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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2018

 

ARTIGOS

 

Rotinas de crianças e adolescentes em acolhimento institucional: estudo descritivo

 

Routines of children and adolescents in institutional childcare: descriptive study

 

Rutinas de niños y adolescentes en acogida institucional: estudio descriptivo

 

 

Sabine HeumannI; Lília Iêda Chaves CavalcanteII

IPsicóloga. Mestre em Teoria e Pesquisa do Comportamento, Especialista em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Belém. Estado do Pará. Brasil
IIDocente do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará (PPGTPC/UFPA) e da Faculdade de Serviço Social (FASS/UFPA). Belém. Estado do Pará. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivou-se descrever e comparar as atividades, companhias e ambientes característicos da rotina de crianças e adolescentes em instituições de acolhimento em três regiões do Pará, de acordo com o grupo etário. Foi aplicado o Inventário de Rotina (IR) e os resultados apontam com maior frequência, durante a semana, a atividade Sono, descanso ou despertar (Crianças M = 678 e DP = 113,0; Adolescentes M = 597 e DP = 78,5), as companhias Pares (Crianças M = 371 e DP = 414,7) e Todos (Adolescentes M = 743 e DP = 431,3) e o ambiente Quarto (Crianças M = 759 e DP = 180,2; Adolescentes M = 656 e DP = 180,2). Os resultados se assemelharam nos finais de semana, exceto quanto à companhia mais frequente para crianças, que passa a ser a de Outros acolhidos acompanhados por profissionais (M = 729 e DP = 579,0). Conclui-se que as rotinas observadas apresentaram certa constância e seus elementos variaram pouco. Esse cenário pode não favorecer o desenvolvimento desse público, o que deve ser analisado sistematicamente.

Palavras-chave: Cotidiano; Institucionalização; Psicologia do desenvolvimento; Desenvolvimento infantil; Psicologia do adolescente.


ABSTRACT

The purpose of this study was to describe and compare the activities, companies and environments typical of the routine of children and adolescents in host institutions in three regions of Pará, according to age group. The Routine Inventory (RI) was applied and the results showed a greater frequency, during the week, of the activities: sleep, rest or awakening (M = 678 and Sd = 113.0 for children, M = 597 and Sd = 78.5 for adolescents), pairs companionship (M = 371 and Sd = 180.2 for children and every activity (M = 743 and Sd = 431.3 for adolescents) and the room environment (M = 759 and Sd = 180.2 for children, M = 656 and Sd = 80.2 for adolescents). The results were similar at weekends, except for the most frequent companionship for children, which became other hosts accompanied by professionals (M = 729 and Sd = 579.0). It was concluded that the observed routines presented some constancy and their elements varied little. This scenario may not favor the development of this public, which should be analyzed systematically.

Keywords: Daily life; Institutionalization; Developmental psychology; Childhood development; Adolescent psychology.


RESUMEN

Se objetivó describir y comparar las actividades, compañías y ambientes característicos de la rutina de niños y adolescentes en instituciones de acogida en tres regiones de Pará, de acuerdo con el grupo de edad. Se ha aplicado el Inventario de Rutina (IR) y los resultados apuntan con mayor frecuencia durante la semana, la actividad Sueño, reposo o despertar (Niños M = 678 y DP = 113, Adolescentes M = 597 y DP = 78,5), las compañías Pares (Niños M = 371 y DP = 414,7) y Todos (Adolescentes M = 743 y DP = 431,3) y el ambiente Cuarto (Niños M = 759 y DP = 180,2, Adolescentes M = 656 y DP = 180,2). Los resultados se asemejaron los fines de semana, excepto cuanto a la compañía más frecuente para los niños, que pasa a ser la de Otros acogidos acompañados por profesionales (M = 729 y DP = 579). Se concluye que las rutinas observadas presentaron cierta constancia y sus elementos variaron poco. Este escenario puede no favorecer el desarrollo de ese público, lo que debe ser analizado sistemáticamente.

Palabras clave: Cotidiano; Institucionalización; Psicología del desarrollo; Desarrollo infantil; Psicología del adolescente.


 

 

A rotina - em particular, a rotina de ordem familiar - pode ser entendida como um conjunto de comportamentos observáveis, que preservam certa regularidade e previsibilidade e envolvem dois ou mais membros de uma família, conforme explicam Jensen, James, Boyce e Hartnett (1983). Eles destacam que esses comportamentos têm impacto no bem-estar e na saúde por funcionarem como símbolos de permanência mesmo quando há mudanças, potencializando a resistência e a adaptação desse grupo. Howe (2002) também apresentou um conceito de rotina, cuja definição remete às interações padronizadas e repetidas ao longo do tempo, com certo nível de previsibilidade e estabilidade, como proposto por esses autores. Adicionalmente, Deham (2003) caracteriza a rotina como comportamentos ligados às atividades de vida diária, que podem ser construídos e desconstruídos de acordo com as demandas que se apresentam no contexto.

Sobre a rotina no universo empírico das instituições destinadas ao acolhimento de crianças e adolescentes, destacam-se os estudos de Machado e Serrano (2012), que investigaram as atividades realizadas no tempo livre dos acolhidos em Portugal, assim como, o trabalho de Corrêa e Cavalcante (2013), que colaborou com a discussão dessa temática ao descrever detalhadamente a rotina de educadores em uma instituição de acolhimento na cidade de Belém-PA. Ambos os estudos demonstram que a rotina nas instituições de acolhimento mantém uma certa constância, ou seja, apresenta pouca variabilidade, tanto no que diz respeito às atividades realizadas, quanto aos ambientes frequentados e às companhias mais frequentes.

Observa-se que os estudos que abordam essa temática têm trabalhado comumente com dados que evidenciam as atividades realizadas, as companhias apresentadas e os ambientes frequentados ao longo do tempo (Boyce, Hartnett, James, & Jensen, 1983; Costa, & Cavalcante, 2018; Silva, & Cavalcante, 2015; Silva et al., 2010; Silva & Pontes, 2016; Silva, Pontes, & Silva, 2011). Esses núcleos de análise propostos nos estudos de rotina podem ser entendidos de forma análoga àqueles propostos pelo Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano (MBDH), que integra elementos como Processo, Pessoa, Contexto e Tempo na trajetória de desenvolvimento humano durante todo o ciclo vital. Ou seja, o MBDH dá especial ênfase aos contextos dos quais a pessoa em desenvolvimento faz parte e as interações com eles estabelecidos por meio de inúmeros processos ao longo do tempo (Bronfenbrenner, 2011). O presente estudo utiliza esse referencial teórico na medida em que compreende que o processo de desenvolvimento ocorre mediante as condições que se apresentam nos contextos dos quais a pessoa em desenvolvimento e suas características biopsicológicas fazem parte e estão em interação no seu cotidiano, sendo, por isso, as rotinas um importante objeto nesse tipo de análise.

O MBDH (Bronfenbrenner, 1996; 2011) destaca dois microssistemas não familiares como contextos de desenvolvimento: as creches e as instituições infantis, que, nos dias de hoje, recebem a denominação de instituições de acolhimento. Tratando-se especificamente do contexto de acolhimento, Bronfenbrenner (1996) afirma que o ambiente institucional se diferencia do familiar em todos os níveis do sistema ecológico, desde o mais próximo (Microssistema) até o mais amplo (Macrossistema). Em nível de Microssistema, nível priorizado nas análises do presente estudo, entende-se que a rotina institucional tende a ser mais rígida, com mais atividades pré-estabelecidas em relação ao contexto familiar. Além disso, as relações afetivas entre o profissional cuidador e a criança tendem a ser mais distantes e, de maneira geral, essas experiências costumam ser mais restritas, com menor variedade de atividades e de ambientes frequentados (Bronfenbrenner, 1996).

Para detalhar melhor o assunto e o impacto do ambiente no desenvolvimento de crianças e adolescentes, o MBDH traz alguns pontos importantes que devem ser levados em consideração quando se pretende proceder à análise das rotinas em um ambiente institucional. Bronfenbrenner (1996) destaca que esse ambiente pode prejudicar o processo de desenvolvimento quando não oportuniza muitas experiências de interação entre o ser humano em desenvolvimento e as pessoas, objetos e símbolos do ambiente, nem também possibilita uma ampla variedade de atividades em que a pessoa em desenvolvimento possa se engajar. Ademais, o ambiente físico da instituição pode ser prejudicial ao desenvolvimento quando não permite que a criança e/ou o adolescente tenha contato com objetos estimulantes ou se locomova de forma espontânea.

Outro ponto que deve ser considerado é a possibilidade de a criança e/ou adolescente frequentar no seu cotidiano diferentes ambientes (não apenas o familiar/institucional), participando de forma ativa de outras atividades nesses ambientes e interagindo com pessoas que ocupam papéis diversificados. Ou seja, de forma geral, o contexto institucional tem potencial prejudicial para o desenvolvimento quando o ambiente, em seus aspectos físicos e relacionais, pode ser descrito como pobre em estímulos diversos (Bronfenbrenner, 1996).

Entretanto, esse autor defende ainda que os possíveis prejuízos oriundos do convívio prolongado em um ambiente pouco estimulante do ponto de vista cognitivo e socioemocional, por exemplo, podem ser evitados ou revertidos quando a pessoa em desenvolvimento passa a estar em um contexto que apresente condições favoráveis para o seu desenvolvimento, tais como: oportunidades de locomoção e objetos para atividades espontâneas, possibilidade de interação com cuidadores disponíveis em uma variedade de atividades, chance de interação com uma figura representativamente análoga à materna, formando com ela uma díade que se mantém ligada por um sólido vínculo (Bronfenbrenner, 1996). Autores como Siqueira e Dell'Aglio (2007) corroboram com essas colocações ao pontuar que a institucionalização pode se configurar como um fator de risco ou de proteção, tanto por ter esse possível impacto no desenvolvimento, quanto por ter potencial de reduzir os efeitos negativos mediante a presença de um fator de risco que assim se configurou.

De acordo com o MBDH, para que o desenvolvimento ocorra da forma mais positiva possível, seja em ambiente familiar ou institucional, é importante que a pessoa tenha a possibilidade de se engajar em processos proximais, caracterizados pelo engajamento em atividades, que devem ocorrer com regularidade ao longo do tempo e através de relações interpessoais recíprocas, tornando-se assim cada vez mais complexas (Bronfenbrenner, 1996; 2011; Bronfenbrenner, & Ceci, 1994). Somado a isso, é importante que a criança e/ou adolescente tenha a oportunidade de ocupar diferentes papéis no seu dia a dia, ou seja, ocupar distintos lugares em interações mantidas com outras pessoas, exercendo diferentes funções sociais, bem como se relacionar com outras que ocupem papéis que se diferenciem dos até então conhecidos (Bronfenbrenner, 1996; 2011).

Sendo assim, entende-se que o acolhimento institucional pode representar para crianças e/ou adolescentes que vivem nessa situação específica o convívio em um contexto de desenvolvimento mais limitado, em decorrência das poucas oportunidades que oferta, principalmente quando ocorre de forma precoce e prolongada (Bronfenbrenner, 1996; Cavalcante, Magalhães, & Reis, 2014; Rufino, Magalhães, & Cavalcante, 2014). Entretanto, sabe-se que esse mesmo contexto, quando oferece condições minimamente adequadas, pode possibilitar a essas crianças e adolescentes a vivência de experiências reparadoras, protegendo-as de situações adversar e promovendo o desenvolvimento positivo. Ou seja, não é possível dizer que o ambiente institucional é mais prejudicial ao desenvolvimento a priori, pois há de se considerar um conjunto de fatores (Bronfenbrenner, 1996).

Pensando em alguns dos pontos aludidos neste estudo, retoma-se o documento Orientações Técnicas: Serviço de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (CONANDA1, & CNAS2, 2009), construído com o intuito de regulamentar e orientar metodologicamente a organização e a oferta dos serviços de acolhimento no Brasil. Logo no início, o documento enfatiza a preocupação em assegurar às crianças e adolescentes em acolhimento um desenvolvimento positivo, pontuando a questão dos possíveis prejuízos que o afastamento do convívio familiar pode causar. Esse desenvolvimento positivo, conforme relatado no documento, está relacionado ao atendimento prestado pelo serviço, que deve proporcionar a eles vivências reparadoras e a retomada, na medida do possível, ao convívio familiar nas famílias de origem ou, excepcionalmente, o encaminhamento às famílias adotivas. Em resumo, evidencia-se dessa forma a importância da mudança na visão dos serviços de acolhimento, entendendo-os não somente como danosos para o desenvolvimento, mas também como medidas sociojurídicas protetivas capazes de facilitar o desenvolvimento das pessoas que, por necessidades diversas, são encaminhadas a eles.

Como estratégias para o atingimento desse objetivo, o documento (Conanda, & CNAS, 2009) elenca a necessidade de preservação e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, conforme preza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei N° 8.069/1990, que pode indicar uma possibilidade para a criança e/ou adolescente interagir com diferentes pessoas (amigos, familiares, vizinhos, colegas) em diferentes ambientes (escola, igreja, praças), o que vai ao encontro do que enfatiza o MBDH como importante para o desenvolvimento (Bronfenbrenner, 1996). Além disso, as supracitadas orientações destacam a necessidade de um atendimento personalizado e individualizado aos acolhidos, preferencialmente organizando-os em pequenos grupos, de forma a possibilitar o estabelecimento de relações mais próximas entre eles e os educadores/cuidadores, o que também vai ao encontro com o que o MBDH propõe (Bronfenbrenner, 1996).

A partir do exposto, a presente pesquisa dedicou-se ao estudo da rotina de crianças e adolescentes em instituições de acolhimento como estratégia para acessar informações complexas e relacionais referentes a esse contexto de desenvolvimento e às interações entre crianças, adolescentes e educadores/cuidadores. A partir disso, buscou-se verificar evidências empiricamente consistentes sobre o lugar e a importância da rotina nesse contexto de desenvolvimento específico. Para isso, o presente estudo tem como objetivo descrever e comparar as atividades, companhias e ambientes característicos da rotina de crianças e adolescentes em instituições de acolhimento em três regiões do Pará, de acordo com o grupo etário. Desta forma, a partir do que foi relatado aqui, acredita-se ser possível acessar um conjunto de dados que permita olhar o fenômeno pesquisado sob a ótica da Bioecologia do Desenvolvimento (MBDH).

 

Método

Este estudo está ligado à pesquisa intitulada Instituições de Acolhimento de Crianças e Adolescentes em Quatro Regiões do Estado do Pará: Perfil, Rotinas e Práticas de Cuidado, que foi aprovada pelo Edital nº 018/2012 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e coordenada pela Profª Drª Lília Iêda Chaves Cavalcante, entre os anos de 2012 e 2014. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos através do processo nº 568.256.

Trata-se de um estudo descritivo, com abordagem quantitativa dos dados e delineamento não experimental. Os participantes foram profissionais (educadores ou técnicos) de instituições de acolhimento em três regiões do Pará: Região Metropolitana (RM), Região Guamá (RG) e Região Caetés (RC). Esse grupo de profissionais, composto por 18 pessoas, relatou dados referentes à rotina de crianças (0-12 anos incompletos) e adolescentes (12-18 anos incompletos) que estavam nas instituições durante o período considerado pela pesquisa. Os participantes foram escolhidos por critério de conveniência, porém, levando-se em conta a experiência de trabalho com os grupos etários pesquisados e, neste sentido, seus conhecimentos acerca da rotina de crianças e adolescentes nesse contexto institucional. Por isso, houve casos em que numa mesma instituição mais de um profissional foi ouvido na ocasião, que buscou priorizar a participação daqueles que em razão de conhecimentos acumulados sobre as rotinas em questão pudessem responder de forma mais completa as indagações feitas pela pesquisa.

A Tabela 1 apresenta as instituições de acolhimento participantes da pesquisa de acordo com a região e cidade em que estão situadas e o Público Atendido.

Para a coleta de dados foi utilizado o Inventário de Rotina (IR), proposto por Silva et al. (2010) a partir de Boyce et al. (1983), que permite o levantamento e a classificação das atividades da vida diária, ambientes e companhias mais habituais dos participantes em função do tempo. O instrumento possibilita a descrição minuciosa de um dia típico do participante, sendo que a sua aplicação ocorre em duas etapas: a primeira é referente aos dias de semana e a segunda, referente aos finais de semana. Sua aplicação ocorre através de entrevistas com os próprios participantes ou com seus cuidadores.

O instrumento utilizado é composto por uma planilha a partir da qual foi possível registrar a atividade, a companhia e o ambiente (colunas do instrumento) em intervalos de tempo de 15 minutos (linhas do instrumento). Para o presente estudo, o instrumento foi adaptado, tanto no procedimento de coleta quando de análise dos dados e foi aplicado com o objetivo de registrar o máximo de informações sobre a rotina de crianças e/ou adolescentes acolhidos em uma instituição específica. Em sua versão original, a aplicação do instrumento pretende investigar a rotina de uma dada criança ou adolescente. Ou seja, a rotina de cada criança e cada adolescente é estudada de forma particular, procurando valorizar o que há de singular e geral nela. No presente estudo, contudo, a aplicação do instrumento não considerou a criança ou o adolescente como sujeitos únicos, mas sim como membros de diferentes grupos etários (em vez de se descrever a rotina de uma criança em particular, buscou-se descrever a rotina das crianças em geral). Essa alteração se deu em consonância com o objetivo de caracterizar, de maneira geral, a rotina de grupos de crianças e adolescentes acolhidos. Outra alteração que foi realizada para o estudo diz respeito às categorias de atividades, companhias e ambientes, essas categorias foram criadas com base nas observações realizadas anteriormente por Corrêa e Cavalcante (2013) e adaptadas aos objetivos deste estudo, com o intuito de descrever a rotina de crianças e adolescentes em linhas gerais, foram criadas categorias mais amplas que as utilizadas em investigações anteriores.

Para a variável Atividades foram definidas as categorias: Sono, descanso ou despertar, Higiene pessoal, Alimentação, Ir à escola e estudo (abrangendo atividades como o deslocamento até a escola e dever de casa), Lazer (brincadeiras, assistir TV, ouvir rádio, navegar na internet, conversar, realizar festas e também o tempo livre de maneira geral), Evento religioso (missas, idas a igreja, oração), Convivência familiar (como receber ou fazer visitas familiares, estabelecer contato telefônico regular, por exemplo) e Outras atividades dentro e fora da instituição (que incluem atividades como atendimento técnico e limpeza do ambiente institucional e, até mesmo, a preparação do pão e do café, entre outras). É importante destacar que a categoria Outras atividades dentro e fora da instituição apresentava, no IR, um campo aberto para a descrição das atividades que foram consideradas como parte dessa categoria pelos sujeitos, o que possibilitou identificar essas atividades específicas.

Na variável Companhia foram definidas as categorias: Sozinho, Familiares, Pares (outros acolhidos pela mesma instituição e também àqueles que se encontram em outros ambientes, como por exemplo, os colegas de escola), Profissionais da instituição, Outros acolhidos e profissionais da instituição, Outros acolhidos, familiares e voluntários e Todos (que abarca diferentes pessoas que fazem parte do ambiente institucional, tais como: educadores, técnicos e demais acolhidos).

Quanto à variável Ambientes, as categorias definidas foram: Quarto, Banheiro, Outros espaços da instituição (como pátio, sala, cozinha, varanda, salão, entre outros ambientes), Escola, Outros espaços da comunidade (outros ambientes da comunidade, como praças, vizinhança) e Igreja.

Em cada instituição o instrumento foi aplicado de modo a descrever a rotina tanto de crianças quanto de adolescentes acolhidos nos chamados dias úteis (de segunda a sexta-feira) e no final de semana (sábado e domingo). Em ambos os casos, foi solicitado que os participantes descrevessem a rotina das crianças ou dos adolescentes em um dia típico, totalizando 1.440 minutos descritos por IR - o que corresponde às 24 horas de um dia. Quando, em uma mesma instituição, havia diferentes faixas etárias acolhidas (por exemplo, crianças e adolescentes), o instrumento foi aplicado mais que uma vez, contemplando essa especificidade e permitindo que análises diferenciadas pudessem ser feitas em relação a essa característica na população estudada. Por isso, mesmo levando em conta um total de 14 instituições, o número de instrumentos aplicados foi igual a 30 (N = 30). O instrumento foi respondido a partir de consulta direta a profissionais das instituições (técnicos e/ou educadores) e, na sequência, os dados foram organizados no Microsoft Office Excel.

Com a inserção das informações no Microsoft Office Excel foi possível calcular a quantidade de tempo relacionada a cada categoria de atividade, em cada ambiente e com cada companhia. Desse modo foi possível descrever de que forma as crianças e/ou adolescentes ocupam seu tempo em um dia típico (tanto durante a semana, quanto durante os finais de semana) em cada uma das instituições. Para isso, foram descritos os valores correspondentes à Média (M) de minutos destinados para cada atividade de acordo com o grupo etário. Essa Média foi encontrada a partir da soma de minutos destinados a cada atividade, ambiente ou companhia, de acordo com o grupo etário, dividida pela quantidade total de instrumentos correspondente àquele grupo (adolescentes N = 11, crianças N = 19). Da mesma forma, foi calculada a Mediana (Md), resultado da média dos dois números centrais da distribuição, o que tornou possível a verificação da simetria dos resultados, e o Desvio-padrão (DP), para avaliação da variabilidade.

 

Resultados

A Tabela 2 descreve os dados referentes às atividades, companhias e ambientes em dias de semana de acordo com o grupo etário, tendo sido utilizado o código Cr para identificar o grupo etário crianças e Ad para adolescentes.

Percebe-se que houve uma grande concentração de atividades de Sono, descanso ou despertar em ambas as faixas etárias (M = 678 e DP = 113,0 para crianças e M = 597 e DP = 78,5 em adolescentes). Além disso, tanto crianças quanto adolescentes dedicaram grande parte do dia à realização de atividades como Higiene, Alimentação, Ir à escola e estudo, e Lazer. Quanto às companhias, observa-se que as mais frequentes para adolescentes foram representadas nas categorias Pares (M = 371 e DP = 414,7) e Todos (M = 743 e DP = 431,3), que contemplaram as diferentes pessoas que fazem parte do ambiente institucional (por exemplo, educadores, técnicos e pares). Já para criança, a categoria mais frequente foi Outros acolhidos e profissionais da instituição (M = 777 e DP = 308,8).

Além disso, observa-se que, para ambas as faixas etárias, o ambiente com a média de minutos maior foi o Quarto, sendo que esse apareceu com média significativamente superior àquela obtida pelas demais categorias (M = 759 e DP = 180,2 para crianças e M = 656 e DP = 180,2 para adolescentes). Outros ambientes com frequências um pouco maiores, ainda que diferentes, foram: Banheiro e Outros espaços da instituição. Observa-se ainda que ambientes categorizados como Outros espaços da comunidade (incluindo, por exemplo, praças) representaram o total de 12 minutos em média na rotina de crianças e 23 minutos no que se refere aos adolescentes, em dias de semana.

Na Tabelas 3 serão apresentados os dados referentes aos componentes da rotina em finais de semana de acordo com a faixa etária atendida pela instituição.

Assim como em dias de semana, a atividade mais frequente em finais de semana foi Sono, descanso ou despertar para ambos os grupos etários (M = 691 e DP = 124,0 para crianças e M = 597 e DP = 121,1 para adolescentes). A segunda atividade mais frequente foi Lazer (abarcando diferentes atividades como: Brincadeira, Conversa, TV etc.), sendo que os adolescentes destinaram a média de 335 minutos (DP = 153,9) do seu dia para essas atividades e crianças em torno de 370 minutos (DP = 143,0). Outras atividades frequentes em finais de semana foram: Higiene pessoal, Alimentação, Outras atividades dentro e fora da instituição (contemplando atividades como: atividades programadas pela instituição, atendimentos técnicos e higiene do ambiente institucional) e Evento religioso (com média maior para os adolescentes).

A companhia mais frequente relatada pelos participantes para crianças foi Outros acolhidos e profissionais da instituição, com média de 729 minutos (DP = 579,0). Entre os adolescentes, a companhia mais frequente relatada foi Todos com média que equivale a 1024 minutos (DP = 503,7). Quanto ao ambiente, destaca-se que o mais frequentado para ambas as faixas etárias no final de semana foi o Quarto, com uma média de 660 minutos para adolescentes (DP = 211,8) e 778 minutos para crianças (DP = 198). Há também outros ambientes que apareceram frequentemente na descrição das rotinas, como, por exemplo, Banheiro (Crianças DP = 52,0 e Adolescentes DP = 41,0) e Outros espaços da instituição (Crianças DP = 203,0 e Adolescentes DP = 210,3).

 

Discussão

Os resultados demonstraram que uma parte considerável do tempo das crianças e adolescentes foi destinada às atividades de Sono, descanso ou despertar (Crianças: M = 678 em dias de semana e M = 691 em finais de semana/Adolescentes; M = 597 em dias de semana e em finais de semana). Esse panorama configura-se como potencialmente prejudicial ao desenvolvimento, posto ser socialmente esperado que estes sejam expostos a atividades progressivamente mais complexas com o passar dos anos (Bronfenbrenner, 2011). Ou seja, a tendência à realização das mesmas atividades tanto por crianças quanto por adolescentes, pode estar sinalizando a existência de um ambiente empobrecido em termos desenvolvimentais para ambos os grupos etários, mas principalmente no que diz respeito às demandas dos adolescentes.

Além disso, é possível identificar que grande parte das atividades relatadas está relacionada à categoria que envolve os cuidados básicos (que envolvem principalmente alimentação, sono e higiene pessoal). Esse dado corrobora com o que foi encontrado por Siqueira e Dell'Aglio (2007), que descreveram que uma porção significativa do tempo dos acolhidos costuma ser ocupado por atividades de cuidados básicos, sendo talvez até por isso pouco planejadas e sofram pouco variação na forma como são realizadas. Esse cenário, de acordo com o que propõe o MBDH (Bronfenbrenner, 1996; 2011), pode ser considerado como potencialmente prejudicial para o desenvolvimento, principalmente por apontar limitações quanto às oportunidades de engajamento em atividades variadas e progressivamente mais complexas. Ou seja, a alta concentração do tempo destinado a atividades de cuidados básicos nesses contextos, pode representar dificuldades quanto ao engajamento em outros tipos atividades que são todas como mais positivas para o desenvolvimento, o que, de acordo com o que os estudos têm demonstrado (Bronfenbrenner, 1996; 2011; Siqueira, & Dell'Aglio, 2007), pode impactar no desenvolvimento pleno e integral desses sujeitos.

Outros estudos que exploraram as características do ambiente institucional, como os desenvolvidos por Machado e Serrano (2012) e Corrêa e Cavalcante (2013), também tiveram achados semelhantes aos encontrados por esta pesquisa, reforçando a hipótese de que a constância, a previsibilidade e a regularidade, características típicas de toda e qualquer rotina, estão inclinadas a se manifestar de forma mais acentuada nas instituições de acolhimento. Essa configuração corrobora com o que foi descrito antes por Bronfenbrenner (1996) ao apontar para a rigidez que de modo geral caracteriza o modo como a rotina de crianças e adolescentes institucionalizados é organizada nesse tipo de contexto. Desse modo, assume-se a hipótese de que esse contexto de desenvolvimento específico apresenta com alguma regularidade oportunidades limitadas para as pessoas que ali se desenvolvem. Considerando-se o histórico das instituições de acolhimento, entende-se que hoje essas oportunidades ocorrem de forma limitada e com pouca regularidade, mesmo que estas já funcionem em melhores condições do que no passado. Ainda assim, do ponto de vista do MBDH (Bronfenbrenner, 1996; 2011), essa realidade se configura como potencialmente negativa para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.

De acordo com Bronfenbrenner (1996; 2011), quanto mais limitadas e repetitivas forem as atividades realizadas pela criança e pelo adolescente no seu ambiente imediato, maior será a probabilidade de elas restringirem o seu potencial desenvolvimental. Para favorecer o desenvolvimento é importante que a pessoa - no caso, a criança e/ou o adolescente acolhido - tenha oportunidade de realizar diferentes atividades, que propiciam a interação com pessoas próximas (de convívio face a face), sendo progressivamente mais complexas, com objetivos ou metas que as orientem, além de terem perspectiva de continuidade, isto é, não sejam pontuais (Bronfenbrenner, 1996; 2011). Dessa forma, supõe-se aqui que o padrão de rotina das crianças e/ou adolescentes observados neste estudo, que apresentou pouca variabilidade em relação às atividades desenvolvidas e nítido predomínio daquelas descritas como cuidados básicos, nos dois grupos etários, pode estar indicando que nas instituições estudadas há uma oferta reduzida de estímulos e oportunidades de engajamento em atividades com potencial de promover o desenvolvimento positivo ou esperado.

Observou-se também, mesmo que em menor proporção, a ocorrência de atividades diversificadas em algumas das instituições pesquisadas. Como exemplo, cita-se a categoria Outras atividades dentro e fora da instituição, que contempla não apenas o que foi descrito, mas também a preparação de alimentos como pão e café, ou seja, tinham a oportunidade de cozinhar com o apoio de voluntários da instituição, e o cuidado com a higiene ambiental da instituição (limpeza do local, das roupas, entre outras). Esse conjunto de atividades aqui analisado de acordo com os pressupostos teóricos adotados pelo MBDH (Bronfenbrenner, 1996; 2011), configura-se como potencialmente positivo para o desenvolvimento, e por isso deve ser estimulada a sua adoção. Entretanto, para que os efeitos positivos realmente ocorram, entende-se ser necessário que essas atividades aconteçam de forma progressivamente mais complexas, processualmente regular, a partir da compreensão do adolescente quanto ao objetivo da ação e através da interação com outra pessoa - formando uma díade (que, no caso, pode ser com um cuidador/educador, um voluntário, ou até mesmo um outro adolescente - entre pares). Ou seja, a princípio a presença de atividades como as observadas neste estudo se configura como uma perspectiva positiva para o desenvolvimento destes acolhidos, entretanto, de acordo com o que propõe o MBDH (Bronfenbrenner, 1996; 2011), para se conseguir afirmar que essas atividades podem ou não terem impacto positivo no desenvolvimento desses adolescentes, é necessário analisar em conjunto aspectos referentes às companhias, aos ambientes e aos períodos de tempos a elas associados, já que estes são os elementos constituintes e que caracterizam o ambiente ecológico, de acordo com o MBDH (Bronfenbrenner, 2011).

Em relação à análise do segundo ponto a ser tratado, Companhias, observa-se que o cenário se repete, sendo que a constância, a previsibilidade e a regularidade na rotina dessas crianças e adolescentes são identificadas de forma acentuada novamente, sendo observadas poucas diferenças de acordo com o grupo etário. A categoria de companhia mais frequente para crianças é Outros acolhidos e profissionais da instituição (M = 777 e DP = 546,8 em dias de semana e M = 729 e DP = 579,0 em finais de semana) enquanto que para adolescentes a mais comum é a categoria Todos (M = 743 e DP = 431,3 em dias de semana e M = 1.024 e DP = 503,7 em finais de semana). Vale destacar que, apesar da diferença quanto à categorização, essas duas categorias representam em essência categorias relativas a grupos, já que, como dito anteriormente, a categoria Todos abarca diferentes pessoas que fazem parte do ambiente institucional (incluindo, por exemplo, educadores, técnicos e demais acolhidos). Ou seja, o que se vê, a partir da descrição das companhias mais frequentes na rotina de crianças e adolescentes, é a presença majoritária de grupos, independentemente da faixa etária, sendo raros os momentos em que ficam sozinhos ou que têm interações individuais com os profissionais da instituição.

Essa reduzida variabilidade no que se refere às categorias descritoras da variável Companhia sugere que no contexto das instituições pesquisadas predominam práticas de cuidado coletivo, ou seja, que independem da faixa etária dos acolhidos. Para a análise desse ponto, retoma-se dois referenciais que, apesar de estarem em diferentes publicações, podem ser compreendidos de forma interligada. Primeiramente menciona-se o documento Orientações Técnicas: Serviço de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (Conanda, & CNAS, 2009), especificamente no que diz respeito à recomendação feita para que ocorram cuidados personalizados e individualizados, assim como, o MBDH (Bronfenbrenner, 1996; 2011), no que diz respeito ao estabelecimento de interações próximas entre cuidador/educador e criança/adolescente (Bronfenbrenner, 1996; 2011). Com os dados obtidos na presente pesquisa, entende-se que, no cotidiano das crianças e adolescentes estudados, a orientação de que o cuidado deva ser personalizado pode não estar sendo seguida de maneira efetiva dentro das rotinas, o que pode impactar no desenvolvimento dessa população. Essa afirmação é sustentada pelo MBDH, que defende que, para que o desenvolvimento ocorra da melhor forma possível, é necessário que tanto crianças quanto adolescentes tenham a oportunidade de interagir de forma próxima e duradoura com seus cuidadores, preferencialmente de forma análoga à interação estabelecida entre mãe e filho. Com o cuidado ocorrendo de forma coletivizada, grupal, supõe-se que essa interação esteja sendo dificultada, o que pode acarretar em prejuízos ao desenvolvimento da população estudada.

Seguindo a análise desse aspecto, relativo à pouca variabilidade das companhias, retoma-se outro ponto do MBDH, especialmente no que se refere à importância da interação com pessoas que ocupam diferentes papéis (Bronfenbrenner, 1996). Observa-se que as companhias apresentam pouca variabilidade, em razão das características desse contexto específico. Esse dado demonstra que, no cotidiano, essas crianças e adolescentes têm contato frequente apenas com o educador/cuidador e os demais companheiros da instituição, eventualmente ficando sozinhos. Ou seja, a partir do que afirma Bronfenbrenner (1996; 2011), entende-se que o cenário em questão pode não estar favorecendo o desenvolvimento dessas crianças e adolescentes, especialmente por desencorajar a interação rotineira destes com pessoas que ocupam diferentes papéis no cotidiano.

Quanto a esse ponto, retoma-se também o que preconiza o ECA, Lei N° 8.069/1990, quanto ao direito à convivência familiar e comunitária. Na rotina dessas crianças e adolescentes observa-se que há pouca, ou quase nenhuma, interação com pessoas da comunidade ou familiares. A categoria Familiares não aparece no relato das rotinas estudadas, tanto em dias de semana quanto em finais de semana, o que indica que a presença de familiares (em momentos individualizados) não ocorre de forma rotineira nas instituições estudadas, cenário que pode se configurar como um ponto de atenção para políticas públicas. Essas interações com pessoas da família também foram discutidas por Rufino et al. (2014) que analisaram a visita de avós nas instituições. As análises realizadas evidenciaram o caráter positivo destes momentos para o desenvolvimento das crianças em acolhimento institucional, assim como, para o possível retorno delas ao convívio familiar, confirmando a importância da presença de familiares em contatos individualizados com este público.

Seguindo com as análises, observa-se que essa semelhança na rotina, já identificada nas categorias anteriores, fica ainda mais evidente quando se analisa os dados referentes aos ambientes frequentados. Nesse caso, é possível identificar que tanto crianças quanto adolescentes têm o Quarto como o ambiente mais frequente (em dias de semana, M = 759 e DP = 180,2 para crianças e M = 656 e DP = 178,5 para adolescentes; em finais de semana M = 778 e DP = 198,0 para crianças e M = 660 e DP = 211,8 para adolescentes), sendo que este aparece em quantidades bem mais altas do que os demais ambientes relatados, tanto em dias de semana quanto em finais de semana.

A reduzida variabilidade entre os ambientes frequentados, juntamente com a pouca interação com pessoas que ocupam diferentes papéis, são dois fatores que acabam por impactar em outro ponto, a oportunidade dessas crianças e adolescentes ocuparem diferentes papéis - o que defende como importante para o desenvolvimento o MBDH (Bronfenbrenner, 1996; 2011). Essa configuração da rotina, muito restrita aos ambientes institucionais - sendo identificadas saídas rotineiras da instituição apenas para atividades escolares, ocasionalmente para eventos religiosos e, raramente, para a comunidade de maneira geral - confirma os dados de Machado e Serrano (2012) e Corrêa e Cavalcante (2013) em pesquisas semelhantes e pode estar impactando de forma negativa no desenvolvimento dessa população.

Com a análise do conjunto dos dados levantados, pode-se afirmar que a rotina dessas crianças e adolescentes apresentou pouca variabilidade de modo geral, corroborando com a tendência histórica à presença de padrões rígidos e repetitivos de atividades neste tipo de contexto institucional. Contudo, não se pode concluir que esses resultados apresentaram essa configuração em razão da condição etária dos grupos considerados pela pesquisa. Esse cenário, de acordo com o Modelo Bioecológico, pode se configurar como potencialmente crítico para o desenvolvimento positivo e integral dessa população. Ainda assim, em consonância com o que a literatura apresenta (Bronfenbrenner, 1996; 2011), não se pode afirmar que o ambiente institucional é mais prejudicial para o desenvolvimento das crianças e adolescentes acolhidas, comparativamente ao ambiente familiar, já que essa qualidade está associada a um conjunto de fatores complexos e relacionais. Todavia, acredita-se que estudos como esse, que evidenciam essas possíveis carências, servem para demonstrar pontos que devem ser levantados no planejamento metodológico e na organização dos espaços de acolhimento, pensando em minimizar esses elementos potencialmente negativos e proporcionar para essas pessoas vivências que sejam realmente reparadoras, preparando-os para a vida em sociedade, tal qual é o objetivo da instituição.

 

Considerações finais

A partir dos dados e das análises realizadas, entende-se que esta pesquisa pôde contribuir para esse tipo de investigação na área da psicologia do desenvolvimento por permitir a análise de importantes e complexos aspectos relacionais da vida de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e do ambiente institucional enquanto contexto de desenvolvimento deles. Entende-se, portanto, que a descrição minuciosa e a comparação das rotinas e seus componentes (atividades, companhias, ambientes e tempo) serviram como estratégias para acessar esses aspectos, corroborando com o que a literatura tem apontado.

Além disso, considera-se que este estudo também pode servir como suporte para o desenvolvimento das práticas utilizadas por profissionais que trabalham com acolhimento institucional. A análise da organização e dos componentes da rotina sugere aspectos que podem ser modificados e/ou aproveitados de maneira mais assertiva na vida diária dentro das instituições, fazendo com que o dia a dia dessas crianças favoreça de fato o seu desenvolvimento. Como visto, há reduzida variabilidade nas atividades realizadas no cotidiano, assim como nos ambientes frequentados e as companhias informadas, demonstrando certa constância e repetição nos padrões de rotina nos contextos pesquisados. Essa constância, conforme discutido, pode impactar no desenvolvimento delas e, por essa razão, é importante que os profissionais que trabalham nesses contextos identifiquem esse ponto como crítico para o desenvolvimento positivo e trabalhem para a ampliação das oportunidades no contexto institucional.

Foi identificado, por exemplo, que as atividades estão muito concentradas em atividades de autocuidado. Em oposição a isso, seria interessante que as instituições proporcionassem a essa população a oportunidade de terem vivências diferenciadas, como colaborar com o cuidado da instituição, apoiar educadores/cuidadores na organização do espaço, no preparo de refeições (como já identificado na rotina de adolescentes em algumas instituições), ou ainda participar de oficinas lúdicas, profissionalizantes, em aulas de música, dança, línguas, entre outras, para que a estimulação fosse variada. A participação em aulas extras, em ambientes externos à instituição, por exemplo, possibilitaria a interação em ambientes diferentes (outros Microssistemas) e o contato com pessoas que ocupam diferentes papéis, além de, por consequência, fazer com que as crianças e/ou adolescentes em questão ocupem diferentes papéis, o que, como discutido, favorece o desenvolvimento.

Além disso, como mostram os dados de Companhia, o cotidiano na instituição tende a ser um ambiente muito coletivizado, o que também pode ser prejudicial para o desenvolvimento. Esse ponto deve ser discutido (através de treinamentos ou oficinas e outras atividades psicoeducativas) com os educadores e cuidadores que atuam nessas instituições para que estes, sempre que possível, fortaleçam a perspectiva do atendimento individualizado e a construção de vínculos entre eles. Isso é importante porque, como a literatura demonstra, a interação próxima, sólida, recíproca, periódica e duradoura é importante para o desenvolvimento positivo, e parece estar sendo encontrada com pouca frequência na vida diária dessas pessoas.

No que se refere aos ambientes frequentados, foi observado que grande parte do tempo, tanto de crianças quanto de adolescentes, é passado dentro do quarto. Este dado é particularmente preocupante pois sabe-se hoje que permanecer em apenas um ambiente durante períodos prolongados de tempo, tanto em dias de semana como em fins de semana, reduz a exposição à variabilidade de estímulos físicos e sociais e não favorece o desenvolvimento da criança e do adolescente. É importante ainda que estes frequentem áreas externas e equipamentos comunitários, tais como, praças, praias, museus, parques e, mesmo dentro da instituição, tenham no cotidiano uma diversidade maior de ambientes, como pátio, cozinha, sala.

Tendo em vista essas questões, sugere-se a organização de oficinas e/ou treinamentos com as equipes que trabalham nas instituições de acolhimento, com a finalidade de discutir a importância da organização e dos elementos da rotina para o desenvolvimento positivo das crianças e adolescentes acolhidos. É necessário que esses profissionais tenham clareza da necessidade de variação de estímulos no que diz respeito às atividades, às companhias e aos ambientes e tenham suporte para pensar e realizar novas possibilidades de organização desse cotidiano.

Como limitações deste estudo, destacam-se alguns pontos referentes ao tipo de instrumento por ele utilizado. O IR foi proposto originalmente para identificar componentes da rotina numa abordagem individual. Todavia, no presente estudo, conforme já mencionado, ele foi utilizado numa perspectiva mais coletiva - as crianças ou os adolescentes de uma dada instituição. Essa adaptação permitiu que fossem coletados dados gerais da rotina de grupos de crianças e adolescentes em acolhimento institucional, conforme os objetivos aqui propostos, entretanto, ao ser aplicado dessa forma, o IR pode ter ocultado algumas especificidades que caracterizam o dia a dia de parte da população pesquisada, dado este que muitas vezes só se consegue acessar a partir de uma abordagem mais individualizada. Destaca-se essa informação como limitação do estudo para que o leitor balize as informações aqui apresentadas, pensando que algumas das restrições identificadas podem ser decorrentes do instrumento e da forma de aplicação dele.

Por essa razão, como sugestão para estudos futuros, indica-se a aplicação do IR de forma individualizada no ambiente institucional, para que seja possível verificar se há diferenças entre os achados aqui relatados e essa forma de aplicação, ainda que estudos como este por sua transversalidade possam apontar a repetição ou não de certos padrões de atividades, companhias e ambientes entre as várias instituições pesquisadas. Além disso, também se indica a comparação entre rotinas de crianças e adolescentes institucionalizadas e não institucionalizadas, em diferentes faixas etárias. Acredita-se que, com estudos desse tipo, a discussão sobre os componentes e a organização da rotina pode se tornar ainda mais rica e, a partir dos achados, embasar práticas que promovam com maior assertividade o desenvolvimento positivo desses grupos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Sabine Heumann
heumannsabine@gmail.com

Lília Iêda Chaves Cavalcante
liliaccavalcante@gmail.com

Submetido em: 25/09/2017
Revisto em: 01/04/2018
Aceito em: 26/04/2018

 

 

1 Conanda: Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
2 CNAS: Conselho Nacional de Assistência Social

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