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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2018

 

ARTIGOS

 

Identidade e lugares de memória no Museu da Imigração Pomerana

 

Identity and sites of memory in the Museum of the Pomeranian Immigration

 

Identidad y lugares de memoria en el Museo de la Inmigración Pomerana

 

 

Rosimary Paula Ferreira VargasI; Alexandre de Carvalho CastroII; Maria Cristina GiorgiIII; Marcele Linhares VianaIV

IMestre. Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais. Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais. Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIIDocente. Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais. Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IVDocente. Coordenação de Gestão de Turismo. Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar o Museu da Imigração Pomerana de Santa Maria de Jetibá - em seu papel de guardião da história de um povo, testemunhando o passado e se transformando em princípio de ação do presente para o futuro - como lugar de memória e esquecimento de dinâmicas racistas e étnico-raciais, desde eixo analítico fundamentado em Pierre Nora e seu conceito de Lugares de Memória. Os resultados evidenciaram memórias do grupo pomerano que se fazem presentes como elementos de preservação identitária, e também esquecimentos, como o da questão do negro e do racismo, estritamente vinculados à imigração pomerana por conta do projeto de branqueamento e das políticas de imigração de fins do século XIX e princípios do XX.

Palavras-chave: Relações étnico-raciais; Museu de Imigração Pomerana; Identidade social; Lugar de memória; Política de branqueamento.


ABSTRACT

This paper aims at analyzing Santa Maria de Jetibá's Museum of Pomeranian Immigration - in its role as guardian of a people's history, witnessing the past and rendering itself a future-oriented action principle - as a site of memory and forgetfulness of racist and ethnical-racial dynamics. We ground our investigation upon Pierre Nora studies, and particularly upon his concept of sites of memory. Results shed light on Pomeranian memories which act as elements of identity preservation, as well as forgotten aspects, such as the issue of black people and racism, closely linked to the Pomeranian immigration related to the whitening project and to immigration policies established in the end of the 19th and in the beginning of the 20th centuries.

Keywords: Ethnical-racial relations; Museum of the pomeranian immigration; Social identity; Site of memory; Whitening policy.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar el Museo de la Inmigración Pomerana de Santa María de Jetibá - considerando su papel de guardián de la historia de un pueblo, testimoniando el pasado y transformándose en principio de acción del presente para el futuro - como lugar de memoria y olvido de dinámicas racistas y étnico-raciales, desde el eje analítico fundamentado en Pierre Nora y su concepto de Lugares de Memoria. Los resultados evidenciaron memorias del grupo pomerano que se hacen presentes como elementos de preservación identitaria, y también olvidos, como el de la cuestión del negro y del racismo, estrictamente vinculados a la inmigración pomerana en virtud del proyecto de blanqueamiento y de las políticas de inmigración de fines del siglo XIX y principios del XX.

Palabras clave: Relaciones étnico-raciales; Museo de Inmigración Pomerana; Identidad social; Lugar de memoria; Política de blanqueamiento.


 

 

Introdução

Este artigo tem como objetivo analisar, do ponto de vista psicossocial, o Museu da Imigração Pomerana de Santa Maria de Jetibá enquanto lugar de memória e esquecimento de dinâmicas racistas e étnico-raciais, considerando que, com o forte movimento migratório para a região do Espírito Santo, a partir do século XIX, o estado passou a congregar uma série de culturas - como a de poloneses, alemães, italianos e árabes - mas, em especial, a dos pomeranos (Aguiar, 2011), que constituiu o foco desta pesquisa.

No âmbito da Psicologia Social, principalmente a partir década de 1980, foram desenvolvidos no Brasil uma série de estudos que passaram a considerar "identidade" e "memória" como questões histórico-sociais, rompendo então com a visão predominantemente norte-americana de estudar tal tema num enquadramento cognitivista, marcado por bases estatísticas e pretensões positivistas. Contudo, uma vez que já existem várias análises de como esses novos eixos metodológicos começaram a ganhar espaço no contexto acadêmico brasileiro (Gonçalves, & Yamamoto, 2015), inclusive abordando a emergência de um movimento de abordagem historicizada (que culminou com a criação da Associação Brasileira de Psicologia Social - Abrapso), basta salientar que este artigo adere à perspectiva que ressalta o caráter histórico-cultural dos fenômenos psicossociais. Dessa forma, o que se procura é investigar os modos de produção constituintes da "memória" e da "identidade" (categorias eventualmente naturalizadas pela Psicologia Social de base positivista). Assim, como o que passa a ser fundamental é a reflexão acerca dos processos de singularização constituídos historicamente, a orientação metodológica segue um viés qualitativo, com dados interpretados sob o escopo da análise do discurso (Castro, Portugal, & Jacó-Vilela, 2011), na qual os discursos implicados no museu pomerano não são concebidos como enunciados isolados, mas como práticas discursivas que por sua vez possuem relações com uma série de outras práticas sociais e culturais.

A cultura pomerana, conforme explicado mais adiante, diferencia esse grupo étnico dos demais e marca sua identidade, a ser sempre entendida de forma não essencializada (Castro, 2012), uma vez que cada grupo social constrói suas próprias representações culturais de acordo com suas trajetórias, peculiaridades e particularidades, proporcionando o que se considera como diversidade cultural, resultante de uma vasta migração e miscigenação de etnias, sobretudo no caso do Brasil. Essa diversidade presente na sociedade contemporânea expressa, consequentemente, distintas dinâmicas nas relações sociais e étnico-raciais. Assim, os pomeranos procuram manter os laços locais de identidade, preservando suas práticas cotidianas.

No universo de Santa Maria de Jetibá, tal prática pode ser percebida por meio das noções compartilhadas de tradição e identidade, representadas pela manutenção da língua e da cultura pomerana entre seus descendentes. De fato, mais do que demarcar a manutenção dos costumes pomeranos, os elementos culturais que compõem o modo de vida desse grupo tendem a instituir um limite étnico entre eles e as demais culturais locais. Nesse sentido, uma análise do Museu da Imigração Pomerana (doravante MIP) possibilita-nos identificar as disputas pela definição da identidade desse grupo, assim como os lugares de memória dessa comunidade no estado do Espírito Santo, na região sudeste do Brasil.

Metodologicamente, nosso percurso consistiu em abordagem na qual foram realizadas entrevistas, visitas exploratórias, levantamentos de peças de acervo, e análise documental, principalmente - mas não exclusivamente - dos arquivos do museu. Os resultados obtidos estão ordenadamente sistematizados nos tópicos apresentados a seguir. A ideia básica nessa coleta de dados era a de identificar estritamente elementos que permitissem analisar a memória e esquecimento de dinâmicas racistas e étnico-raciais conforme o objetivo do artigo. Nesse sentido, cabe ressaltar que a pesquisa não visava a descrição da totalidade do acervo do museu, nem tampouco resgatar a história geral da instituição, pois o foco específico consistia na questão racial. As entrevistas abertas realizadas, particularmente, aqui investigadas a partir da análise do discurso, seguiam um procedimento no qual se buscava elucidar a produção de sentidos do material coletado nos documentos e no museu.

No que diz respeito aos aspectos éticos deste estudo, é preciso deixar claro que procedimentos adequados foram adotados, e os entrevistados assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, no qual foram informados das condições da pesquisa. Alguns entrevistados permitiram explicitamente a utilização do nome para fins acadêmicos, mas outros solicitaram sigilo, razão pela qual em alguns casos são indicadas apenas as iniciais das pessoas nas citações de seus depoimentos.

 

Da "terra prometida" ao lugar mais pomerano do país

O MIP, instalado em uma casa com características tipicamente pomeranas, é composto por painéis, mapas, documentos, fotos, roupas e objetos da época da imigração, tendo sido idealizado pelo então prefeito da cidade de Santa Leopoldina, descendente de pomeranos, Helmar Potratz, principal agente no processo de emancipação do município de Santa Maria de Jetibá1. A intenção inicial da criação do referido espaço congregava interesses políticos com a ideia de valorizar e preservar a cultura pomerana. De acordo com o governo da época, entendia-se que o processo de emancipação política deveria ser coroado com a criação de uma biblioteca e de um museu que pudessem materializar a história desse grupo de imigrantes e, ao mesmo tempo, contribuir para que tais tradições não se perdessem com o tempo. Sendo assim, a professora e historiadora Regina Rodrigues Hess e o museólogo e historiador Sebastião Pimentel Franco, ambos da Universidade Federal do Espírito Santo, foram então contactados para fazerem o projeto inicial do museu. Fundado em 1991, o museu está localizado na cidade de Santa Maria de Jetibá, considerado o município "mais pomerano do Brasil" (Manske, 2015; Tressmann, 2005). Com população de cerca de 38.850 mil habitantes, em que há predomínio da cor/raça branca em 81,0%, seguida de pardos, 15,6%, negros, 1,9% e amarelos, 0,7%, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2015), com maior parte da população bilíngue, dominando o pomerano e o português, sendo o primeiro idioma mantido principalmente na oralidade2.

De acordo com Jacob (1992) e Tressmann (2005), o etnômio pommerer está relacionado ao grupo étnico descendente de tribos eslavas e germânicas que viveram na região da Pomerânia, situada ao longo da costa do Mar Báltico, entre as atuais Alemanha e Polônia, e os países escandinavos. Desde o século XVII, a Pomerânia, originalmente uma província da Prússia, esteve envolvida em muitas guerras até passar a integrar, em 1850, o Império Alemão. Tais conflitos contribuíram para as iniciativas migratórias tanto para outros países da Europa quanto para diferentes continentes, sobretudo, a América (Candau, 2002).

No Brasil, identificam-se dois momentos migratórios principais: o primeiro em fins da década de 1850, época anterior à unificação da Alemanha; e o segundo, de maior vulto, nos anos 1870. As regiões que receberam os migrantes pomeranos foram Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Espírito Santo, destacando-se o último por abrigar descendentes desses grupos que ainda preservam a cultura e a tradição tidas como originais. E nesse estado capixaba, as comunidades pomeranas estão concentradas atualmente em 14 municípios3.

As pesquisas em torno da imigração de grupos dessa região da Europa para o Brasil, em geral, se concentram mais nas comunidades de origem alemã do que especificamente nos pomeranos (Granzow, 2009). No entanto, estes possuem peculiaridades muito distintas dos imigrantes alemães, o que se torna evidente por meio do contato com a tradição desse grupo na comunidade de Santa Maria de Jetibá e do acervo do Museu na Imigração Pomerana.

Há quem diga que, ao longo de mais de 150 anos de colonização em terras capixabas, os pomeranos muito pouco documentaram sobre a vida de seus antepassados na Europa ou sobre a trajetória dos grupos pioneiros no Brasil (Seibel, 2010). Como sabido, no contexto nacional, muitos imigrantes vindos de diversos países contribuíram para a diversidade cultural do povo brasileiro, o que, de certa maneira, contrasta com o histórico do imigrante pomerano que se constitui como um grupo geograficamente isolado com características que simbolizam o passado de um povo migrante. Nesse conjunto, que marca a emblemática dinâmica étnico-racial pomerana, podemos destacar sua língua4, sua religião, sua arquitetura, suas festas tradicionais e seus rituais, que ainda estão presentes nas práticas desses grupos e que guardam intensa relação com o passado.

Dessa maneira, compreendendo o museu como um lugar de memória pomerana no Espírito Santo, este se configura como um espaço voltado para a perpetuação da memória que, tida como viva, parece dissipar-se aos poucos. Ou seja, diante da possibilidade de seu desaparecimento no grupo social, faz-se necessária a criação de um espaço que reconheça, reviva e perpetue essa memória. O museu, portanto, assume o papel de um relevante meio de definição e identificação através do reconhecimento e sentimento de pertencimento de um determinado grupo social, por meio do qual se torna possível analisar o acervo exposto como repertório cultural na formação da identidade pomerana e suas memórias, como discutiremos na próxima seção.

 

Um lugar no Brasil para a memória pomerana

Na concepção de Nora (1993), os lugares de memória surgem a partir do momento em que a memória se torna resultado de uma organização voluntária, intencional e seletiva, que origina a necessidade de acumular vestígios e documentos sobre o passado que possam servir de provas e registros daquilo que se passou. Instituições como museus são criadas, portanto, com a finalidade de salvaguardar uma memória que deixou de ser múltipla e coletiva para se tornar única e sagrada: "Menos a memória é vivida do interior, mais ela tem necessidade de suportes exteriores e de referências tangíveis de uma existência que só vive através delas" (Nora, 1993, p. 14). Destarte, os lugares de memória nascem do sentimento de que não há memória espontânea. Nesse sentido, "o que nós chamamos de memória é, de fato, a constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de nos lembrar" (Nora, 1993, p. 15).

Existe, vale destacar, uma ampla discussão sobre as questões da "Memória" em suas relações e distinções com a "História" que não será aqui sequer aludida, uma vez que esse artigo não tem cunho preponderantemente "histórico", na acepção historiográfica e acadêmico-institucional do termo. A perspectiva desta análise mantém seu foco estritamente nos domínios psicossociais, razão pela qual o que precisa ser destacado é que grupos sociais muitas vezes tentam definir, e continuamente redefinir, a configuração de uma desejável identidade própria pela revitalização e resgate do que entendem ser sua verdadeira história.

Os lugares de memória, tanto no sentido concreto quanto abstrato, convertem-se, de fato, em lugares de memória, quando carregam em si significados importantes nos três sentidos da palavra: memória material (por seu conteúdo), memória funcional (por garantir a cristalização da lembrança e sua transmissão) e memória simbólica (por caracterizar uma experiência vivida). Sentidos, aliás, que coexistem sempre, porém em graus diversos. Enfim, o lugar de memória é "um lugar duplo: um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade, e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações" (Nora, 1993, p. 27).

O MIP, então, pode ser vislumbrado a partir dos aportes de Pierre Nora, dado que se configura como esse espaço de memória dessa comunidade, sobretudo em sua dinâmica material, funcional e simbólica. Além disso, convém ressaltar que se concebe um museu não apenas como um espaço instituído para lembrar e contar histórias, mas, especialmente, um espaço instituinte em que se constroem memórias (Pinto, 2013); um local de reserva de memória e um lugar de identidade, em que narrativas são registradas, memórias de indivíduos e de seu entorno são colocadas em destaque, consciências históricas são proclamadas e expectativas para um desenvolvimento local mais harmonioso com a memória são incentivadas (Mendes, 2012).

 

O museu como lugar constituinte da identidade pomerana

A configuração do MIP como um lugar de memória deriva da contribuição de Nora (1993), mas também traz em seu bojo perspectivas alinhadas à formulação teórica de Maurício Halbwachs, para quem a memória coletiva não pode ser essencializada porque depende do poder social exercido pelo grupo que a sustenta. Realmente, seu estudo seminal "Memória Coletiva", de 1950, sobreleva a relevância das forças sociais de um dado momento presente em eventuais disputas pela configuração dos eventos passados. Numa abordagem psicossocial, o ponto a ser enfatizado, portanto, é que nesse campo de estudos há um recorrente interesse no estudo da construção sócio-histórica da memória, sob inspiração dos lugares de memória enfatizados por Nora (1993) e da identidade social aludida por Pollak (1989; 1992), referência teórica que implica significativo afastamento do viés cognitivista, posto que a memória não é concebida como mera reprodução individualizada de experiências pregressas, mas como uma construção coletiva, mediada efetivamente pela interação com o meio cultural no âmbito da vida em sociedade.

As relações entre o MIP e a identidade pomerana devem ser entendidas, assim, como parte de uma construção social, já que grupos étnicos fazem uso da memória no intuito de reforçar identidades e em prol de interesses específicos (Santos, 2002), visto que a "memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade" tanto individual quanto coletiva, ao mesmo tempo em que é também um fator fundamental para o sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (Pollak, 1992, p. 204). Nesse sentido, longe de conceber qualquer noção de essência identitária, reconhecer uma dada atribuição de identidade - como no caso pomerano - significa considerar as referências acumuladas por coletividades ao longo de seu percurso histórico (Silva, 1999). Ao examinar o passado, o grupo decide perceber que permanece o mesmo e toma consciência de sua identidade ao longo do tempo (Halbwachs, 2006).

Desse modo, a continuidade e a permanência da memória em uma sociedade indicam a existência de uma determinada comunidade de memória (Moraes, 2009; Mendes, 2012), que funciona como elo entre as gerações anteriores e futuras. Percebemos, então, que um museu, além de ser um lugar de memória, pode apresentar também um viés de cunho autoritário, de exercício de poder, no que tange à celebração do predomínio de um grupo social e étnico sobre outros.

No caso dos pomeranos no Espírito Santo, as primeiras gerações de imigrantes defendiam-se da diversidade que, de certa maneira, os deixava isolados, negando-se, por exemplo, a falar o idioma local (o português), a não ser o imprescindível para que se estabelecesse uma comunicação mínima (Pereira, 2008). Os pomeranos, assim, mantinham usos e hábitos de sua tradição, que se perpetuam nos dias atuais entre seus descendentes. Nesse caso, então, o papel do museu é entendido como sendo o de reforçar esses hábitos, evitando, ou, ao menos, tentando evitar que eles se percam nas gerações seguintes (Mendes, 2012).

Esse papel que o MIP possui dentro da comunidade de Santa Maria de Jetibá reforça a reconstrução identitária, retornando ao passado - conforme idealizado - para se reencontrar na sua origem familiar, processo em que a memória organiza episódios fragmentados em identidades tidas como estáveis (Pereira, 2008). Enfatiza-se, pois, a referência ao passado - através desse museu ou de lembranças proporcionadas por esse lugar de memória -, cujo intuito é manter coesos grupos e instituições que compõem a sociedade, no sentido da definição de um lugar, sua complementaridade, e, ao mesmo tempo, suas oposições irredutíveis (Pollak, 1989).

Na compreensão de Halbwachs (2006), esses objetos, como os do MIP, levam de volta à sensação de familiaridade que sentimos ao ver ou evocar um objeto, dado que esse, traz para o nosso corpo, os mesmos movimentos de reação que tivemos no momento em que anteriormente o percebemos. Por outro lado, reconhecer por meio de uma imagem, diferentemente, é relacionar imagens de objetos a outras que vão formar com elas um conjunto; uma espécie de quadro, possibilitando o reencontro dos elos desse objeto com outros que podem ser pensamentos ou sentimentos (Hallbwachs, 2006, p. 55). Ou seja, reencontrar as ligações do referido objeto com aqueles que podem ser também pensamentos, sentimentos ou a um acontecimento distante no tempo. Dessa maneira, através de seus objetos e elementos constitutivos, os museus podem recontar histórias que já foram contadas e vividas. E a possibilidade de múltiplas leituras resgata, para o campo museológico, a dimensão do litígio: é sempre possível uma nova leitura (Chagas, 2002).

 

A musealização de uma residência doméstica como símbolo da preservação do que deve ser lembrado

A construção desse espaço de memória em Santa Maria de Jetibá começou a partir de iniciativas políticas locais, amparadas por propostas científicas e acadêmicas. O museu foi constituído a partir de depoimentos e da congregação de relatos e histórias sobre a cultura pomerana e contribui, como já dito, para a construção identitária do imigrante pomerano e da preservação da memória dessa migração. A análise desse museu implicou o esforço de identificar elementos étnico-raciais em seu acervo, pela percepção de sua estrutura física e compreensão da narrativa histórica presente em cada espaço.

Em 20 de julho de 1991, o MIP foi inaugurado ocupando uma casa de arquitetura da primeira metade século XX (1936) característica das primeiras moradias dos pomeranos e que leva, inclusive, em sua fachada, as cores da bandeira daquele país, azul e branco. A atual construção é fruto de uma reforma feita em fins dos anos 1980, que pouco alterou sua configuração estética original, embora tenha implicado uma reconstrução arquitetônica e estrutural. Anteriormente, a casa havia sido, além de residência, uma Estação de Fruticultura, administrada pelo governo do estado do Espírito Santo, onde se plantava e distribuía mudas de plantas frutíferas.

A ideia de utilizar uma casa tipicamente pomerana como espaço museológico está diretamente ligada à proposta inicial do museu, de se constituir um Museu-casa. Contudo, por conta de questões administrativas a proposta não se concretizou e o edifício residencial foi aproveitado como espaço museológico para exposição do acervo que apresenta a cultura pomerana desde a história da Pomerânia até a da comunidade atual de Santa Maria de Jetibá. O espaço, entretanto, mesmo que não se configure como um Museu-casa, possui um significado singular, sobretudo no que se refere a museu de memória cultural. É abrigo, é espaço para receber convidados, amigos, família, é um lugar agregador por natureza, além de simbolizar um ambiente de segurança e estabilidade para um grupo de imigrantes que deixa sua terra natal com a proposta de começar uma nova vida em um país desconhecido.

O processo de museificação dos objetos remete à memória dos seus moradores, às experiências que viveram no passado em família ou em seu próprio grupo, por serem os objetos que as constituem representação material desse passado (De Setta, 1984, p. 110). Mesmo que não estejam inseridos em uma exposição conjunta com outras peças comuns em um mesmo ambiente de época, ainda carregam em si a história daquele contexto doméstico, histórico, do modo de viver das pessoas da época em que eram constituintes das casas pomeranas.

Os objetos hoje encontrados no acervo do MIP fazem parte de um conjunto, selecionado por técnicos na área e composto por doações e aquisições do governo, constituído por diversos materiais, desde suportes de papel - documentos, fotografias - até peças de vestuário, móveis e acessórios, e artefatos, como ferramentas e apetrechos culinários. No contexto dos museus, os objetos colaboram para o efetivo intercâmbio entre o visível e o simbólico, sobretudo no que concerne aos grupos pomeranos que efetuaram as doações, o que, de acordo com Pomian (1984), faz com que cada objeto entregue ao acervo leve consigo algo invisível para o outro, mas não para quem o doa.

Essas peças que hoje estão expostas no MIP são parte de um conjunto maior de aquisições do governo do estado e de doações, todavia muitos desses objetos se perderam ao longo dos anos que compreenderam a idealização do museu e sua inauguração. Mesmo desfalcado, esse acervo constitui a principal mostra do museu complementada pelas fotografias (cerca de duas dezenas, sem datas nem identificação de doadores). Os espaços do MIP são utilizados para narrativa museológica em um sistema que conduz o visitante pelos cômodos da antiga casa, passando pela cozinha e sótão, estabelecendo um circuito narrativo.

Esse trajeto percorrido pelo visitante apresenta primeiramente o contexto de chegada dos imigrantes no Brasil e especialmente no Espírito Santo, seguido de outro cômodo onde são destacados o trabalho e o esforço dos primeiros grupos pomeranos. No ambiente seguinte, são ressaltadas as questões familiares e seus laços. No cômodo destinado à apresentação da língua pomerana, ressalta-se que os líderes luteranos inicialmente tinham papel de educadores, além de responsáveis pela orientação cristã das primeiras famílias.

A linguagem é elemento fundamental na cultura pomerana, sobretudo porque, por meio dela muitas tradições foram mantidas e passadas exclusivamente entre familiares, que abarcam ainda o campo da religião, da escola, da culinária e de rituais como o casamento. Por isso, a concepção do MIP contou com um etnologista, professor Ismael Tressmann, descendente e estudioso desse grupo étnico, para transcrever palavras e expressões na língua pomerana. Dessa forma, no museu todas as informações são apresentadas ao público em três idiomas: português, pomerano e inglês, facilitando acesso e valorizando a língua original dos imigrantes5.

No último ambiente do primeiro piso da casa, a antiga cozinha, estão expostos equipamentos e acessórios ligados às atividades desenvolvidas nesse espaço e à culinária típica. No andar superior, o sótão, estão presentes elementos da cultura pomerana ligados ao lazer e descanso, como instrumentos musicais e móveis de repouso, e são mostrados elementos dos principais rituais, como o batismo, o casamento e o funeral. O uso do espaço doméstico em um museu da cultura pomerana reforça, de certa maneira, a "memória pessoal, reflectida no espaço privado, transforma-se em memória colectiva, o espaço pessoal torna-se espaço público, procurado por quem pretender chegar ao íntimo de uma certa personalidade" (Ponte, 2007, p. 26).

Dentro do acervo exposto no MIP encontram-se duas fotografias em que aparecem negros (Vargas, & Castro, 2016). Tais fotos, apresentadas a seguir, assim como a maioria das outras imagens, não apresentam data, registro ou identificação dos retratados, mas é possível fazer algumas conjecturas. Numa delas (Figura 1), negros aparecem lavrando a terra, lado a lado com trabalhadores pomeranos. Noutra (Figura 2), os elementos visualizados transparecem que talvez os negros fossem tropeiros, já que, de acordo com depoimento da historiadora Regina Hess (2016)6, eles foram muito importantes no contexto local, entre 1900 e 1930, por exercerem a função de transporte de grande carga, devido à falta de meios de transporte. De qualquer forma, tais registros fotográficos permitem questionar algumas interpretações historiográficas que naturalizaram o isolamento étnico dos pomeranos nessa região (vide Manske, 2015), supostamente em função das regiões montanhosas de difícil acesso, dado interpretativo que buscara justificar geograficamente o comportamento segregacionista desses imigrantes em relação aos demais grupos autóctones encontrados no Brasil. As imagens identificadas no MIP evidenciam inequivocamente que negros mantinham interações com imigrantes pomeranos, conforme, inclusive, será mais enfatizado no tópico a seguir.

Ademais, a questão da ausência de datas e informações sobre o acervo corresponde ao interesse, de cunho político, de que a história pomerana no Brasil seja reconhecida convenientemente de forma homogênea e pasteurizada, sem maiores reflexões diacrônicas. Sobretudo porque o período de imigração pomerana no Brasil coincide, no século XIX, com a época do processo de abolição da escravidão e com o consequente incentivo do país à imigração europeia para pôr em prática uma política de branqueamento da população.

Grupos dominantes da elite política e intelectual no Brasil, a partir de fins do século XIX e por influência do eugenismo europeu, começaram a desenvolver teorias de branqueamento que resultaram numa política de apoio e incentivo à imigração. Essas ações se orientavam pelo propósito de que, como resultado do processo de mestiçagem, entre imigrantes e ex-escravos, a população brasileira se tornaria hegemonicamente branca (Cuti, 2012; Munanga, 2008). Sendo assim, por supostamente contribuir para o embranquecimento da população nativa, a questão do branqueamento não pode ser desconsiderada na análise da imigração pomerana e, frente ao MIP como lugar de memória, cabe ressaltar seu efetivo papel no esquecimento dessas dinâmicas racistas e étnico-raciais, que em nenhum momento são aludidas nas exposições do museu.

Esse panorama nos conduz a algumas considerações. O esquecimento do racismo científico como um dos principais fatores da imigração pomerana para o Brasil aponta para uma história devidamente domesticada pela supressão de tensões, omissões, repressões e opressões. O que de fato existia, no entanto, era uma dinâmica ético-racial excludente em relação ao negro, mas estruturada em eixos distintos. Num dos eixos é possível identificar a proposta eugenista da elite brasileira de embranquecimento do país, que contava com imigrantes - como os pomeranos - para promover a mestiçagem por meio de casamentos inter-étnicos. No outro eixo, por sua vez, a dinâmica que prevalecia era a de manutenção de uma identidade pomerana ariana, compromissada com as raízes europeias, mediante casamentos realizados sempre dentro do próprio grupo. Nessa perspectiva, a imigração pomerana pode ser caracterizada pelo tensionamento de projetos distintos de identidade étnico-racial, ainda que, em ambos os casos, eminentemente racistas.

Nesse contexto, torna-se fundamental entender a identidade como um processo que se constitui sócio-historicamente; a partir de aportes pautados em Nora (1993), Pollak (1989; 1992) e Halbwachs (2006), anteriormente apresentados como referência teórica para esta análise. Desse modo, o MIP é um indício de que a obliteração de políticas racistas, que ensejaram a imigração de pomeranos no século XIX, visa a constituição de um perfil identitário específico. Daí a relevância de um trabalho de pesquisa que vise a desnaturalização de noções essencialistas em torno da identidade pomerana, pois tal identidade deve ser compreendida como resultado de um processo de construção no qual estão envolvidos diferentes forças e variados interesses.

Sob um panorama mais abrangente, no tocante a teorias, crenças e valores que cercam o conceito de raça e suas variantes, percebemos historicamente que o pensamento racial brasileiro foi, e ainda é, marcado por uma série de visões que se entrecruzam na construção de uma identidade nacional, sendo a questão étnico-racial uma das mais presentes no embate intelectual atual. Deveras, o Museu, como espaço de memória, é uma instituição que precisaria guardar especial atenção para não apagar, em seus processos de seleção de narrativas, marcas do passado por meio das quais se pode pensar em transformar o presente. Logo, as narrativas em torno do preconceito racial são um conteúdo que, longe de ser esquecido, deve ser recorrentemente trazido à tona.

 

A residência doméstica transformada em Museu como símbolo do que efetivamente foi esquecido

A Lei nº 085/1991, que dispõe sobre a denominação do Museu, informa que o prédio em questão foi cedido em comodato pela Coope-AVI (Cooperativa Avícola) com fim específico para implantação do Museu. No entanto, os depoentes referem-se genericamente ao local como a antiga Estação de Fruticultura: "havia algo em torno de 600 qualidades de uvas, mas como estragava com muita facilidade, a Estação não deu certo" (Depoimento de Ilda Soares Vieira, funcionária do MIP)7.

O dado de interesse para esse artigo, por aludir às dinâmicas étnico-raciais, é o fato de que uma das pouquíssimas famílias negras existentes na cidade de Santa Maria de Jetibá foi desalojada de onde morava para a instalação do museu. Realmente, os integrantes da família R. (identificada aqui pela letra do sobrenome e formada pelo casal A.R. e A., assim como os seus filhos e filhas, sendo a seguir citados M.L.R., e I.L.R.) foram os últimos a morar na casa (a estação de Fruticultura vinculada ao estado do Espírito Santo) onde, depois de uma grande reforma, foi instalado o Museu-casa.

A.R. e A. foram de Vitória para Santa Leopoldina, onde se conheceram, tendo casado em Santa Maria (um distrito, à época), em meados dos anos 1940, localidade na qual tiveram seus 13 filhos. Moraram na casa em foco por cerca de dez anos, e se viram obrigados a sair (a casa estava com rachaduras e corria risco de cair) contra sua vontade e sem nenhuma indenização ou ação compensatória. Após a retirada da família R., em 1980, a casa ficou fechada por cerca de dez anos, em função da falta de água e necessidade de reformas e, conforme já visto, restaurada em 1991.

Não tem nada que identifique a família que já morou lá antes de ser museu, nada. [...] Eles pegaram o local só, e tá lá os imigrantes. [...] Eles não quiseram saber a história da casa, eles não quiseram colocar a história. Só usar o local pra fazer o museu (Depoimento de M.L.R., 2016).

As circunstâncias de tal episódio, entretanto, servem como metáfora de uma dinâmica em que o deslocamento de negros e o estabelecimento da memória pomerana se entrecruzam em domínios simbólicos, concretos e reais. Sobretudo porque a presença de racismo entre os pomeranos de Santa Maria do Jetibá foi efetivamente ressaltada pelo depoimento da família R. Em narrativa sobre essa casa, Dona A. afirmou: "Eles não gostavam da gente. Eles achavam ruim o pessoal escuro, chamava de preto, urubu, eles falavam..." (Depoimento de A., 2016).

O pai dessa família, A.R., por ser encarregado de turma, e responsável pelo campo, tinha a permissão de morar na casa destinada aos chefes da Estação de Fruticultura, o que anteriormente também ocorrera com outros encarregados da administração técnica da estação. Estação que, além de viveiro de experimentação e produção de mudas, era o órgão local do Estado do Espírito Santo para apoio aos agricultores da região. Outros funcionários moravam em outras casas da Estação, numa espécie de "colônia", termo usado no depoimento dado. A maioria dos trabalhadores era negra, mas os chefes que vinham de fora do município (porque o órgão era estadual) eram brancos. Ora, como a família R. era composta por muitos filhos, o quintal da velha casa que viria a se tornar o museu era frequentado por muitas crianças, em ocasiões em que às vezes também surgia o racismo:

Eu não sei por que eles não aceitavam a gente, eu não sei se é por causa da cor, sei lá. Eles não gostavam muito. Tinha uns que eram muito legais mesmo, brincavam com a gente, aceitavam legal. Tinha uns, eu não sei se era por causa dos pais, que não aceitavam, não encostavam nem na gente com medo de ficar preto (Depoimento de I.L.R., 2016).

A questão do idioma, central na identidade pomerana, também representava ou aproximação, ou afastamento diante dos negros.

A gente ficava assim sabia que eles tinham preconceito com a gente, aí a gente começou assim a não se interessar muito pela língua deles. Hoje em dia a gente se arrepende, porque poderia estar igual ao meu irmão que aprendeu falar, e fala com eles de igual pra igual. Tem uns que na hora que tão conversando com ele até erram o pomerano, de ficar admirados dele tá falando o pomerano. E eu nunca me interessei não, de aprender não (Depoimento de M.L.R., 2016).

Em que pese o fato de alguns depoimentos remeterem a situações de racismo vivenciadas na infância, nos idos dos anos 1970 e 1980, os pronunciamentos marcaram continuidades e rupturas, ao longo do tempo:

- Mas ainda tem isso, tem muito ainda, nossa.

- Isso tem ainda.

- Ainda tem. Apesar de agora ter bastante gente de fora aqui, pessoas mais de cor aqui. Tá bem misturado, mas tem algumas que... e por incrível que pareça, as pessoas com quem a gente sofria preconceito com elas, quando a gente era mais nova, agora são superamigos nossos. Todos se entendem com todo mundo aqui. [...]

- A gente se comunicava legal e tudo, mas só que tinha certas coisas que a gente não... tipo no clube. Quando fizeram o clube, ali a gente não entrava, eles não deixavam a gente entrar. Eles falavam que não era pra entrar, eles chamava "os seus negros, não sei o que, não entra aqui". Mas depois, agora, depois com o tempo eles foram aceitando, entendeu?! Aí houve envolvimento das garotas com os garotos, dos negros com os brancos, e foram, como é que se diz, foram aceitando mais, entendeu?! [...]

- Aí depois com o tempo, eles foram é... aceitando todo mundo junto, aquela confusão toda de branco com preto, como diz o outro, até hoje você pode ver que tá tudo casado. Na minha família mesmo tem um monte casado com pomerano8 (Depoimentos de M.L.R. e I. L. R., 2016).

Esse esquecimento da existência de uma família negra na casa que deu origem ao museu possibilita algumas considerações, posto que permite a diferenciação entre dois apagamentos sociais distintos. De um ponto de vista macroestrutural, o esquecimento, nos registros do museu, do projeto de branqueamento como um dos principais fatores da imigração pomerana para o Brasil aponta para o idealismo de uma história sem conflitos, sem tensões, sem opressões. No que diz respeito à imigração pomerana, é possível afirmar que havia uma permanente contradição entre projetos distintos de identidade, com acepções ideológicas igualmente divergentes, conquanto marcadas por traços racistas. De um lado a proposta era a manutenção de uma identidade pomerana idealizada a partir da Europa, mantida através de um isolamento social, com casamentos entre o próprio grupo, a priori, preservando a pureza de suas origens arianas. Mas do outro também avultava a proposta eugenista da elite brasileira: embranquecer o país visando apagar a suposta inferioridade das raças não brancas, através da mestiçagem.

Contudo, não obstante a dinâmica macrossocial permita uma relevante análise histórica diacrônica, os micropoderes presentes nas experiências de negros que viveram entre os pomeranos também devem ser destacadamente aludidos, pois induzem à reflexão acerca do impacto pessoal do racismo nessa comunidade.

Com efeito, um contraponto interessante à invisibilidade do negro no museu pomerano de Santa Maria do Jetibá pode ser ressaltado frente as práticas discursivas desenvolvidas em Vila Pavão, um município próximo, também no estado do Espírito Santo. Isso porque a principal festa de Vila Pavão, distante apenas 200 km de Santa Maria do Jetibá, é um evento de integração étnico-racial. Tal festa, cuja criação deu-se em 1989, passou a ser conhecida como Pomitafro, baseada na aglutinação das iniciais dos termos pomeranos, italianos e afro-brasileiros, mais relevantes grupos étnicos radicados na região (Küster, 2015).

Uma análise da construção identitária de Vila Pavão permite pôr em relevo uma série de assimetrias em relação ao museu pomerano da cidade vizinha de Santa Maria do Jetibá - foco deste artigo - no que tange, principalmente, à questão do racismo. Sobretudo porque a Pomitafro, também como lugar de memória, foi coletivamente se constituindo a partir de uma mobilização política ensejada pelo desejo de Vila Pavão (originalmente chamada de distrito de Córrego Grande) se emancipar do município de Nova Venécia, fato que efetivamente ocorreu em 1o de julho de 1990, com a realização de um plebiscito local (Souza, & Andrade, 2015). A questão é que, sócio-historicamente, negros, italianos e pomeranos (o grupo mais expressivo), viviam, na região de Vila Pavão, em comunidades isoladas umas das outras. Assim, numa época em que, sob influência da Constituição de 1988, se preconizava o combate ao racismo, alguns líderes locais - com destaque para o professor Jorge Küster Jacob, membro fundador da Associação Pomerana de Vila Pavão e um dos criadores da Pomitafro (Seibel, 2016) - tomaram a iniciativa de incentivar debates de emancipação política de modo concomitante à integração e conciliação das etnias locais.

Dessa forma, a festa, inicialmente promovida como atividade cultural de uma escola local, transformou-se, ao longo dos anos, no principal evento do novo município. Ou seja, a Pomitafro se constituiu como uma prática discursiva contra a discriminação racial, na qual as narrativas em torno do preconceito não foram esquecidas, mas, ao contrário, recontadas com vistas à superação, inclusive com a ênfase de que os pomeranos historicamente foram preconceituosos em relação aos negros.

 

Considerações finais

Frente ao objetivo de analisar o MIP enquanto lugar de memória e esquecimento de dinâmicas racistas e étnico-raciais, este artigo pode ressaltar o fato de que a referida instituição olvida a imigração como processo político de branqueamento e invisibiliza a presença negra e o racismo estrutural entre os pomeranos.

Especificamente no estado do Espírito Santo, mas também em todo o país, a conformação da questão cultural se dá de modo peculiar. Como nos mostra Kuster (2015), o referido estado se consolidou desde base multicultural em que, ao longo de todo o processo histórico, as relações inter-éticas foram e continuam sendo uma constante, cabendo acrescentar o silenciamento de diversas histórias dolorosas, principalmente no que concerne a grupos minoritários.

No espaço do MIP as memórias do grupo pomerano se fazem presentes como elementos de preservação identitária, mas também identificamos esquecimentos, como, por exemplo, a questão do negro, estritamente vinculada à imigração pomerana como projeto de branqueamento. A casa pomerana, residência familiar transformada em museu, constitui, portanto, um espaço que congrega lembranças e esquecimentos em uma mesma narrativa histórica.

Verificou-se na pesquisa de campo que, além das referidas fotografias dos negros junto à comunidade pomerana, uma das poucas famílias negras do município de Santa Maria de Jetibá teve direta relação com a edificação que foi transformada em museu: a família R., desalojada da referida casa para instalação, posterior, do MIP, em 1980, após a residência ser condenada por problemas na estrutura.

O dado pertinente de análise foi que - mesmo estando presente no acervo fotográfico do museu e fazendo parte inclusive da história do edifício que o abrigou e que é valorizado por se tratar de uma arquitetura típica adotada pelos pomeranos no Brasil - os negros foram sistematicamente invisibilizados na descrição da exposição museológica. De fato, não foi feita qualquer referência aos negros das fotos ou à família que habitou a residência antes de ela se tornar museu. A instituição, portanto, que inicialmente pretendia ter configuração de Museu-casa, sequer reconheceu ser relevante toda a história da própria casa, destacando-a apenas como Estação de Fruticultura, função administrativa e comercial, totalmente desvinculada da ideia de moradia.

Desse modo, entende-se que a contribuição deste artigo ao horizonte da pesquisa étnico-racial, consequentemente, se configura no campo da descoberta de histórias que não foram contadas, ou silenciadas por todos, de negras memórias e olvidamentos embranquecidos.

 

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Endereço para correspondência:
Rosimary Paula Ferreira Vargas
paulafvargas@hotmail.com

Marcele Linhares Viana
marcelelinhares@gmail.com

Maria Cristina Giorgi
cristinagiorgi@gmail.com

Alexandre de Carvalho Castro
o.aken@uol.com.br

Submetido em: 03/10/2017
Revisto em: 09/11/2017
Aceito em: 10/04/2018

 

 

1 Sua formação administrativa deu-se através da alteração do Distrito de Jequitibá, pertencente, até então, a Santa Leopoldina, pelo Decreto-lei Estadual nº 15.177, de 31/12/1943, para Jetibá. Foi elevado à categoria de município com a denominação de Santa Maria de Jetibá pela Lei estadual nº 4.067, de 06/05/1988, desmembrando, assim, de Santa Leopoldina. Sua sede se deu no antigo distrito de Jetibá, atual Santa Maria de Jetibá.
2 Segundo Tressmann (2005), na Alemanha, o idioma pomerano é praticamente desconhecido, sendo falado apenas no Brasil.
3 Dentre os municípios colonizados por imigrantes pomeranos estão: Santa Maria de Jetibá, Santa Leopoldina, Domingos Martins e Santa Teresa (região serrana, ou Kulland, como se diz em pomerano); Itarana, Itaguaçu, Laranja da Terra, Afonso Claudio e Baixo Guandu (região das chamadas "terras quentes" ou Warmland) e Colatina, Pancas, São Gabriel da Palha, Barra de São Francisco e Vila Pavão (região norte ou Nord) (Melo, & Souza, 2015; Tressmann, 2005).
4 É de importante destaque, acerca dessa temática, a publicação Pomerisch-Portugugijsisch Wöirbau - Dicionário Enciclopédico Pomerano-Português (Tressmann, 2006).
5 A questão do idioma pomerano é de tanta relevância na região que foi sancionada pelo município de Santa Maria de Jetibá a Lei nº 1.136/2009, que estabelece a cooficialização da referida língua e o incentivo ao aprendizado nas escolas e meios de comunicação locais.
6 Informações contidas em entrevista concedida a Rosimary Paula Ferreira Vargas, em 2016.
7 Ilda Soares Vieira é funcionária do Museu da Imigração Pomerana desde sua construção, em 1991. A entrevista foi concedida a Rosimary Paula Ferreira Vargas, nas dependências do Museu, em 23/10/2015.
8 O acesso à família R. se deu em função do site mantido de forma colaborativa entre a pesquisadora Rita de Cassia Rosa, e um grupo de alunos do 4º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila de Jetibá, do município de Santa Maria de Jetibá. A elaboração desse site < http://www.museudaimigracaopomerana-vilajetiba.com/> decorreu do Seminário Imagem e Memória do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), ofertado pela professora Gerda Schütz-Foerste, no primeiro semestre de 2014. A entrevista com a Família R. foi concedida a Rosimary Paula Ferreira Vargas na residência da senhora A.L.R., em 24/02/2016.

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