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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2018

 

ARTIGOS

 

Notas sobre ser um avô no século XXI

 

Notes on being a grandfather in the 21st century

 

Notas sobre ser un abuelo en el siglo XXI

 

 

Gizele Bakman

Psicóloga. Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A contemporaneidade é um tempo marcado pela complexidade e diversidade nas relações interpessoais. A geração atual dos avós, como os demais membros de uma família, não dispõe de normas e modelos elaborados de como se posicionar frente as mudanças sociais. Neste artigo mostro, através de uma das entrevistadas realizadas para a pesquisa de doutorado cujo título é: Avós, adoção e religião: laços familiares na contemporaneidade, como o ser avô, nos dias de hoje, também está atravessado pela complexidade social. Esta posição pode ser vivida de forma paradoxal para aqueles em que seu papel de homem e provedor seja ainda visto como um modelo a ser seguido mesmo nos novos formatos de ser e estar em família.

Palavras-chave: Avós; Adoção; Famílias.


ABSTRACT

Contemporaneity is a time marked by complexity and diversity in interpersonal relationships. The current generation of grandparents, like other members of a family, does not have norms and models of how to stand in the face of social changes. In this article I show, through one of the interviewees of my doctoral research, entitled "Grandparents, adoption and religion: family ties in the contemporary", how being a grandfather, today, is crossed by social complexities and changes. The grandfather position can be lived in a paradoxical way for those in which their role of man and provider is still seen as a model to be followed even in the new formats of being in families.

Keywords: Grandparents; Adoption; Families.


RESUMEN

La contemporaneidad es un tiempo marcado por la complejidad y diversidad en las relaciones interpersonales. La generación actual de los abuelos, como los demás miembros de una familia, no dispone de normas y modelos elaborados de cómo posicionarse frente a los cambios sociales. En este artículo muestra, a través de una de las entrevistadas realizadas para la investigación de doctorado cuyo título es: Abuelos, adopción y religión: lazos familiares en la contemporaneidad, como el ser abuelo, en los días de hoy, también está atravesado por la complejidad social. Esta posición puede ser vivida de forma paradójica para aquellos en que su papel de hombre y proveedor sean vistos como un modelo a seguir incluso en los nuevos formatos de ser y estar en familia.

Palabras clave: Abuelos; Adopción; Familias.


 

 

Introdução

É notório um crescente envelhecimento da população mundial, inclusive no Brasil, possivelmente relacionado à melhoria das condições de vida e aos avanços da medicina. Nos dias de hoje, pensar em avó ou avô, geralmente, é pensar em uma pessoa que, apesar da idade, mantém uma vida ativa e independente. Bem diferente da imagem de velhinhos que ainda povoa o imaginário até daqueles que não vivem ou viveram modelos assim em suas vidas. Assim, há estigmas que relacionam idosos à velhice, bem como ideias de que este é um período da vida que ainda pode comportar atividades produtivas (Correa, 2009).

As noções de avô e de avó são relativamente recentes. As relações afetivas entre avós e netos emergem nos anos 1930, quando os primeiros se tornam colaboradores dos pais na socialização das crianças (Peixoto, 2000). Com o advento dos valores contemporâneos como: dinamismo, autonomia, realização pessoal, a geração atual dos avós não dispõe de normas e modelos elaborados de como ser avós. Essas normas se constituem progressivamente segundo Schneider e Bouyer (2005), pesquisadores franceses.

Encontro-me no meio de um rico momento de colheita de histórias e de saberes, ao realizar entrevistas para a minha pesquisa de Doutorado cujo título é: Avós, adoção e religião: laços familiares na contemporaneidade. A contemporaneidade é um tempo marcado pela complexidade e diversidade nas relações interpessoais.

Das cinzas da família conjugal moderna, os atores contemporâneos criaram novas formas de convivência e organização da vida cotidiana, agindo em uma pluralidade de espaços, deram-lhes múltiplas significações e redesenharam as fronteiras que marcaram a formação das práticas dos discursos modernos (Vaitsman, 1994, p. 192).

A adoção é um tema atual e importante no Brasil, visto que há um número grande de crianças e jovens institucionalizados, sob responsabilidade do Estado, geralmente com pouco apoio emocional e afetivo (Arpini, 2003), desejosos de serem inseridos na vida em famílias. Dados recentes do Módulo Criança Adolescente (MCA) do Ministério Público (2017) mostram que houve uma diminuição de crianças abrigadas, resultado, segundo os pesquisadores, da integração entre diversos entes do sistema de justiça, a saber: gestores municipais, Conselhos Tutelares e entidades de acolhimento, na agilidade da reintegração de crianças e adolescentes às suas famílias biológicas ou a colocação deles em famílias substitutas, quando necessário.

Na pesquisa da qual trato, parcialmente, neste texto, busquei famílias cujos avós1 tinham ao menos, um neto adotado, na tentativa de perceber como se tecem os laços familiares onde há adoção. A ideia mais ampla é compreender o ser e estar em família nos dias atuais, já que a adoção é "a possibilidade de formar uma família assentada não na biologia, mas na cultura" (Paiva, 2004, p. 66).

Também pretendo conhecer como o tema da adoção é atravessado pela religião, visto que os vínculos entre família, sexualidade e religião (Heilborn, Duarte, Barros, Peixoto, & Bozon, 2005) são complexos, superpostos e diferenciados.

Já não é mais novidade sociológica a complexa e dinâmica relação estabelecida entre família e religião, uma vez que todas as transformações pelas quais atravessa a religião em nossa sociedade projetam reflexos sobre a família; ao mesmo tempo, as mudanças que percorrem o universo familiar brasileiro incidem em vários campos do social e, entre eles, no da religião (Falcão, 2001, p. 173).

As pesquisas qualitativas têm como prática principal a realização de entrevistas, procedimentos essenciais para a construção do campo. Através delas é possível recolher a riqueza de cada participante, bem como suas experiências e histórias em potencial. Nesta pesquisa realizo entrevistas individuais ou com o casal, através das quais rastreio os saberes não conceituais, ingênuos, hierarquicamente inferiores, local, regional, incapaz de unanimidade (Foucault, 2002) dos entrevistados - tesouros preciosos para os pesquisadores. "[...] Entrevistar é uma forma de desenhar uma escrita que adentra o território desconhecido do outro" (Souza, 2015, p. 87).

A Cartografia e a História Oral são as inspirações metodológicas que guiam este trabalho. Ambas valorizam a entrevista como prática de pesquisa e a consideram um recurso fundamental porque abre caminhos, traz novas ideias e recolhe/produz informações, numa relação que se constrói de forma dialógica entre os envolvidos.

O Método Cartográfico compõe-se de pistas porque não há regras fixas, mas sim uma forma fluida de se posicionar no campo. Há uma aposta na construção coletiva do conhecimento, construída entre pesquisadores e pesquisados (Kastrup, & Passos, 2014). Por se tratar de um tipo de pesquisa-intervenção, esta não se faz de modo prescritivo; e tem como diretriz estar sempre atenta ao percurso, "considerando os efeitos do pesquisar sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados" (Passos, & Barros, 2010, p. 17).

Numa cartografia o que se faz é acompanhar as linhas que se traçam, marcar os pontos de ruptura e de enrijecimento, analisar os cruzamentos dessas linhas diversas que funcionam ao mesmo tempo (Kastrup, & Barros, 2010, p. 90/1).

A História Oral, por sua vez, valoriza as trajetórias de vida e os depoimentos pessoais (Araújo, & Fernandes, 2006). Há uma valorização do indivíduo e de suas narrativas. O que ela aspira é recolher uma voz, amplificá-la e levá-la ao espaço público do discurso e da palavra. O resultado final da entrevista é o produto de ambos, narrador e pesquisador:

[...] uma das características da história oral é que a testemunha reconstrói o passado à sua maneira, à luz de sua trajetória e em função de seu presente. O que ela relata é a sua percepção, no momento da entrevista, do que viveu no passado. Ela fala hoje sobre ontem (Farias, 1994, p. 144).

Assim, o tema da adoção foi escolhido como uma oportunidade, uma brecha por onde é possível avivar os sentidos do familiar, já que se encontra ausente um elemento ainda muito valorizado em nossa sociedade ocidental: os laços de sangue. Penso como Ramírez-Gálvez:

A adoção de crianças mostrou-se um universo rico de interpretações sobre concepção de família, sobre o que significa pertencer ou configurar uma família, como também sobre os valores colocados em jogo com relação ao sangue, à transmissão genética, acerca do que se tolera ou não quando o filho é "um estranho" (Ramírez-Gálvez, 2011, p. 63, grifo do autor).

A decisão de ter filhos, geralmente, parte de um ou de dois membros, aquele(s) que pretende(m) exercer a função de pai(s) e/ou mãe(s), mas tal atitude atinge toda a rede familiar que estará envolvida, direta ou indiretamente, com a chegada de um novo membro. Assim também ocorre com a adoção: quando um casal ou uma pessoa decide pela adoção de uma criança, ela passará a fazer parte de toda uma parentela, com quem provavelmente irá se relacionar e com cujas histórias irá cruzar.

A narrativa que inspira este artigo é oriunda de uma das entrevistas realizadas para a tese de doutorado, ora em curso. Até o momento, já foram realizadas sete entrevistas com pessoas de camadas médias2 da cidade do Rio de Janeiro. A busca pelos entrevistados ocorre através da rede de conhecidos e por indicação de pessoas desta rede. As entrevistas foram gravadas com gravador digital de voz e transcritas por mim, com o cuidado de tentar preservar não só as palavras ditas, mas especialmente a forma como foram ditas. Ela foi inscrita e aceita na Plataforma Brasil (CAAE 57974016.0.0000.5282) e todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

 

O encontro com Benjamin e sua família

Benjamin3, 70 anos, advogado, encontra-se em seu terceiro casamento. O primeiro foi o mais duradouro e gerou duas filhas. A mais velha é casada, mora no Rio e tem três filhos: Claudia, de 16 anos, Denise, de 13 anos e Paulo, de 6 anos. Sua filha menor é solteira, mora em São Paulo e tem um casal de filhos adotados: Lilian, de 13 anos, e Sebastian, de 6 anos. No segundo casamento, que durou 10 anos, ele teve um estreito relacionamento com uma enteada e, do atual, comentou apenas que sua esposa tem um filho, mas nada além disto foi dito a respeito desta relação.

Sua indicação como participante da pesquisa foi sugerida por uma conhecida. A entrevista foi agendada com tranquilidade, após um breve telefonema e ocorreu no local de sua escolha: um escritório no centro da cidade. Conversamos em uma sala de reuniões, ambiente impessoal, que muito contrastou com as entrevistas realizadas até aquele momento, todas em residências. Nesses casos, senti que o entrevistar na casa da própria pessoa me proporcionou penetrar em sua vida de forma efetiva e afetiva, complementando e produzindo o meu olhar como narradora e entrevistadora, já que estavam ao meu redor: móveis, fotos, objetos, cheiros e cores. Violette Morin (1969, citado por Bosi, 1994, 2003) chama de objetos biográficos os que envelhecem com o seu possuidor e se incorporam à sua vida, representando as experiências vividas e os afetos.

Penso que o local escolhido por ele para a entrevista pode estar marcado por uma questão de vida, gênero e faixa etária. Ele é homem, ainda trabalha e, possivelmente, seria pouco cômodo me receber em sua casa. O fato de ser advogado também pode estar relacionado à escolha de um ambiente mais profissional e protegido, mas também ser somente um sinal de praticidade e comodidade.

Apesar de um tom bastante formal em sua fala e um local menos íntimo, não me pareceu que isto afetou o conteúdo do que ele tinha para compartilhar sobre os temas pesquisados. Possivelmente em sua prática profissional ele está acostumado a lidar com diversas questões íntimas, de famílias e relacionamentos, nesse ambiente, que percebo como mais asséptico, mas que talvez até seja fundamental para seu trabalho, ou nem se questione sobre isso, seja somente parte de sua rotina. Durante a entrevista, ele não teve pressa e contou a sua história pausadamente. Fala muito e a entrevista foi densa.

Começo, como nas demais, com uma pergunta ampla, influenciada pelos escritos da pesquisadora Daphne Patai (2010):

Gizele: Bom, queria que o senhor me falasse um pouquinho da sua vida, da sua família, são perguntas assim bastante amplas.

Benjamin: Vamos lá. Me casei em 1970. Fiquei casado...

Gizele: Quantos anos o senhor tinha na época?

Benjamin: 23 para 24. Fiquei casado 30 anos, depois me separei. Finalzinho de 99. Um ano depois passei a viver em união estável com uma segunda mulher, por quase 10 anos, 9 anos. Depois, nos separamos e eu fiquei solteiro por um tempo. Que agora eu voltei a fazer uma terceira tentativa, digamos assim.

Benjamin faz seu relato marcado pelas etapas da vida adulta, especialmente pelas mudanças em sua conjugalidade: o primeiro casamento, a vida pós-separação e os demais relacionamentos. Ao longo da entrevista fica premente o quanto para ele o estar casado é importante, o que de alguma forma já está indicado no modo como responde a minha primeira intervenção. Ele chega a falar em algum momento que estava sem família ao se referir a um tempo em que não estava casado:

Gizele: O que que é família para você, Benjamin?

Benjamin: Acho que é um núcleo muito importante. Uma célula que a gente vive. Apesar de que eu vivi algum tempo fora deste momento. Mas eu considero, vamos dizer, agora, quando estou agora passando a viver um terceiro casamento, volta aquela posição de um núcleo familiar, quer dizer, um homem e uma mulher.

Ao longo da conversa, a importância que Benjamin dá à família fica mais vívida, especialmente a importância de ser pai. Ele recorda com detalhes como era o convívio quando suas filhas eram pequenas, da atenção que dirigia a elas, e do estreito relacionamento com a enteada no seu segundo casamento. Atenção que também estende a outros familiares em seu cotidiano através de telefonemas semanais, conforme me relata.

Benjamin: Depois de 30 anos de casado. Porque a vida de casado é completamente diferente da vida de solteiro, né? Completamente. Tive que me adaptar a uma nova modalidade de viver. [...] Foi uma adaptação. Mas sempre, embora com uma namorada, algumas namoradas, mas vamos botar assim, não deixando a família não. Sempre perto das filhas.

O tema da primeira separação, e da relação com a antiga esposa e sua família, que ficaram hostis, ocupa e retorna várias vezes em nossa conversa, apesar de ele saber que o foco da pesquisa é a adoção de seus netos. Barros (1987) indica que o processo de separação é compreendido como ameaça à vida familiar porque torna público algo que devia ser preservado na intimidade. Assim, posso pensar que é algo que foi difícil para ele, como quebra de um projeto pessoal, como ele mesmo comenta. Mas que não o afasta da convivência com suas filhas, como acontece com alguma frequência em famílias com divórcio:

Gizele: Você imaginava, Benjamin, quando você lá jovem, né, pensou eu vou casar, vou ter filhos, você imaginava que a sua vida ia passar por estes caminhos todos: três casamentos, enteada, netos adotados? Você imaginava? O que você imaginava, você lembra?

Benjamin: Não. Engraçado. Eu quando casei, logo depois que eu casei, tinha um primo que tinha casado e já estava no terceiro casamento. Eu falava assim. Poxa, o Pedro já está no terceiro casamento, como é que pode, né? Aquilo para mim era um negócio assim...

Gizele: De outro mundo...

Benjamin: De outro mundo. Não é possível. Eu casado ali achando que nunca mais iria me separar, coisa sólida, para o resto da vida, até morrer e tal. [...] Mas vamos dizer assim, de imediato, nunca passou pela minha cabeça, um dia me separar. Nunca. De nenhuma. Filho sim, mas a questão de adoção também nunca me passou pela cabeça e tal.

A relação com as filhas não se desfaz com o divórcio, ao contrário, parece que se fortalece. Benjamin conta detalhadamente o tipo de pai que foi quando eram pequenas, lembranças também prementes em sua filha, mãe adotiva:

Benjamin: [...] Eu me lembro no primeiro casamento, ficava lá no clube, domingo. A gente ia para o clube, aí elas ficavam na piscina. Tem aquela piscina grande, dos adultos e de crianças. Elas queriam que eu ficasse lá, dentro d'água, de perna aberta, porque elas queriam mergulhar por de baixo.

Gizele: Sim.

Benjamin: E a minha mulher ficava lá na mesa sobrando. (Ri) Aí a disputa. Vem para cá! Ela ficava me chamando para eu ficar com ela. E as crianças queriam que eu ficasse lá. De vez em quando, eu dizia "agora eu vou sair", e" vou comer alguma coisa e tal". Aí saia da piscina. Aí sentava lá, aí comia alguma coisa, pedia alguma coisa para comer. Daqui a pouco chegavam as crianças.

Benjamin: [...] Ah, pai, me lembrei de você agora porque pela primeira vez eu fui levar a Lilian numa festa e depois fui apanhar, porque na época delas []. Aí ela me contou: estou me lembrando na época que você me levava as festas, agora sou eu estou levando a minha filha, primeira festa. Oh! Pois é, a vida é um ciclo.

Assim, percebo uma característica sua que não era tão comum em sua época - um pai participativo, que vai além das obrigações de sustento e responsabilidade. Acredito que tal postura tenha contribuído para que hoje a relação com elas e com os netos permaneça estreita apesar da distância, da vida corrida e das filhas já serem adultas.

Benjamin: Eu sou um avô completamente diferente: eu trabalho. Não tenho tempo. Nunca fui buscar meu neto para passear, porque eu estou um avô na ativa. Nunca parei de trabalhar. [...] Então, eu cuido mais da minha vida do que da vida deles, vamos dizer assim. Mas é uma alegria grande você ter um neto e saber que aquilo para eles é uma recriação daquilo que você já passou.

Como outros avós entrevistados, o ser avô não estava em seus objetivos de vida iniciais e marca uma etapa de vida que provoca mudanças. Para Schneider e Boyer (2005), pesquisadores franceses contemporâneos, tornar-se avó opera um "salto de geração" (p. 62), por isso é sempre um choque, mesmo que o evento seja desejado.

Gizele: Imaginava que ia ser avô? Pensava nisso?

Benjamin: Não. Não tinha. A visão não chegava isso não. Chegava até o pai. Aquelas experiências que cada um tem de idade, nunca nenhuma data me causou mais espanto a partir do momento que eu virei avô, aí caiu aquela ficha, a primeira ficha, caramba, um up grade agora, não sou mais pai, agora eu sou avô. Aí foi a primeira vez que eu me senti assim aquele pesado, um peso.

Gizele: Da idade?

Benjamin: Não, da idade não. Você trocar de handicap. De posição: não sou mais pai. [...] alguém que vai me chamar de avô, agora sou avô. Foi engraçado porque foi o primeiro momento que eu liguei para isso. [...] Não tinha, não me via como avô não.

Então para Benjamin ser pai é algo fundamental, através do qual o valor da família é ressaltado. No entanto, ele não cita o amor e o carinho como ingredientes, como fizeram as entrevistadas do sexo feminino, temas marcados, em nossa sociedade, por questões de gênero e faixa etária. Ele fala mais de apoio, de ações, da concretude e participação na vida diária, quando possível. Freitas, Silva, Coelho, Guedes, Lucena e Costa (2009), em sua pesquisa realizada com pais que moravam e acompanhavam seus filhos em atendimento médico, perceberam que o homem vive de forma paradoxal a paternidade, pois apesar de se considerar o responsável pelo não sofrimento do filho, posiciona-se, muitas vezes, de forma distante na dimensão afetiva. Assim, "para esses homens, os aspectos subjetivos relacionados com o amor, carinho e afeto não são a priori associados ao significado de pai" (p. 89), como percebo em Benjamin.

Gizele: Sempre manteve as suas filhas por perto? Seus netos?

Benjamin: Sempre, sempre. Acho que família... Homem que não tem filha, deve ser um vazio. Eu não me imagino hoje um homem sem filho. Seria um buraco muito grande. Ficaria, né. Tem pessoas que não tem filhos.

Gizele: Sim.

Benjamin: Acho um vazio. Mas respeito. Cada um tem... não sei nem se você tem filho.

O valor de ser um pai presente, bem como a importância de se ter filhos, são os motivos que, a princípio, me faz compreender a grande participação que ele teve em acompanhar e ajudar a filha no processo de adoção - participação de uma forma que não é comum nesses processos:

Gizele: E hoje em dia essas filhas já têm filhos? Quantos filhos?

Benjamin: Já tem filhos. A primeira que casou teve três filhos. E a segunda não teve filhos e aí tentou, tentou, tentou, de todas as formas. Até que ela tomou a decisão de adotar. Aí foi para a fila de adoção. Passam aqueles anos. Aquele negócio impressionante como é que é; aí ela entrou na fila. Eu dei o apoio. Ela mora em São Paulo. Então eu ia lá para São Paulo e tinha que assistir palestras [].

Gizele: Mas era obrigatório? A presença nessas reuniões?

Benjamin: Eles pedem sim [...]. Eu fui se aquilo poderia ajudar. Se aquilo faria, não seria eu a pessoa que ia criar um caso para ela poder adotar, papai não foi. Se a mãe não foi, problema dela. Não sei, nem perguntei, eu fui. [...] Eu falei: Bom, mas eu estou aqui como um futuro avô de uma adotada. [...], mas eu fui se aquilo poderia ajudar. Se aquilo faria, não seria eu a pessoa que ia criar um caso para ela poder adotar.

Gizele: Você não sabia qual era a intenção da sua filha naquele momento?

Benjamin: Não. Ela queria porque ela tinha se apaixonado assim por uma menina. Ela queria fazer uma adoção tardia porque ela gostou muito de uma menina lá de um orfanato [...]. Acabou aquela criança não foi. Mas ela acabou optando por uma adoção tardia porque ela queria uma menina, maior. Aí ela foi, foi. Muito bem. No dia, eu conversando com ela no telefone. Ah, pai, eu vou ver uma criança em Belo Horizonte neste fim de semana e tal [...]. Então vou com você [...].

Benjamin: [...] E ela depois partiu para a segunda adoção.

Gizele: Tardia também?

Benjamin: Não ela optou porque ela queria um menino, de 1 ano, no máximo 2 anos. Ai já partiu para o segundo, e aí já foi mais rápido. Conseguiu um menino, de São Paulo. Esse foi um paulista. Adotou com 1 ano e 7 meses. Acabou de fazer agora 3 anos, Sebastian. Aí, nós fomos para lá. Aí fica mais fácil. Pega o carro rapidinho, estou lá em São Paulo. Ela agora está com casal. Feliz da vida.

As adoções dos netos são vistas por ele como necessidade para contemplar a filha feliz e realizada, sem o vazio anteriormente mencionado. A criança adotada como a possibilidade de a filha cumprir seu desejo de ser mãe e construir sua família. E dele, de alguma forma, colaborar para isso, reafirmando (ou retomando) sua posição de pai, provedor das necessidades, dos afetos, da presença e do apoio, como anteriormente. Mas agora um provedor de felicidade, de completude, através de suas ações, atitudes e posicionamentos.

Benjamin: Eu estava tentando ajudar a ela de ser mãe. Já que ela não conseguiu pelo método tradicional e tal. Ela estava optando pela adoção. E ali, ela olhou e tal, gostou. Eu estava ali só observando, tentando ver, interpretando ali.

Benjamin: Olha, eu vi nestas reuniões que eu fui. Por exemplo, neste grupo que sobrou, então todos os casais saíram (na divisão da dinâmica). [...] Só tinha mulher solteira e homem solteiro. Homem solteiro [...] que queria adotar.

Gizele: Sim. Tem, tem ainda, tem muito.

Benjamin: Aqui no Rio, também, quando eu fui lá tinha um que ele já tinha adotado. Ele já tinha adotado dois garotos e dava lá o depoimento dele, como era o trabalho dele e tudo.

Gizele: Desejo de ser pai. Você estava falando que não compreende quem não é pai.

Benjamin: Exatamente.

Gizele: Desejo de ser pai. Como a sua filha tinha o desejo de ser mãe, independente de estar casada ou não.

Benjamin: É porque a primeira opção é ter o filho, tá, se não tem. Mas eu acredito que tem muita gente que não tem ainda essa postura [...]. Minha filha lá em São Paulo, quando adotou, teve licença de 6 meses, de mãe.

Acredito que ver a felicidade e a realização dos filhos seja um motivo que esteja presente nos demais avós que aceitam e legitimam a adoção de crianças, ou outros métodos para que os filhos se tornem pais, mas aqui foi algo por ele totalmente explicitado. Para os avós, ter netos é também a oportunidade de ver a continuidade da família, como nos afirma Barros (1987), em sua pesquisa com avós realizada na década de 1980: "é a partir do nascimento dos netos que o valor-família ganha sua plenitude" (p. 137).

Segundo alguns dos principais pesquisadores franceses sobre avós (Schneider, Mietkiewicz, & Bouyer, 2005), o casamento não é mais o pivô de nossas construções de família e filiação, é a partir da criança que a dinâmica se define hoje.

Assim a adoção é vista por Tarducci (2013) como a continuidade do modelo da família nuclear, mas com a diferença que centrada na criança:

El modelo privilegiado es el de la familia centrada en el lazo adulto-niño, que se relacionan voluntariamente en lo cotidiano, para vivir una relación directa, auténtica y responsable en términos de cuidado, educación y afecto. Hoy, la adopción es percibida cada vez más como la encarnación de este modelo y no como un desvío de la norma (Tarducci, 2013, p. 124).

Tais temas - o valor das relações familiares e a importância da posição de pai - também ficam perceptíveis nas diversas vezes que Benjamin comenta sobre a relação com a enteada, em seu 2º casamento. Nesta situação, ele conta como uma menina com quem conviveu intensamente pode se tornar uma filha, como uma adoção temporária, em uma relação de afeição que durou enquanto havia o casamento. Ele mesmo cita esta situação, bem no início de nossa conversa, como uma vivência que já tinha tido com adoção, anterior a chegada dos netos. A enteada torna-se filha no cotidiano, não pelo caráter legal, expandindo a ideia da adoção, mas absorvendo a ideia do ser família.

Benjamin: Então vamos dizer assim: Experiência com adoção eu já tive no 2º casamento (falando da enteada) porque é você amar uma criança, que não é seu filho, mas numa reciprocidade que ela tinha com você, você também se dedicava. E não teria nenhuma diferença em ser uma criança de outro pai.

O que Benjamin viveu foi, digamos assim, uma filiação temporária, bastante encontrada no Brasil com o advento das separações, divórcios e recasamentos, a partir dos anos 1970; e muito comum em famílias nos tempos atuais, nas quais filhos de diversos casamentos convivem numa casa ou em finais de semana, partilham ou não dos mesmos tios e avós, criando novos laços e relações pelos quais não há em nossa língua palavras que as determinem. Laços que ocorrem no cotidiano e que não dispõem também de obrigações legais.

Gizele: O próprio Direito mudou [...] em relação a esta questão da adoção, não é?

Benjamin: [...] Mudou. Hoje filho é filho. Não tem esta diferença. Também minha enteada, nunca chamei a menina de enteada, é minha filha.

Benjamin: Durante aquele período, tive uma excelente relação. Então aquela foi a primeira experiência com uma criança.

Gizele: Que não era seu filho biológico.

Benjamin: Que não era. Exatamente. Exatamente.

Gizele: Mas naquele momento você se sentia pai daquela menina?

Benjamin: Sentia. Sentia. Porque também ela me fazia sentir e me chamava de pai. Custou. Custou. Porque no início, eu me lembro que, logo no início, ela dizia: Ele é namorado da minha mãe. Ele é o namorado da minha mãe. Depois aquilo evoluiu. Depois passou algum tempo, ela já passou a dizer: ele é o Benjamin. Saía daquela posição primaria de namorado da minha mãe para Benjamin, e já tinha um nome. [...] E depois num clube que nós frequentávamos naquele momento, as crianças estavam chamando os pais, então ela também achou que devia: papai! E me chamava de pai, vamos dizer assim. Custou. Eu não fiz nenhuma reclamação, eu não pedia nada. Quer dizer, foi espontâneo da criança. Ela sentiu. No momento que ela sentiu que poderia chamar de pai, ela chamou. Sem nenhuma cobrança. Para mim foi muito gratificante, né. Ela chamando de pai. E cuidava dela realmente como se fosse uma terceira filha.

Também quando fala sobre o relacionamento com mulheres que já tinham filhos de outro casamento fica destacado como Benjamin valoriza a relação filial, já que considera que a aceitação por parte do filho de um novo cônjuge é fundamental para a nova união, como uma mola mestra dessa engrenagem família.

Benjamin: E a experiência também que eu tive nos casamentos é que em relação ao segundo casamento. É que quando você se junta com uma mulher, e se ela tem filhos, pelo que já, pela minha profissão, eu sei que se os filhos num novo casamento também não se enquadram, não se casam com você, vai ser um desastre aquela situação. Então vamos dizer assim, eu sabia que uma segunda opção, um segundo casamento, teria que passar, vamos dizer assim, eu não quereria ficar na dependência, vamos dizer assim, de uma relação desgastante. Se fosse uma relação boa, sim. Mas se não fosse.

Benjamin: Então nesta parte de adaptação com uma outra pessoa que tem filhos, na minha visão tinha que casar. Se não casasse, eu estaria fora, não ia brigar por amor de uma mulher que tivesse uma situação dentro de casa contraria [...].

Há outro importante ingrediente que pode ser percebido quando ele fala de seu envolvimento no processo de adoção dos netos: ele expõe que pela ausência de um marido, de um parceiro, um homem, um pai para estas futuras crianças, sente-se no dever de acompanhar a filha. Assim, descortina-se mais um fator preponderante em sua visão de mundo: possivelmente, movido por uma visão paternalista e geracional. Posso compreendê-lo como alguém de uma geração na qual a presença de um homem, provedor, protetor seja fundamental e necessária na tomada de determinadas atitudes e decisões. É preciso lembrar que: "Homens e mulheres inserem-se na vida familiar segundo referenciais de gênero, apreendidos ao longo da vida e que determinam funções socialmente legitimadas" (Freitas, Silva, Coelho, Guedes, Lucena, & Costa, 2009, p. 86).

Gizele: Nesse momento (da adoção) ela estava casada?

Benjamin: Ela se separou. Ela morava aqui no Rio. O casamento durou 4 anos, depois ela se separou, foi para São Paulo. Em são Paulo, ela teve um namorado, teve outro namorado, mas não casou.

Gizele: Então foi uma adoção só por parte dela?

Benjamin: Só por parte dela [].

Gizele: Esse foi um dos motivos que fez com que você quisesse acompanhá-la e tudo?

Benjamin: Claro. Se ela tivesse com marido, eu estaria em segundo plano, lá naquela posição de não interferir. Sabendo que ela estava sozinha, já que o namorado não estava, vamos dizer assim, naquele ritmo dela, então eu me coloquei ao lado dela. Vamos dizer assim porque nos momentos que ela estava com o namorado havia assim uma menor comunicação. Nos momentos em que ela estava desacompanhada, havia maior comunicação. Claro, uma substituição de conversa, apoio. Quando você está com alguém do seu lado, você tem aquela pessoa de apoio. Se não, tem papai e mamãe. Então pelo menos, entendi dessa forma. Então eu falei. Eu vou com você, eu fui.

Assim percebo que ele aponta para mais uma característica em seu jeito de ser pai: agir de forma protetiva com a filha adulta devido à ausência de um homem para acompanhá-la. Ele novamente ocupa o seu lugar de pai, chefe de família, cuidador, provedor, apoio da filha e, extensivamente, dos netos, pela ausência de outro homem para fazê-lo. "A paternidade não é concebida apenas como 'fazer filhos'; ela está relacionada também à capacidade de sustentá-los e educá-los" (Costa, 2002, p. 341).

Benjamin também demonstra, em outro ponto da conversa, sua dificuldade em abandonar a posição de chefe e provedor, característica de sua geração. Este dilema pode ser visto em muitos homens que, em acompanhar as mudanças contemporâneas, ficam temerosos de "comprometer sua imagem de virilidade e de macho diante de toda uma sociedade que estimula e valoriza tal característica" (Staudt, & Wagner, 2008, p. 179).

Benjamin: [...] da primeira vez que eu saí com uma outra mulher, fomos jantar e na hora de pedir a conta. Pedi a conta. Quando eu puxei, a mulher também puxou a carteira. Vamos dividir? Quando ela falou aquela vamos dividir, eu dei uma gelada, né. Eu sempre fui o provedor. Nunca a minha mulher puxou a carteira para pagar nada. Sempre foi. Naquele momento ela puxou a carteira para pagar, vamos dividir. Com a maior cara lavada. Eu fiquei assim, perdi a noção de onde eu estava. [...] custei para aceitar aquilo, vamos dividir aqui. Depois, hoje não, a gente sai, sabe que isso é normal. Mas naquele momento, aquele rompimento, que você está num mundo diferente. Completamente. Depois de 30 anos de casado. Porque a vida de casado é completamente diferente da vida de solteiro, né. Completamente. Tive que me adaptar a uma nova modalidade de viver.

Interessante acrescentar que não é mencionado, nem questionado, em nenhum momento, qual a razão da opção da filha pela adoção tardia (uma menina de 9 anos) da primeira neta. A adoção tardia destoa do perfil de crianças procuradas para adoção em nosso país, o que me faz pontuar esta preferência. Ela é tema de diversas pesquisas: Ebrahim (2001a, 2001b), por exemplo, compara os pais que efetuaram adoção tardia com pais que adotaram bebês, pelos seguintes aspectos: estado civil; idade; escolaridade; renda; presença de filhos biológicos e motivações para a adoção. Ele concluiu que os adotantes tardios apresentaram um nível socioeconômico superior, uma maior presença de filhos biológicos, e uma maturidade e estabilidade mais elevadas, como também diferenças quanto às motivações e ao altruísmo. Conclui que as adoções tardias são beneficiadas pelas características de personalidade dos adotantes.

A temática racial foi comentada de forma sutil por Benjamin ao dizer que os netos são mulatos. Importante destacar que ele pertence a uma geração que utilizava a palavra mulato(a) para fazer distinção entre as cores dos corpos das pessoas sem que houvesse uma intenção de negar a negritude ou fazer qualquer julgamento preconceituoso. As adoções transraciais são uma temática interessante dentro do campo das adoções, que levantam interessantes discussões (Yngvesson, 2007) sobre o direito a origem, principalmente porque são situações que a "diferença" entre os pais adotivos e a criança é evidente, ressaltando o status adotivo da família.

Mas foi lhe perguntado justamente sobre possíveis situações de preconceito ligadas à adoção, fato que ele negou, salientando, ao contrário, a força e apoio da rede das amigas de sua filha neste momento.

Benjamin: as amigas todas, quando ela fez o chá de fralda, a chefe dela deu um caixote de fraldas [...]. Todas as colegas de trabalho lá aonde ela mora, trabalha lá em São Paulo deram ali. Vejo no Facebook. Ela bota lá, tal. Aquelas curtidas. Aquela quantidade de gente e tal. É muito legal.

Gizele: Ter o apoio, né? O apoio da rede dela?

Benjamin: Tem, tem, muito legal. Eu estou muito contente. Vamos dizer assim, fico muito contente por ela. Porque a gente quer ver o filho feliz. Essa é o fundo de tudo isso é a felicidade do filho, né. A nossa realização é ver um filho feliz. A nossa realização é ver o filho feliz. Se isto faz feliz, é o que, para mim, vamos dizer assim, importa.

Benjamin conta justamente que a presença das primas, de idade semelhante, ajudou na integração e bem-estar da primeira neta adotada. Assim confirmo que a família extensa não pode ser desconsiderada neste processo, propósito fundamental desta pesquisa que está sendo realizada. Mas, ao contrário, deveria ser mais incluída e focalizada.

Percebo que a adoção foi bem recebida por Benjamin e que não há distinções entre os netos adotados ou não. Agora me questiono como ele pensaria a adoção se houvesse um marido, quer dizer, uma possibilidade mais efetiva de um neto biológico. Mas em nenhum momento ele comenta, critica e questiona a decisão da filha de adotar sozinha, somente se preocupa em ocupar esta ausência masculina.

Gizele: Para o senhor isso também foi tranquilo essa coisa da sua filha adotar? Receber uma criança?

Benjamin: Tranquilíssimo.

Gizele: Os netos daqui (do Rio) aceitam?

Benjamin: Aceitam e adoram. Não tem. A integração das crianças foi grande. Até quando vão lá para casa, estão lá, os cinco. Estão lá.

Benjamin: A menina foi muito bem recebida. Sempre vovô para cá, vovô para lá e tal. E ela, de início, a primeira vez que ela veio à minha casa aqui no Rio, quando ela veio, aí desceu do carro, ficou por lá mesmo. Deixa ela. Não forço nada. Nada forçado. Nada, nada. Deixa ela vir. Olá, tudo bem e tal? Abraço no vovô. Dei um abraço nela, naquele início.

O tema da religião, apesar de ser também um dos focos do meu estudo, surgiu nesta entrevista de forma espontânea, quando ele quis comentar como a ex-esposa e os familiares dela se comportam quando se encontram em eventos relacionados às filhas e aos netos. A menção ao comportamento destes no batizado das crianças me permitiu adentrar no tema da religião:

Benjamin: [...] Vamos dizer assim para poder diferenciar: neto paulista, neto do Rio. Aí era muito gozado, como ela não queria me ver na festa. Não tem problema. Marca um horário, eu vou no final da festa. Aí ela falou assim: então está bom []. Quando a minha filha lá de São Paulo: quando tiver minhas festas, eu não vou fazer isto, vai ter que ir, se não quiser não vai, não vou diferenciar o horário para você, horário para ela [].

Gizele: Seus netos são católicos aqui do Rio?

Benjamin: Agora por causa do batizado da Lilian, aí eles fizeram, depois quando foi batizar o Sebastian, por um milagre, aí o pai daqui deixou batizar. Então foi batizada os quatro.

Gizele: Então a Lilian foi a primeira a ser batizada da família? [...]. Mas para você é importante que os cinco tenham sido batizados? Que eles sejam católicos?

Benjamin: Não, não, importante, vamos dizer assim. Fiquei contente.

Gizele: [...] Mas interessante é que foi a Lilian, Lilian, né?

Benjamin: Isso.

Gizele: Que puxou este movimento da família.

Benjamin: Mas a minha filha queria batizar, ela queria batizar. Ela queria batizar e depois, tenho impressão que foi ela que provocou a irmã a batizar os outros três. Os outros três são batizados. Frequenta? Não, não frequenta. É aquele de carteirinha, né, católico de carteirinha.

Interessante observar a movimentação da família em torno do batismo, salientando que foi através da neta adotada, que não é a mais velha, que se inaugura a prática de batismo na família de Benjamin. Ponto muito interessante que faz pensar sobre a religião como liga, como algo que pode reforçar o acolhimento, legitimar essa nova velha família. A religião como uma força na tessitura dos laços, na integração dos familiares e na rede de pertencimento.

Gizele: Sua filha é religiosa? Vocês são religiosos?

Benjamin: Eu sou. Elas não [...]. É, mas eu entendo o seguinte: não adianta você ficar dizendo. Você tem que praticar a sua religião. Eu vou à missa todo domingo. É uma posição. Cada um tem a sua convicção. Nenhuma das duas são. Tantos que a mais nova porque ela casou com um homem que não é católico. Isso ele puxou.

Benjamin mostra-se feliz porque a família dá sinais de que seguirá uma religião, mas diz que este pertencimento só poderá ser afirmado, no futuro, ao saber como a prática religiosa terá continuidade. Acrescento que a participação na religião pode ser também um ponto importante perante o resto da comunidade no qual a família pertence, fortalecendo a comunidade, a família e a criança.

Gizele: O que que vai dizer que seus netos são católicos ou não, na sua opinião?

Benjamin: Na minha opinião eles, enquanto são pequenos, eles são levados, assim como eu levava as minhas filhas a igreja.

Benjamin mostra que, ao se tornarem netos, diminui-se a importância da origem das crianças adotadas e a ênfase é colocada na convivência. Nada comenta sobre a origem das crianças, suas famílias biológicas ou aspectos anteriores à adoção.

 

Finalizando

Falar de família nos dias atuais é falar de diversidade social. Muitas destas mudanças estão vinculadas às transformações das relações de gênero, a novas formas de conjugalidade, ao advento do feminismo, à cultura da adoção e às novas técnicas reprodutivas.

Diversos estudos históricos e antropológicos (Ariès, 1981; Costa, 1983; Donzelot, 1986) demonstram que a instituição "família" vem sofrendo mudanças ao longo do tempo, e tornaram-se o local privilegiado da afetividade, uma das características fundamentais da família nuclear, apenas a partir do século XIX. Mas apesar da maioria das sociedades ter alguma instituição que possa ser reconhecida como família, suas configurações são tão variadas que ela não pode ser considerada como universal, segundo Arán (2011).

A literatura atual tem demonstrado que a noção de família não apresenta uma definição conceitual fechada (Vilar, 2015). É importante sempre lembrar que as pesquisas históricas indicam que nunca foi possível falar com unicidade a respeito de família, seja no Brasil (Samara, 1983), ou mesmo em outros países (Corrêa, 2012).

Os desenhos vão bem além do simples modelo de família nuclear biparental heterossexual, tão presente no imaginário social e bastante cultuado na sociedade ocidental. Aqui nesta história de vida temos um homem em seu terceiro casamento, com uma mulher, no qual ambos têm filhos de relações anteriores, sendo que ele tem uma filha heterossexual, casada e com filhos biológicos; e uma filha solteira com filhos adotados.

Nesta pesquisa reafirmo que a importância da família permanece, bem como o fato de ser o local privilegiado de vínculos, afetos e responsabilidades mútuas.

Constato que a religião é algo que ajuda na construção de um local de pertencimento, diminuindo possíveis diferenças, reforçando os laços de convivência, cuja costura se afirma através dos afetos e das conexões. Família e religião continuam a ter seus caminhos entroncados mesmo nesses novos velhos tempos.

A adoção se confirma como uma possibilidade de construção de filiação. E a família com adoção como uma das dinâmicas legítimas que encontramos de forma cada vez mais presente e transparente em nossa sociedade.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Gizele Bakman
gizele.bakman@gmail.com

Submetido em: 01/11/2017
Aceito em: 07/11/2017

 

 

1 Curiosamente, na língua portuguesa a palavra no plural usada quando referirmos ao mesmo tempo à avó e ao avô é avós, no plural feminino, aqui citado sem detrimento a qualquer um dos gêneros.
2 Camadas médias não se define apenas por renda, embora aqui este pudesse ser um critério possível. Trata-se de um conjunto de aspectos da vida como acesso a determinados bens culturais, escolaridade das pessoas que compõem a família (Salem, 1986).
3 Todos os nomes citados são fictícios. O nome escolhido para ele seguiu uma escolha metafórica, por assim dizer, já que ele foi o primeiro homem a ser entrevistado. Somente foram nomeadas aqui as pessoas que foram nomeadas por ele.

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