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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.1 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2018

 

ARTIGOS

 

O jovem egresso da medida socioeducativa de internação: repercussões psicossociais

 

The youth released from the social-educative detention procedure: psychosocial repercussions

 

El egreso de la medida socioeducativa de internación: repercusiones psicosociales

 

 

Marcela Silva AndradeI; Vanessa Andrade de BarrosII

IMestre. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Psicóloga judicial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
IIDocente. Departamento de Psicologia. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nesta pesquisa, de natureza qualitativa, buscamos analisar o retorno ao convívio social de jovens egressos de medida socioeducativa de internação, articulando o significado da medida para os jovens e suas condições concretas de vida extramuros. Fundamentada no referencial teórico e metodológico da Ergologia, em diálogo com a Psicossociologia e com a Criminologia Crítica, procurou compreender significados e sentidos que são produzidos pelos jovens egressos e entender o crime enquanto uma construção histórica. Realizamos entrevistas com jovens desligados da medida e com profissionais da área, além de análise documental. Concluímos que a medida socioeducativa é uma pena, e não um bem ofertado ao jovem. No retorno à sociedade, os jovens enfrentam enormes desafios, sua vulnerabilidade social não diminui e é agravada pelo estigma da privação de liberdade. Faz-se necessário encontrar novas formas de resolver nossos conflitos sociais.

Palavras-chave: Egresso de medida socioeducativa; Adolescente; Ergologia; Psicossociologia; Criminologia Crítica.


ABSTRACT

In this qualitative research, we seek to analyze the return to social contact of young people who are egress of socio-educational measures of rehabilitation, articulating the meaning of the measure for the young people and their concrete conditions of life outside the walls. Based on the theoretical and methodological framework of Ergology, in a dialogue with Psychosociology and Critical Criminology, it sought to understand meanings and senses that are produced by young people and to understand crime as a historical construction. We conducted interviews with youngsters disconnected from the measure and with professionals in the area, besides documentary analysis. We conclude that the socio-educational measure is a penalty and not a "good" offered to the young. When they return to social life, they face great challenges, their social vulnerability does not change, but it can be aggravated by the stigma of deprivation of liberty. It is necessary to find new ways to solve our social conflicts.

Keywords: Egress from social-educative procedure; Youngsters; Ergology; Psychosociology; Critical Criminology


RESUMEN

En esta investigación, de naturaleza cualitativa, buscamos analizar el retorno a la convivencia social de jóvenes egresados de medida socioeducativa de internación, articulando el significado de la medida para los jóvenes y sus condiciones concretas de vida extramuros. Fundamentada en el referencial teórico y metodológico de la Ergología, en diálogo con la Psicosociología y con la Criminología Crítica, procuró comprender significados y sentidos que son producidos por los jóvenes egresados y entender el crimen como una construcción histórica. Realizamos entrevistas con jóvenes desconectados de la medida y con profesionales del área, además de análisis documental. Concluimos que la medida socioeducativa es una pena y no un bien ofrecido al joven. En el retorno a la sociedad los jóvenes enfrentan enormes desafíos, su vulnerabilidad social no disminuye y se agrava por el estigma de la privación de libertad. Se hace necesario encontrar nuevas formas de resolver nuestros conflictos sociales.

Palabras clave: Egresado de la medida socioeducativa; Adolescente; Ergología, Psicosociología; Criminología Crítica.


 

 

Introdução

O presente artigo é fruto de pesquisa de mestrado, na qual buscamos analisar o retorno ao convívio social de jovens egressos de medida socioeducativa de internação. Fundamentada no referencial teórico e metodológico da Ergologia, em diálogo com a Psicossociologia e com a Criminologia Crítica, a pesquisa buscou articular o significado da medida de internação para os jovens e suas condições concretas de vida extramuros.

O diálogo entre essas perspectivas - ergológica, psicossocial e da criminologia crítica - é fecundo, na medida em que nos permite: explorar os mútuos engendramentos entre as dimensões psíquicas e sociais nas atividades da vida cotidiana, aproximarmo-nos de sua complexidade no conjunto de problemas e alternativas que a constituem, compreender significados e sentidos que são produzidos pelos sujeitos e entender o crime (motivo do cumprimento da medida de internação) enquanto uma construção histórica.

A Ergologia é um campo de estudo que possibilita a análise da atividade humana, numa perspectiva pluridisciplinar, considerando a sua complexidade e buscando a contribuição das diversas ciências especializadas (Trinquet, 2010). Amplia nosso olhar sobre as diferentes dimensões da atividade (macro, micro e suas inter-relações), auxilia-nos na aproximação de sua complexidade e a saber como ocorre a gestão da distância ineliminável entre prescrito e real.

A psicossociologia constitui-se como uma referência importante, na medida em que busca entender as experiências afetivas, conscientes e inconscientes, que impactam as condutas e as representações individuais e coletivas, sempre articuladas a determinantes econômico-sociais e políticos, o que nos ajuda a compreender a interação entre as dimensões subjetiva e objetiva, psíquica e social, interna e externa. Ajuda-nos a apreender o vivido social, o sujeito e suas práticas na maneira pela qual ele negocia as condições sociais que lhe são particulares (Barros, & Silva, 2010).

A Criminologia Crítica, por sua vez, constitui-se em um campo de estudos que investiga as relações de poder capitalistas como determinantes do foco da intervenção policial e da privação da liberdade. Seus autores procuram contextualizar o fenômeno chamado de "criminalidade" no interior do sistema capitalista de produção e consumo (Baratta, 2002; Christie, 1998; Hulsman, 2003; Karam, 1997). Assim é que, para Baratta, um dos pensadores deste movimento, "a criminalidade é um 'bem negativo', distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema socioeconômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos" (2002 p. 161). Compreende a categoria crime como forma de segregar parcela da população, que localizada à margem, excluída do consumo de bens, é percebida como perigosa e seus atos definidos como crimes passíveis de aprisionamento.

 

A medida socioeducativa de internação

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei nº 8.069), os jovens com idade entre 12 e 18 anos que cometem atos infracionais análogos aos crimes praticados pelos adultos são responsabilizados com medidas socioeducativas que se efetivam em meio aberto ou fechado. Em meio aberto, o jovem continua em liberdade e pode receber as penalidades de advertência, reparação do dano, liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade; em meio fechado, cumpre medida de semiliberdade ou internação. As medidas em meio aberto são executadas pelo município e as medidas em meio fechado, pelo estado.

Tais medidas, como prescrito no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), devem exercer influência sobre o adolescente, contribuindo para a construção de sua identidade de modo a favorecer a elaboração de um projeto de vida, o seu pertencimento social e o respeito às diversidades (cultural, étnico-racial, de gênero e orientação sexual), e possibilitando que assuma um papel inclusivo na dinâmica social e comunitária. Para tanto, é vital a criação de acontecimentos que fomentem o desenvolvimento da autonomia, da solidariedade e de competências pessoais relacionais, cognitivas e produtivas (Brasil, 2006, p. 52).

A medida socioeducativa de internação, tratada neste trabalho, não possui um tempo de cumprimento determinado a priori, possuindo o limite máximo de 3 anos de duração. O desligamento do(a) jovem é decidido pelo juiz da vara especializada após análise de parecer da equipe técnica do centro socioeducativo, composta por psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, advogados e terapeutas ocupacionais. Na construção desse parecer, fundamental para balizar o tempo de internação, são considerados aspectos tidos como ressocializadores tais como: a retomada dos estudos, a profissionalização, a boa convivência com os outros e a sua responsabilização pelo ato, chamado de infracional, praticado.

Esta medida é um tema polêmico: por um lado, pesquisadores afirmam que constitui uma pena, similar àquela dos adultos e como tal, causa os prejuízos que a privação de liberdade imputa a qualquer ser humano. Com o eufemismo de internação, tenta-se fazer crer que é atribuído um bem ao jovem ao ser retirada sua liberdade (Saliba, 2006; Saraiva, 2006; Silva, 1997; Soares, 2011). Por outro lado, discute-se recorrentemente na mídia e no congresso nacional a responsabilização, pelo Estado, dos jovens e a proposta de redução da idade penal de 18 para 16 anos o que representa a possibilidade de, a partir de 16 anos, serem julgados como adultos. Isso significaria receberem penas de prisão com tempo calculado a partir do crime cometido, a serem cumpridas em penitenciárias. Tal situação traria efeitos ainda mais danosos aos jovens que, além de sofrerem os processos de mortificação do ego instaurados no encarceramento (Passeti, 2008), ainda faria com que aumentasse o estigma, com o qual já sofrem, por cumprirem pena de prisão.

Vale notar, entretanto, que os impactos das medidas de internação na vida cotidiana deste jovem quando em liberdade são ainda desconhecidos. São escassos os estudos e pesquisas que tratam da situação do(a) egresso(a) destas medidas; as produções existentes referem-se, sobretudo, ao prejuízo da privação da liberdade para os jovens (Branco, & Wagner, 2009; Evangelista, 2008; Fialho, 2012; Marinho, 2013; Nery, 2006; Volpi, 2001). Neste contexto, entendemos que necessário se faz estudar as condições concretas de existência na vida extramuros destes jovens pós cumprimento de medida de internação para melhor apreendermos seu significado e suas repercussões na vida em liberdade.

Assim, o objetivo de nossa pesquisa é compreender como ocorre o retorno ao convívio social do jovem egresso da medida socioeducativa de internação, identificando seus mediadores e seus impactos na vida cotidiana.

Partimos da premissa de que vivemos em uma sociedade punitiva na qual o aprisionamento - intervenção que causa constrangimento e degradação - se apresenta, historicamente, como forma privilegiada de buscar a resolução dos conflitos sociais, consistindo em uma das maiores demonstrações do exercício de poder do Estado e que tem como alvo preferencial as camadas pobres da sociedade (Christie, 1998; Wacquant, 2001; Zaffaroni, 2001).

 

Método

Os caminhos investigativos que tomamos foram orientados por questões que dão sentido tanto ao cotidiano de trabalho na Vara Infracional da Infância e Juventude (VIIJ), quanto ao trabalho de pesquisadora e que emergem de dúvidas, anseios, questionamentos sobre nossa prática - o que Schwartz nomeia como "desconforto intelectual" (Schwartz, & Durrive, 2007). Optamos assim por realizar um estudo exploratório sobre a situação de vida dos jovens que foram desligados da medida socioeducativa de internação. De perspectiva compreensiva - "uma proposta é compreensiva quando se esforça sistematicamente para responder à questão: por que, nessa situação, as coisas se passam assim?" (Jobert, 2014, p. 62) - foi realizado por meio de entrevistas e análise documental. Nossa inspiração e sustentação metodológica é o dispositivo dinâmico a três polos (DD3P), desenvolvido pela Ergologia (Schwartz, & Durrive, 2007), no qual o primeiro polo são os saberes formais, epistêmicos, o segundo polo são os saberes investidos pela experiência, saberes da vida cotidiana e o terceiro polo representa a dimensão ética que rege o diálogo entre os polos, a proposta de horizontalidade de saberes.

Participantes, procedimentos de coleta de dados e cuidados éticos

Definimos aleatoriamente o período compreendido entre novembro de 2010 e julho de 2011 como referência temporal para a escolha dos entrevistados e dos documentos a serem analisados na pesquisa. De um total de 47 pastas de jovens que haviam sido desligados de medida socioeducativa de internação constantes nos arquivos do setor técnico da VIIJ neste período, conseguimos contato com oito jovens e apenas dois aceitaram nosso convite para participar. Estes, do sexo masculino, estavam desligados da medida havia 1 ano, ambos com 18 anos e sem processo ativo na VIIJ. As entrevistas ocorreram em espaços públicos da cidade ou em instituições onde tinham vínculo de trabalho, escolar ou social. Foram realizados três encontros com cada jovem.

Entrevistamos também duas técnicas de programas sociais com longa experiência no atendimento de jovens desligados da medida de internação; foram escolhidas por seu conhecimento da realidade vivida pelos jovens durante e após o cumprimento da medida e pela disponibilidade de participar da pesquisa.

A análise documental buscou ampliar nossa compreensão sobre a situação dos jovens no cumprimento da medida. Analisamos relatórios e transcrição de entrevistas com os jovens e seus familiares, além de relatórios de estudos de caso feitos com as instituições parceiras e relatórios produzidos pela equipe técnica da VIIJ, referente às fiscalizações realizadas em unidades socioeducativas (semiliberdade, internação provisória e internação por tempo indeterminado).

Foram respeitados os padrões éticos e os regulamentos exigidos em pesquisas que envolvem seres humanos; os participantes receberam todas as informações sobre a pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

 

Análises e discussões

Sobre os documentos

A partir da análise dos documentos constantes das 47 pastas da VIIJ referentes ao período de novembro de 2010 a julho de 2011, podemos traçar o seguinte quadro: o tempo médio de cumprimento de medida é de 1 ano e meio. Ao serem desligados, a maioria dos jovens (em torno de 90%) iria residir com a mãe ou com ambos os pais, sendo que 25% tinham o pai falecido. No que tange à escolarização, 87% dos jovens desligados ainda estavam cursando o ensino fundamental, com idade média de 18 anos, o que mostra uma grande defasagem escolar, não superada com a medida de internação.

Sobre a profissionalização, 89%, realizaram curso profissionalizante durante a internação. A maioria (61,5%) dos cursos profissionalizantes realizados foi na área de culinária e informática. Dos 47 jovens, dois realizaram curso de aprendizagem industrial no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), recebendo bolsa de estudos no valor de aproximadamente R$ 270,00.

Quanto ao trabalho, apenas cinco dos 47 jovens estavam trabalhando no momento do desligamento, sendo que os trabalhos eram precários, nas áreas de construção civil (ajudante de pedreiro) e nas redes de supermercado (ajudante geral). Todos os cinco jovens já tinham completado 18 anos.

O uso de drogas antes da medida socioeducativa de internação estava presente em 87% dos casos. A maioria deles (em torno de 70%) relatou usar mais de um tipo de droga, sendo a maconha citada por praticamente todos.

A experiência de violação de direitos foi verificada em 51% das pastas, caracterizada por violência doméstica, viver sem os pais, residir nas ruas, presenciar os pais fazendo uso abusivo de entorpecentes e vivência de abandono ou negligência.

Em 38% das pastas havia relato de ameaça de morte sofrida pelos jovens sem, no entanto, serem especificadas.

Das 47 pastas pesquisadas, conseguimos verificar os nomes de 39 jovens desligados em um período de 8 meses a 1 ano e 4 meses. Desses, 58% tinham sofrido nova apreensão pela polícia.

Nossa intenção não foi traçar um perfil dos jovens, mas constatar, por meio documental, as condições concretas de existência que vulnerabilizam a parcela da população na qual estão inseridos esses jovens que cumprem medidas socioeducativas; a criminologia crítica nos ajuda a compreender que tal vulnerabilidade não é causa ou gênese da infração, mas está inserida, como mostra Wacquant (2001), em uma política de criminalização da miséria, na imposição do trabalho precário e sub-remunerado como obrigação cívica e em programas sociais restritivos e punitivos, uma verdadeira "ditadura sobre os pobres" (p. 10).

Sobre as entrevistas

Os jovens egressos entrevistados tinham sido desligados há aproximadamente 1 ano e estavam estudando e trabalhando. Ambos tinham os familiares como referência de cuidado e proteção, traduzida por visitas frequentes durante o período de internação, conselhos e apoio emocional e material (o pai de um deles comprou seu uniforme do curso profissionalizante, levou-o para a igreja, o outro foi protegido da polícia pelo pai quando foi abordado). Os jovens afirmaram nas entrevistas terem percebido que suas medidas foram melhores que a dos outros adolescentes. Melhor no sentido de que ambos conseguiram bons cursos profissionalizantes, com bolsa de ajuda financeira e tinham a confiança da equipe da unidade. Ressaltamos que conseguir entrevistar os jovens após a medida de internação não foi tarefa fácil, algo já apontado em outras pesquisas (Bocco, 2006; Volpi, 2001). Realizamos contatos telefônicos para o convite, sendo que o contato não foi mediado por nenhum programa de acompanhamento de jovens. Entendemos neste caso que aqueles que quiseram falar de suas vidas após a experiência de internação desejavam de fato nos dizer algo.

Alguns jovens são destaque nas medidas socioeducativas por conseguirem avançar nos estudos, se profissionalizar, além de ter o apoio familiar. Esse destaque pode ser analisado à luz do conceito de meritocracia, como definiu Souza (2009), "uma ilusão bem fundamentada na propaganda e na indústria cultural, de que os privilégios modernos são justos" (p. 43). Se na antiguidade o privilégio se dava pela consanguinidade ou pelo sobrenome, na modernidade é o mérito pessoal que dá o privilégio. "Muitos foram fazer a prova, mas foram poucos que conseguiram" (Jovem entrevistado 1); "a minha medida foi melhor do que a dos outros" (Jovem entrevistado 2). Os jovens repetiram muitas vezes que "a mudança depende apenas de si mesmo", em uma nítida reprodução do discurso da sociedade sobre o mérito individual, tanto para se diferenciarem dos demais, quando obtêm sucesso, quanto para se culpabilizarem pelo seu fracasso. "Você muda se quiser..." (Jovem entrevistado 1), ou "ninguém obriga ninguém a fazer coisa errada" (Jovem entrevistado 2). Ou ainda, como em uma das transcrições de entrevista realizada pela equipe técnica da VJJI constante nas pastas: "Eu sou burro sô, cabeça fraca, é só burrice mesmo...". Bauman (1999) enfatiza as consequências perversas da globalização sobre os seres humanos e uma delas é a sensação de que são dadas a todos as mesmas oportunidades de consumir e se alguém não pode fazê-lo, é uma questão individual, como foi possível perceber nas entrevistas.

Elencamos a seguir algumas discussões sobre temas que tiveram destaque na análise documental e nas entrevistas dos participantes.

O real do socioeducando

Baseamo-nos aqui na distinção ergológica de prescrito e real (Schwartz, & Durrive 2007). O conceito de real refere-se às experiências vividas no cotidiano, às condições concretas e materiais de existência em contraposição ao prescrito que são as normativas jurídicas, sociais diretrizes e publicações oficiais.

Buscando acesso às condições materiais, examinamos relatórios produzidos pela equipe técnica da VIIJ, referente às fiscalizações realizadas em unidades socioeducativas (semiliberdade, internação provisória e internação por tempo indeterminado) e elencamos os pontos mais citados como irregularidades nessas unidades, em conformidade com o Sinase e que repercutem negativamente no atendimento integral previsto aos jovens internos: falta de veículo para transporte dos jovens; falta de técnicos na equipe interdisciplinar e de agentes socioeducativos; estrutura da unidade inadequada na maioria dos centros; falta de verbas para visitas dos familiares e visitas domiciliares; faltam mobiliários em bom estado de conservação; não há privacidade nos alojamentos e banheiros coletivos; interdição dos consultórios dentários pela vigilância sanitária; escolarização formal sem regime de supletivo; falta de vagas nos centros de internação e superlotação dos centros provisórios; adolescentes aguardando vaga de internação em centros provisórios sem escolarização formal; banho frio por causa de problemas hidráulicos e elétricos; queixas sobre a qualidade e quantidade da alimentação em algumas unidades; em algumas unidades há presença de ratos e lacraias e falta de higiene na cozinha, banheiros e alojamentos.

As legislações internacionais e nacionais relativas à infância e juventude preveem um sistema legal de garantia de direitos que deveriam concretamente ser priorizados, mas não é o que constatamos. De fato, a violação de direitos na privação da liberdade, na maioria das vezes, é a continuidade da falta e violação de direitos na sociedade, globalmente e em especial na comunidade onde residem esses jovens.

O relatório do Conselho Nacional de Justiça (2011) apontou avanços no cumprimento do ECA no estado pesquisado em comparação a outros estados brasileiros e elencou as questões que necessitam de melhorias: ações desumanas por parte da equipe de segurança, necessidade de descentralização dos centros socioeducativos diante do número de cidades no estado e manutenção da capacitação dos profissionais.

No entanto, as fiscalizações realizadas pela equipe técnica da VIIJ e os relatos dos profissionais entrevistados e dos jovens egressos apontam concretamente que a realidade vivida no cotidiano do sistema socioeducativo é divergente dos discursos oficiais e parâmetros legais.

Repercussões psicossociais da privação de liberdade

A partir das histórias dos jovens egressos, podemos analisar as repercussões da privação da liberdade sobre as suas vidas. Consideramos que os centros de internação são instituições totais (Goffman, 1988) e produzem o sentimento de rejeição simbólica e exclusão física (Bauman, 1999). São instituições fechadas, mesmo que sejam feitos alguns movimentos para fora dos muros, como, por exemplo, encaminhamentos aos centros de saúde, mas possuem paredes altas, grades, são cercadas por muros e possuem complexo esquema de segurança, como no sistema prisional convencional. Existem, de fato, diferenças entre os dois sistemas, tais como o tempo médio de cumprimento de pena, a relação estabelecida entre direção, agentes socioeducativos e jovens e, sobretudo, as diretrizes que orientam um e outro. Mas, no dia a dia de cumprimento da medida, encontramos similaridades que não podem ser omitidas.

Os castigos ao corpo, como descrito por Foucault (2008) continuam a fazer parte da medida de internação, como fazem da pena privativa de liberdade; não mais na forma de agressões físicas, mas no controle violento do corpo e da sexualidade. No ambiente da internação não há possibilidade de desenvolver-se sexualmente com escolhas heterossexuais, diante da separação por sexo nas unidades de internação e na dificuldade de atender os condicionantes para visitas íntimas aos maiores de 18 anos. Além das barreiras ao desenvolvimento sexual, também há outros castigos ao corpo que, como apontou Hulsman (2003), ainda se mantêm nas formas modernas de punição. O corpo fica restrito a um ambiente pequeno que é divido com outros jovens. Quando há superlotação, o espaço para o corpo é restrito. Além disso, ocorre a perda de circulação dentro da própria unidade, caso sejam comissionados por terem infringido alguma norma de disciplina prevista no regimento interno.

A socialização nesse ambiente de internação (e no prisional) é por meio da convivência forçada com pessoas desconhecidas, sem possibilidade de manter alguma privacidade. Além da impossibilidade de afastamento físico sem alguma norma disciplinar a ser cumprida posteriormente há a sensação subjetiva de isolamento que provoca sofrimento intenso (Karam, 2010). Como descrito em uma entrevista feita pela equipe técnica da VIIJ: "Sente-se fechado, isolado e acaba ficando nervoso".

São obrigados a conviver com quem não gostam, dormir e acordar com quem não conhecem, juntarem-se a pessoas que nunca viram antes, unidas pelo rótulo do crime e, diga-se de passagem, nem importa qual crime. "Não é possível esquentar a cabeça e sair dali" (Jovem entrevistado).

Os jovens egressos afirmaram que no cotidiano da internação falam muito sobre o "crime". Desenvolvem assim uma cultura prisional a partir das falas e das regras de conduta que evoluem nesse ambiente e que os unem pelo ato infracional. Como nos disse o jovem egresso entrevistado, após os acautelamentos provisórios: "fui ficando pior, com mais maldade; dentro da cadeia só fala de crime, cadeia não regenera. Decidir se vai sair ou não, não depende da cadeia. Mas se você continuar no crime, você fica com mais maldade. Aprende maldade".

A medida socioeducativa teria como um dos seus objetivos o desenvolvimento da autonomia dos jovens, mas o que notamos nos centros de internação é a infantilização dos internos, regulados pelo medo e pela oferta de recompensas (Silva, 1997). Vivem o tempo da espera: esperam pela alimentação, pelas atividades, pelas visitas, toda uma rotina, sempre repetida, organizada de fora, sem possibilidade de escolha, de decisão (nem mesmo a temperatura da água do banho pode ser escolhida). Seus desejos precisam passar pelo crivo da equipe de segurança e/ou equipe técnica. Como nos disse o jovem egresso: "não pode fazer o que você quer fazer, eu acho que eu estava ficando meio que maluco".

Além da impossibilidade de desenvolver a autonomia em um ambiente onde as atividades são reguladas externamente por outras pessoas, os jovens são tratados em alguns momentos como coisas ou animais, sendo guardados para dormir, como observou Silva (2005).

Não há possibilidade de autonomia em um ambiente autoritário e fechado. Mas há possibilidade de disciplina e de submissão (Foucault, 2008), usada muitas vezes como forma de conseguir um bom relatório para o juiz e ir embora mais rápido. Além disso, reivindicar um direito é algo que precisa ser feito com muita cautela, caso contrário pode ser entendido como subversão (Karam, 2010). Esse fato foi apontado por Volpi (2001) quando descreveu que a internação pode funcionar no sentido de repreender os jovens que são criativos, críticos e líderes, transformando-os em jovens pacatos. Afirma que "o capital político agregado ao jovem egresso do sistema é praticamente nulo quando não é negativo" (Volpi, 2001, p. 103).

Os jovens egressos afirmaram, algumas vezes, que perderam tempo na internação, referindo-se ao tempo perdido de convívio na relação com os familiares e amigos. As visitas dos familiares na unidade ocorrem uma vez por semana no período da tarde e amigos não podem visitar. Os familiares passam por revista vexatória e sentem-se constrangidos. Os jovens egressos falam desse constrangimento como humilhação e sentem-se culpados pelo fato de seus familiares passarem por isso. Como nas prisões para adultos, a revista vexatória1 significa ficar nu(a) diante de agentes que examinam o corpo do visitante, seus órgãos genitais são examinados por meio de um espelho sobre o qual devem agachar três vezes e fazer força para dilatar ânus e vagina.

Quando nos debruçamos sobre o tema da privação de liberdade, descobrimos que ela ultrapassa o cerceamento da liberdade de ir e vir representando mais penas, duras penas, penas perdidas (Hulsman, 2003). A pena é plural no sentido de que se estende no tempo, afetando um sujeito de carne e osso, em suas várias dimensões de existência, apesar de ser moldada para um indivíduo abstrato. Estar preso não tem o mesmo sentido nas diversas fases da vida e por períodos diferentes; estar preso não significa perder a liberdade, mas sonhos, projetos existenciais que não poderão mais ser realizados (Duarte, 2002). À privação de liberdade se somam maus-tratos, desrespeito, constrangimentos e humilhações de toda ordem que são igualmente impingidos aos familiares. Desse modo, entendemos que "o que é tratado como 'medida socioeducativa' revela-se como verdadeira pena" (Silva, 1997, p. 133) sendo que "a internação reforça a exclusão" (Silva, 2005, p. 41).

Como afirmou um jovem em entrevista à equipe técnica da VIIJ: "Como posso saber quem eu sou, se só fico na cadeia, aqui você é o que os outros querem que você seja". "Não sei andar sozinho, nunca fui num parque, não sei pegar ônibus, passei a vida preso".

Mediadores do retorno ao convívio social

No relato dos jovens entrevistados e das profissionais, aparecem alguns elementos que consideramos mediadores do retorno ao convívio social. Elencamos a seguir esses elementos, notando que alguns coincidem com os eixos da medida socioeducativa, como preconiza o Sinase, por serem categorias de formação humana.

Família

Os jovens egressos relataram a importância da família durante o cumprimento da medida e no momento do retorno ao convívio social. Entendem por família os pais, irmãos, avós, tios e primos. São os pais e avós que geralmente estão presentes na unidade, que levam os pertences necessários e que se submetem às revistas vexatórias. No retorno ao convívio social, são os familiares que ajudam a efetivar a matrícula na escola, que levam ao centro de saúde, disponibilizam dinheiro, pagam o transporte para um curso, ajudam a procurar trabalho. Neste contexto, a família é um dos grandes suportes para os jovens. Segundo Kehl (2011), para ter estrutura, a família precisa contar com um adulto que se responsabilize pela educação da criança, servindo como lei, aquela que barra os excessos e diz não quando é necessário. Nesse sentido, uma família com os pais casados poderia ser desestruturada, por não conseguir barrar os impulsos dos filhos e uma família monoparental pode exercer a função de lei, ou seja, daquele que impõe o limite. Ter uma referência de proteção e também de limite é o que possibilita o desenvolvimento psicossocial dos filhos. Não consideramos que o fato das famílias não terem mais a configuração nuclear que tinham no passado seja prejudicial aos filhos. Pelo contrário, as funções de proteção, cuidado e limite podem ser exercidas em diversas configurações familiares, não sendo negativas as novas configurações.

Nas histórias dos jovens egressos entrevistados a presença do pai participante foi algo marcante: "consegui ter essa visão com o meu pai, eu amo o meu pai, meu pai é inteligente demais, sem ele eu estaria no crime, ele me ensinou tudo, tudo que fiz, fiz do jeito que ele me ensinou e deu certo"; "Meu pai ajuda muito. Tudo que ele puder fazer para ajudar os outros ele faz. Ele é uma pessoa sensacional, sigo muito o exemplo dele".

O suporte social que os pais dos jovens egressos participantes da pesquisa deram no cumprimento da medida e no retorno ao convívio social foi de grande importância para que ambos conseguissem concretizar planos após a internação. Considerando a função do pai provedor, é importante perceber que os jovens egressos falam dos seus pais com admiração e afeto. O pai representa para eles uma figura familiar que lhes possibilita garantias materiais e com quem se pode contar também afetiva e subjetivamente.

Educação

A escolarização formal é um direito, mas historicamente o acesso é restrito a determinadas classes sociais, para as quais o ensino foi criado. No caso dos jovens egressos, o acesso se dá via educação pública e com enorme defasagem escolar. Dentro da unidade de internação há escola formal, mas não há regime de supletivo o que possibilitaria acelerar a escolarização.

A socialização promovida pela escola segue os padrões culturais das camadas médias da sociedade e é exigida das classes mais empobrecidas a adaptação a um mundo estranho, desde os padrões comportamentais até os conteúdos e a linguagem (Vieira, 2012). A escola é uma forma de adaptar os indivíduos, torná-los mais aptos à vida adulta produtiva; a docilidade dos corpos para se trabalhar horas por dia em uma fábrica inicia-se na escola.

Um dos jovens egressos entrevistados encontrava-se no 3º ano do ensino médio com 18 anos, uma exceção no sistema socioeducativo. O outro jovem entrevistado, apesar da defasagem escolar, possui facilidade de aprender os conteúdos. O fato de ambos terem conseguido o curso profissionalizante do Senai através da internação foi trazido por eles como muito importante para seu desligamento, pois "segurou a onda", como um deles nos disse. Apesar disso, como foi apontado, apenas dois dos 47 jovens desligados tiveram essa oportunidade. Isso ocorre pela escassez de vagas e a baixa escolaridade, que faz com que a ideologia do mérito ganhe força.

Uma das profissionais entrevistadas afirmou que os jovens egressos têm dificuldades de retornar à escola formal por vários motivos, dentre os quais a burocracia, discriminação e preconceito.

Os jovens egressos recebem o histórico escolar com o nome da escola que funciona dentro dos centros, o que dificulta ainda mais a inserção extramuros, pois passam a possuir também o estigma registrado no documento formal que comprova sua escolaridade.

Como declarou uma das profissionais entrevistadas, os jovens não veem a escola como caminho para o trabalho. Querem primeiramente trabalhar, garantir seu sustento e, "se der tempo", irão para a escola. A falta de conexão entre trabalho e escola é percebida na vida desses jovens, principalmente pelas experiências de seus pais, que apesar de repetirem as regras verbais de que estudar é importante, não estudaram e não possuem essa experiência como exemplo a ser seguido pelos filhos (Souza, 2009).

É na escola que muitos jovens considerados infratores vivenciam a segregação pela primeira vez. Entre repetências e evasões, os alunos começam a desenvolver desgosto pela escola e seus processos educativos. Há uma clara incoerência entre os objetivos escolares e os objetivos desses alunos (Vieira, 2012). Sabemos, no entanto, que essa insatisfação com a instituição escolar não ocorre sempre (Silva, 2005) e varia dependendo da qualidade do ensino e das classes sociais a que pertencem os jovens. Percebe-se que a desigualdade de classe (Souza, 2009) separa os jovens entre os que são "pré-trabalhadores e os que são pré-universitários" (Carreteiro, & Barros, 2011, p. 219).

Trabalho

Compreendemos o trabalho como categoria central na vida dos seres humanos (Marx, 1978). Tanto nos relatos dos jovens egressos e dos profissionais entrevistados, bem como nas entrevistas da equipe técnica da VIIJ, o trabalho aparece com importância fundamental na mediação do jovem com o convívio social após medida de internação. Possui, entretanto, um caráter moralizador, como se adequasse o indivíduo aos padrões sociais. Nesse sentido, os trabalhos de carteira assinada são ainda mais normalizadores, pois possibilitam ao jovem estar inserido formalmente no mercado de trabalho. É quando estão vinculados ao trabalho formal que os jovens passam a se considerar trabalhadores de fato. Como aponta a profissional entrevistada, um jovem egresso trabalhava informalmente há algum tempo, mas, quando conseguiu um trabalho de carteira assinada, afirmou "agora eu trabalho", demonstrando o valor da carteira como passaporte para a cidadania (Carreteiro, 2001). Assim, os jovens, os profissionais, a política pública, o sistema socioeducativo como um todo visualiza que o trabalho, e principalmente o trabalho formal assalariado, é o meio para que o jovem não seja mais apreendido pela polícia.

Para as políticas públicas para juventude o trabalho aparece como discurso padrão. Sabe-se que é preciso trabalhar. Assim, isso se torna um imperativo, principalmente para as políticas "provarem" que estão realizando o seu papel por meio dos índices estatísticos que servem como seus indicadores.

Mas que trabalho é este que os jovens têm acesso? Conforme as profissionais entrevistadas afirmaram, os empregos estão ligados às áreas de construção civil, supermercados, atendente, telemarketing, descarregador de caminhão. Segundo Barros (2007), "verifica-se que o simples acesso a alguma ocupação não garante, por si, o reconhecimento como cidadão e a manutenção da vida dentro da legalidade. Ter como fonte de renda bicos, trabalhos ocasionais e precários não configura uma vida valorizada." (p. 4). Carreteiro e Barros (2011) apontam também um equívoco no uso do trabalho, "que aparece nos discursos oficiais e no de especialistas como panaceia para todos os males, como o abre-te sésamo que transformaria as classes perigosas em classe trabalhadora/civilizada" (p. 221).

Os jovens podem também sentir-se explorados pelo trabalho que vem exercendo: "Ele tinha essa questão muito forte, esse trabalho está me explorando, o trabalho explora ele, e aí ele abandona o trabalho e fica um tempão sem trabalhar" (Profissional entrevistada).

Entendemos que a categoria trabalho é de fato central, possuindo assim duas vertentes de análise: uma que contribui para a inserção do jovem na cidadania, através da atividade socialmente valorizada e reconhecida, e outra que pode colocá-lo em situações de exclusão e de prejuízo do seu desenvolvimento como sujeito, sendo que essas atividades podem ser lícitas ou ilícitas, pois as primeiras nem sempre garantem por si só valorização e reconhecimento.

Saúde

Os jovens buscam acessar a saúde pública, mas têm experiências frustrantes, como afirmou uma das profissionais entrevistadas, relatando as inúmeras dificuldades de serem atendidos e mesmo seus familiares. Há relatos de morte de familiares por falta de atendimento. Embora ela perceba que houve avanços com a criação do Programa de Saúde da Família (PSF), tanto para a comunidade, quanto dentro dos centros de internação, observa que, no que se refere à saúde especializada, muitas questões ainda são desafios para efetivação desse direito. Afirma que as políticas públicas para a juventude não investem de fato em programas de saúde integral dos jovens que ficam desamparados.

No âmbito da saúde especializada, são duas as esferas que aparecem no discurso dos profissionais e dos jovens egressos, bem como nas entrevistas da equipe técnica da VIIJ: a saúde mental e a toxicomania.

No que se refere à saúde mental, menos de 1% dos jovens tinham diagnóstico de algum tipo de sofrimento mental. Como a juventude é um momento de desenvolvimento psíquico e social, os diagnósticos nessa fase da vida são mais cautelosos, inclusive porque rotulam os jovens. No que se refere à ingestão de medicação psiquiátrica, 24% das pastas analisadas possuíam informação sobre a ingestão desses medicamentos. Não há informação sobre o uso de medicação antes da internação, ou se passaram a ingerir o medicamento após a experiência da privação de liberdade, bastante aflitiva para a grande maioria dos jovens.

Sobre a toxicomania, a profissional entrevistada relata a dificuldade de encaminhamento dos casos de dependência química ou uso abusivo de drogas, pois os serviços muitas vezes respondem de forma padrão ao encaminhamento dizendo que não há demanda. Nesse aspecto é importante considerar que os jovens quando ficam internados não fazem uso de drogas e ficam abstinentes, por isso, os serviços recusam seu acompanhamento alegando que, como estão abstinentes há alguns meses, não pode ser feito um trabalho com o jovem. O efeito nocivo desta situação aparece após o desligamento da medida, pois, conforme relatado pela profissional, o jovem pode não sustentar o trabalho uma vez que, sem tratamento, volta ao uso abusivo de drogas; a internação mascara assim, as dificuldades do jovem na vida em liberdade. Segundo ela, o jovem, por exemplo, pode conseguir um trabalho, mas pode ser mais urgente o encaminhamento ao tratamento de saúde.

Relação com a polícia

O uso da violência pela polícia pode ser legitimado pelo Estado. A sociedade, por sua vez, exige da polícia reações diante da violência, que consiga manter a paz social, e podemos notar que a paz social não é possível com mais violência. Assim, o sofrimento é de todos, dos cidadãos com seus direitos violados, dos policiais, como linha de frente em busca desse ideal, e até dos cidadãos mais privilegiados, trancados em seus carros e casas inseguros de partilhar uma vida coletiva.

A polícia seleciona os crimes que vai registrar. Há os crimes da própria polícia, há os crimes das classes altas e médias e há os crimes das classes pobres (Christie, 1999; Karam, 1997). Como afirmou Christie (1999), o número de crimes computados pela polícia em uma nação não retrata a situação de criminalidade daquele país. Desse modo, ações como dar metas aos policiais para que computem tantos crimes por mês alteram o número de crimes contabilizados, aumentam o aprisionamento e não modificam o número de crimes que de fato ocorreram.

Os jovens egressos entrevistados nos relataram várias situações em que a polícia agiu de maneira preconceituosa, desrespeitosa e violenta. Um deles foi abordado por policiais duas vezes após seu desligamento. Em uma das vezes ele estava com uma bermuda que chamou de "estilo", referindo-se às roupas que usava na época em que trabalhava no tráfico de drogas. Na outra abordagem policial, estava parado na esquina, o que foi entendido pelos policiais como atitude suspeita. A polícia elege, diante dos sinais como roupas, idade, cor da pele, local de moradia, quais serão os abordados. Ele nos relatou experiências de violência extrema praticada por policiais.

O outro jovem entrevistado também nos contou que foi abordado duas vezes pela polícia próximo à sua casa. Em uma das vezes, iriam apreendê-lo, quando seu pai chegou, explicou aos policiais que ele estava trabalhando e estudando. Os policiais liberaram-no após a intervenção do pai. Ele afirmou: "infelizmente moro na favela", demonstrando a desvalorização do seu território, a cidadania abalada por ele e a pouca identificação com o local onde reside. Isso afeta a confiança do cidadão em si mesmo e o faz sentir-se menos do que os outros que habitam outros lugares da cidade. Uma parcela da população que não atende aos requisitos do consumo e do emprego é percebida como perigosa e é alvo da vigilância da polícia (Christie, 1998; Wacquant 2001). "Os homens sem trabalho assalariado passaram a ser vistos predominantemente como criminosos" (Christie, 1998, p. 213).

Viver com medo dos policiais, através do respeito conquistado pela força, não possibilita vivenciar como cidadão uma vida plena em sociedade. Como afirmou Silva (2005),

A relação estabelecida por alguns policiais com os adolescentes infratores é baseada na corrupção e no desrespeito aos direitos humanos. Fato este que, também, desfavorece a construção da noção de direitos e deveres por parte dos jovens. A polícia que teoricamente tem a função de zelar pelo cumprimento da lei, na prática se corrompe e não a respeita (p. 119).

 

Considerações finais

O aprisionamento de jovens é um fenômeno mundial, em crescimento no Brasil, que, junto com o aumento das mortes dos jovens negros e pobres nos últimos anos, corresponde a uma estratégia política de aniquilamento dessa população, um excedente social que gera a "insegurança" das classes sociais que detêm privilégios. A redução da idade penal é uma estratégia que vem novamente apenas reforçar a segregação e culpabilizar os sujeitos, sendo estes jovens negros e pobres rotulados como o mal da sociedade.

Sobre o retorno ao convívio social após a medida de internação, consideramos que alguns aspectos identificados pelos jovens como positivos - voltar a estudar, conseguir curso profissionalizante, retomar o contato com a família, acessar equipamentos de saúde, interromper o uso abusivo de drogas - não justificam sua privação de liberdade. Tais atividades podem ser realizadas em liberdade, no convívio do jovem com sua comunidade, nas experiências concretas de vida e não enclausurados.

A privação da liberdade só será mantida como recurso se o objetivo for punir ou segregar, pois transformar a realidade social, oferecer uma educação reflexiva e crítica, desenvolver autonomia e contribuir para uma sociedade mais pacífica e igualitária não são possíveis na prisão. Os prejuízos da privação de liberdade são infinitamente superiores a quaisquer ganhos que o jovem possa obter ao longo do aprisionamento.

Uma das afirmações que podemos fazer a partir dessa pesquisa é a de que a medida socioeducativa é uma pena aplicada ao jovem que comete ato tipificado pela lei como crime e não um bem oferecido a ele (Saliba, 2006; Saraiva 2006); não tem função protetiva. Exige do jovem um exercício de decifração de normas que não estão disponíveis claramente, em um contexto no qual reina a insegurança, a incerteza e a imprevisibilidade (Vieira, 2012).

Podemos afirmar ainda que a privação da liberdade é um obstáculo para a chamada "ressocialização" dos jovens, pois é artificial, uma vez que segrega e cria um mundo entre muros paralelo à vida real em comunidade. É estigmatizante, embute no jovem um rótulo (Soares, 2011); é humilhante e desrespeitosa, infantiliza o interno que não pode realizar de maneira autônoma suas atividades rotineiras, nem as mais íntimas; é inerentemente prejudicial, tornando os jovens submissos a uma cultura institucional prisional que deixa marcas em sua subjetividade e tem consequências na vida posterior à internação. Mantém a segregação e a dominação de uma classe social pela outra (Barros, 2011). Assim, a privação da liberdade e a socioeducação parecem ser bem antagônicas.

De fato, a resolução de conflitos sociais pela via do sistema penal está deslegitimada (Zaffaronni, 2001). Autores que estudam o fenômeno da criminalidade têm afirmado que o sistema penal seleciona um grupo específico de pessoas e não executa as funções a que se propõe nos discursos oficiais de ressocialização e diminuição da violência (Barros, 2011). Assim, é possível concluir que a melhoria da hotelaria destinada aos jovens internados não resolve o paradoxo existente na tentativa de prender para ensinar a ser livre.

Consideramos, com os autores da criminologia crítica, que é preciso recuperar a sociedade em que vivemos, buscar novas formas de sociabilidade. A violência que presenciamos é estrutural e é a própria da sociedade que precisa ser transformada (Brasil, 2007). Desse modo, "antes de querer modificar os excluídos, é preciso modificar a sociedade excludente, atingindo, assim, a raiz do mecanismo de exclusão" (Baratta, 2002, p. 186).

Abolir o castigo de dentro de si é uma postura de vida (Passeti, 2008). Podemos criar a postura de pensar novas possibilidades, já que o sentimento de indignidade e inutilidade desse sistema de encarcerar gente tem povoado corações e mentes de todos que estão, de alguma forma, com ele envolvidos.

 

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Endereço para correspondência
Marcela Silva Andrade
masilvandrade@yahoo.com.br

Vanessa Andrade de Barros
vanessa.abarros@gmail.com

Submetido em: 05/05/2015
Revisto em: 23/07/2017
Aceito em: 12/02/2018

 

 

1 Atualmente foi implementada a revista invertida em que o jovem passa a ser revistado após sua visita.

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