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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versión On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.2 Rio de Janeiro mayo/agosto 2018

 

ARTIGOS

 

Diagnóstico diferencial da melancolia em Freud e Lacan

 

Differential diagnosis of melancholia in Freud and Lacan

 

Diagnóstico diferencial de la melancolía en Freud y Lacan

 

 

Rosane Zétola Lustoza

Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba. Estado do Paraná. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em Luto e Melancolia, Freud propõe como três premissas básicas da melancolia: a perda do objeto, a ambivalência afetiva e a identificação com o objeto perdido. Tais critérios constituem condição necessária, mas não suficiente para o estabelecimento do diagnóstico. Partindo do ensino de Lacan, que supõe uma diferença estrutural entre as psicopatologias, surge a necessidade de distinguir claramente a melancolia da depressão neurótica. Assumindo que a melancolia é um tipo clínico da psicose, esse trabalho visa delimitar os critérios para um diagnóstico diferencial, contemplando as contribuições lacanianas sobre o tema. Além disso, propõe-se um retorno à leitura de Freud através de Lacan, para quem o objeto perdido é repensado a partir da noção de objeto a. Conclui-se que a certeza psicótica é a quarta premissa da melancolia.

Palavras-chave: Melancolia; Psicose; Diagnóstico estrutural.


ABSTRACT

In Mourning and Melancholia, Freud proposes three basic assumptions about melancholia: the object's loss, the affective ambivalence and the identification with the lost object. Such criteria are necessary conditions, but not enough to establish a diagnosis. Based on Lacan's teachings, that suppose a structural difference between psychopathologies, the necessity of clearly distinguishing melancholia from neurotic depression appears. Assuming that melancholia is a clinical type of psychosis, this research aims to delimitate the criteria for a differential diagnosis, considering the contributions made by Lacan about the theme. Furthermore, it is proposed a return to Freud through Lacan, for whom the lost object is resumed from the idea of the object a. It is concluded that psychotic certainty is the fourth assumption of melancholia.

Keywords: Melancholia; Psychosis; Structural diagnosis.


RESUMEN

En Luto y Melancolía, Freud sugiere como tres premisas básicas de la melancolía: la pérdida del objeto, la ambivalencia afectiva y la identificación con el objeto perdido. Tales criterios son condiciones necesarias pero insuficientes para establecer el diagnóstico. A partir de la enseñanza de Lacan, que supone una diferencia estructural entre las psicopatologías, surge la necesidad de distinguir claramente la melancolía de la depresión neurótica. Asumiendo que la melancolía es un tipo clínico de la psicosis, este trabajo tiene como objetivo definir los criterios para un diagnóstico diferencial, contemplando las contribuciones lacanianas sobre el tema. Además, se propone un retorno a la lectura de Freud a través de Lacan, para quien el objeto perdido es repensado desde la noción del objeto a. Se llegó a la conclusión de que la certeza psicótica es la cuarta premisa de melancolía.

Palabras clave: Melancolía; Psicosis; Diagnóstico estructural.


 

 

Introdução

O problema do diagnóstico diferencial entre a melancolia e a depressão neurótica é típico da orientação lacaniana de leitura da obra de Freud, uma vez que é somente a partir de tal abordagem que o problema de uma diferença estrutural adquire relevo. Em geral, mesmo o observador comum pode concordar que há diferenças de grau importantes entre os casos de melancolia verdadeira e os de depressão neurótica; porém, a interpretação lacaniana busca avançar no terreno de uma diferença mais fundamental, na medida em que tais quadros manifestariam estruturas clínicas cujas lógicas são distintas, exigindo cada uma delas uma forma específica de manejo. Desse modo, isolar os critérios diferenciais básicos que definem a melancolia como tipo clínico da psicose é de suma importância para a direção do tratamento.

Dentro da Psicanálise, encontra-se um esforço para sistematizar os critérios necessários para o diagnóstico diferencial da melancolia no texto Luto e melancolia (Freud, 1915/2011). Conforme será demonstrado ao longo do trabalho, entende-se que o artigo freudiano não fornece, contudo, elementos suficientes para fundamentar uma apreensão estrutural da melancolia. Por essa razão, buscou-se realizar, a partir da obra de Lacan, uma ampliação da descrição freudiana inicial. A leitura lacaniana não só aporta contribuições originais para o problema do diagnóstico diferencial da melancolia, como também ilumina retroativamente certas passagens mais enigmáticas de Luto e Melancolia.

Na realização dessa tarefa, Lacan decidiu não ignorar a existência de toda uma tradição de discussões na Psiquiatria clássica sobre o tema. Isso não ocorreu simplesmente pelo fato de que sua formação em psiquiatria naturalmente o vocacionava a tentar esse tipo de diálogo. A razão mais profunda é que a Psicanálise é debitária da Psiquiatria sob muitos aspectos:

a psicanálise, em certa medida, também não deixa de ser herdeira da clínica psiquiátrica. Exemplo eloquente é a constatação de que as estruturas clínicas psicanalíticas (neurose, perversão, psicose) derivam de categorias psiquiátricas correspondentes (neuroses, perversões, psicoses funcionais (Barreto, & Iannini, 2017, p. 35).

Se isso é verdade, trata-se também para a Psicanálise de poder se apropriar daquilo que ela herdou, podendo ao mesmo tempo tomar distância daquilo que não lhe concerne nesse legado.

Além disso, lembremos aqui que há uma íntima afinidade entre Psicanálise e Psiquiatria, na medida em que ambas conduzem sua diagnóstica pela via da palavra. Nisso a Psiquiatria se distingue claramente de outros ramos da clínica médica:

enquanto na medicina em geral [] a prova da doença podia ser obtida no corpo, na psiquiatria, independente da crença psico ou organogênica da doença, era principalmente através da fala do paciente que se tentava apreender as provas da loucura (Ferreira, & Veras, 2007, p. 67).

Por isso, Lacan esforçou-se em estabelecer uma interlocução com a Psiquiatria; porém, tal conversação só pôde ser profícua porque Lacan não cedeu à tentação do ecletismo, ou seja, de selecionar as teses de cada disciplina que julgasse mais conveniente. O diálogo da Psicanálise com a Psiquiatria não implica que o psicanalista se despoje dos princípios fundamentais de seu referencial de leitura, mas sim que os assuma, para que seu lugar discursivo possa ser corretamente apreciado.

No que concerne à questão da psicose, um tópico especialmente valorizado por Lacan na Psiquiatria clássica foi a definição de seus fenômenos elementares. Tal interesse pode parecer estranho à primeira vista, na medida em que uma orientação estrutural se caracteriza justamente por buscar uma inteligibilidade que ultrapassa o plano da descrição fenomenal. Esse ponto exige uma justificativa metodológica especial: a nosso ver, o interesse de Lacan pelos fenômenos elementares sugere justamente que o estruturalista não deve desprezar o fenômeno, mas sim articulá-lo à posição subjetiva do paciente.

O objetivo do artigo é então circunscrever os critérios que diferenciam melancolia de depressão neurótica a partir da perspectiva de Jacques Lacan. Considerou-se aqui particularmente de que forma a referência original a Freud pôde ser enriquecida no diálogo com a Psiquiatria Clássica, o que levou a uma construção mais precisa da melancolia como categoria propriamente psicanalítica. Para isso, buscou-se circunscrever de que forma a noção psiquiátrica de fenômeno elementar pôde servir a Lacan como um operador que ampliou as hipóteses freudianas iniciais sobre o tema. Em razão da necessidade de redução do escopo do artigo, elegemos como interlocutor privilegiado o psiquiatra Jules Séglas, por considerarmos suas contribuições sobre a questão particularmente luminosas.

 

Os fenômenos elementares da melancolia

Com o intuito de isolar o critério diferencial da melancolia, nosso ponto de partida será a descrição dos fenômenos elementares que caracterizam essa afecção. A categoria dos fenômenos elementares foi desenvolvida pela psiquiatria clássica no final do século 19 e começo do século 20. Formulada originalmente no interior da tradição clínica organicista, a noção de fenômenos elementares receberá dessa corrente sua marca de batismo. Segundo a psiquiatria organicista, as doenças mentais seriam causadas por fatores biológicos, de tal forma que a presença de condições orgânicas especiais traria como consequência o aparecimento de fenômenos psíquicos bizarros, que introduzem uma ruptura na continuidade do vivido, suspendendo tanto a coerência lógica quanto a compreensão da experiência como totalidade significativa.

Tais fenômenos seriam considerados como elementos por constituírem as unidades mais simples e básicas que compõem o processo psicopatológico. Portanto, o solo no qual floresce a noção é o de uma semiologia atomística, intimamente ligada a uma determinada concepção dentro do organicismo, o mecanicismo. Este buscaria o fundamento da doença na hipótese da ocorrência de uma lesão pontual (Simanke, 2002, p. 35).

Tais fenômenos disruptivos seriam uma espécie de corpo estranho, ao qual posteriormente a mente reagiria tentando produzir uma resposta que pudesse dar conta dessa emergência originariamente desprovida de sentido. Partindo dessa hipótese, os organicistas se empenharão em separar os fenômenos elementares, que formariam uma espécie de núcleo primitivo da psicose, dos fenômenos considerados acessórios ou secundários, os quais se acrescentariam a posteriori (Álvarez, 2009). Tal orientação, em que se distingue o que é essencial e o que é derivado no processo psicótico, abrirá todo um campo específico de pesquisas em psicopatologia.

Tal campo de pesquisas não necessariamente seguirá a orientação atomística do mecanicismo. As perspectivas psicogenéticas, por exemplo, ressaltarão a ideia da doença como fenômeno total, em vez de elementar (Simanke, 2002). Porém, algo importante será mantido, mesmo em teses psicogenéticas: a ideia de uma separação entre processos primários e secundários, ou seja, a ideia de que há uma linha de fronteira que distingue o que é imposto por uma determinação orgânica e o que é tentativa de reorganização posterior.

Mesmo quando a destacamos de seu contexto primário de justificativa, a pesquisa sobre os fenômenos elementares pode ser de extrema utilidade para o psicanalista. Isso porque tais fenômenos podem estar presentes antes mesmo do desencadeamento da psicose, o que transforma sua detecção num instrumento diagnóstico importante; sobretudo quando se desconfia de uma psicose silenciosa, não deflagrada.

No caso da melancolia, encontra-se uma rica descrição de seus fenômenos fundamentais na obra de Séglas (1895). Conforme o eminente psiquiatra francês, as manifestações mais ruidosas da melancolia geralmente eclodem após um longo período de incubação, também chamado por ele período prodrômico, que é o intervalo de tempo onde já aparecem as manifestações mínimas da doença. Estas podem passar despercebidas para um olhar leigo ou, ainda, ser confundidas com outros distúrbios. O período prodrômico abarca um amplo leque de fenômenos elementares, que poderiam ser subdivididos em três categorias:

1. Fenômenos relacionados ao corpo - Conforme Séglas, os sintomas físicos precedem todos os outros sintomas da melancolia. Tais fenômenos corporais teriam como denominador comum a constituição de um estado cenestésico penoso. Cenestesia é "o sentimento que nós temos da existência do nosso corpo, sentimento que, em estado normal, é acompanhado de um certo bem-estar" (p. 286). Isso quer dizer que "no quadro das nossas representações mentais, alguma coisa corresponde ao nosso corpo, às nossas vísceras, a seu funcionamento, e essa alguma coisa pode se alterar" (p. 286).

Séglas nota que haverá, na melancolia, a experiência de uma desconexão entre as diversas dimensões da corporeidade: "As imagens [mentais] interiores não são mais adequadas aos seus excitantes normais; e as sensações, mesmo regularmente transmitidas, só chegam à consciência como se fossem impressões alarmantes por sua estranheza" (p. 287). Ou seja, os próprios excitantes internos, que corriqueiramente tomaríamos como sendo o que há de mais nosso, devêm, contudo, estranhos, alheios a nós mesmos. Na melancolia, tal fato se traduz num estado cenestésico penoso, cujas manifestações são multiformes: fadiga extrema, sensação de um vazio na cabeça, zumbidos, palpitações, perda do apetite, constipação, suspensão da menstruação, sonolência ou insônia etc.

2. Fenômenos relacionados ao pensamento - No entender de Séglas, as perturbações das funções do pensamento vêm na sequência dos distúrbios corporais. São classificadas nessa rubrica as desordens próprias às operações intelectuais: dificuldade de fixar a atenção, de agrupar ideias, de seguir um raciocínio, de compreender perguntas, de evocar e conservar lembranças; desenvolvendo-se assim um certo automatismo do pensamento, como se este adquirisse uma lentidão que não depende da iniciativa do sujeito. Note-se que as alterações aqui concernem mais às características formais do pensamento, não dizendo respeito ao seu conteúdo.

Há também uma perturbação do nexo entre o pensamento e a ação, que se traduz sob as diferentes formas de abulia motora: apatia, lentidão da marcha, discurso lento e monótono, negligência em relação ao trabalho, à higiene e à conservação de si etc.

3. Dor moral - Séglas situa a dor moral como de aparição mais tardia, em comparação com os outros dois fenômenos. Para ele, a dor moral é uma consequência da percepção pelo sujeito das mudanças corporais e mentais. Apesar de sua emergência posterior, a dor moral seria o sintoma mais característico da melancolia, que a diferencia de outras afecções.

Uma vez que apareça, ela tende a invadir todo o campo da consciência que, como diz Schuele, não contém então nada além da ideia-dor. E do mesmo modo que uma dor física intensa atingindo nossos sentidos é acompanhada de anestesia, a dor moral determina no melancólico um estado de anestesia (p. 290).

Qual é essa ideia-dor que tanto mobiliza o sujeito e que se torna o centro de atração em torno do qual tudo o mais gravita? Tomaremos como exemplo o caso de uma paciente de Séglas, de quem o psiquiatra reproduz algumas falas:

Eu me deixava absorver o tempo todo em minha tristeza profunda porque eu via que minhas ideias não eram mais como antes. O certo seria querer reagir, mas eu não podia. Tudo me inquietava, eu via tudo negro, tudo me entediava; a menor coisa me fazia sofrer; por qualquer coisa eu devaneava []. Eu me dizia: estou perdida, não sou boa para mais nada, eu não vou me curar, seria melhor desaparecer, ir embora ou me matar. Que estranho estar assim! O que eu fiz para estar assim tão inquieta, o que vai ser de mim? (p. 293-294).

Eis um sujeito que não espera que mais nada de bom lhe aconteça; não porque o mundo seja fundamentalmente mau, mas porque a nocividade residiria no próprio Eu. Essa nocividade do Eu é apontada pelo autor:

O melancólico não acusa os outros, como já foi dito (Guislain, Falret), ele acusa a si mesmo. Se seu delírio se estende ao mundo exterior, às pessoas que lhe são próximas, à sua família, à sociedade, não é para torná-las responsáveis por seus sofrimentos. Ao contrário, ele teme ser para todos um ser nocivo, teme atrair a ruína, a desonra e a morte para a sua família, para a sociedade, em virtude de seus crimes, suas incapacidades, suas desistências (p. 306).

O aspecto pessimista das falas do paciente não deve nos extraviar do ponto fundamental; não se trata simplesmente de esperar resignadamente o advento do pior, mas de tomar o Eu como sendo o ponto de origem a partir do qual todos os infortúnios serão gerados. Este é inclusive um ponto central na diferenciação com a paranoia: enquanto na melancolia o movimento do pensamento é dito centrífugo (do Eu para o mundo), na paranoia ele seria centrípeto (do mundo para o Eu).

É possível iluminar essa questão da ideia-dor a partir da Psicanálise. Para a teoria freudiana, o Eu aqui se oferece como objeto de maus-tratos ao Supereu: doravante, a paciente será a perdida, a imprestável, a incurável, a sem salvação. Há aqui uma crítica insistente que toma como alvo o Eu, submetendo-o a um insulto sem trégua. Ora, se o Supereu se manifesta como crítica, lembremos que, para Freud (1923/2006), "o sentimento de culpa é a percepção no Eu que responde a essa crítica" (p. 65). De onde se conclui com Freud que todo esse quadro se torna mais claro à luz da noção de sentimento de culpa. A ideia-dor diz respeito a uma culpa fundamental, uma culpa que o sujeito carrega consigo por toda parte e que antecede a qualquer crime que ele tenha cometido.

Importa notar que, no estado de dor moral, o sujeito suporta resignadamente a culpa e se submete aos suplícios que lhe são infligidos, sem enunciar ainda as razões que justificariam sua culpa. Este quadro coincide com o que Séglas (1895) chama de melancolia simples ou melancolia sem delírio. O autor considera não haver delírio porque a paciente em questão não formulou uma causa para a sua culpa. O delírio é uma tentativa de cura porque o sujeito se esforça por construir uma resposta capaz de tornar inteligíveis as razões da sua nocividade fundamental. Contudo, a emergência do delírio é sempre posterior e secundária à dos três fenômenos elementares supracitados (estado cenestésico penoso, perturbações intelectuais e dor moral), constituindo ele um esforço de interpretação pelo sujeito dos fenômenos que o assediam.

Para Freud (1923/2006), se a culpa antecede o pecado cometido, é bem provável que o sujeito venha atribuir a causa da culpa a um falso pecado. É espantoso notar nesse ponto a coincidência entre o que a teoria freudiana prevê e o que Séglas (1895) descreve: para este, o delírio na melancolia seria um "delírio retrospectivo, podendo incidir tanto sobre um fato puramente imaginário, quanto sobre um fato que realmente aconteceu, mas cuja importância e alcance o doente exagera" (p. 308). O psiquiatra dá como exemplo um paciente melancólico de 30 anos, que caiu doente há apenas alguns meses, mas que nem por isso hesitou em localizar a causa da sua desgraça no fato de não ter feito direito sua primeira comunhão aos 12 anos!

 

A caracterização da melancolia como psicose

A análise dos fenômenos elementares da melancolia por si só pode parecer ao leitor insuficiente para dar conta do problema do diagnóstico diferencial. Afinal de contas, seriam tais fenômenos decisivos para estabelecer um critério nítido de distinção entre melancolia e depressão neurótica? Ao nos depararmos com falas como a da paciente de Séglas, é irresistível a tentação de nos identificarmos a ela: quem nunca se declarou inútil, ou teve vontade de partir ou morrer? Uma vez que a Psicanálise lacaniana visa uma diferença entre as estruturas, deve-se avançar na busca de um critério.

O fato é que a pesquisa do fenômeno elementar não pode ser separada da busca da posição do sujeito. Somente ao localizar o sujeito pela via da escuta, pode o analista determinar se um determinado material é ou não um fenômeno elementar. Nesse ponto, recorreremos ao trabalho de Álvarez Estudios sobre la psicosis (2009).

Segundo o autor, a estrutura psicótica é a única que permite ao sujeito fazer a experiência da certeza. As peculiares características da certeza psicótica podem ser melhor concebidas quando contrapostas à crença neurótica. O neurótico é um crente, o que significa que suas afirmações estão sempre abertas à contestação ou à confirmação, numa dialética que o deixa sempre à espera da próxima ressignificação. Talvez essa seja uma das razões pelas quais o neurótico precisa se associar em grupos, esperando assim que a concordância que encontra entre seus semelhantes possa protegê-lo provisoriamente do deslizamento do sentido. Já o psicótico é alguém que pode ter acesso à certeza, ou seja, a uma afirmação que não está aberta à verificação e que inclusive prescinde inteiramente do assentimento do Outro. Encontrar a posição subjetiva da certeza é, portanto, um critério diagnóstico seguro para o analista.

Para efeito diagnóstico, Álvarez sugere que se subdivida a certeza em duas dimensões, distinguindo-se entre as experiências de certeza e o axioma da certeza.

 

As experiências de certeza

Tais experiências estão presentes em todas as psicoses, "na medida em que somente as psicoses possibilitam que aconteçam experiências à margem de qualquer vacilação e relativas ao sujeito" (p. 178). Grande parte do que a Psiquiatria Clássica descreveu como fenômenos elementares poderiam ser postos sob essa rubrica. Entre eles, destacam-se em primeiro lugar as experiências xenopáticas, cuja característica maior é a perda de controle de seu corpo e de sua mente pelo sujeito; este passa então a ter certeza de estar sob a influência de um poder enigmático e alheio a ele mesmo; o que será vivido como fragmentação da unidade do Eu. O despedaçamento pode ser experimentado ao nível do corpo, como ocorre, por exemplo, na convicção de que os órgãos do corpo estão se transformando, de que partes do corpo não lhe pertencem, etc. A fragmentação pode atingir também a mente, sob a forma de interferência de pensamento, aceleração de pensamento etc. A xenopatia é prevalente na esquizofrenia.

Já as experiências de autorreferência dizem respeito a fenômenos nos quais o sujeito se sente diretamente interpelado por pessoas ou fatos, os quais se endereçam a ele como destinatário inequívoco. Nesse caso, a integridade do Eu é mantida. São exemplos a intuição (na qual o paciente tem acesso à revelação súbita de uma verdade plena) e a percepção delirante (na qual o paciente lê nos objetos do mundo signos destinados a ele). A autorreferência é prevalente na paranoia.

Por último, Álvarez acrescenta que na melancolia prevaleceriam as experiências de culpa; que a nosso ver equivaleriam ao estado de dor moral descrito por Séglas (1895). Obviamente, não se trata da culpa neurótica. Para esclarecer esse ponto, seria importante retornar ao que nos foi ensinado por Freud (1923/2006): na neurose, "o sentimento de culpa é super ruidoso, mas não pode se justificar para o Eu. Consequentemente, o Eu do paciente se rebela contra a imputação de culpa e busca o apoio do médico para repudiá-la" (p. 64); ao passo que na melancolia "o Eu não se arrisca a fazer objeção; admite sua culpa e submete-se ao castigo" (p. 64). Em outros termos, o melancólico não se arrisca a fazer objeção por ter certeza da própria culpa, enquanto o neurótico apenas acredita ser culpado, mas não tem certeza; o que o leva a ter dúvidas e por vezes a se revoltar contra o seu pesado fardo.

Sobre os demais fenômenos elementares presentes na melancolia, arriscamos aqui a hipótese de que tanto o estado cenestésico penoso quanto os distúrbios intelectuais poderiam ser pensados em termos de xenopatia, na medida em que o sujeito experimenta uma perda de controle sobre as funções psíquicas e físicas, em que passam a vigorar o automatismo mental e a autonomização de funcionamento do corpo.

Poderia nos ser objetado que é muito mais difícil identificar a xenopatia nos casos de melancolia do que nos casos de esquizofrenia. Cabe então acrescentar que o fator mais decisivo para o diagnóstico de melancolia seria a ocorrência da dor moral: embora essa estrutura clínica sempre venha acompanhada por transtornos físicos e intelectivos, a dor moral é o critério central de diferenciação da melancolia.

Conforme foi dito, essas experiências de certeza estão presentes em qualquer psicose. Já o axioma da certeza seria encontrado apenas na melancolia e na paranoia, estando ausente na esquizofrenia (Álvarez, 2009, p. 179). Vejamos.

 

Axioma da certeza

Não à toa Álvarez traz a noção de axioma da lógica, uma vez que o axioma é uma proposição que não pode ser demonstrada dentro de um sistema. As consequências podem ser deduzidas a partir da premissa, mas a própria premissa não pode ser deduzida de nenhuma outra afirmação anterior (Blanché, 1967). É evidente aqui a analogia entre o caráter indemonstrável do axioma e o dessa certeza psicótica que prescinde da prova.

Ao analisarmos a melancolia, observou-se como a fase de incubação descrita por Séglas (1895) tem como desfecho a formulação da ideia-dor nuclear: sou culpado. Proposição que não é ainda um axioma, posto que somente ganhará esse status caso o sujeito formule um nexo causal que dê consistência à sua culpa.

A formação de um axioma pertenceria a um tempo lógico posterior da estrutura psicótica, na qual o sujeito consegue elaborar uma premissa em torno da qual todos os fenômenos que o acossam se reorganizariam. Conforme Álvarez (2009), somente a paranoia e a melancolia dariam lugar ao axioma delirante. Lembremos que na esquizofrenia podem estar presentes ideias delirantes frouxas, mas elas não exibem o caráter de princípio organizador nem de permanência no tempo que se espera encontrar de um axioma delirante.

A fim de melhor esclarecer esse ponto, recorreremos a uma vinheta clínica trazida por Kraepelin (1905/1999, p. 63). Uma mulher de 46 anos passou cerca de dois anos cuidando do filho acometido por tifo; surpreendentemente, alguns meses depois seu marido é quem acaba falecendo. A paciente rapidamente desenvolve um delírio em que ela era a serpente do paraíso, que havia desencaminhado o marido (cujo nome era Adão), o qual iria para o inferno por ter se casado com ela. A mulher se recriminava por haver cometido terríveis pecados na sua juventude, e por conta dos seus terríveis erros não só a sua família estava arruinada, mas o mundo inteiro acabaria. Ela escreve ao tribunal, pedindo para ser presa e assinando como o Diabo. Em suma, a paciente desenvolve um axioma que lhe permite delirar - sou culpada porque sou um demônio e cometi pecados tenebrosos. Temos aqui um claro contraste com a paciente de Séglas (1895) acima descrita, uma vez que aquela, embora até chegasse a se perguntar o que fez para merecer um fardo tão pesado, não havia ainda construído qualquer resposta que lhe permitisse sair do estado de perplexidade.

Os delírios melancólicos costumam ser muito pobres, não chegando a constituir um delírio sistematizado - o qual se caracteriza por sua complexidade, concatenação e riqueza de detalhes (Dalgalarrondo, 2000). Normalmente giram em torno de um eixo só, monótono e repetitivo, que apenas repercute e amplifica a dor moral em vez de apaziguá-la.

 

Melancolia e identificação ao objeto perdido

Em Luto e Melancolia (Freud, 1915/2011), o pressuposto básico para o desencadeamento da melancolia será a perda de um objeto de amor, frente a qual o sujeito responderá de uma forma muito peculiar. Diferente do enlutado, o melancólico exibe um gigantesco rebaixamento da autoestima. Freud reconhecerá, nas recriminações com que o melancólico se autoflagela, uma descrição disfarçada das características do objeto amado. Tanto a perda do objeto quanto a identificação ao objeto perdido seriam duas das premissas fundamentais da melancolia para Freud, importantes, portanto, como critério diagnóstico para essa categoria clínica.

Sabe-se que a identificação ao objeto perdido na melancolia não é tão simples de se verificar diretamente na clínica. No esforço de decifrar o enigma dessa famosa identificação regressiva em jogo na melancolia, esse trabalho se inspirou no esquema de leitura de Quinet (2006), que propõe uma análise do objeto perdido nos três registros (imaginário, simbólico, real). Tomamos aqui a liberdade de apresentar o esquema de forma adaptada, tendo em vista o problema que se quer aqui esclarecer.

Qual é o objeto que se perde na melancolia? Freud afirma que é a "perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal, etc" (Freud, 1915/2011). Se o objeto perdido está na mesma série que os ideais é porque ele mesmo ocupou o lugar de suporte do Ideal do Eu para o sujeito (Quinet, 2006, p. 205).

O Ideal do Eu é o ponto de vista a partir da qual o sujeito pode se ver como digno de amor do Outro. No amor narcísico, o sujeito promove uma outra pessoa ao status de Ideal do Eu, o qual passará doravante a desempenhar o papel de instância pela qual o sujeito poderá reconhecer a sua própria imagem como amável.

Além da dimensão Ideal, que chamaremos aqui de simbólica, haveria também outras facetas do objeto amado. O objeto pode ser analisado em sua vertente imaginária, na medida em que funcionar como um semelhante do sujeito. Semelhança não significa que haja uma identidade entre o eu e o outro, mas que ambos se posicionam numa mesma série, sendo portanto elementos homogêneos e passíveis de comparação, resultando daí diferenças de grau (Lustoza, 2006). Basta recordar a típica rivalidade narcísica entre os membros do casal, despertada quando, por exemplo, um dos parceiros se dá conta que o outro é mais inteligente, ou mais rico, ou mais famoso do que ele Justamente na medida em que o parceiro se aproxima da realização de um modelo, ou da imagem daquilo que se gostaria de ser, a rivalidade será acionada com mais intensidade.

Finalmente, o objeto pode ser analisado em sua dimensão real. O objeto aparece então desprovido de sua roupagem imaginária, desvelando-se em seu caráter de elemento excrementício, abjeto, disforme, situado, portanto, fora da simbolização. O objeto perde seu lugar no simbólico e fica, dessa forma, subtraído do véu imaginário que usualmente o recobre, deixando à vista sua dimensão real (Quinet, 2006). Em vez de representar o agalma, o objeto precioso por excelência que provoca nosso desejo, o objeto se torna o palea, o resto indesejável que a ordem simbólica não pôde metabolizar. No caso da melancolia, o objeto cuja sombra cairá sobre o Eu será justamente o objeto em sua dimensão real.

Leader (2011, p. 172) apresenta um caso que ilustra à perfeição a identificação ao real do objeto. Uma paciente melancólica de quarenta e poucos anos narra como as autocensuras foram invadindo gradualmente sua vida. Entre elas, acusações de ser horrível, nojenta; e um imperativo que sentenciava que ela estava condenada à solidão eterna. Após um longo trabalho de análise, foi possível reconstituir o contexto a partir do qual as autorreprovações faziam sentido. Ela sofrera um aborto vinte anos antes. Ao comentar sobre o sangramento com a mãe, esta fez um comentário inadequado sobre o batismo do bebê. Após o aborto, nada mais foi dito sobre o evento. Desde então a vida da paciente mudou radicalmente: ela passou a se sentir morta e vazia, vivendo como um fantasma. Próximo à suposta data do nascimento do bebê, ela ouve uma voz alucinatória que a condena a morrer no dia do parto, o que aceita com resignação.

A mulher um dia se dá conta que a autorrecriminação, por ser nojenta e repugnante, tem relação com um pensamento que lhe ocorreu na hora do aborto, quando ela imaginou como seria o corpo de um feto abortado. Ela usa para descrever o corpo do filho as mesmas palavras com que se autocriticava! Além disso, a alusão da mãe à impossibilidade de batizar o filho a fez pensar que o filho estaria condenado ao limbo eterno - exatamente a punição que ela esperava, ficar só para sempre! A paciente estava identificada ao corpo abortado do filho morto.

Seria, contudo, necessário perguntar se os quadros de melancolia seguem via de regra o paradigma freudiano, conforme o qual as acusações dirigidas ao outro se transformam em acusações dirigidas contra si. Sabe-se que analistas como Klein e Abraham não concordavam com essa colocação de Freud, para eles demasiado restrita (Leader, 2011). Para examinar a questão, cabe antes de mais nada retornar ao texto freudiano.

Pode-se extrair de Luto e Melancolia (Freud, 1915/2011) a existência de uma certa hostilidade fundamental em relação ao objeto amado, independente do que este fez ou deixou de fazer. Tal hostilidade é inclusive incluída no rol das premissas básicas da melancolia, vindo juntar-se às outras duas - a saber, a perda do objeto e a identificação regressiva. O simples fato do objeto desaparecer já basta para evocar em nós essa hostilidade primária: estamos diante de algo que, ao mesmo tempo que é essencial à nossa satisfação, não obedece, contudo, ao nosso comando.

Mesmo na neurose, há casos de luto que se tornam muito complicados pela dificuldade que o paciente tem de elaborar o ódio e a agressividade em relação àquele que morreu (Leader, 2011). Só que na neurose, a hostilidade dirigida ao objeto será recalcada, mas sua existência será conservada sob a forma de lembrança. Já na melancolia a situação é diferente: o laço com o objeto não permanece como lembrança, mas regride para a identificação. O eu alterado pela identificação se torna o alvo da hostilidade.

Contudo, encontra-se em O ego e o Id (Freud, 1923/2006) uma versão diferente da interpretação standard do texto sobre o luto. Ali a hostilidade será localizada primariamente, não no próprio sujeito abandonado, mas naquele que o abandonou. Retomemos nesse ponto o esclarecimento freudiano.

Para Freud, da mesma forma que o objeto de amor ocupa a função de Ideal do Eu, também desempenha o papel de Supereu. "O Supereu preenche a mesma função de proteger e salvar que, em épocas anteriores, foi preenchida pelo pai e, posteriormente, pela Providência ou Destino" (Freud, 1923/2006, p. 70). Sabe-se, contudo, que a proteção fracassará em alguma medida. As adversidades do acaso serão então vividas pelo sujeito como um abandono por parte daquele Outro que o protegia, como se este agora tivesse passado a odiar o sujeito: "o medo da morte na melancolia só admite uma explicação: que o próprio Eu se abandona porque se sente odiado e perseguido pelo Supereu, ao invés de amado. Para o Eu, portanto, viver significa o mesmo que ser amado - ser amado pelo Supereu []" (p. 70). Fica claro que o Eu interpretou os infortúnios do destino como sinal de um abandono por parte do Outro, que passou agora a detestá-lo. Portanto, "quando o Eu se encontra num perigo real excessivo, que se acredita incapaz de superar por suas próprias forças, vê-se obrigado a tirar a mesma conclusão. Ele se vê desertado por todas as forças protetoras e se deixa morrer" (p. 70).

O melancólico interpreta o infortúnio como uma perda do amor do Supereu. A perda do lugar que o fazia amável aos olhos do Outro leva o sujeito a se despir da vestimenta narcísica com que se recobria. Em vez de se identificar à imagem idealizada que fascina o olhar do Outro, o sujeito passa a se identificar ao resto largado, abandonado, rejeitado pelo Outro. Ele se torna alvo da hostilidade desse Outro que o abandonou e se deixa morrer.

Em síntese, a hipótese do nosso artigo é então que a identificação ao objeto como real pode dizer respeito tanto ao dejeto que o Outro se tornou para mim, quanto ao dejeto que me tornei para o Outro. Essa ampliação de paradigma da melancolia, onde a identificação à dimensão real do objeto passa a concernir tanto ao Sujeito quanto ao Outro, permite uma leitura mais acurada dos casos clínicos. No próprio caso da paciente de Leader (2011) acima discutido, torna-se possível aclarar a origem de um outro grupo de acusações que a acometia com frequência, a de que ela não conseguia fazer nada certo. Na análise, ela pôde ligar a recriminação com que tanto se fustigava às críticas as quais era constantemente submetida pela mãe desde a infância. A moça aparecia aos olhos da mãe como alguém que sempre fazia tudo errado e que se comportava de modo inapropriado. Portanto, ela está aqui identificada à posição de objeto da mãe.

 

Melancolia e narcisismo

Há aqui uma questão pertinente a ser levantada. Freud (1915/2011) coloca em relevo o extremo rebaixamento da autoestima experimentada pelo melancólico; o que é compatível com a identificação ao objeto em sua dimensão real. Só que, ao mesmo tempo, Freud enfatiza a existência de uma poderosa identificação narcísica na melancolia, a ponto de classificá-la como uma neurose narcísica. Essa dificuldade já foi notada, por exemplo, por Quinet (2006), que também percebeu esse paradoxo presente no texto freudiano, ao afirmar simultaneamente a redução do amor-próprio e o empoderamento narcísico.

Como conciliar a diminuição do amor-próprio encontrada na melancolia com a hipótese freudiana de uma inflação do Eu? Deveríamos aqui ter de escolher entre as duas afirmações? Uma pista para a solução do problema encontra-se no próprio texto de Freud (1915/2011), colocada em destaque pela bela tradução de Marilene Carone:

O melancólico não se comporta exatamente como alguém que faz contrição de remorso e autorrecriminação em condições normais. Falta a ele, ou pelo menos não aparece nele de modo notável, a vergonha perante os outros, que seria sobretudo característica dessas condições. No melancólico, quase se poderia destacar o traço oposto, o de uma premente tendência a se comunicar, que encontra satisfação no autodesnudamento [grifos nossos] (p. 55).

Lembremos que a vergonha indica uma barreira erguida contra a satisfação escópica (Freud, 1905/2006). Se o melancólico não dá mostras de se envergonhar é exatamente por fazer questão de tirar o véu com que usualmente recobrimos nossas baixezas, desnudando-se para o olhar do Outro.

A passagem põe ênfase também na queixa melancólica como um ato de comunicação, no qual é preciso insistir para que o Outro registre a queixa. "Para eles, queixar-se é dar queixa" (Freud, 1915/2011, p. 59): segundo nota da tradutora, há aqui um jogo de palavras que evoca o dar queixa no sentido policial, de fazer registrar uma ocorrência junto a uma autoridade jurídica credenciada.

O saldo dessa operação será conferir ao melancólico um lugar identificatório que o representa diante do Outro. No impulso premente para se comunicar, há, portanto, a tentativa de demarcar um lugar egoico graças ao qual o sujeito possa se posicionar diante dos outros. Desse esforço se extrai evidentemente um lucro narcísico: na profunda satisfação em se vilipendiar diante do Outro, o sujeito também se satisfaz ao saber quem ele é para o Outro. A observação freudiana de que na melancolia há uma identificação narcísica poderosa é, portanto, rigorosamente verdadeira, uma vez que a autoestima baixa ainda está dentro do mesmo campo de problemas do narcisismo, sendo apenas sua variante negativa.

A ênfase posta por Freud no narcisismo do melancólico dá evidentemente destaque a um determinado momento do trabalho da melancolia, no qual o sujeito se esforça por construir um delírio. Já o suicídio melancólico corresponderia a um outro momento, cujos fundamentos inconscientes seriam diferentes. Deve-se aqui mobilizar o conceito lacaniano de passagem ao ato. A passagem ao ato envolve uma saída de cena, na qual o sujeito se exclui do Outro, ao preço da própria vida (Lacan, 1962-63/2005). É um ato que não possui a estrutura de endereçamento própria à prestação de queixa melancólica: o sujeito não quer comunicar mais nada ao Outro, visando apenas ser subtraído da presença maciça do Outro. Mais do que identificado ao objeto a - o que suporia a estrutura da representação diante do Outro -, o sujeito se torna na passagem ao ato o próprio objeto, ejetado, descartado, jogado fora pelo Outro.

 

Conclusão

Freud distingue a melancolia por três pré-condições características: a perda de um objeto de amor, a ambivalência intensa em relação ao objeto, e a identificação regressiva com ele. Porém, o próprio Freud (1915/2011) será levado a admitir que tais condições não bastam para a diferenciação com a neurose: "das três premissas da melancolia, perda do objeto, ambivalência e regressão da libido para o ego, reencontramos as duas primeiras nas recriminações obsessivas em caso de morte" (p. 85). Nem mesmo a terceira premissa (regressão da libido para o ego) se salvará, posto que será mais tarde entendida como parte do processo normal de constituição do Eu; não podendo representar, portanto, o traço distintivo de uma patologia (Freud, 1923/2006b). A partir das contribuições de Lacan, tornou-se possível adicionar uma quarta premissa para o diagnóstico da melancolia, a certeza psicótica.

Não se desconhece aqui a possibilidade de se ler Luto e Melancolia (Freud, 1915/2011) de outras formas, sem a preocupação de identificar na melancolia uma estrutura clínica; tal é o caso, por exemplo, da interessante leitura de Zizek (2004), que aborda o texto freudiano como se ali estivesse em jogo antes de mais nada a melancolização do desejo. Essa ampliação dos leques de leitura ocorre justamente porque as três premissas freudianas constantes no texto são condições necessárias, mas não suficientes para estabelecer a melancolia como psicose; tais condições não bastam, portanto, para diferenciar melancolia e depressão neurótica. Conforme foi argumentado, nesse ponto a leitura de Lacan complementa a de Freud.

Para isso, foi importante o recurso lacaniano à Psiquiatria clássica, relendo a antiga noção de fenômenos elementares à luz da teoria estrutural. A categoria de fenômenos elementares foi alçada ao estatuto de peça-chave no diagnóstico da psicose. Sua utilidade prática está ligada ao fato de constituir um sinal patognomônico daquela estrutura clínica (Álvarez, 2009).

Vale ressaltar que a verificação pelo analista do fenômeno elementar não é nada simples, em nada se assemelhando à catalogação de fenômenos praticada pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM). Isso porque a delimitação do fenômeno elementar depende de uma avaliação da posição subjetiva do paciente. O diagnóstico não pode ser pontual, devendo-se sempre buscar localizar o sujeito em face do fenômeno. Ora, se a pesquisa do fenômeno elementar não pode ser separada da busca da posição do sujeito, será somente pela via da escuta que o analista determinará se um determinado material é ou não um fenômeno elementar. Por exemplo, num certo sentido pode-se até admitir a existência de alucinação ou delírio na neurose. Sobretudo se definirmos alucinação como percepção sem objeto e o delírio como pensamento inadequado à realidade, chega-se à conclusão que tais processos podem ocorrer com qualquer sujeito. Mas, justamente quando tentamos uma definição estrutural, a qual inclui a posição do sujeito em relação ao fenômeno, a mera referência à realidade fica insuficiente.

No caso da neurose, a posição subjetiva é a da crença no fenômeno; crença essa que sempre pode ser posta em questão. Já a psicose é a única estrutura na qual se encontram experiências que são vividas pelo sujeito no campo do enigma/certeza. Considerando a melancolia como seu tipo clínico, a culpa apareceria aí então como uma experiência avassaladora, fora da esfera da dúvida. Já na depressão neurótica haveria a possibilidade de modalização da culpa.

Importa frisar essa diferença, uma vez que os estados depressivos foram atomizados em múltiplas categorias nos manuais DSM. Em vez de simplesmente criticarmos aqui a ênfase posta por tais manuais na pesquisa dos fenômenos, importa ressaltar que existe uma diferença importante entre o tipo de inventário de fenômenos praticado pela clínica psiquiátrica clássica e pela atual. O interesse de Lacan pelos clássicos certamente se deve à sua admiração por um tempo em que os psiquiatras se preocupavam em delimitar com precisão as sutis diferenças entre os fenômenos, obrigando-se por isso a escutar atentamente os detalhes do que era dito pelo paciente. Em contraste, hoje em dia a entrevista psicopatológica é muitas vezes conduzida com o fim restrito de rastrear sintomas-alvo a serem tratados pela farmacoterapia. Em tempos dominados pelo DSM, no qual a palavra perdeu o valor em detrimento do fenômeno, entendemos que a abordagem estrutural pode recuperar o interesse pelo significante, sem negligenciar o que é representado pelos fenômenos.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rosane Zétola Lustoza
rosanelustoza@yahoo.com.br

Submetido em: 29/03/2016
Revisto em: 20/01/2018
Aceito em: 16/04/2018

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