, não analisaremos aqui os recursos linguísticos utilizados nessa dramatização. No entanto, consideramos importante destacar que o PEGSDC chama a questão da redução dos preços dos ingressos de "simplória". Do seu ponto de vista, é equivocado atribuir o processo de esvaziamento dos cinemas à questão do preço das entradas. Ao tratar como "simplória" essa questão, ele, implicitamente, legitima a manutenção de uma das principais barreiras de acesso à cultura e ao lazer para milhões de brasileiros. Afinal, se o elevado custo das entradas não é um problema, então não se deve alterá-lo. Ao legitimar a manutenção de tal barreira, o PEGSDC, simultaneamente, contrapõe-se ao que estabelece a própria Constituição Federal do Brasil, que reconhece o lazer como um direito social - ou seja, como algo que deve ser válido para todas as pessoas, independentemente de sua classe social - e que determina que o Poder Público incentive o lazer como forma de promoção social (Reis, 2006).

A fim de fundamentar sua posição, o PEGSDC afirma que, apesar de ter um ingresso mais caro do que o futebol, o cinema vende muito mais entradas. Tal comparação tem um forte apelo retórico, na medida em que, em geral, se tende a conceber os números como provas incontestáveis de uma determinada realidade, esquecendo-se que toda comparação envolve escolhas arbitrárias. Por exemplo, se a comparação tivesse sido feita com o teatro, e não com o cinema, será que teríamos uma diferença tão significativa de público? Ainda, mesmo que mantivéssemos a comparação de público entre o futebol e o cinema, como era no passado? Como é em outros lugares, onde o espetáculo futebolístico é mais organizado? Colocados de forma isolada, os números apresentados não provam nada. São, portanto, inúteis analiticamente, mas muito úteis retoricamente.

Além dos modelos tomados como referência, é importante sublinhar a relevância daqueles que não foram mencionados no PEGSDC, pois essa omissão serve para reforçar a ideia de que não existem outras estratégias para a prevenção da violência no futebol, como as desenvolvidas na Alemanha - onde se tem investido, desde o início dos anos 1980, em (bem-sucedidos) trabalhos sociopedagógicos, que apostam no diálogo com jovens torcedores e reconhecem o valor positivo de se manter uma atmosfera festiva e atraente nas arquibancadas (Gabriel, 2013). No entanto, conforme retomaremos no próximo tópico, trabalhos de diálogo e educação como esses não estão entre as recomendações do PEGSDC.

Construção simbólica das recomendações para a contenção da violência nos espetáculos futebolísticos no Brasil

Já na introdução, o PEGSDC legitima suas recomendações afirmando que elas se imporão pela própria racionalidade, ou seja, contra elas, nada se pode fazer, a não ser que se seja um ser irracional. Diante disto, seus críticos são implicitamente desumanizados. Tais recomendações, evidentemente, refletem os modelos de referência apresentados anteriormente. Por exemplo, seguindo o afã punitivista do "tolerância zero", o PEGSDC recomenda algumas alterações no Estatuto do Torcedor (EDT)4 indicando-nos que a solução para a violência no futebol viria de um maior rigor penal.

Além de recomendar a alteração da legislação, o PEGSDC faz uma série de recomendações sobre o monitoramento do público, onde aborda, principalmente, as salas de controle. Estas são por ele consideradas o ponto mais importante num projeto de segurança no estádio, pois acabaria com o anonimato do torcedor. Ao fazer esse tipo de recomendação, o PEGSDC legitima um modelo panóptico de estádio, que, tal como a figura arquitetônica analisada por Michel Foucault (1975/2013), busca induzir os torcedores a um estado consciente e permanente de visibilidade. Conforme observam Christopher Gaffney e Gilmar Mascarenhas (2005-2006), esse modelo serve de base para uma "microfísica do poder", atomizando a massa e individualizando o torcedor. Com isso, opera como um poderoso mecanismo de controle social. Modelo que, ao ajudar a construir um espaço fortemente administrado, reforça a dominação do Estado sobre o torcedor, podendo, portanto, ser interpretado como potencialmente ideológico. Interpretação que é reforçada pelo fato de as câmeras de vigilância não oferecerem uma "visão da totalidade" como mecanismo de identificação. Em nenhum momento, por exemplo, o PEGSDC fala em monitoramento da polícia. Esta aparece como um elemento autônomo desse dispositivo de controle, ou seja, ela não está também sujeita à vigilância (Murzi & Uliana & Godio, 2011).

Conforme já destacamos, a violência policial desaparece de cena no PEGSDC, que omite o protagonismo da polícia nos confrontos relacionados ao futebol. Não à toa, limita-se a observar, muito vagamente, que é preciso criar grupos especializados em segurança em eventos esportivos e a defender que a polícia evite ostentar armamento pesado e utilizar roupas e símbolos que evoquem agressividade. Medidas mais concretas para reduzir a referida violência não são abordadas. Aqui, não é difícil inferir que isto se deva ao fato de ele não a posicionar como um problema. No máximo, como uma reação inevitável à (suposta) violência dos torcedores. Assim, ao não fazer nenhuma recomendação mais concreta para a redução da violência policial, o PEGSDC não abarca a profundidade do problema, contribuindo para manter tudo do jeito que está.

Outro problema é que ele se cala sobre a (ir)responsabilidade dos meios de comunicação. Afinal, nada diz sobre as narrativas estigmatizadoras por eles enunciadas contra os torcedores organizados (Lopes, 2013). Tampouco faz qualquer recomendação para transformar a linguagem jornalística habitualmente utilizada para abordar o futebol - que dramatiza o jogo ao publicar frases como "esse é um jogo de vida ou morte" (Alabarces, 2012). O PEGSDC limita-se apenas a sugerir que a mídia evite dar destaque a agressores, ou seja, basicamente, enfatiza a violência simbólica praticada pelo torcedor, deixando de lado aquela praticada pelos jornalistas. O PEGSDC tampouco problematiza os horários impostos pela televisão para os jogos realizados no período da noite, que dificultam e tornam mais insegura a volta do torcedor para casa, reforçando os privilégios e interesses dos meios de comunicação. Nesse sentido, ele é potencialmente ideológico.

Ele também é potencialmente ideológico na medida em que tende a sustentar relações de dominação de classe. Isso se deve ao fato de ele não apresentar nenhuma medida contra o processo de elitização do futebol brasileiro, como se esse processo não constituísse, também, uma forma de violência - especialmente contra as classes populares. Ausência que parece se relacionar diretamente com o fato de o PEGSDC passar por cima das controvérsias acerca do modelo de gestão e segurança adotado no Reino Unido, já que uma crítica habitualmente feita a esse modelo é que ele alimentou o processo de elitização do futebol. Assim, se, por um lado, a violência física - que costuma ganhar visibilidade pública e assustar, principalmente, as classes dominantes - desperta ampla atenção do PEGSDC; por outro, a violência estrutural, que exclui e destrói os laços solidários, é relegada ao silêncio.

Também são deixadas de lado propostas que poderiam ensejar uma transformação cultural mais profunda. Assim, enquanto medidas que situam a solução para o problema no incremento da repressão e do controle são, em geral, muito bem detalhadas (a minuciosa descrição de como devem ser as salas de controle é bastante ilustrativa); tais propostas, que operam no plano simbólico, são tratadas de forma bastante vaga - sugerindo-nos que o PEGSDC atribui menos importância a elas. Tanto é que ele menciona apenas muito brevemente a necessidade de a CBF, federações e clubes fornecerem serviços de ouvidoria, bem como a necessidade de realização de campanhas que possam convencer a sociedade civil a integrar-se ativamente numa forma menos violenta de torcer e a de realização de programas de conscientização das crianças sobre a importância da convivência entre contrários. O PEGSDC nada diz, por exemplo, sobre o conteúdo dessas campanhas e programas, que, dependendo da forma como for construído, poderá até reforçar estigmas e preconceitos contra certos grupos de torcedores ao invés de contribuir para a prevenção da violência.

De certa forma, essa desatenção a medidas de cunho mais cultural parece refletir a forma como o debate público acerca da violência no futebol brasileiro tem sido construído desde meados da década de 1990, quando promotores públicos e autoridades policiais passaram a ditá-lo, privilegiando medidas técnicas e de caráter repressivo (Toledo, 2012). Seguindo essa tendência, o PEGSDC não prevê a participação de pesquisadores que estudam o tema nos grupos de trabalho que devem dar continuidade às suas propostas. Da mesma forma, conforme já notamos, quase não faz uso de estudos científicos para elaborar suas análises e recomendações. Desta forma, como diria Alabarces (2012), se, por um lado, a "mão esquerda" do Estado financia - através das agências de pesquisa, por exemplo - estudos científicos sobre a violência no futebol; por outro, sua "mão direita" não os considera na produção de políticas de prevenção de tal violência.

Por último, destacamos que o PEGSDC faz uma série de recomendações para as torcidas organizadas - inclusive, dedicando um capítulo específico (capítulo 15) para elas. Embora apoie a realização de um fórum dessas torcidas, ele não prevê a participação das torcidas organizadas nos grupos de trabalhos que devem dar seguimento às suas propostas, excluindo-as do processo de elaboração de políticas públicas destinadas a elas próprias. Além de excluí-las desse processo, o PEGSDC sugere sua segregação em um setor específico dentro do estádio. Ainda que essa medida contemple a possibilidade de, em tal setor, assistir à partida de pé e entrar com faixas, bandeiras e instrumentos musicais, respeitando a "cultura torcedora" dos torcedores organizados, ela os aparta da convivência com outros torcedores, ao mesmo tempo em que serve como um mecanismo de controle social, que é reforçado pela proposta do seu cadastramento.

Para ingressar no setor destinado às torcidas organizadas, o PEGSDC sugere que os integrantes dessas torcidas tenham de, necessariamente, apresentar seu "cartão torcedor", que deverá ser feito pela federação local. Tal cartão deverá conter informações sobre seu dono gravadas em dispositivo para ser lido na entrada do referido setor e os dados nele contidos deverão, juntamente com outras informações cadastradas pela Polícia Militar, alimentar um banco de dados para a prevenção da violência. Além de atentar contra os direitos de intimidade, esta medida coloca os torcedores organizados na condição de criminosos potenciais, que devem ser identificados, classificados e, quando requerido, excluídos do espetáculo futebolístico5, ou seja, o cadastramento unifica os torcedores organizados numa identidade coletiva deteriorada, reforçando o processo de estigmatização desses torcedores. Mas se ele reforça tal processo, em certa medida, também pode ser considerado uma decorrência dele. Afinal, o estigma opera justamente dessa forma: desumaniza e, ao fazer isto, autoriza o controle social sobre o desumanizado (Goffman, 1963/1988). Nesse aspecto, o PEGSDC pode ser visto como uma produção potencialmente ideológica, na medida em que tende a manter tais torcedores em uma situação de subordinação.

 

Considerações finais

Neste trabalho, analisamos e interpretamos o potencial ideológico do PEGSDC e, com isto, buscamos contribuir para a reformulação da Política Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos Espetáculos Esportivos e para a criação de novos programas e projetos de prevenção da violência no futebol brasileiro que sejam mais justos e inclusivos. A partir dessa análise e interpretação, argumentamos que o PEGSDC adota uma narrativa que idealiza o cenário passado do futebol brasileiro e dramatiza a situação atual. Essa dramatização é expressa, entre outras formas, por meio da caracterização feita dos atores envolvidos com o fenômeno da violência: enquanto os torcedores organizados são simbolicamente construídos como perigosos, ameaçadores e irracionais, as vítimas das ações violentas atribuídas a eles são construídas como puras, indefesas e frágeis. Essa construção é ideologicamente relevante, pois contribui para o expurgo das torcidas organizadas.

Também argumentamos que o RT, a teoria da "vidraça quebrada" e o modelo de organização esportiva dos Estados Unidos são apontados como os principais modelos de referência para os espetáculos futebolísticos no Brasil. A fim de legitimar esses documentos, o PEGSDC faz uma série de apreciações positivas sobre eles e passa por cima de suas controvérsias. Além disso, faz uma série de recomendações sobre o monitoramento do público, legitimando um modelo panóptico de estádio. Por outro lado, não apresenta propostas que possam ensejar uma transformação cultural mais profunda e deixa na sombra a violência policial e a responsabilidade dos meios de comunicação em relação a uma série problemas do futebol. Ao dissimular esses aspectos, o PEGSDC tende a contribuir para manter intacta a estrutura de poder do futebol, podendo ser considerado potencialmente ideológico. Da mesma forma, pode ser considerado potencialmente ideológico na medida em que não apresenta questionamentos a respeito da elitização do futebol, naturalizando desigualdades e injustiças sociais.

Embora não seja imediata, a crítica da ideologia possui uma conexão intrínseca com a crítica da dominação, que está interessada em saber se determinadas relações sociais são justas. Evidentemente, não existe aqui uma regra segura. Mas, seguindo as reflexões de Thompson (2000), poderíamos arriscar a dizer que, para um acordo social ser justo e merecedor de apoio, é preciso que as pessoas diretamente afetadas por ele tenham, em princípio, o direito de participar. Por esta razão, finalizamos este trabalho defendendo a inclusão dos torcedores no processo de construção dos programas e projetos de prevenção à violência no futebol. Definitivamente, as decisões e acordos institucionais sobre os rumos do futebol profissional no país não podem ficar nas mãos apenas dos ditos "especialistas", mas devem contar com a ampla participação da sociedade - em especial, daqueles que estão excluídos das posições de poder. E, caso essa participação tenha como resultado "virar a mesa" em favor desses últimos, isto não será uma consequência nem surpreendente, nem indesejada.

 

Referências

Alabarces, P. (2012). Crónicas del aguante: fútbol, violencia y política. Buenos Aires: Capital intelectual.         [ Links ]

Brasil. Lei n. 12.299, de 27 de julho de 2010. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão aos fenômenos de violência por ocasião de competições esportivas; altera a Lei no 10.671, de 15 de maio de 2003; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12299.htm>. Acesso em: 12 dez. 2017.         [ Links ]

Dunning, E. (2013). Sociologia do esporte e os processos civilizatórios. São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Flores, L. F. B. N. (1982). Na zona do agrião: algumas mensagens ideológicas do futebol. In R. DaMatta (Org.), Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira (pp. 43-58) Rio de Janeiro: Pinakotheke.         [ Links ]

Foucault, M. (2013). Vigiar e punir: nascimento da prisão: história da violência nas prisões (41a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Originalmente publicado em 1975).         [ Links ]

Gabriel, M. (2013). 20 years of KOS 20 years of advice, dialogue and networking. In M. Gabriel, N. Selmer, & H. Thaler (Orgs.), Fan work 2.0: future challenges for the pedagogical work with football fans (pp. 27-41). Frankfurt: Imprenta.         [ Links ]

Gaffney, C., & Mascarenhas, G. (2005-2006). The soccer stadium as a disciplinary stadium. Esporte e Sociedade, 1(1), 1-16.         [ Links ]

Giulianotti, R. (2002). Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria.         [ Links ]

Goffman, E. (1988). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4a ed.). Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan. (Originalmente publicado em 1963).         [ Links ]

Guareschi, P. A. (2007). Ideologia. In M. G. C. Jacques, M. N. Strey, N. M. G. Bernardes, P. A. Guareschi, S. A. Carlos, & T. M. G. Fonseca. Psicologia Social contemporânea: livro-texto (10a ed., pp. 89-103). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Hollanda, B. B. B. (2009). O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras.         [ Links ]

Klein, M. A. (2005-2006). Preservar o espetáculo garantindo a segurança e o direito à cidadania: relatório final da fase I da Comissão Paz no Esporte. Brasília, DF: Ministério do Esporte; Ministério da Justiça. Recuperando em 26 de janeiro de 2012, de http://www.esporte.gov.br/arquivos/institucional/relatorioFinalPazEsporte.pdf        [ Links ]

Lopes, F. T. P. (2013). Dimensões ideológicas do debate púbico acerca da violência no futebol brasileiro. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 27(4), 597-612.         [ Links ]

Loseke, D. R. (2008). Thinking about social problems: an introduction to constructionist perspective (2a ed.). New Brunswick, NJ: Routledge.         [ Links ]

Lovisolo, H. (2011). Sociologia do esporte (futebol): converções argumentativas. In R. Helal, H. Lovisolo, & A. J. G. Soares (Orgs.), Futebol, jornalismo e Ciências Sociais: interações (pp. 11-32). Rio de Janeiro: EdUERJ.         [ Links ]

Monteiro, M. (2003). Estratégias discursivas ideológicas. In S. T. M. Lane, & B. B. Sawaia (Orgs.), Novas veredas da Psicologia Social (pp. 67-82). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Murad, M. (2012). A violência no futebol. São Paulo: Benvirá         [ Links ].

Murad, M. (2017). A violência no futebol: novas pesquisas, novas ideias, novas propostas (2a ed.). São Paulo: Benvirá         [ Links ].

Murzi, D., Uliana, S., & Sustas, S. (2011). El fútbol de luto: análisis de los factores de muerte y violencia en el fútbol argentino. In M. Godio, & S. Uliana (Comps.), Fútbol y sociedad: prácticas locales e imaginarios globales (pp. 175-196). Caseros, AR: Universidad Nacional de Tres de Febrero.         [ Links ]

Ramos, R. (1984). Futebol: ideologia do poder. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Reis, H. H. B. (2006). Futebol e violência. Campinas: Autores Associados.         [ Links ]

Rosemberg, F., & Andrade, M. P. (2007). Infância na mídia brasileira e ideologia. In A. M. Jacó-Vilela, & L. Sato (Orgs.), Diálogos em Psicologia Social (pp. 257-274). Porto Alegre: Evangraf.         [ Links ]

Teixeira, R. C. (2003). Os perigos da paixão: visitando jovens torcidas cariocas. São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Teixeira, R, C., & Hollanda, B. B. B. (2016). Espetáculo futebolístico e associativismo torcedor no Brasil: desafios e perspectivas das entidades representativas de torcidas organizadas no futebol brasileiro contemporâneo. Esporte & Sociedade, 11(28), 1-26.         [ Links ]

Thompson, J. B. (2000). Ideologia e cultura moderna: teoria social e crítica na era dos meios de comunicação de massa (4a ed.). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Toledo, L. H. (2012). Políticas da corporalidade: sociabilidade torcedora entre 1990-2010. In B. B. B. Hollanda, J. M. C. Malaia, L. H. Toledo, & V. A. Melo, A torcida brasileira (pp. 122-158). Rio de Janeiro: 7 Letras.         [ Links ]

Tsoukala, A. (2014). Administrar a violência nos estádios da Europa: quais racionalidades? In B. B. B. Hollanda, & H. H. B. Reis (Orgs.), Hooliganismo e Copa de 2014 (pp. 21-36). Rio de Janeiro: 7 Letras.         [ Links ]

Wacquant, L. (2001). As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Felipe Tavares Paes Lopes
ftplopes@yahoo.com.br

Heloísa Helena Baldy dos Reis
heloreis14@gmail.com

Submetido em: 20/04/2015
Revisto em: 03/05/2017
Aceito em: 18/07/2017

 

 

1 Nome fantasia da Comissão Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos Espetáculos Esportivos (Consegue).
2 Scientific Electronic Library Online (www.scielo.org); CD-ROM "Levantamento da produção sobre o futebol nas ciências humanas e sociais de 1980 a 2007" não localizei a referência; Banco de Teses da Capes (http://www.capes.gov.br/servicos/bancoteses.html); Biblioteca da Universidade Estadual de Campinas (http://www.sbu.unicamp.br); Biblioteca da Universidade de São Paulo (http://dedalus.usp.br); Biblioteca Nadir G. Kfouri da PUC-SP (http://biblio.pucsp.br).
3 Este (suposto) esvaziamento é por si só controverso, já que a média de público pagante no Campeonato Brasileiro tem oscilado bastante ao longo dos anos.
4 Recordando que o PEGSDC é anterior à Lei nº 12.299/2010, que alterou e complementou o EDT.
5 Em certa medida, essa violação da intimidade não se limita aos torcedores organizados; ela é apenas mais intensa nesse grupo. Recordemos que os demais torcedores também têm de se sujeitar à revista policial, por exemplo. Inclusive, nos terminais de ônibus e estações de trem ou de metrô, em jogos considerados de risco. Neste caso, no entanto, o alvo da revista é, sobretudo, o torcedor pobre, o que reforça o preconceito e a dominação de classe.

Creative Commons License