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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.69 no.3 Rio de Janeiro  2017

 

ARTIGOS

 

Intervenção psicológica em vítimas de estupro na cidade de São Paulo

 

Psychological intervention in rape victim in the city of São Paulo

 

Intervención psicológica con mujeres que sufrieron estupro en la ciudad de São Paulo

 

 

Erick Pereira da SilvaI; Lucilena VagostelloII

IPsicólogo. Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil
IIDocente, psicóloga. Universidade São Judas Tadeu (USJT), Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A intervenção psicológica com vítimas de estupro é essencial para a reorganização psíquica da mulher. Este estudo objetivou analisar, por meio da experiência profissional de psicólogas, as especificidades do processo de intervenção terapêutica em mulheres vítimas de estupro. Foram realizadas entrevistas semidirigidas com cinco psicólogas que atuam em serviços públicos de saúde - hospitais e em Centros de Referência a vítimas de violência sexual - na cidade de São Paulo. Os resultados foram analisados por meio de análise de conteúdo. As vítimas ingressam no atendimento com vivências intensas de angústia, sentimentos de tristeza, vergonha, medo e culpa. Algumas profissionais fazem uso de procedimentos específicos como hipnose, inventários e técnicas projetivas. De modo geral, o trabalho psicoterápico, focal ou não, visa criar condições para que as vítimas superem o evento traumático e retomem sua rotina.

Palavras-chave: Violência contra a mulher; Agressões sexuais; Tratamento; Saúde mental; Atuação do psicólogo.


ABSTRACT

Psychological intervention in rape victim is essential to woman's health and reorganization. This study aimed to analyze the specificity of the therapeutic intervention process in female rape victims through psychologists' professional experience. Semi-structured interviews have been carried out by five psychologists who work in the health service - hospitals and centers for attention to women victims of sexual violence - in the city of São Paulo. Results were analyzed through content analysis. Victims come to the health service with anguish, sadness, shame, fear, and guilt. Some professionals use specific procedures as hypnosis, inventories, and projective techniques. Altogether, the therapeutic work, being focal or not, aims to create conditions so that the victims can overcome the traumatic event and resume their lives routine.

Keywords: Violence against woman; Sexual assaults; Treatment; Mental health; Psychologist's work.


RESUMEN

La intervención psicológica con víctimas de estupro es fundamental para la reorganización psíquica de la mujer. Este estudio tuvo como objetivo analizar, por medio de la experiencia profesional de psicólogas, las especificidades del proceso de intervención terapéutica en mujeres víctimas de estupro. Se realizaron entrevistas semi-dirigidas con cinco psicólogas que actúan en servicios públicos de salud - hospitales y en Centros Especializados para víctimas de violencia sexual - de la ciudad de São Paulo. Los resultados se analizaron mediante el análisis de contenido. Las víctimas empiezan el atendimiento con vivencias fuertes de angustia, sentimientos de tristeza, vergüenza, miedo y culpa. Algunas profesionales hacen uso de procedimientos específicos como hipnosis, inventarios y técnicas proyectivas. De manera general, el trabajo psicoterápico, focal o no, visa crear condiciones para que las víctimas superen el evento traumático y retomen sus rutinas de vida.

Palabras clave: Violencia contra la mujer; Agresiones sexuales; Tratamiento; Salud mental; Actuación del psicólogo.


 

 

Introdução

O World Report on Violence and Health, publicação da Organização Mundial da Saúde, define a violência sexual como qualquer ato ou tentativa que vise à satisfação sexual do agressor como comentários indesejáveis ou investidas contra a sexualidade de uma pessoa por meio de coerção. Ainda de acordo com esse relatório, o estupro é definido como "penetração forçada fisicamente ou de outra forma coagida - mesmo que leve - da vulva ou ânus, usando o pênis, outras partes do corpo ou objeto" (Krug, Dahlberg, Mercy, Zwi & Lozano, 2002, p. 149)i.

No Brasil, até o ano de 2009, o estupro e o atentado violento ao pudor eram considerados crimes contra os costumes, sendo o primeiro restrito à conjunção carnal e o último às demais práticas sexuais como sexo anal, sexo oral, toques e manipulações com ou sem objetos. Com as modificações da Lei nº 12.015/2009, o estupro deixou de ser um crime contra os costumes e tornou-se um crime contra a dignidade sexual, incorporando em sua definição os atos anteriormente tipificados como atentado violento ao pudor (Merlo, 2009).

A violência contra a mulher extrapolou os limites jurídicos e estendeu-se para o território da saúde, sobretudo da saúde mental. A literatura especializada aponta que transtornos de estresse pós-traumático, depressivos, de ansiedade e alimentares, distúrbios sexuais e de humor, as alterações no sono e comportamentos evitativos e suicidas, com frequência, são desencadeados em vítimas de estupro (Souza, Drezett, Meirelles, & Ramos, 2013; Facuri, Fernandes, Oliveira, Andrade, & Azevedo, 2013; Facuri, 2012; Drezett & Pedroso, 2012; Prado & Pereira, 2008; Faúndes, Rosas, Bedone & Orozco 2006; Sudário, Almeida, & Jorge, 2005). A perda significativa da qualidade de vida, o consumo abusivo de drogas e/ou álcool, o comprometimento da autoimagem e o prejuízo dos vínculos afetivos e sociais também são recorrentes nesses casos (Souza et al., 2013; Facuri et al., 2013).

O surgimento de ansiedades sob a forma de medo, vergonha e culpa são comuns em vítimas de violência sexual (Souza et al., 2013; Facuri, 2012; Labronici, Fegadoli, & Correa, 2010; Mattar et al., 2007; Sudário et al., 2005). Nos primeiros momentos, a ansiedade da mulher relaciona-se à sua integridade física, ou seja, ao medo de perder a vida, de contrair doenças sexualmente transmissíveis, sobretudo HIV, e de engravidar (Villela & Lago, 2007); nos períodos subsequentes, também é comum o medo permanente de ficar só, de sair de casa ou de reencontrar o estuprador (Souza, 2013; Sudário et al., 2005; Figueira & Mendlowicz, 2003; J. R. Santos, 2001).

Nas vítimas de estupro, a culpa aparece associada às fantasias de que elas foram responsáveis pela violência, seja pela roupa que estavam usando na ocasião, seja pelo horário em que se encontravam fora de casa ou ainda por acreditarem que poderiam ter se defendido do agressor. Ao sentirem-se parcialmente responsáveis pela violência, as mulheres temem que o estupro se torne público e que elas sejam estigmatizadas, culpabilizadas ou rejeitadas socialmente (Souza, 2013; J. R. Santos, 2001).

Outras reações imediatas como tristeza, pesadelos e insônia, sentimentos de humilhação e de solidão, são comuns nos períodos iniciais (Facuri et al., 2013; Martins & Martins, 2011). Muitas mulheres sentem-se sujas e procuram tomar banho na tentativa de se livrarem da sensação de sujeira e dos "vestígios" do agressor que simbolicamente permanecem em seus corpos (Souza, 2013).

Em médio e longo prazo, destacam-se os efeitos como depressão e nervosismo crônicos, falta de prazer nas relações sexuais, distúrbios psicossomáticos, isolamento social, dificuldade nos relacionamentos familiares, sentimento de insegurança e medo constante de ocorrer um novo abuso (Facuri et al., 2013; Martins & Martins, 2011; Machado, Azevedo, Facuri, Vieira, & Fernandes, 2011; Sudário et al., 2005). Na esfera da sexualidade, especificamente, o estupro pode comprometer a capacidade de relacionar-se com pessoas do sexo oposto ou inibir a satisfação sexual da mulher em razão da inibição da libido, anorgasmia ou dor genital durante e após o ato sexual (Souza, 2013; Souza et al., 2013; Martins & Martins, 2011; Levine & Frederick, 1999).

A vivência traumática do estupro leva muitas mulheres a almejar a "invisibilidade social" por meio de ganho de peso, do desleixo pessoal e da remoção de elementos que possam torná-las sexualmente atraentes. Essas tentativas de desvalorização da imagem pessoal e de anulação da feminilidade intensificam a diminuição da autoestima da mulher e dificultam a sua reorganização emocional (Souza, 2013; Souza et al., 2013; Levine & Frederick, 1999).

Os efeitos do estupro afetam diferentes esferas da vida da mulher, por isso a intervenção às vítimas fundamenta-se na interdisciplinaridade e na articulação de uma rede de cuidados diversificada. A equipe de atendimento às vítimas envolve médicos, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais (Azambuja, 2013; Souza et al., 2013; Vallejo Samudio & Córdoba Arévalo, 2012; Labronici et al., 2010; Mattar et al., 2007; Bedone & Faúndes, 2007; Mattevi, Jaeger, & Ceitlin, 2007; Faúndes et al., 2006; Habigzang, Hatzenberger, Corte, Stroeher, & Koller, 2006).

O processo psicoterápico de orientação cognitivo-comportamental com vítimas de estupro propõe uma intervenção diretiva, estruturada e orientada para a redução dos sintomas agudos, dos níveis de estresse e do sofrimento psíquico, cujo objetivo é o ganho de autonomia e a melhora na qualidade de vida da mulher. Para isso, a literatura destaca a importância do processo de reestruturação cognitiva por meio de técnicas de autodiálogo, dessensibilização sistemática, parada de pensamento, desempenho de papéis, respiração profunda para relaxamento, treino em solução de problemas, treino de habilidades sociais, entre outros (Vallejo Samudio & Córdoba Arévalo, 2012; Lucânia, Miyazaki & Domingos, 2008).

Lucânia et al. (2008) sugerem que o processo terapêutico compreenda as etapas de avaliação inicial, intervenção, avaliação final e acompanhamento após a alta. A evolução do trabalho e a avaliação de alta devem ser consideradas de acordo com a remissão dos sintomas e com a aquisição de novos repertórios cognitivo-comportamentais (Vallejo Samudio & Córdoba Arévalo, 2012; Lucânia et al., 2008).

Na perspectiva psicanalítica, Bessoles e Lago (2010) apresentam uma proposta de intervenção cujo objetivo essencial é o restabelecimento da confiança no outro, em especial no sexo oposto. Esse trabalho privilegia a criação de um espaço terapêutico acolhedor, construído gradativamente pela promoção e expressão dos afetos na dinâmica transferencial. Com a evolução do atendimento, a paciente poderá vivenciar o desejo de vingança ou de retratação pela violência sofrida, facilitando a projeção da figura do agressor no terapeuta, possibilitando atacá-lo verbalmente com toda a sua agressividade. Assim, a dinâmica transferencial favorece a criação de um ambiente continente à destrutividade da paciente (Bessoles & Lago, 2010; Eizirik, Polanczyk, Schestatstky, Jaeger, & Ceitlin, 2007).

Para Bessoles e Lago (2010), a psicoterapia deve possibilitar à mulher a reapropriação do desejo de relacionar-se com o outro, de sentir prazer e de permitir-se seduzir e ser seduzida. Nesse momento do processo psicoterapêutico, é possível que novos objetivos, interesses e escolhas profissionais ou afetivas sejam estabelecidos pela paciente. Com a evolução do tratamento, espera-se que a paciente, em alguma medida, elabore a violência sofrida e permita que o trauma deixe de ser sentido como um estado de perigo eminente e seja percebido como um evento que será lembrado pela mulher, porém sem o poder de determinar condutas e atitudes em sua vida.

Além da psicoterapia individual, o trabalho grupal também se revela eficaz no tratamento, uma vez que o grupo favorece a comunicação da própria história e a troca de experiências. A verbalização da vivência traumática e a identificação com outras mulheres auxiliam na progressiva integração de sentimentos, na elaboração e na ressignificação do trauma, permitindo que novos objetivos e perspectivas de vida sejam estabelecidos (Mattevi et al., 2007; Habigzang et al., 2006; Mingote, Machón, Isla, Perris, & Nieto, 2001).

Embora pouco extensa, a literatura sobre intervenção psicológica com vítimas de estupro entende que o trabalho psicoterápico deve privilegiar a promoção da resiliência (Viola, Schiavon, Renner & Grassi-Oliveira, 2011; Peres, Mercante & Nasello, 2005; Diefenthaeler, 2003). Em outros termos, espera-se que a paciente elabore e reavalie, gradativamente, a experiência traumática (Vallejo Samudio & Córdoba Arévalo, 2012, 2012; Mattevi et al., 2007; Habigzang et al., 2006; Mingote et al., 2001) e seja capaz de retomar as atividades de sua vida (Mian & Summergrad, 1994).

Bessoles e Lago (2010) ressaltam que, em razão da natureza da violência, o psicólogo precisa respeitar os limites da mulher e aceitar que nem tudo pode ser dito sobre o evento traumático. Assim, o trabalho psicoterápico precisa preservar o senso de intimidade da mulher e atentar para que os seus limites e barreiras não sejam invadidos, pois caso contrário o trabalho terapêutico pode representar uma reedição da violência sofrida e uma ameaça à sua integridade psíquica.

Em face da relevância da intervenção psicológica para a clínica do traumatismo sexual em vítimas adultas, o presente estudo teve como objetivo compreender e analisar, por meio da experiência de psicólogas inseridas em serviços públicos de saúde da atenção terciária, as especificidades da intervenção terapêutica em mulheres vítimas de estupro. Dentre os objetivos específicos, buscou-se compreender as condições das vítimas ao iniciarem o atendimento, os objetivos e as características do acompanhamento psicológico e as expectativas da profissional na realização desse trabalho.

 

Material e método

Participaram do estudo cinco psicólogas, entre 40 a 56 anos de idade, com tempo médio de formação em Psicologia de 24,4 anos. Todas as participantes possuem especialização na área da saúde e tempo médio de experiência de 12,4 anos na área de violência sexual contra a mulher.

As participantes atuam em cinco diferentes serviços públicos de saúde da cidade de São Paulo, sendo três Centros de Referência a vítimas sexuais e dois hospitais que oferecem suporte psicológico às vítimas durante a internação.

De modo geral a violência sexual praticada por parceiro íntimo não é reconhecida e nomeada como estupro pela sociedade e pela própria vítima, o que reduz ainda mais a busca da mulher por serviços de atendimento especializados. Por esse motivo, optou-se por delimitar o presente estudo com profissionais que realizam o atendimento de mulheres vítimas de violência sexual promovida por autor desconhecido.

Inicialmente foi realizada uma busca, via internet, dos serviços públicos de saúde que oferecem suporte psicológico a vítimas de violência sexual na cidade de São Paulo. No total, foram identificadas seis instituições.

Após aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética da Universidade São Judas Tadeu (CAAE no 29417814.3.0000.0089), as profissionais desses serviços foram contatadas, por telefone, em seus locais de trabalho e informadas sobre os objetivos e procedimentos metodológicos do estudo. Apenas uma profissional não aceitou participar da pesquisa.

Foram empregadas entrevistas semidirigidas para explorar diferentes aspectos da intervenção psicológica: fundamentos teóricos da intervenção, condições das vítimas no início da intervenção psicológica, objetivos e etapas do processo terapêutico, técnicas ou procedimentos empregados, resultados esperados, limites da intervenção e sentimentos vivenciados pelas profissionais.

As entrevistas, agendadas previamente, foram realizadas nos respectivos locais de trabalho das participantes, em ambiente reservado. Todas as entrevistas foram gravadas em aparelho de áudio e transcritas na íntegra.

Para análise dos dados foi utilizado o método de análise de conteúdo (Bardin, 1977/2007; Mozzato & Grzybovski, 2011) e cada tema abordado na entrevista foi considerado uma dimensão de análise. As transcrições das entrevistas foram submetidas a várias leituras para exploração do material e identificação de unidades temáticas. O conteúdo das entrevistas foram comparados, em cada uma das dimensões de análise, para a identificação de convergências e divergências entre as participantes. Os resultados foram confrontados com dados da literatura especializada.

 

Resultados e discussão

Condições das vítimas de estupro no início da intervenção psicológica

As vítimas de violência sexual por autor desconhecido podem chegar aos serviços de saúde por meio de encaminhamento policial (após lavratura de boletim de ocorrência), encaminhamento de outro serviço de saúde (prontos-socorros) ou, ainda, por inciativa da própria vítima. Todas as participantes referiram que a intervenção psicológica pode ocorrer imediatamente após a violência ou tardiamente. Neste último caso, geralmente a busca por suporte psicológico é motivada pelo agravamento de sintomas ou, ainda, pela descoberta de gravidez decorrente de estupro.

As participantes mencionaram que todas as vítimas de estupro iniciam o atendimento psicológico em condição de sofrimento psíquico e com intensas vivências de angústia. De modo geral, as profissionais destacaram que as pacientes apresentam-se fragilizadas, ansiosas, desesperadas, conforme os trechos:

"[...] essas pacientes chegam muito mais abaladas, né. Muito mais angustiadas, com sofrimento muito mais intenso, muito mais à flor da pele, exatamente por ser algo agudo." (P3);

"[...] elas chegam realmente assim, numa situação de muita sensibilidade, muita tristeza, principalmente quando elas vêm após o, né, após ter ocorrido [...] realmente elas vêm numa situação muito frágil, muito fragilizadas (P4)".

Quatro participantes (P1, P2, P4 e P5) apontaram a presença de medo, vergonha e culpa nas vítimas, sendo que cada participante destacou pelo menos duas dessas reações. De modo geral, a tríade medo-vergonha-culpa manifesta-se em crianças e adultos submetidos às mais variadas formas de violência sexual. Em casos do estupro especificamente, a literatura refere que as vítimas tendem a não sair sozinhas de casa e a recorrer ao isolamento como uma forma de proteção, pois temem reencontrar o agressor e/ou ter sua intimidade violada novamente (Souza, 2013; Sudário et al., 2005; Figueira & Mendlowicz, 2003; J. R. Santos, 2001).

"[...] elas não acreditam mais em nada, estão assustadíssimas, estão apavoradas, o suporte psicológico delas sumiu, elas não têm mais onde se segurar..." (P1).

No que se refere à vergonha, as participantes P2 e P5 destacaram a preocupação das mulheres com a repercussão social do estupro, preferindo evitar sua exposição. Ademais, o sentimento de vergonha também impacta nos períodos inicias do atendimento psicológico:

"[Chegam] acometidas pelo sentimento de vergonha, acabam se calando pela vergonha, pelo medo, pela culpa e tendo dificuldade de expor seus sentimentos." (P2);

"As que chegam logo após, nem sempre tão após assim, elas chegam muito envergonhadas, deprimidas, né, muita dificuldade até de verbalizar o que aconteceu. É assim, inicialmente a gente vai entrar em contato com uma mulher que tá muito envergonhada." (P5).

Muitas mulheres que vivenciam sentimentos de vergonha, sentem-se rejeitadas e estigmatizadas pela sociedade, por familiares e amigos (Souza, 2013; Martins & Martins, 2011; J. R. Santos, 2001). A vergonha e o temor de serem julgadas mobilizam sentimentos de natureza persecutória e levam as vítimas a perceber o seu entorno social como acusatório, como se a sociedade as recriminasse pela violência da qual foram vítimas (Souza, 2013). Assim, algumas mulheres consideram-se responsáveis pelo estupro e consideram que poderiam tê-lo evitado de alguma maneira, conforme descrito pela participante P1:

"[...] elas começam a dizer que elas são culpadas, quem mandou elas saírem de madrugada sabe, 'Porque eu deixei? Devia ter feito isso ou ter feito aquilo' [...]" (P1).

Segundo Souza (2013) muitas mulheres acreditam que foram demasiadamente passivas ou que não se esforçaram para se defender do agressor, culpando-se por não reagirem de forma mais enérgica durante o evento.

A participante P1 ressaltou a manifestação de quadros psiquiátricos específicos como depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e dissociação em mulheres que sofreram estupro.

Elas chegam bastante, eu diria, com depressão e ansiedade juntos, elas fazem o misto de depressão e ansiedade [...] elas têm realmente dissociação por ansiedade, despersonalização, demora muito pra aceitar nelas mesmo uma condição de vítima, elas dizem que... Que não foram com elas, que aquilo não pode tá acontecendo. [...] o estresse pós-traumático, menos da metade não desenvolve, ela mesma sai desse estresse agudo e se resolve e, algumas vão desenvolver mesmo estresse pós-traumático, é da própria estrutura da pessoa (P1).

Além de P1, outras duas participantes (P4 e P5) também destacaram a presença de depressão ou de intensa tristeza, que se expressam sob a forma de desânimo, isolamento, falta de perspectiva de futuro e vazio existencial. Estes efeitos, com frequência, aparecem associados a estados depressivos ou à depressão em vítimas de estupro (Facuri et al., 2013; Martins & Martins, 2011; Machado et al., 2011; Sudário et al., 2005).

De acordo com a participante P1, muitas pacientes apresentam reminiscências que surgem sob a forma de pensamentos ou de sentimentos intrusos relacionados ao evento traumático, mesmo após algum tempo do ocorrido. Segundo Figueira e Mendlowicz (2003, p. 14), essas intrusões tendem a gerar "medo, terror, raiva, impotência, vulnerabilidade, vergonha, tristeza e culpa" e podem levar as vítimas ao isolamento social e ocupacional.

A sensação de sujeira e o sentimento de nojo em relação ao próprio corpo, referidos na literatura (Souza, 2013; Souza et al., 2013; Martins & Martins, 2011; J. R. Santos, 2001), foi mencionado pela participante P1. Além disso, o medo de engravidar e de contrair doenças sexualmente transmissíveis são frequentes nos primeiros momentos e, quando ocorrem, representam uma reedição da violência para as vítimas (Souza, 2013; Sudário et al., 2005; Figueira & Mendlowicz, 2003; J. R. Santos, 2001). A participante P2 destacou o predomínio da preocupação com a própria saúde física nos períodos iniciais do atendimento:

É interessante que a maioria não tem uma preocupação tão grande com a punição com esse autor da agressão sexual, na verdade elas querem se cuidar, se tratar, pensam em sua saúde psicológica, mas principalmente em sua saúde física, ficam pensando nas doenças sexualmente transmissíveis... (P2).

Fundamentos teóricos da intervenção

Quanto à especificidade da atuação profissional, quatro participantes (P2, P3, P4 e P5) fundamentam suas intervenções em abordagens psicanalíticas e uma participante (P1) em cognitivo-comportamental. Publicações fundamentadas em ambos os referenciais sobre intervenção em situações de violência sexual são as mais recorrentes na literatura (Vallejo Samudio & Córdoba Arévalo, 2012; Bessoles & Lago, 2010; Lucânia et al., 2008; Habigzang et al., 2006; Mingote et al., 2001).

Objetivos do processo terapêutico

Em relação aos objetivos do tratamento, as quatro profissionais que atuam no processo psicoterapêutico com as mulheres (P1, P2, P3 e P4) referiram buscar, por meio da intervenção psicológica, a reintegração da mulher. Destacam que, com isso, as vítimas conseguem, progressivamente, reassumir o controle das suas vidas e retomar as suas atividades sociais rotineiras como trabalhar, estudar e sair às ruas sozinhas.

O objetivo é exatamente trabalhar essas questões que elas próprias trazem né, para que elas elaborem esse trauma, esse sofrimento, da melhor forma possível e passem a retomar sua vida, sua rotina diária com menos sofrimento né, de uma forma mais tranquila... (P3).

O objetivo é que elas retomem a vida, consigam trabalhar, que elas consigam voltar a estudar, né, é que elas tenham um objetivo novamente de vida. A questão da sexualidade, que ela retome isso de uma forma tranquila, saudável. [...] muitas vezes podem tirar alguma coisa do evento que aconteceu, não por destruição, mas que ela possa aproveitar isso para uma outra experiência... (P4).

Nesse sentido, a literatura destaca o caráter favorecedor do processo psicoterapêutico para a integração da experiência traumática e sua ressignificação. A evolução do tratamento pode permitir a reconstrução psíquica da vítima, o reestabelecimento de conexões entre funções psíquicas dissociadas, a recuperação de interesses perdidos, como a sexualidade e o desejo de relacionar-se com o outro, além de permitir que novos objetivos e perspectivas sejam estabelecidos (Vallejo Samudio & Córdoba Arévalo, 2012; Bessoles & Lago, 2010; Mattevi et al., 2007; Mingote et al., 2001).

A participante P2 pareceu focar o trabalho psicoterapêutico na supressão dos sintomas e na possibilidade de retomada das atividades diárias de modo similar ao período anterior ao evento, perspectiva que também é citada na literatura (Mian & Summergrad, 1994): "

Eu acho que o mais importante é pensar em ela retomar a vida dela com qualidade, tá. Que ela possa fazer tudo que ela fazia antes desse estupro, normalmente. [...] Retomar seus relacionamentos, retomar seu relacionamento sexual" (P2).

A participante P1, cuja área de especialização profissional é diretamente relacionada à medicina, destacou o caráter preventivo do trabalho psicoterapêutico na manifestação de comorbidades. Sua intervenção, com ênfase na reorganização e na reestruturação cognitiva da mulher, visa favorecer a modificação de crenças relacionadas à violência, como o sentimento de culpa.

[...] o objetivo é sempre de prevenir comorbidades, é sempre de prevenir, de fazer a reestruturação das crenças, [...] [Elas] precisam rever, elas precisam reorganizar a mente delas, mas tirando aquelas impressões que ficaram [...] promover nelas alguma forma diferente, formas novas de criar crenças, não baseadas mais naquele sofrimento [...] a gente quer agora aquelas crenças baseadas na superação (P1).

A literatura destaca a importância da intervenção psicológica em vítimas de eventos traumáticos na prevenção de transtornos de estresse pós-traumático, de pânico, fobias, depressão, entre outros (Souza, 2013; Peres et al., 2005; Mingote et al., 2001). Para Habigzang et al. (2009, p. 76) as técnicas de reestruturação cognitiva promovem o desenvolvimento de crenças mais funcionais em relação à experiência do estupro e contribuem significativamente na redução de sintomas como comportamento evitativo, hipervigilância, revivência traumática, depressão, ansiedade e TEPT.

A participante P5 não realiza o acompanhamento das vítimas. A intervenção desta profissional, de orientação psicanalítica, objetiva o acolhimento inicial e a mobilização da mulher para o trabalho psicoterapêutico. Este último é realizado por outros serviços da rede de saúde pública, após encaminhamento.

Etapas do processo terapêutico

Quanto às etapas do processo interventivo, todas as participantes realizam entrevistas iniciais para oferecer acolhimento e suporte à mulher e também, conforme assinalou P2, para compreender a sua história de vida. O acolhimento, de acordo com E. T. Santos (2005), é uma intervenção que não se limita ao ato de receber alguém, mas representa a oferta de uma escuta qualificada e sensível, a valorização da demanda e a identificação das fontes de sofrimento, o que pressupõe capacidade de empatia e de envolvimento com o outro.

Após as entrevistas iniciais, as profissionais P2, P3 e P4 iniciam o processo de psicoterapia individual de orientação psicanalítica, com duração determinada pela demanda de cada caso:

[...] a gente começa primeiro com uma entrevista inicial, onde a gente vai... tentar mapear um pouquinho a história dela e o estado que ela se encontra para poder a partir daí fazer o que a gente chama de projeto terapêutico [...] não tem um tempo de duração mínimo/máximo, na verdade acaba atendendo de acordo com a demanda de cada caso (P2).

[...] primeiro momento é dar apoio pra essa paciente [...] não tem um tempo específico de atendimento, assim, às vezes, são seis meses, nove, dependendo da demanda da paciente [...] os retornos dependem também da demanda, às vezes tem pacientes que vêm muito fragilizadas, com muito medo, então tem paciente que eu marco duas vezes (P4).

A profissional P1 intervém em psicoterapia breve individual, de orientação cognitivo-comportamental, com duração de seis a 12 sessões. Após a remissão dos sintomas agudos e a reorganização emocional, a paciente é encaminhada para um grupo psicoeducativo.

"São 12 sessões para tirar dessa situação aguda, depois a gente encaminha pra um grupo, um grupo que a gente vai tratar de promover resiliência, colocar de volta essa pessoa na sociedade, na volta pra escola, volta pro trabalho, que ela comece a lidar com a vida dela novamente" (P1).

Para Vallejo Samudio & Córdoba Arévalo (2012) e Lucânia et al. (2008) o acompanhamento psicoterapêutico, independentemente da abordagem teórica, deve proporcionar um ambiente seguro e de aceitação para que a mulher se sinta acolhida e protegida, bem como aliviar o sofrimento. Assim, o trabalho realizado pelas participantes converge com a perspectiva desses autores.

Técnicas ou procedimentos empregados

Além de entrevista, três participantes fazem uso de recursos específicos. A participante P3 utiliza técnicas projetivas, como o Procedimento de Desenho-Estória e o teste House-Tree-Person (HTP), com finalidade diagnóstica e mediadora da comunicação, sobretudo quando a paciente tem dificuldade para expor seus sentimentos, o que é comum nesses casos. As participantes P2 e P3 também empregam desenhos como facilitadores da comunicação com as pacientes:

Eu trabalho com técnica de desenho livre, com as pacientes adultas [...] com o objetivo de poder verificar quais que são as demandas que surgem a partir da aplicação desse desenho livre (P2).

Eventualmente eu uso alguma técnica projetiva, [...] se ela não tá conseguindo falar espontaneamente, então às vezes tento abordá-lo de uma outra forma [...] um HTP ou desenho-estória ou desenho livre, onde eu peço para ela falar sobre o desenho e aí a gente vai trabalhando aquele material trazido (P3).

De acordo com Schaurich (2011), o uso de testes projetivos favorece a associação livre, o contato dos pacientes com seus conteúdos internos e a expressão de conflitos, sem entrar em contato de maneira explícita com elementos ansiógenos. Além disso, esses instrumentos também favorecem a comunicação entre o profissional e o paciente, sobretudo nos casos em que o paciente encontra-se muito defendido e com dificuldades de expor seus sentimentos.

A psicóloga que trabalha na abordagem cognitivo-comportamental (P1) utiliza instrumentos de avaliação objetivos, como os inventários de estresse e de impacto do evento na vida da mulher, para avaliação da eficácia terapêutica e como critério de alta na psicoterapia individual. Esta profissional também faz uso de técnicas de relaxamento para a redução da ansiedade e de hipnose para promover o contato progressivo com o evento traumático e a dessensibilização em relação a ele.

Em casos de transtornos de estresse agudo e pós-traumático, alguns autores sugerem o emprego de estratégias específicas que promovam o enfrentamento de conteúdos ansiógenos e das memórias do evento estressor, como a hipnose e a terapia de exposição (Romani-Sponchiado, Silva e Kristensen, 2013; Peres et al. (2005); Mingote et al., 2001; Cardeña, Maldonado, Galdón & Spiegel, 1999). A terapia de exposição visa à redução de respostas de ansiedade por meio de confrontos sistemáticos do paciente com as memórias do evento traumático e, quando aplicada no período em que a vítima se encontra com transtorno de estresse agudo (TEA), pode reduzir sintomas evitativos. Para Romani-Sponchiado et al. (2013, p. 71), a terapia de exposição, associada à terapia cognitiva-comportamental breve e à técnica de reestruturação cognitiva, mostra-se altamente eficiente no "processo de remissão da sintomatologia pós-traumática".

O trabalho da hipnose com memórias do evento traumático visa possibilitar a reinterpretação dessa experiência, modificando crenças disfuncionais e extinguindo respostas desadaptadas, como ansiedade, por exemplo. Para Cardeña et al. (1999), é possível fazer uso da sugestão hipnótica para relaxar pacientes ansiosos nas etapas iniciais do tratamento e, posteriormente, trabalhar com memórias traumáticas. Para esses autores, uma das vantagens da hipnose é que ela proporciona um confronto controlado do paciente com as lembranças da experiência traumática e com as emoções relacionadas a elas. Ademais, a hipnose também pode auxiliar na redução de sintomas comuns de pacientes pós-traumáticos como dor física e distúrbios do sono.

 

Resultados esperados

As quatro profissionais que realizam intervenção psicoterápica (P1, P2, P3 e P4) esperam, como resultado terapêutico, que as pacientes retomem os seus relacionamentos sociais, sexuais e suas atividades diárias:

[...] reestruturar a vida delas de acordo com formas novas, com pensamentos diferentes, esse é o objetivo, fazer com que elas, principalmente, sair da posição de vítima sabe, e se fortalecer e reintegrar na sociedade de novo. [...] eu tenho conseguido, a gente tem conseguido esses resultados bastante acentuados (P1).

[...] é observado na própria fala dela, se ela está melhor ou não, se ela voltou à sua rotina ou não, como é que tá esse sofrimento, essa angústia [...] a alta é só dada a partir dessa observação de que elas estão bem melhores, com menos sofrimento, lidando melhor com essa situação (P3).

[...] retomar a vida dela, né, em todos os sentidos, no sentido da sexualidade dela, no trabalho, nas esperanças, de ter um objetivo de vida, né, de continuar sonhando e poder fazer com que isso não a marque tão fortemente, que acabou a vida dela [...] Se é atingível? Eu creio que sim, né (P4).

Esses resultados também são norteadores para a alta terapêutica das pacientes. De acordo com as participantes, não é realizado acompanhamento após a alta, mas as pacientes podem retornar para a psicoterapia, caso considerem necessário (P2, P3 e P4):

Quando eu dou alta para os meus pacientes, eu sempre coloco para elas que elas podem me procurar quando quiserem, né, independente da alta. Que eu estarei sempre aqui, né (P3).

Na verdade, assim quando a paciente ela resgata a vida, ela vai cuidar das coisas dela [...] se ela precisar voltar, que volte, nos procure, mas [...] não tem nenhum tipo de acompanhamento ou avaliação após o atendimento aqui (P4).

Embora não exista a oferta de acompanhamento pós-alta nos serviços onde essas participantes trabalham, esse procedimento é recomendado pela literatura especializada para a identificação de eventuais regressões e de retorno de sintomas. Nesse sentido, Lucânia et al. (2008) sugerem que os atendimentos pós-alta sejam gradativamente reduzidos para que o desligamento não seja vivenciado como choque ou abandono.

Limites da intervenção

As participantes mencionaram problemas estruturais como a falta de profissionais de saúde mental na rede pública de saúde. As participantes P4 e P2 destacaram, respectivamente, a escassez de médicos psiquiatras e de psicólogos para atender essa demanda:

[...] o meu problema maior é meu respaldo de psiquiatria. Algumas pacientes você vê que está no limite e, às vezes, você fica muito angustiada porque você não tem, olha, eu preciso de um médico que possa tá indicando uma medicação ou tratamento mais específico para essa paciente (P4).

Eu acho que a falta de ter mais tempo para cada paciente, que aí não é um limite meu, mas da instituição. Eu atendo um volume muito grande, então não dá para eu ver essa paciente semanalmente (P2).

Igualmente, as participantes P3 e P5 mencionaram dificuldades no encaminhamento de pacientes para psicoterapia nos serviços de saúde mental da rede pública. Assim, não existem garantias de que as mulheres encaminhadas serão atendidas de imediato, sobretudo em municípios menores, o que pode prejudicar a adesão ao futuro tratamento, conforme destaca P5:

"Se a paciente sai mobilizada, ela vai no posto e é atendida imediatamente, você tem uma chance muito maior de ela ter adesão ao tratamento. Se ela vai lá e falam 'volta daqui um mês ou aguarda telefonema', ela não volta, né. Então muitas não aderem" [...].

Sentimentos vivenciados pelas profissionais

Três participantes (P2, P3 e P4) referiram que conseguem preservar seus afetos quando acolhem a mulher e entram em contato com o seu sofrimento. As participantes P3 e P5 conseguiram narrar com maior clareza as emoções mobilizadas no atendimento dessas mulheres:

"[...] quando eu acho que ouvi tudo, eu não ouvi ainda. Sempre tem uma história que nos surpreende, uma história que nos choca" (P3);

"[...] é lógico que mobiliza também nossos medos e nossas angústias, né, porque todos nós estamos sujeitos ao mesmo tipo de agressão, né" (P5).

Os sentimentos declarados pelas participantes vão ao encontro dos resultados mencionados por Eizirik et al. (2007, p. 202) em relação à presença de "respostas contratransferenciais de aproximação, como interesse, empatia e tristeza" em terapeutas, de ambos os sexos, que realizam atendimentos iniciais em vítimas de estupro. Os autores ressaltam, ainda, que variáveis como a experiência profissional, o conhecimento teórico, a prática clínica e o autoconhecimento do terapeuta são mais determinantes para a qualidade do trabalho terapêutico do que propriamente o gênero do terapeuta.

A participante P1 mencionou que, para lidar com a sua indignação, procura compreender, por meios racionais, a condição humana do estuprador:

"Eu fico muito indignada do modo geral, não só com o estuprador, que, às vezes, nem me indigno tanto com ele porque eu já coloco ele numa posição de doente mental... então, eu aceito melhor a condição humana dele..." (P1).

Três participantes (P1, P4 e P5) destacaram a importância da psicoterapia pessoal para identificar angústias e conflitos mobilizados no contato com essas mulheres. Para Eizirik, Schestatsky, Knijnik, Terra e Ceitlin (2006), os profissionais que atuam no atendimento a vítimas de violência necessitam de supervisão contínua e de psicoterapia pessoal para o autoconhecimento e reconhecimento de fantasias e afetos que possam interferir negativamente no trabalho terapêutico.

Três participantes (P1, P2 e P4) ressaltaram a gratificação e a satisfação profissional vivenciadas por elas quando os objetivos do tratamento são alcançados:

Sabe aquele sentimento de que a gente não pode mudar o mundo, mas esse pouco que ajudo acaba mudando alguma parte do mundo dessas mulheres, né? Então para mim isso é o mais importante e ver elas bem e sentir esse retorno é muito gratificante, né (P2).

Aí hoje em dia, é tranquilo, né, eu consigo estar ali com essa pessoa, ver como ela tá, ver o sofrimento dela e consigo sair disto [...] E assim, cada caso é um caso, eu acho que para gente que é terapeuta quando você vê seu paciente podendo se resgatar, né, ter sonhos, é muito prazeroso de você ver isso (P4).

De modo geral, as participantes consideram-se comprometidas e gratificadas com o seu trabalho. A possibilidade de obtenção de satisfação profissional é um elemento promissor para a preservação da qualidade do trabalho e do bem-estar psíquico das profissionais que atuam com demandas de violência.

 

Considerações finais

O presente estudo, de caráter exploratório, permitiu conhecer as especificidades da intervenção psicológica em vítimas de estupro praticado por autor desconhecido. Quando ingressam nos serviços especializados, as vítimas vivenciam ansiedades que se manifestam predominantemente sob a forma de vergonha, medo e culpa. O desencadeamento de sintomas depressivos e distúrbios de ansiedade, principalmente o de estresse pós-traumático, são comuns nesses casos.

As intervenções psicoterapêuticas objetivam a prevenção ou supressão de sintomas/comorbidades desencadeados pela experiência traumática, a elaboração do trauma e a reintegração psicossocial da mulher. Espera-se que a mulher, após um período inicial de isolamento social, seja capaz de retomar suas atividades cotidianas e interagir com outras pessoas. Outro aspecto a ser superado é a inibição do desejo de se relacionar afetiva e sexualmente com os seus parceiros ou com outros homens.

Todas as profissionais destacaram a importância das entrevistas iniciais para o acolhimento da mulher e para o estabelecimento do vínculo necessário para o início do processo psicoterapêutico. A intervenção pode ser focal (psicoterapia breve) ou de longa duração, determinada pelas singularidades de cada caso. Algumas modalidades de intervenção grupal, como grupos psicoeducativos e psicoterapia de grupo, também foram referidas para oportunizar a reintegração social, a troca de experiências, o confronto com conflitos e a integração de elementos dissociados da experiência traumática.

Além do emprego de instrumentos objetivos (inventários) para avaliar aspectos específicos, as profissionais relataram o emprego de técnicas projetivas com finalidade diagnóstica ou, ainda, com finalidade mediadora. Neste último caso, os procedimentos projetivos propiciam a comunicação de vivências que não podem ser representadas por palavras.

A mobilização contratransferencial de fantasias, conflitos e angústias nas profissionais requer investimentos permanentes na qualificação profissional e no autocuidado das participantes (psicoterapia pessoal). A despeito da natureza desgastante do trabalho, as participantes revelaram-se satisfeitas com sua atividade profissional.

A falta de serviços especializados no atendimento às vítimas sexuais e a escassez de profissionais de saúde mental são as limitações mais citadas pelas psicólogas que atuam nessa área.

No levantamento da literatura nacional sobre violência sexual em vítimas adultas, constatou-se que os estudos na área de saúde mental concentram-se predominantemente nos efeitos do estupro. Nesse sentido, a difusão de relatos de experiência profissional com intervenções individuais e grupais, com o emprego de procedimentos específicos e pesquisas de acompanhamento após a alta fornecerão contribuições enriquecedoras para a prática clínica com vítimas de estupro.

 

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Endereço para correspondência:
Erick Pereira da Silva
erick.eps@outlook.com

Lucilena Vagostello
vagostello@yahoo.com.br

Submetido em: 10/05/2015
Revisto em: 11/08/2017
Aceito em: 11/08/2017

 

 

i . Tradução livre do autor.

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