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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2018

 

ARTIGOS

 

A performance do vínculo na Política de Assistência Social

 

The performance of the bond in the Social Assistance Policy

 

La performance del vínculo en la Política de Asistencia Social

 

 

Luciana RodriguesI; Neuza Maria de Fátima GuareschiII

IDocente. Centro de Educação Profissional da Unisc (Cepru). Santa Cruz do Sul. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O vínculo familiar e comunitário é meta que perpassa todas as normatizações da Política Nacional de Assistência Social. Frente a essa centralidade, o artigo investiga, a partir das proposições dos Estudos da Ciência, Tecnologia e Sociedade e da Teoria Ator-Rede, a produção do vínculo como objeto da Política através da descrição e análise dos diferentes atores envolvidos em seu documento de referência para a temática: o Caderno "Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos". Compreendemos que o vínculo não é um mero laço ou associação, mas um objeto imaterial que ganha existência porque constantemente sustentamos redes de práticas que o produzem. Através dessa descrição, visualizamos a performance de três versões de vínculo circunscritas a esfera do poder, do afeto e da ética. Três diferentes versões que oferecem distintos modos de intervenção aos profissionais da Assistência Social, bem como, geram diferentes experiências aos usuários dos serviços socioassistenciais.

Palavras-chave: Performance; Vínculo; Assistência Social; Psicologia; Teoria Ator-rede.


ABSTRACT

The family and community bond is a goal that pervades all the norms of the National Policy of Social Assistance. Faced with this centrality the article investigates, from the propositions of the Science, Technology and Studies, and the Actor-Network Theory, the production of the bond as object of the Policy through the description and analysis of the different actors involved in its reference document: the Notebook "Conception of Coexistence and Strengthening of Bonds". We understand that the bond is not a mere link or association, but an immaterial object that gains existence because we constantly sustain networks of practices that produce it. Through this description we visualize the performance of three bond versions circumscribed to the sphere of power, affection and ethics. Three different versions that offer different ways of intervention to the Social Assistance professionals, as well as, generate different experiences to the users of the social assistance services.

Keywords: Performance; Bond; Social Assistance; Psychology; Actor-network Theory.


RESUMEN

El vínculo familiar y comunitario es meta que atraviesa todas las normalizaciones de la Política Nacional de Asistencia Social. Frente a esa centralidad, este artículo investiga, a partir de las proposiciones de los Estudios de la Ciencia, Tecnología y Sociedad y de la Teoría Actor-Red, la producción del vínculo como objeto de la Política a través de la descripción y análisis de los diferentes actores involucrados en su documento de referencia para la temática: el Cuaderno "Concepción de Convivencia y Fortalecimiento de Vínculos". Comprendemos que el vínculo no es un mero lazo o asociación, sino un objeto inmaterial que gana existencia porque constantemente sostenemos redes de prácticas que lo producen. A través de esta descripción visualizamos la performance de tres versiones de vínculo circunscritas a la esfera del poder, del afecto y de la ética. Tres diferentes versiones que ofrecen distintos modos de intervención a los profesionales de la Asistencia Social, así como, generan diferentes experiencias a los usuarios de los servicios socioasistenciales.

Palabras-clave: Performance; Vínculo; Asistencia Social; Psicología; Teoría Actor-red.


 

 

Introdução

Os vínculos familiares e comunitários constituem um operador central na Política de Assistência Social. Centralidade, essa, que podemos visibilizar na proposição que afirma o fortalecimento desses vínculos como uma das "metas que perpassam todas as normatizações da política nacional de assistência social" (Brasil, 2012a, p. 94), sendo, então, encontrada em diferentes documentos que a constitui (Lei Nº 8.7432; Brasil, 2004; 2005; 2012a; 2012b; 2013). Além disso, a relevância do tema ainda se apresenta na materialização de um documento específico, o Caderno denominado "Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos" (Brasil, 2013), lançado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome1 (MDS) "destinado a gestores e trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social - SUAS e às redes de articulação da proteção social básica nos territórios, além de órgãos de controle" (Brasil, 2013, p. 7).

Também é importante destacar que a menção dos vínculos familiares e comunitários é frequentemente acompanhada pela necessidade de seu fortalecimento. Esse objetivo aparece tanto no âmbito da proteção social básica, cujo serviço de referência é o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), localizado no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), quanto na Proteção Social Especial, que oferta o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), em unidades dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas).

A percepção dessa centralidade levou ao desenvolvimento de uma pesquisa que, ao circunscrever o vínculo como objeto da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), buscou rastrear e visibilizar as redes de práticas heterogêneas pelas quais esse objeto é performado (Rodrigues, 2017). Desse modo, como um desdobramento da referida investigação, esse artigo tem como objetivo discutir a performance do vínculo como objeto da Política de Assistência Social, a partir da análise das redes de práticas que materializam o documento referência da Política para a temática em questão: O Caderno do MDS intitulado "Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos".

Para pensar essa produção do vínculo partimos das proposições dos Estudos da Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) e da Teoria Ator-Rede (TAR) utilizando dois operadores centrais para construção de uma política investigativa. O primeiro é a noção de rede (Latour, 2012) que, a partir da TAR, se configura através de associações de séries heterogêneas de elementos (que podem ser humanos e não humanos, materiais ou imateriais) e que não se constituem como entidades estáveis, meramente conectadas sem a possibilidade de transformação. Ao contrário, tais elementos podem se modificar em sua relação com os demais, em um processo que faz e refaz a rede constantemente2. Assim, contrastando com a ideia de estrutura social, essa imagem da rede heterogênea permite assumir, no fazer da pesquisa, a agência dos atores nela envolvidos que deixam de ser meros ocupantes de um lugar para se tornarem atuantes (ou actantes) que transformam, ao invés de apenas informar, produzindo objetos e marcando uma diferença (Latour, 2012). Esse processo exigiu considerar a atuação não só dos atores humanos, mas dos não humanos envolvidos na produção do vínculo - pois, se há técnicos e especialistas, há também papéis, equipamentos e conceitos envolvidos nessa rede de produção. Portanto, se tudo aquilo que existe no mundo só ganha existência porque é continuamente gerado como um efeito das redes de relações, tornam-se relevantes explorar e caracterizar tais redes e suas práticas, descrevendo a performance das relações heterogêneas que produzem e rearranjam seus atores (Law, 2007).

Como a existência dos objetos não se constitui fora nem a priori à atuação dos atores em rede, se assume que sua ontologia (seus modos de existência) depende, a cada momento, da composição e operações que se encontram disponíveis em cada uma delas. É, então, ao traçar as conexões dos diferentes atores, descrevendo e construindo a rede heterogênea de elementos que constitui e sustenta a existência do vínculo na Política, que se torna possível visibilizar sua produção. Se, como nos fala Latour (2012), a sociedade, assim, como a natureza ou a subjetividade não são entidades abstratas - existindo misteriosamente, sem precisar ser constantemente retraçada e refeita - porque seria, então, o vínculo?

[...] não existe uma sociedade por onde começar, nenhuma reserva de vínculos, nenhum tranquilizador vidro de cola para manter unidos todos esses grupos. Se você não promover a festa hoje ou não imprimir o jornal agora, simplesmente perderá o agrupamento, que não é um edifício à espera de restauração, mas um movimento que precisa continuar. Se uma dançarina para de dançar, adeus à dança. A força de inércia não levará o espetáculo adiante (Latour, 2012, p. 63).

Segundo o autor, seguir esses pressupostos exige nosso esforço em nos mantermos apenas acompanhando (a passos demorados e olhos míopes) a associação em rede dos atores, deixando de lado o uso de contextos e noções totalizantes como ferramentas explicativas de análise, o que torna a TAR muito mais descritiva. No entanto, isso não quer dizer que o trabalho que realizamos diz respeito a simples descrição das redes, pois é exatamente essa descrição que permite e constitui a produção analítica da pesquisa. É ela que nos leva a contar histórias sobre como as relações são ou não são construídas (Law, 2007). Encarnar essa postura, na tentativa de construir narrativas que nos possibilitem conhecer a produção do vínculo como objeto da PNAS, implica compreender que ele apenas se torna real por ser parte de práticas (sempre localizadas histórica, cultural e materialmente) que constantemente o produzem no entrelaçamento entre o real e o político (Mol, 2002). É essa relação que forja o que Mol (2008) denomina ontologias políticas, demarcando não a pluralidade de perspectivas sobre uma realidade única, mas, sim, suas diferentes performances. E aqui nos encontramos com o segundo operador dessa política investigativa, a noção de performance (enact) de Mol (2002).

Assim, se o trabalho em rede precisa ser constante para produzir e manter a existência do vínculo, não há como o concebermos como um objeto natural, já dado, que sempre existiu intocado em um centro a espera de ser observado por uma diversidade de pontos de vista que, ao invés de atentar para sua fabricação, criam distintos modos de olhar para uma realidade sempre única (Mol, 2008). Aqui o movimento é oposto, não há um vínculo ao redor da qual pairam nossas investigações e análises na tentativa de desvendá-lo, pois o vínculo é produzido, manipulado "no curso de uma série de diferentes práticas" (Mol, 2008, p. 6) que o performam (ao contrário do que poderíamos pensar em um primeiro momento) não como um objeto único, mas múltiplo. Isso porque diferentes lugares e redes de práticas - como o documento da Política ou o campo de conhecimento da Psicologia - compõem distintas versões de vínculo. Como nos fala a autora, são "objectos diferentes, embora relacionados entre si. São formas múltiplas da realidade - da realidade em si" (Mol, 2008, p. 6).

Portanto, a partir dessa política investigativa, a estratégia utilizada para produção dos dados dessa pesquisa se constituiu pela leitura minuciosa do material de análise - o Caderno do MDS - buscando descrever as associações em rede de atores que produzem e sustentam a existência do vínculo como objeto da Política. Essa descrição foi guiada pelas seguintes questões: quais atores foram convocados para performance do vínculo no referido documento? Quais relações/interações encontram-se estabelecidas entre esses diferentes atores? E que efeitos tais interações poderiam gerar às práticas socioassistenciais desempenhadas nos serviços disponibilizados pela Política?

 

A performance do vínculo no Caderno da Política

O fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, como meta da PNAS (Brasil, 2012b), possui como documento de referência o Caderno do MDS intitulado "Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos" (Brasil, 2013). Seguindo formulações teóricas e estudos empíricos, esse documento configura a temática utilizando-se tanto do conhecimento acadêmico-científico, quanto do reconhecimento das experiências de consolidação do SUAS nos municípios brasileiros, principalmente, em relação a implementação de serviços socioassistenciais (Brasil, 2013).

Em linhas gerais, o Caderno aborda os seguintes tópicos 1) a segurança do convívio na proteção social; 2) heranças e legados; 3) convivência e fortalecimento de vínculos; 4) vulnerabilidades relacionais; 5) fortalecimento de vínculos como finalidade; 6) convivência como processo e metodologia e 7) consequências programáticas. Nesse caminho, discorre sobre diferentes caracterizações das vulnerabilidades relacionais - conflitos, preconceito/discriminação, abandono, apartação, confinamento, isolamento, violência - circunscrevendo o fortalecimento de vínculos como trabalho "que intervém nas situações de vulnerabilidades relacionais produzindo proteção socioassistencial" (Brasil, 2013, p. 35). O documento mostra, também, que a promoção de espaços de convívio é a forma que produz o vínculo como resultado do trabalho social, a partir da relação expressa na proposição "convivência é forma e vínculo é resultado" (Brasil, 2013, p. 23), sintetizada por Aldaíza Sposati, especialista do campo3.

O Caderno oferece, ainda, um conjunto de indicadores para orientação de estratégias aos profissionais da PNAS em direção à ampliação e diversificação do campo relacional dos usuários dos serviços. Indicadores, caracterizados sob o aspecto da parcialidade, que permitiriam a identificação e qualificação dos resultados obtidos, considerando como base que: algumas relações de parentesco são fonte de afeto e apoio ordinário; algumas relações com amigos são fonte de afeto, valorização e prazer de viver juntos; algumas relações orgânicas4 são fonte de parceria e realizações produtivas; algumas relações de cidadania são fonte de aprendizado, de diálogo e conquistas; as relações com os profissionais da Política de Assistência Social são fonte de referência de continuidade e amoralidade no enfrentamento das situações de vulnerabilidade (único indicador que não pressupõe parcialidade, pois a proteção como ação profissional não é uma possibilidade, mas um dever); e que os territórios tecidos por essas relações sejam valorizados como lugares de pertença.

Para que tais indicadores possam ser operacionalizados, "as situações de convivência são tomadas como oportunidades que precisam ser criadas, preparadas e a experiência é o foco de análise e entendimento" (Brasil, 2013, p. 39). Além disso, a articulação que situa a convivência como metodologia, ou seja, como estratégia que permite a performance do vínculo como resultado do trabalho, deve estar implicada na produção da proteção social como condição de cidadania (Brasil, 2013). Nessa direção, como veremos abaixo, embora o documento se constitua pela relação entre elementos humanos e não humanos tanto o convívio quanto os vínculos são compreendidos como "atributos humanos" que permitem minimizar as vulnerabilidades e, por isso, devem ser assegurados pelos serviços locais em todas as fases da vida (Brasil, 2013).

Desse modo, sendo um documento central para a compreensão da concepção da relação convivência-vínculo no campo da PNAS, destacamos o referido Caderno como material de investigação dessa pesquisa. A partir dele traçamos uma descrição dos elementos encontrados na sua rede de práticas, visibilizando a atuação dos diferentes atores (humanos e não humanos, materiais e imateriais) com o intuito de compreender tanto a produção do vínculo, como o que ele pode nos "fazer fazer" (Latour, 2012) e que capacidades de atuação podem surgir através da interação dos profissionais do campo com as versões de vínculo produzidas.

Se em um primeiro momento poderíamos afirmar que o vínculo, como objeto da Política, é performado como resultado do trabalho realizado a partir dos serviços da Assistência Social (Brasil, 2013), ao seguirmos, com "olhos míopes", os atores que compõe a rede de práticas que se estabilizou no (e como) Caderno da Política, encontramos três formações (ou eixos) distintos que trazem a existência três respectivas versões do referido objeto. Cada uma dessas versões é constituída por diferentes elementos/entidades que interagem entre si atuando no sentido de capacitar os sujeitos à possibilidade de vivências coletivas que produzem experiências específicas.

Desse modo, considerando a política de investigação que constitui essa pesquisa, exploramos e descrevemos tais eixos compreendendo-os como distintos assemblages, ou seja, como a associação de diferentes elementos que caracterizam a formação de um todo, não a partir do simples agrupamento das entidades que o compõe, mas pelas relações de exterioridade que estabelecem entre si através de suas capacidades de interação que, por sua vez, possibilitam a produção de efeitos diversos (Delanda, 2006). Aqui é importante entendermos que, ao serem exercidas apenas em interação, as capacidades não são um dado a priori, elas só se tornam visíveis em associação com outras entidades produzindo efeitos que não podem ser reduzidos a nenhuma delas. Em outras palavras, um assemblage só se constitui como resultado do exercício real da capacidade de interação de cada entidade que o compõe (Delanda, 2006). Portanto, nesse movimento de análise, buscamos visibilizar as interações que se estabelecem nos eixos, ou seja, nos assemblages que compõe o Caderno da Política forjando versões de vínculo a partir do que podemos situar como três diferentes superfícies ou planos de atuação, referenciados no próprio documento: plano 1) do poder, 2) do afeto e 3) da ética. Ao localizar as interações exercidas em cada um desses planos é possível visualizarmos a produção de efeitos que permitem aos usuários da Política o exercício de três possibilidades de experiências - atuadas através dos encontros e das relações coletivas (Brasil, 2013).

 

Assemblage I: convivência, vínculo e poder

O primeiro assemblage se configura sob o tripé referido no Caderno como "convivência, vínculo e poder". Como veremos mais adiante, ele performa o vínculo como poder e é produzido a partir da associação de atores de duas redes de práticas distintas, ambas situadas no domínio da produção do conhecimento científico: uma relativa as contribuições teóricas do psicólogo e pensador bielorrusso Lev Vygotsky e a outra ao educador brasileiro Paulo Freire. Mais especificamente, sustentando essa versão de vínculo, encontramos a interação entre dois atores particulares, as "relações" - elemento da rede traçada pelo psicólogo bielorrusso que demarca a constituição dos sujeitos "na relação com o outro" (Brasil, 2013, p. 17) - e o "processo coletivo" - advindo do campo educacional brasileiro e que demarca as relações estabelecidas entre os sujeitos como referência tanto para a constituição do indivíduo como para o próprio coletivo. Esses são atores que, em interação no documento da Política, atuam estabilizando uma versão de vínculo que oferece aos usuários dos serviços socioassistenciais a possibilidade da experiência da igualdade (Brasil, 2013) entre os sujeitos.

Nesse ponto poderíamos nos perguntar como tal versão do vínculo, que se estabiliza no Caderno da Política pela interação entre esses dois atores, poderia vir a ser atualizada no cotidiano de trabalho de um serviço socioassistencial? Pelo exercício de determinadas práticas que essa versão possibilita aos operadores dos serviços. Práticas que colocam em funcionamento a convivência como metodologia atuando na promoção dos encontros entre os usuários, tais como o desenvolvimento de grupos de familiares e grupos de convivência que instigam o investimento em "formas de intervenção que promovem encontros que afetam as pessoas, mobilizando-as e provocando transformações" (Brasil, 2013, p. 17).

Nesse assemblage encontramos, também, uma tradução do "processo coletivo" que advém da rede de práticas do campo educativo para o campo do trabalho socioassistencial, o que, em termos laturianos, significa uma ação de mediação técnica (Latour, 2001) que gera uma interferência, uma translação de objetivos entre as entidades em relação compondo um algo a mais, ou, seja, um novo objetivo que não existia a priori a interação das entidades5. Desse modo, a tradução que acompanhamos aqui nos mostra a passagem de um aprendizado de conteúdo e da condição de oprimido para um aprendizado da e na coletividade que opera com a proteção social. Um movimento que oferece aos usuários da Política uma abertura ao aprendizado de diferentes saberes (implicados com a proteção do cidadão) onde os conhecimentos acadêmicos e a experiência vivida pelos sujeitos, são colocados no mesmo plano, sem hierarquia valorativa (Brasil, 2013) - uma clara referência freiriana.

O "processo coletivo", como ator em interação com as "relações", permite aos usuários, ainda, exercitar o que o Caderno destaca como capacidade de assumir-se (ter autonomia), assim como, a construção coletiva de identidades e singularidades (aprendizado). Isso propiciaria aos sujeitos a realização de escolhas pessoais, políticas e afetivas afirmando um exercício político específico do conviver como "poder experimentar uma condição de igualdade para poder projetar com o outro, mudanças para si e para a coletividade" (Brasil, 2013, p. 18). Nesse sentido, a promoção dos encontros se torna prática fundamental à possibilidade da experiência da igualdade. E é exatamente o elemento "encontro" que se constitui como zona de contato com o exterior, ou seja, com as associações que produzem o próximo assemblage, configurado no Caderno da Política pela relação "Convivência, vínculo e afeto".

 

Assemblage II: vínculo como afeto

No segundo assemblage, que performa o vínculo como afeto, também encontramos conectados atores de duas redes distintas do campo de conhecimento - a Filosofia e a Psicologia - que em interação sustentam aos usuários da Política a possibilidade de experimentar a sensibilidade e a criatividade (Brasil, 2013). O primeiro elemento que visualizamos ao seguir essa rede de associações, a "capacidade de afetar", advém do campo de conhecimento filosófico, mais precisamente da rede tecida pelo filósofo holandês Baruch Espinoza. Tal elemento atua demarcando um efeito que seria inerente a todos os encontros, a possibilidade de deixar marcas e permitir ser marcado pelo outro. Desse modo, a conexão entre os "encontros" e a "capacidade de afetar e ser afetado" tem como efeito a produção de nossas "emoções" que, por sua vez, irão constituir a força motriz das ações que afetam a compreensão que os sujeitos têm de si e do mundo - o que, segundo o Caderno (Brasil, 2013), possibilitaria mudanças importantes para o enfrentamento de certas condições de existência:

Destaca-se [...] a importância das emoções/afetos na atividade humana, permitindo que seja considerada uma ferramenta no trabalho das políticas sociais, pois a necessidade de reconhecimento e de expansão da vida manifesta na felicidade e na liberdade são tão relevantes e concretas quanto a sobrevivência física e material (Brasil, 2013, p. 20).

Os "encontros" e a "capacidade de afetar" associada à rede de práticas do trabalho social interagem, ainda, com outro conceito espinoziano que, nessa rede heterogênea, funciona como critério de avaliação das práticas desempenhadas: a "expansão da vida". A associação desse elemento como mais um ator dessa rede possibilita o exercício da ponderação, que permite avaliar se os encontros promovidos no campo da assistência estariam favorecendo a expansão da vida (instigando o sentimento de valorização e a potência de agir) ou a reduzindo, gerando desqualificação, imobilização e subordinação dos sujeitos (Brasil, 2013).

Já os atores advindos da rede de práticas do campo de conhecimento da Psicologia se encontram em interação nesse assemblage, forjando a compreensão de um "conceito alargado de vínculo" (Brasil, 2013, p. 20). São elementos que, rastreados, encontramos dispostos em de redes de práticas que performam versões de vínculo ligadas às produções do campo da psicologia de referência psicanalítica, com John Bowlby, Melanie Klein e Donald Winnicott (e suas versões do vínculo da relação mãe-bebê) e da psicologia social, com Pichon-Rivière e Jacob Moreno, e suas performances que articulam a inter-relação dos processos de comunicação e de aprendizagem na produção do vínculo (Brasil, 2013).

Desse modo, em relação ao campo da psicologia de referência psicanalítica, encontramos a "relação mãe-bebê" conectada aos demais elementos desse assemblage atuando a possibilidade de produzir práticas no campo da assistência que, na interação com os "encontros" (coletivos ou particulares, como as visitas domiciliares ou a acolhida particularizada) capacitem os profissionais a olharem para o que acontece na díade mãe-bebê. Isso se faria importante na Política na medida em que ela considera "o fato de que o processo de vinculação tem início nos primeiros dias de vida [...] e agrega a perspectiva de ser uma produção transgeracional e imanente à produção de sujeitos" (Brasil, 2013, p. 20).

No que diz respeito ao âmbito da psicologia social, encontramos em associação elementos de outras duas redes de práticas. O primeiro é a versão de "vínculo como estrutura complexa", performada pelas contribuições do psiquiatra e psicanalista argentino Enrique Pichon-Rivière (1986) e que, segundo o autor, permite o entendimento de que o vínculo é uma articulação que inclui diferentes componentes: um sujeito, um objeto e os processos de comunicação e aprendizagem. A relação entre esses elementos, que marca a complexidade do vínculo, oferece aos profissionais da Assistência Social a possibilidade de reconhecer a existência de uma

[...] dimensão psíquica/interna que informa que os modos de se vincular, se ligar a um objeto (outra pessoa) podem sofrer cristalizações, fazendo com que o sujeito repita um jeito de se relacionar [...]. Estas cristalizações foram construídas em relações difíceis de serem vividas, muito provavelmente, na primeira infância (Brasil, 2013, p. 20).

No entanto, esse efeito de cristalização dos modos de se vincular não se tornaria um impeditivo ao trabalho social com as famílias. Essa cristalização não pressupõe uma eterna repetição ou imobilidade do sujeito, pois, em contrapartida, existiria sempre a possibilidade de desarticulá-las em meio às situações de convivência produzidas na interação dos "encontros" e do "processo coletivo", auxiliando no estabelecimento de vínculos mais flexíveis e novos modos de agir e de se relacionar (Brasil, 2013).

Na composição à abertura de possibilidades para mudanças, que podemos aqui referir como mudanças subjetivas ou nos modos de viver e conviver, encontramos, ainda, outros três elementos associados a esse assemblage e que são referenciados à psicologia social, pois advêm da rede de práticas performada pelo psicodramatista Jacob Moreno: as "relações humanas", os "papéis" e o "grupo". Em sua produção de conhecimento, a interação entre esses elementos atua produzindo o vínculo como resultado das relações humanas que, por sua vez, são marcadas por papéis - a forma de funcionamento do indivíduo. Nesse sentido, a organização grupal assume um lugar fundamental na composição do vínculo, posto que, em primeiro lugar o que existe não é o indivíduo, mas o grupo e, portanto, as relações que se estabelecem através dele (Brasil, 2013). Desse modo, no campo das práticas socioassistenciais, apostar na composição de grupos (e, portanto, nos encontros), oferece a possibilidade de abertura e desenvolvimento das relações humanas a partir das quais os sujeitos podem vir a experienciar novos papéis gerando mudanças na estrutura das próprias relações (Brasil, 2013).

Essa seria a potência que se coloca no horizonte dos espaços de encontro e convivência oferecidos pelos serviços socioassistenciais, pois, como menciona o Caderno da Política, esses carregariam em si a possibilidade de experimentação e criação de diferentes modos de estabelecer relações (Brasil, 2013). É uma aposta na produção coletiva, na potência que pode vir ou não vir a ser atualizada no cotidiano de trabalho. Como cada encontro se compõe a partir dos elementos que se colocam disponíveis a ele a cada momento, é possível tanto estabilizar momentos de cristalização e reforço de subjetividades consideradas melhores e mais saudáveis (em termos hegemônicos e burgueses) como desestabilizar essa mesma estrutura/organização. O que irá se atualizar e se estabilizar dependerá sempre das conexões estabelecidas a cada encontro.

 

Assemblage III: vínculo como ética

Finalmente, o terceiro e último assemblage - que performam o vínculo como ética - tem como efeito a produção do exercício da capacidade de experimentar a solidariedade. Aqui, o elemento "participação" atua como ator não apenas para o exercício da educação política (permitindo a inclusão dos usuários nos espaços de decisão), mas, também, com a possibilidade de ampliação tanto das relações na perspectiva da vivência da cidadania como do compartilhamento de um mundo comum (Brasil, 2013). Diferentemente dos eixos anteriores, onde se associam elementos referenciados à produção do campo de conhecimento científico, na esfera da ética estão postas em relação entrevistas com orientadores sociais, técnicos e especialistas na área da Assistência Social. As primeiras estão dispostas nessa rede atuando na sustentação do exercício da participação como possibilidade de educação do cidadão, da garantia da legitimidade das decisões, do sentimento de pertencimento à instituição a qual participam (com poder decisório) e da construção da reciprocidade - aspectos mencionados como importantes para manutenção da proximidade dos profissionais à vida dos usuários, pois "estimular o fortalecimento de vínculos significa também garantir espaços participativos na tomada de decisão e fomentá-los como estratégia sócio-educativa. Significa experimentar a solidariedade e partilhar um mundo comum" (Brasil, 2013, p. 23).

Já as entrevistas com os técnicos dos serviços atuam sustentando o valor do elemento "afeto". Nesse sentido, os laços afetivos funcionam como condição para inclusão dos usuários nos dispositivos de decisão, pois a construção do afeto gera a confiança necessária à relação entre os profissionais e os usuários da assistência. Confiança que é destacada no seguinte trecho de entrevistas: "[p]ara que essa mãe possa contar comigo, eu preciso ter um vínculo afetivo com ela" (Brasil, 2013, p. 23). Portanto, aqui, o afeto é tanto um ator em atuação na performance do vínculo como ética, como o ponto de conexão que encontramos com o vínculo como afeto.

No mesmo assemblage encontramos conectados, também, dois elementos do campo de conhecimento da Sociologia, mais precisamente derivados da rede que performa a tipologia dos vínculos, do sociólogo francês Serge Paugam6. Ambos estão ligados a uma compreensão específica de vínculo, ou seja, constituem a versão de vínculo de Paugam (2012). São eles: o movimento de "contar com" (referente àquilo que os sujeitos podem esperar de suas relações) e o de "contar para" (que expressa expectativa e reconhecimento)7. Ao serem conectados à rede que performa a versão na esfera da "Convivência, vínculo e ética", esses movimentos passam a atuar como uma bússola ao mapeamento das relações de proteção e das relações onde essa se encontra ausente. Essa interação capacita os profissionais do SUAS a investigarem os diferentes tipos de vínculo estabelecidos entre os usuários, possibilitando a compreensão de como "as redes derivadas dessas relações são mobilizadas por elas e o quanto influenciam suas ações" (Brasil, 2013, p. 39).

Além dos elementos que produzem a multiplicidade ontológica do vínculo (descritos nos três assemblages), encontramos no documento da Política alguns pontos estratégicos que auxiliam na manutenção das práticas que performam tais ontologias. A partir de elementos destacados por diferentes especialistas do campo da Assistência Social, esses pontos estratégicos atuam: 1) na identificação da necessidade de avaliação dos vínculos nas relações intrafamiliares e suas redes de apoio; 2) no reconhecimento da distinção entre vínculo familiar e vínculo comunitário, que implicam distintos eixos programáticos; e 3) na indicação de que, para a construção de vínculo - como tradução de afeto - o trabalho socioassistencial deve ter uma direção/intencionalidade abrangendo, além da relação com os profissionais, a relação entre os usuários e a construção de uma referência específica para crianças e adolescentes (Brasil, 2013).

 

O que as diferentes versões de vínculo colocam em movimento

Como vimos até aqui, seguir as associações em rede dos elementos heterogêneos que sustentam a existência do vínculo como objeto do Caderno da Política nos permitiu evidenciar o que se colocou em circulação em relação nesse processo de produção. Utilizando a metáfora laturiana da "caixa-preta", é possível pensarmos nesse procedimento como um movimento que buscou destrinchar o vínculo, performado como "resultado do trabalho" (Brasil, 2013), lançando pontos de luminosidade sobre os efeitos que envolvem a interação entre seus diferentes atores. Esses, dispostos em rede de modo singular, estabilizam três configurações específicas que o vínculo assume no documento da Política e, que não podemos esquecer, dizem respeito apenas ao seu próprio arranjo. Assim, a rede que estabiliza o Caderno apenas se compõe do modo como a visualizamos (no traçado da rede produzido nessa escrita), a partir das articulações que se produzem nesse espaço. Outros elementos e outras interações culminariam em diferentes produções.

Esse movimento de análise permitiu, assim, visibilizar a existência do vínculo como múltiplo no documento da Política. Através da localização de suas microrredes, aqui descritas como diferentes assemblages, encontramos não apenas um objeto, mas três diferentes modos de atuar, performar o vínculo, que aqui denominamos de vínculo como poder; como afeto e como ética. Em relação, essas três microrredes produzem, por sua vez, o vínculo como resultado do trabalho social.

Há, portanto, diferentes práticas que podem ser atualizadas no cotidiano dos serviços socioassistenciais instigando intervenções "que promovem encontros que afetam as pessoas, mobilizando-as e provocando transformações" (Brasil, 2013, p. 17). Ao assumir várias formas que coexistem no presente (Mol, 2002), a multiplicidade do vínculo gera como efeito uma diversidade do fazer aos profissionais que trabalham nos serviços do SUAS possibilitando a eles o desempenho de diferentes práticas que se orientam para diferentes aspectos do cotidiano de vida dos sujeitos: como o que acontece na relação mãe-bebê; potencializando a abertura a novas relações; mapeando e avaliando as redes de relações entre os usuários; distinguindo o familiar e o comunitário; oferecendo sustentação aos laços afetivos; promovendo espaços de convivência (onde a participação tenha caráter decisório); atentando para a dimensão emocional, para os afetos que circulam e para a dimensão intrapsíquica; investigando os modos de vinculação dos sujeitos (se há movimentos de expansão da vida); se os sujeitos possuem redes de proteção com quem contar; produzindo especificidades no trabalho com crianças e adolescentes e assim por diante.

Essas intervenções, se seguirmos as orientações do Caderno, devem estar ligadas a estratégias organizadas em direção à ampliação e diversificação do campo relacional dos usuários, visando a qualificação do processo de produção das práticas destinadas a "ampliar, fortalecer e diversificar modos de relacionamento e os laços produzidos" (Brasil, 2013, p. 40). Nesse sentido, novamente, o uso da convivência como metodologia é enfatizado como peça-chave em direção à promoção da proteção social, a partir da indicação das seguintes tecnologias e ferramentas que auxiliam a minimizar e/ou eliminar vulnerabilidades: escuta; postura de valorização/reconhecimento; situações de produções coletivas; exercício de escolhas; tomada de decisão sobre a própria vida e de seu grupo; experiência de diálogo na resolução de conflitos e divergências; reconhecimento de limites e possibilidades das situações vividas; experiência de escolher e decidir coletivamente; experiência de aprender e ensinar horizontalmente; experiência de reconhecer e nominar suas emoções nas situações vividas; experiência de reconhecer e admirar a diferença (Brasil, 2013).

Desse modo, as diferentes versões de vínculo performadas no documento da Política também geram a capacidade de explorar a produção de efeitos coletivos, a partir de três possibilidades de experiências oferecidas aos usuários da Política: a experimentação da igualdade, da sensibilidade e da criatividade e da solidariedade (Brasil, 2013). Como nos falam Law e Singleton (2014), explorar as conexões e movimentos das redes que sustentam a existência das realidades nos mostra que, ao contrário do que comumente assumimos, uma política - e aqui uma política social - não produz uma realidade única. Do mesmo modo que, como mencionamos anteriormente, não há uma sociedade, como um bloco discursivo, uma entidade que paira sobre nós, mas sim redes de associações que colocam em movimento, que estabilizam uma multiplicidade de coletivos.

 

Três versões em circulação

Com a análise do documento o Caderno "Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos" (Brasil, 2013) buscamos dar visibilidade à produção do vínculo, como objeto da Política de Assistência Social, pela descrição dos diferentes atores envolvidos na rede heterogênea que o sustenta. Através dessa descrição foi possível visualizarmos o compromisso de fortalecer os vínculos familiares e comunitários na disposição de redes que performam distintas versões de vínculo. Essas redes, dispostas no documento da Política, apontam para a inter-relação entre convivência e vínculo ao conectar o elemento convivência como a metodologia que produz o vínculo como resultado, atuado a partir de três eixos distintos e circunscritos a esfera do poder, do afeto e da ética.

Ao acompanharmos o pensamento de Mol (2002) e Law e Singleton (2014), podemos dizer que o espaço documental que estabiliza a rede que se constitui como Caderno da Política conecta diferentes atores que produzem versões específicas de vínculo que não se excluem, mas coexistem (Mol, 2002) e se interconectam.

[...] we draw a division between ontology (what there is) on the one hand and epistemology (what we know about reality) on the other. But this is precisely what ANT does not do [...] since there are lots of practices there are also multiple realities. Practices are sitting alongside one another in different places and practices, and what becomes really important (apart from the practices themselves) is how the different [...] realities get related together in practice (Law, & Singleton, 2014, p. 386)8.

Como acompanhamos na descrição acima, as práticas que forjam e delimitam o domínio das políticas públicas também performam múltiplos objetos e, no escopo desse trabalho, múltiplos vínculos que fazem os profissionais dos serviços do SUAS e os usuários da Política atuarem de modos distintos. Portanto, é fundamental que possamos interrogar que produções são realizadas para que possamos pensar seus efeitos possíveis no cotidiano dos serviços, das famílias e comunidades e com que produção de mundo e sujeitos estão implicados, pois o Caderno da Política, como rede que associa diferentes elementos do campo de produção do conhecimento científico, também produz um modo de conhecimento e, portanto, atua na produção de mundo, de políticas ontológicas que efetivamente performam versões de vínculo, formas de atuação e modos de agir.

Aqui é possível, ainda, conectarmos a ideia de que a produção científica, as produções de expertise, de leis e da organização social não estão separadas da política (Jasanoff, 2004). O que nos instiga a pensar sobre qual é o projeto político que se busca estabilizar para o coletivo de usuários da PNAS quando se oferece aos profissionais de seus serviços a possibilidade de atualização de determinadas práticas, em detrimento de outras. Práticas que, ao produzirem o vínculo como poder, afeto e ética nos possibilitam o exercício de intervenções específicas. Afinal o que torna determinadas conexões, que produzem objetos particulares, politicamente mais interessantes do que outras? E nesse ponto encontramos, também, a Psicologia, como campo produtor de conhecimento e expertise, e sua relação com as práticas que constituem a Assistência Social, pois é a estabilização do vínculo como afeto que permite conectar essas duas redes de práticas, atualizando, através dessa versão, um interesse político endereçado aos usuários dos serviços socioassistenciais, ao qual a Psicologia contribui como campo de produção de conhecimento.

É também interessante atentarmos para a relação da performance do vínculo com a produção de subjetividade. Nesse sentido, o Caderno da Política, como rede que associa diferentes atores/entidades para produção de políticas ontológicas específicas, performa versões de vínculo que atuam como conectores (Latour, 2012) que permitem aos sujeitos estabelecer contato com elementos externos que podem ativar o exercício de determinadas capacidades, a serem desempenhadas em seu cotidiano de vida. Ou seja, a produção de um vínculo, como, por exemplo, o vínculo como afeto, pode oferecer ao sujeito a possibilidade de entrar em contato com elementos que permitam uma modificação no que diz respeito à relação mãe e filho - já que nessa versão circulam elementos ligados à relação mãe-bebê.

Portanto, as versões de vínculo estabilizados no Caderno da Política se relacionam com processos de construção subjetiva. Isso significa que a estabilização que permite a produção de diferentes versões de vínculo (ou seja, de diferentes objetos) possibilita, também, a circulação desses mesmos objetos em meio às relações estabelecidas entre profissionais e usuários do campo da Assistência Social, colocando em curso a possibilidade de atualização de determinados elementos que compõe sua produção subjetiva. Desse modo, o que se coloca em jogo nesse trabalho não é o que se poderia pensar como sendo apenas uma mera descrição das performances do vínculo, mas, sim, uma produção analítica que nos permite pensar o que tais performances nos fazem fazer, assim como sua relação com a produção de realidades e de sujeitos - sejam profissionais ou usuários da Política.

 

Referências

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Tirado, F., Bareliola, E., Giordani, T., Torrejón, P. (2014). Subjetividad y subjetivadores em las tecnologías de bioseguridad de la Unión Europea. Polis e Psique, 4(3), 23-50. https://doi.org/10.22456/2238-152X.44868        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Luciana Rodrigues
luciana_rodrig@yahoo.com.br

Neuza Maria de Fátima
Guareschi nmguares@gmail.com

Submetido em: 31/07/2017
Revisto em: 30/10/2017
Aceito em: 16/11/2017

 

 

1 Inúmeras mudanças ocorreram no governo brasileiro durante o último ano do doutorado. Entre elas houve a mudança do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome que, ao se juntar ao agrário, passou a se chamar Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. No entanto, ao longo do texto optei por manter o primeiro nome, tanto por uma escolha política, como por entender que o conteúdo ao qual fiz referência foi produzido na conjuntura política do Ministério anterior. É importante frisar que, como também houve alterações no site do Ministério, alguns dos links aqui citados podem encontrar-se fora do ar.
2 Embora faça uso do termo network, o autor menciona que deveríamos dizer worknet para, assim, enfatizarmos seu trabalho e movimento (Latour, 2012).
3 Embora o Caderno "Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos" (Brasil, 2013) mostre, já na terceira página, um desenho (sem referência de autores) explicitando o movimento da relação da convivência como forma e do vínculo como resultado, essa expressão é referenciada na página 23 como sendo uma síntese de Sposati (2012, citado por Brasil, 2013). No entanto, ainda que o link para o texto da autora se encontre disponível no documento, atualmente ele está fora de funcionamento e não o encontramos disponível em outros sites da web ou nas bibliotecas as quais tivemos acesso.
4 O uso da expressão "relações orgânicas" faz referência ao vínculo de participação orgânica, uma das formas de vínculo descritas pelo sociólogo francês Serge Paugam, caracterizada pelo aprendizado e exercício de uma função determinada na organização do trabalho (Paugam, 2012).
5 No sentido aqui abordado, tecnologia se constitui como uma ação de mediação entre entidades que perdura no tempo e espaço (Tirado, Bareliola, Giordani, & Torrejón., 2014) que podem efetuar: 1) uma interferência, gerando uma translação de objetivos entre os agentes associados indicando um "deslocamento, tendência, invenção, mediação, criação de um vínculo que não exista" (Latour, 2001, p. 206); 2) uma composição, através da qual a associação entre diferentes entidades produz novos elementos e capacidades; 3) uma transposição da fronteira entre os signos e as coisas que substitui tanto a substância de nossa expressão, como sua forma (Latour, 2001).
6 Paugam (2012) define quatro tipos interligados de vínculos sociais: 1) vínculo de filiação (natural ou social); 2) vínculo de participação eletiva (socialização fora da família); 3) vínculo de participação orgânica (relacionada à organização do trabalho); e 4) vínculo de cidadania.
7 Essa discussão pode ser encontrada em Paugam (2012).
8 Tradução livre: "[...] nós traçamos uma divisão entre a ontologia (o que é), por um lado, e a epistemologia (o que sabemos sobre a realidade), por outro. Mas isso é precisamente o que ANT não faz [...] uma vez que existem muitas práticas também há múltiplas realidades. Práticas estão colocadas lado a lado em diferentes lugares e práticas, e o que se torna realmente importante (aparte das próprias práticas) é a forma como as diferentes [...] realidades são relacionados juntas na prática".

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