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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2018

 

ARTIGOS

 

Onde dói? O sentido da dor para médicos e residentes

 

Where does it hurt? Pain meaning for physicians and residents

 

¿Dónde duele? El sentido del dolor para médicos y residentes

 

 

Henrique Shody Hono BatistaI; Thiago Oliari RibeiroII; Joanneliese de Lucas FreitasIII

IPsicólogo da Fundação Estatal de Atenção Especializada em Saúde (FEAES) de Curitiba. Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Estado do Paraná. Brasil
IIMestrando em Farmacologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Estado do Paraná. Brasil
IIIVisiting Research Scholar na University of California Los Angeles (UCLA). Estado da Califorinia. USA. Professora associada da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Estado do Paraná. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A avaliação da dor pode variar entre médicos e pacientes. Para compreender os sentidos que médicos atribuem à dor de seus pacientes, seis médicas foram entrevistadas e seus relatos submetidos a análise qualitativa, pelo método fenomenológico de Giorgi. Os resultados evidenciaram que a estrutura do sentido da dor se constitui centralmente pela ambiguidade, que atravessa não apenas o seu sentido conceitual, mas também a clínica e a intervenção. As análises indicam que as dificuldades enfrentadas pelos médicos na avaliação da dor são intensificadas pela falta de evidências objetivas e por seu caráter ambíguo e subjetivo, dependente do relato. Indicam também conflito entre a clínica e os paradigmas que sustentam explicações fisiológicas da dor. Conclui-se que o paradigma organicista é questionado pelo fenômeno doloroso que exige avaliação fundamentada em uma relação empática, na qual o critério avaliativo se sustente na confiança no relato do paciente e não apenas em dados objetivos.

Palavras-chave: Dor; Sofrimento; Medicina; Psicologia fenomenológico-existencial.


ABSTRACT

The pain evaluation may differ between physicians and patients. To understand the meanings doctors give to their patient's pain, we interviewed six physicians, and their reports were analyzed through Giorgi´s phenomenological qualitative method. The results revealed ambiguity as central to the pain meaning structure and it is present not only in its conceptual definition but also in its clinics and intervention. The analyses show that the absence of material evidence of pain and its ambiguous and subjective nature, subordinated to patient's reports, intensifies the difficulties faced by physicians in pain evaluation. The analyses also indicate a conflict between the paradigms that support physiological explanations of pain and its clinical manifestations. We conclude that the painful phenomenon defies the organicist paradigm and requires an empathetic evaluation, in which evaluative criteria must be the confidence in patient's reports not just in objective data.

Keywords: Pain; Suffering; Medicine; Phenomenological-existential psychology.


RESUMEN

La evaluación del dolor puede variar entre médicos y pacientes. Para comprender los sentidos que los médicos atribuyen al dolor de sus pacientes, seis médicas fueron entrevistadas y sus relatos sometidos al análisis cualitativo del método fenomenológico de Giorgi. Los resultados evidenciaron que la estructura del sentido del dolor se constituye centralmente por la ambigüedad, que atraviesa no sólo su concepto, sino también la clínica y la intervención. Los análisis indican que las dificultades enfrentadas en la evaluación del dolor son intensificadas por la falta de evidencias objetivas y por su carácter ambiguo y subjetivo, dependiente del relato. También indican conflicto entre la clínica y los paradigmas que sustentan explicaciones fisiológicas del dolor. Se concluye que el paradigma organicista es cuestionado por el fenómeno doloroso que exige evaluación fundamentada en una relación empática, donde el criterio de evaluación se sustenta en la confianza en el relato y no solo en datos objetivos.

Palabras clave: Dolor; Sufrimiento; Medicina; Psicología fenomenológico-existencial.


 

 

Introdução

A definição atual de dor caracteriza-a como "uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a um dano real ou potencial dos tecidos, ou descrita em termos de tais lesões" (Merskey, & Borgduk, 1994, p. 210). Ela pode ser classificada em dois tipos, conforme suas características e seu tempo de duração: aguda ou crônica. Geralmente, a dor aguda está relacionada a algum tipo de lesão corporal, com função de alerta para o organismo e desaparecendo assim que a lesão é curada. A dor crônica, por sua vez, é aquela que persiste além do tempo esperado para a cura de uma lesão, ou ainda que esteja associada a doenças crônicas, podendo retornar em intervalos de meses ou anos (Pessini, 2009).

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002), a dor crônica é um grave problema de saúde pública, sendo uma entre as dez principais razões pelas quais a população demanda serviços de saúde e que atinge 50 milhões de norte-americanos, sendo de difícil caracterização pelo seu caráter subjetivo (Kumar, & Tripathi, 2014). No contexto brasileiro, Pessini (2009) afirma que este fenômeno é o principal responsável por faltas ao trabalho, indenizações trabalhistas, licenças médicas, aposentadorias por doença e perda da produtividade, sendo o motivo pelo qual 75% a 80% dos pacientes brasileiros procuram o sistema primário de saúde.

Entre as dores crônicas, estima-se que 5% caracterizem-se como dores oncológicas, sendo um problema comum em pacientes com câncer (Pessini, 2009). A dor é uma preocupação tanto para os pacientes com quadros oncológicos em tratamento, quanto para aqueles que sobreviveram ao câncer, sendo responsável por grandes impactos negativos na qualidade de vida (Goodwin, Bruera, & Stockler, 2014). De acordo com Kahan (2014), embora estudos apontem a prevalência de dor nesta população, aproximadamente 70% dos pacientes que morrem devido à doença não tem sua dor adequadamente tratada. Para Pessini (2009), esta problemática não se justifica pela falta de terapêuticas disponíveis, mas como resultado de avaliações imprecisas e utilização inadequada de recursos antiálgicos. Além disso, temos que a formação médica produz um modo de avaliar a dor que toma a experiência do paciente como "subjetiva" e, portanto, não confiável, em detrimento de sua compreensão biológica "objetiva" (Fondras, 2008).

Não são apenas os pacientes que buscam atendimento hospitalar de emergência que têm sofrido com o problema. Também dentre aqueles que recebem algum procedimento ambulatorial, de 30% a 40% sofrem de dor moderada ou intensa durante os dois primeiros dias de alta. Já dentre os que se mantém em tratamento, destaca-se o pós-operatório, no qual a dor é o fator mais comum de retardo da saída da unidade hospitalar, além de ser também o fator mais importante de retorno ao hospital após a alta (Ruviaro, & Filippin, 2012). A gravidade dos casos de dor pós-operatória refere-se também ao fato que, ainda hoje, a analgesia se mostra inadequada e insuficiente, ou tardia, levando os pacientes a sofrerem morbidades imediatas ou mesmo irem a óbito (Drummond, 2012). Menezes, Silva, Passarelli e Silva (2006) demonstram que a avaliação da dor difere fortemente entre pacientes e médicos, conduzindo a questões sobre a relação entre os sentidos da dor atribuídos pelos médicos e como estes avaliam a experiência de dor de seus pacientes.

A persistência da dor, aliada à dificuldade de avaliação adequada do quadro, tem levado à sua cronificação. Este fenômeno global é, nas palavras dos pesquisadores, decorrente dos novos hábitos de vida, do decréscimo da tolerância ao sofrimento, do prolongamento da vida da população, inclusive de pacientes com afecções clínicas naturalmente fatais (Batista, & Vasconcelos, 2011). Além disso, a literatura aponta dificuldades na formação de profissionais de saúde no que diz respeito à sua qualificação para a compreensão e avaliação da dor, assim como aponta diferenças relevantes na percepção da dor pela equipe de saúde e pelos pacientes (Menezes et al., 2006; Romanek, & Avelar, 2013; Silva, Balda, & Guinsburg, 2012). Tais evidências indicam uma necessidade urgente no aprofundamento de pesquisas neste âmbito.

O modelo cartesiano, que, segundo Spanswick e Main (2000), separou a dor física da psicológica, pode ter fornecido aos médicos alguma direção para lidar com dores sem causa física aparente (Linton, 2005). Linton assevera que os pacientes não parecem ter se beneficiado desta separação, quando a distinção corpo-mente adquiriu significado social e permitiu uma desvalorização das experiências de dor onde não fosse possível encontrar sua causa orgânica. Brennan, Carr e Cousins (2007) afirmam que, no século XXI, as evidências indicam uma ruptura entre o conhecimento cada vez mais sofisticado sobre os mecanismos fisiológicos da dor e a incapacidade generalizada de seu tratamento, apesar dos avanços significativos na área. Segundo estes autores, os próprios médicos reconhecem que, mesmo dispondo de recursos ilimitados, nem todos os pacientes podem ter sua dor tratada.

Considerando a dimensão subjetiva, intrínseca ao fenômeno, o interesse nos estudos sobre a dor e seus métodos de avaliação tem crescido nos últimos tempos, em especial na área da infância (Melo, Lélis, Moura, Cardoso, & Silva, 2014). Na prática cotidiana dos profissionais da saúde, os métodos mais utilizados para avaliar a dor são aqueles que envolvem descrições verbais ou escritas da dor como, por exemplo, as escalas de dor e as entrevistas (Scopel, Alencar, & Cruz, 2007). Além da divisão segundo o método, a avaliação da dor também pode ser classificada conforme as medidas de intensidade, que podem ser unidimensionais ou multidimensionais.

Moisset e Bouhassira (2015) defendem a relevância de uma avaliação da dor que seja multidimensional. Devido à complexidade do fenômeno, a prática clínica não comporta investigações não estruturadas, tendendo a utilizar instrumentos objetivos por questões de tempo e praticidade. Das (2013) propõe que entender o histórico da gênese da dor crônica de forma empática é o mais importante para a construção de uma terapêutica capaz de atender tal quadro clínico, o que faz a clínica médica da dor diferente das outras. Esta é uma clínica que precisa de tempo e esforço para o delineamento histórico do fenômeno doloroso, de forma que leve em conta âmbitos afetados e que afetam o processo doloroso, tais como o sofrimento psíquico, elementos sociais e familiares. O tratamento da dor, portanto, está vinculado não apenas a questões médicas, mas também a uma variedade de razões culturais, religiosas e políticas que permeiam o próprio fazer médico (Brennan et al., 2007).

Diante dos processos de objetificação da dor em sua avaliação e, portanto, do sujeito com dor, apresenta-se a abordagem fenomenológico-existencial, que compreende o sofrimento envolvido na experiência de dor desde uma perspectiva que integra a dimensão objetiva da experiência humana à subjetiva, assumindo sua ambiguidade (Fondras, 2007; 2008; Throop, 2010). Esta é uma abordagem que entende e afirma o humano em sua totalidade e se debruça na compreensão dos modos pelos quais os sentidos intersubjetivos constituem a experiência de mundo. Nesta perspectiva, a relação entre dor e sofrimento é uma discussão presente para a compreensão do problema. Ao falar sobre a dor, Brentano considera que este não é um fenômeno radicalmente distinto do sofrimento, exemplificando com a situação de uma mãe que tem seu filho sequestrado e sente dor (Geniusas, 2014). Já para Pessini (2009), dor e sofrimento são fenômenos distintos, uma vez que a dor é uma experiência melhor situada no campo orgânico, enquanto o sofrimento abrange aspectos psicológicos e sociais. O sofrimento é uma experiência mais ampla, envolvendo a existência como um todo. Seria a dor da dor. Em um sentido ontológico, a dor abre a possibilidade para a experiência da angústia e do sofrimento, ao desvelar a condição de fragilidade do ser humano diante do existir (Buytendijk, 1958).

A literatura aponta que "Existe uma lacuna entre o ponto de vista dos profissionais de saúde e a experiência vivida pelo paciente. Profissionais tentam separar dor de ansiedade, depressão, sofrimento de outras reações emocionais" (Lima, Alves, & Turato, 2014, p. 8). Essa lacuna parece não ser benéfica para o paciente no enfrentamento da experiência dolorosa. O sentido da dor experienciada pelo doente se dá, do ponto de vista fenomenológico, na tensão entre o discurso e ação do médico por um lado, e a experiência vivida corporalmente pelo paciente, por outro. A literatura fenomenológica descreve que pacientes com dor crônica apresentam maior capacidade de enfrentamento da dor quando vivenciam relações nas quais percebem o interesse e a compreensão dos médicos acerca de suas experiências de dor (Hansson, Fridlund, Brunt, Hansson, & Rask, 2011).

Diante de todos estes problemas e desafios, o presente estudo tem como objetivo investigar o sentido e a percepção do fenômeno da dor entre médicos, sustentado no pressuposto de que tais sentidos permeiam o modo como a avaliação da dor se configura. Os temas e sentidos sobre a dor apontados por médicos e médicos residentes podem contribuir com análises posteriores sobre a relação entre sentido da dor e a percepção da dor entre médicos, bem como de suas implicações no manejo clínico.

 

Método

A presente pesquisa se configura como um estudo preliminar, de caráter exploratório, sob uma perspectiva qualitativa. Foi utilizada a metodologia fenomenológica de Giorgi (Giorgi, & Sousa, 2010), que se caracteriza como empírica e descritiva dos sentidos experienciados em determinada situação. A fenomenologia, como metodologia, permite acessar os sentidos que configuram uma experiência, no presente caso, da percepção e avaliação da dor em outrem. Esse método foi escolhido por se constituir como um protocolo sistematizado e bem consolidado para a utilização de autorrelatos enquanto dados de pesquisa (Castro, & Gomes, 2011). O estudo foi aprovado Comitê de Ética em Pesquisa do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná (UFPR), projeto número CAAE 31151614.4.0000.0102 e seguiu todas as diretrizes da Resolução no 466/2012 (CNS) e complementares.

 

Participantes

Foram entrevistadas para o estudo seis médicas, sendo quatro residentes e duas com experiência de mais de dez anos na profissão, atuantes no ambulatório de Hemato-Oncologia de um Hospital Universitário de uma capital brasileira. A escolha desse ambulatório específico se deu pela grande prevalência de dor em pacientes oncológicos, mesmo após o controle da queixa inicial. Com o objetivo de resguardar o sigilo de suas identidades, as residentes serão denominadas como R1, R2, R3 e R4 e as médicas como M1 e M2.

 

Procedimentos

Para a coleta de dados, foi realizada uma entrevista semiestruturada com o intuito de alcançar o sentido que os médicos atribuem à experiência de dor vivida pelos seus pacientes. Essa estrutura comportou as seguintes perguntas: 1) O que é dor para você?; 2) Como você percebe a dor de seus pacientes na prática clínica?; 3) Como você avalia a dor quanto a seu tipo e intensidade?; 4) Você tem algum exemplo marcante relacionado à queixa de dor, que você tenha vivenciado em sua prática?; 5) É possível para o médico perceber a dor mesmo sem queixa?; 6) E você? Já vivenciou como paciente algum episódio de dor que lhe foi marcante e que você não se importa em nos contar?

Após contato com as participantes, foi combinado o horário mais adequado para a realização da entrevista. Tendo sido assinado o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), as entrevistas foram realizadas de forma privativa nos consultórios das próprias médicas, foram audiogravadas e transcritas pelos pesquisadores. Sua duração média foi de 15 minutos.

As análises das entrevistas seguiram os quatro passos descritos por Giorgi em seu método fenomenológico de investigação (Giorgi, 2009). Primeiro, foi realizada a leitura das transcrições das entrevistas com auxílio do áudio (este último para consolidar a forma do discurso apresentado), livre de interpretações teóricas. Segundo, após apreensão geral do relato da experiência pelas participantes, foram demarcadas as mudanças de sentido no seu discurso, dividindo-o em unidades de sentido, tendo em vista o tema da pesquisa. Terceiro, tais unidades de sentido foram traduzidas para linguagem psicológica. E como requisitado no quarto passo, foi determinada a estrutura geral, isto é, seus constituintes essenciais-estruturais que descrevem o sentido da dor para as médicas entrevistadas.

 

Resultados e discussão

O estudo trouxe à luz o sentido atribuído à dor pelas participantes. Nota-se que emergiu das entrevistas um modo característico de se remeter ao problema da dor, apresentado por meio de uma estruturação ambígua da linguagem e dos sentidos atribuídos ao fenômeno e que, portanto, estruturou uma constituinte essencial nomeada como "Ambiguidade percebida no fenômeno da dor". Destaca-se que a ambiguidade não foi tematizada de forma sistemática, mas teve seu sentido revelado por meio de contradições discursivas importantes, como, por exemplo, quando M1 apresenta sua concepção de dor, afirmando que esta "é um sintoma subjetivo", mas, ao se ver diante de um paciente queixoso, esse aspecto subjetivo é tido por ela como duvidoso: "Respeito, apesar de ser subjetivo".

A ambiguidade foi uma estrutura presente em todo o discurso, explicações, compreensão e percepção do problema, portanto, estruturante do sentido. Desta forma, tal como descrito na Figura, ao redor da constituinte de sentido "Ambiguidade percebida no fenômeno da dor", rotacionam todas as outras constituintes, sendo a ambiguidade uma espécie de "núcleo duro" da estruturação do sentido sobre a dor vivida pelos pacientes.

A estrutura geral do sentido da dor aqui delineada é composta por oito constituintes. Além da unidade central "Ambiguidade percebida no fenômeno da dor", temos outras sete unidades de sentido associadas: "Dificuldade de creditar a delimitação da dor pelo paciente", "Avaliação da dor: qualitativa e quantitativa", "Dor apreensível pela clínica médica", "Tratamento da dor", "Dor: manifestação subjetiva e não confiável", "Relação entre dor e sofrimento" e "Experiência pessoal do médico como abertura para a compreensão da dor do paciente".

A constituição do sentido de dor atribuído pelo médico à experiência do paciente é um fenômeno complexo, influenciado por vários fatores e mediado pela ambiguidade. Os elementos constituintes desta estrutura de sentido não são independentes uns dos outros e não têm por objetivo sustentar uma concepção ideal sobre o que seria realmente a dor na queixa do paciente. Pelo contrário, o que se percebeu é que os limites estabelecidos pela perspectiva das médicas entrevistadas sobre a dor em sua prática clínica aparecem como tentativa de compreender a experiência do paciente, de modo que tais constituintes fazem parte de uma relação com o fenômeno no qual a dor participa ativamente da sua estruturação. O aspecto ambíguo da dor e seu impacto na significação desta experiência já é destacado pela literatura. Segundo Throop (2010):

[...] a dor é um fenômeno complexo que parece apresentar uma ambiguidade inerente. A dor, por vezes, resiste obstinadamente à conceituação significativa, ao mesmo tempo que sucumbe frequentemente aos sistemas culturalmente formados de categorização, classificação e narrativização (p. 6).

A seguir serão apresentadas as análises referentes a cada um dos elementos constituintes encontrados.

 

Ambiguidade percebida no fenômeno da dor

A primeira constituinte diz respeito à ambiguidade presente no modo como as médicas expressaram sua compreensão sobre a vivência de dor dos seus pacientes. A expressão de suas compreensões sobre dor, foi caracteristicamente ambígua e ocorreu nos discursos de todas as entrevistadas, que apresentavam análises confusas sobre a gênese da dor, especialmente no que tange a difícil delimitação dos mecanismos de ação na dor que elas consideram como psicológicos, daqueles mecanismos e aspectos objetivos, tais como um dano tecidual aparente. Por meio de expressões ambíguas e de falas que se alternavam apontando para sentidos diversos, foi possível notar que circunscrever o fenômeno da dor é, para o médico, uma experiência complexa e incompleta, necessitando de diferentes recursos clínicos. Embora o discurso das participantes esteja marcado pela ambiguidade, essa não foi por elas tematizada direta ou explicitamente como parte do fenômeno doloroso, tal como mostra a fala de R4:

Qualquer perturbação física que pode ser tanto física quanto emocional, na verdade, a dor é geralmente os dois [...] às vezes, a gente consegue perceber se tem um componente de ansiedade piorando a dor, ou um fator de estresse que às vezes desencadeia a dor, ou deixa ela mais intensa.

Muitas vezes as ambiguidades e contradições reveladas nas entrevistas apontam para uma dificuldade de compreensão de um fenômeno que é marcadamente subjetivo e que, frequentemente, carece de um marcador fisiológico, apesar de ser também caracteristicamente objetivo, pois não se pode negar seu aspecto material: toda dor sempre se sente no corpo. Podemos perceber essa dificuldade na fala de R2: "já fez exame, já fez... não tem nada. Essa dor não tem fundamento, não é uma dor patológica. E muitas vezes, tem essa parte psicológica desse ganho secundário, ele quer atenção". O próprio fenômeno da dor é de caráter ambíguo e, por isso mesmo, apresenta certa opacidade especialmente para o observador externo - o que produz não apenas dúvidas, mas também tentativas de sistematização e controle por parte dos médicos. Entende-se que do ponto de vista médico, quanto menor a dúvida, mais objetiva é a observação e, portanto, mais crível a queixa. Quanto mais subjetivo o dado, mais fugidio. No processo de avaliação médica, a opacidade do fenômeno doloroso seria explicada pelas participantes como "problemas emocionais" e não compreendida como uma característica intrínseca ao próprio fenômeno.

 

Dificuldade de creditar a delimitação da dor pelo paciente

As entrevistas mostraram que há uma dificuldade por parte dos médicos em aceitar a avaliação que o paciente faz da própria dor, ou ao menos, há uma dificuldade em confiar nessa avaliação devido à ausência de marcadores e ao seu caráter subjetivo. O relato do paciente, para as entrevistadas, depende fundamentalmente da confiança do médico no discurso do paciente. Tomemos como exemplo R3. Em muitos momentos de sua fala foi possível observar a atribuição de um sentido para a experiência do paciente como se esta se mostrasse de forma pouco clara para ele mesmo. A residente acredita que a percepção que seus pacientes têm do fenômeno da dor é enganosa, pois crê que a sensação corporal não é facilmente compreendida por eles em seu aspecto doloroso, afirmando que este é passível de ser confundido com outras sensações, confundindo sensação e percepção. A dor é, portanto, entendida como uma sensação subjetiva de comunicação equívoca. Com isso, R3 relatou certa dificuldade que os pacientes apresentariam em alcançar uma descrição clara de sua experiência e que, consequentemente nem sempre conseguem verbalizar o que lhes ocorre. Ela apresentou o desconforto, por exemplo, como um elemento que confundiria o paciente, assim como também o confundiriam determinados estados emocionais:

Porque, às vezes, o paciente que não sabe se explicar muito bem, que não sabe verbalizar muito bem, ele confunde o desconforto respiratório com a própria dor. Ele está respirando daquele jeito, ele acha que aquilo está doendo, mas, na verdade, é o desconforto de você estar ventilando de uma maneira errada, né? (R3).

Nota-se que a compreensão médica de que o paciente percebe dor como desconforto remete à apreensão da dor como percepção e não como sensação, adensando a opacidade do fenômeno em seu caráter ambíguo. A percepção, sabe-se, é passível de ser ilusória por seu objeto ser externo à sua realidade podendo, assim, serem confrontados percepção e realidade. Inversamente, a dor, reconhecida como sensação perceptual, tem a sua realidade e a sua sensação como uma mesma coisa, não nos dando acesso a objetos e suas propriedades. Deste modo, a ilusão pode estar na sua localização ou evocação, mas não na sensação em si (Fondras, 2007). Tal compreensão médica se alinha à forma como a dor é ensinada nos cursos de medicina e se organiza dentro de uma relação médico-paciente onde a possibilidade da verdade e do saber estão centrados no médico e nas suas ações.

 

A avaliação da dor: qualitativa e quantitativa

As médicas entrevistadas, especialmente as residentes, relataram que a avaliação da dor deve levar em conta tanto aspectos quantitativos, quanto qualitativos. Os primeiros dizem respeito a uma mensuração da quantidade de dor sentida e os segundos à qualidade da dor, que inclui o local e sua forma de apresentação. É interessante notar que os dois aspectos de análise se apresentaram nos discursos perpassados por uma suposta oposição entre subjetivo e objetivo, sendo o aspecto objetivo e material, detectável, o mais desejável como parâmetro e fundamento da avaliação médica, em detrimento da dimensão subjetiva da experiência do paciente, uma vez que este aspecto: "[...] é algo que a gente não consegue, infelizmente, confirmar" (M1). Neste sentido, a dimensão subjetiva da dor é qualificada como deletéria, sendo na avaliação das médicas, um sinal de confusão. Todavia, ainda que os aspectos subjetivos da dor sejam concebidos por elas como menos importantes, as implicações clínicas de tal afirmativa apresentam-se de modos diferentes para o grupo de entrevistadas.

Na avaliação quantitativa, na qual o paciente atribui um valor de 0 a 10 para mensurar a dor que sente, as médicas residentes apreendem o valor numérico como um dado intrínseco generalizável da experiência da dor, não compreendendo - ou se surpreendendo com - a subjetividade e a dimensão qualitativa como características próprias do fenômeno. Tomemos como exemplo a fala de R1:

Foi uma paciente que tinha um câncer de mama bem difícil de fazer os ajustes do remédio da dor. Estava pedindo para ela vir toda semana. E ela chegou com bastante dor, ela falava que era uma dor em 10, a pior dor possível. E a gente começou morfina e na semana seguinte, quando ela veio, falou: "Nossa, tá muito melhor a dor!". Eu perguntei: "Que nota você dá para ela?". [Ela respondeu:] "Oito". [Perguntei novamente:] "Mas oito é uma dor forte!". [Resposta da paciente:] "É uma dor forte, mas é uma dor que tá muito melhor do que em relação à última consulta".

Já para as médicas com maior experiência, vê-se uma estrutura mais complexa e ampla em relação aos aspectos subjetivos da dor no seu processo de avaliação. Para elas, a avaliação médica da dor se fundamenta principalmente no manejo e na experiência clínica compartilhada entre médico, paciente e familiares, ampliando a mera aplicação de uma escala objetiva, permitindo uma escuta mais complexa. Apesar de terem afirmado que se utilizam de escalas de avaliação quantitativas, diferente do que relataram as residentes, as médicas com mais experiência reconheceram que os dados numéricos são uma expressão subjetiva da experiência do paciente, não apresentando um valor em si mesmo: "[...] o que a gente consegue graduar seria a nota, mas também a gente sabendo que é subjetivo" (M1). Diante disto, nota-se que para a avaliação da dor é necessário que o médico busque outras pistas que possam auxiliar na avaliação, tais como o uso de sinônimos que facilitem a descrição da experiência. Por fim, as médicas afirmam relacionar os dados obtidos com a história clínica do paciente, analisando-os assim, qualitativamente, conforme observado no relato de M1: "[...] a gente consegue graduar conhecendo o paciente, vendo em várias consultas, a gente consegue ter uma ideia, conhecendo melhor o paciente, já vendo ele descrevendo as dores anteriormente [...]". Tal aspecto, nota-se, remonta à relação médico-paciente.

A consideração dos aspectos subjetivos da avaliação pode estar vinculada a uma maior prática clínica das médicas frente àquela das residentes. Tal fato nos permite levantar a hipótese de que a prática médica teria influência na concepção que os médicos apresentam do fenômeno da dor, pois amplia as possibilidades investigativas e a percepção de sinais não tão evidentes em sua avaliação. Deste modo, a avaliação médica se constituiria para além de marcadores físicos e quantitativos, tão valorizados, tal qual apontado pela literatura (Fondras, 2008; Linton, 2005).

 

Dor apreensível pela clínica médica

As entrevistas evidenciaram a importância da clínica para a percepção da dor do outro, principalmente nos casos de pacientes que não se queixam de dor. A clínica, tão relevante para o diagnóstico e a condução dos casos, surge como um fazer que exige atenção contínua aos detalhes e ao outro, e se constitui para além da técnica, exigindo prática e experiência. Como etimologicamente aponta, o termo "clínica" é uma práxis que exige o debruçar-se sobre o outro e sobre o modo como expressa sua própria condição (Cunha, 2012). Como exemplo, apresentamos um trecho da entrevista de R4 que descreve a necessidade de uma percepção mais sutil em sua clínica - algo que extrapolaria os limites do uso de instrumentos de avaliação da dor:

[...] primeiro que a gente vê aqui [na hemato-oncologia] todo mundo tem dor. Então, a gente acaba tendo uma certa experiência, um feeling, vamos colocar assim, sabe? [...] você tem certeza que ele tem dor, porque você vê sinais físicos e você percebe que ele tem angústia, a família tá angustiada.

R2 destacou a importância do exame clínico, mesmo sem a queixa de dor: "o paciente nem tá queixando, mas, às vezes, por exemplo, você vai examinar o abdômen, ele dá aquela... [entrevistada se encolhe] Faz uma face de dor ou ele contrai, segura a respiração". A clínica permitiria, portanto, um olhar mais atento e auxiliaria o médico a perceber que a dor é passível de mostrar-se mesmo na ausência de uma queixa verbal. M1, por exemplo, mencionou as "faces da dor" como possibilidade de expressão indireta da experiência de dor, enquanto M2 chamou atenção para os movimentos corporais, os hábitos cotidianos e a forma como o paciente se apresenta na consulta. Para M2, estar atento a estes dados é relevante especialmente nos casos de dores crônicas e de pacientes geriátricos que podem se acostumar a conviver com a dor e não apresentar mais queixa. Diante disso, segundo as participantes, é necessário que o médico aprofunde sua investigação, explorando o estado do paciente com questionamentos, exames físicos e também por relatos de terceiros, tais como os familiares.

R3 e R1 falaram da necessidade de conhecer o paciente de maneira mais ampla - remetendo novamente para a relação entre médico e paciente - para dar conta do fenômeno como, por exemplo, pode ser observado na fala de R3:

[...] irritabilidade também, porque tem pacientes que se calam e outros que fazem o extremo oposto [...] às vezes, o paciente fica um pouco mais calado que o habitual. Isso a gente só consegue perceber conhecendo melhor o paciente, porque, quando você se depara com uma pessoa que tá mais quieta, você sempre fica na dúvida se aquilo é da personalidade dele.

 

Tratamento da dor

Na constituinte "Tratamento da dor" percebe-se que para as entrevistadas a intervenção médica se alicerça sobre a perspectiva da multidimensionalidade do fenômeno doloroso. Entretanto, as implicações da compreensão multidimensional parecem limitadas, uma vez que elas somente descreveram intervenções farmacológicas para o tratamento da dor e do sofrimento. Além disso, a equipe multiprofissional é apenas citada nas entrevistas, sem elaboração sobre seu fazer e do seu papel no manejo da dor, deixando implícito que o manejo é prioritariamente médico.

De acordo com Lima et al. (2014), apesar das práticas terapêuticas começarem a incorporar concepções multidisciplinares, como os modelos biopsicossociais e psicossomáticos, os cuidados das dimensões psíquicas e sociais ficam restritas à retórica. Neste sentido, podemos destacar a fala de R3 que menciona a analgesia para diminuir a sensação de dor, aliada à utilização de psicotrópicos para tratar questões ditas sociais e emocionais:

Deve ser tratada das duas maneiras, tanto com analgésico, para controlar a dor física, quanto... abordando outros aspectos da dor que, às vezes, são sociais, e principalmente emocionais [...] Daí, às vezes, eu dou um ansiolítico junto [...].

 

Dor: manifestação subjetiva e não confiável

Outra constituinte da estrutura de sentido aqui estudada, refere-se à sua condição de manifestação subjetiva e, portanto, dubitável diante da impossibilidade de acesso direto à experiência médica. Esta dubiedade pode ser entendida como fruto das perspectivas positivas da biomedicina tradicional, em que o estatuto de objetividade implica em uma abordagem médica que se orienta pelos dados e marcadores direta ou indiretamente observáveis, enquanto o subjetivo é tido como suspeito (Fondras, 2007; 2008; Lima, & Trad, 2008). Na fala de M1, a dor é um sintoma de natureza subjetiva, cujo acesso só é possível pela experiência do paciente tornando-a "algo que a gente não consegue, infelizmente, confirmar". Para R2, o fenômeno doloroso pode se apresentar enquanto destituído de um fundamento, de modo que "não é uma dor patológica", abrindo margem em seu discurso para interpretações da dor como um ganho secundário. Todavia, ainda que seja suspeita ou sem fundamento, a dor do paciente é merecedora de respeito e deve ser considerada na observação médica, destacada especialmente pelas médicas mais experientes: "[...] apesar de ser subjetivo, como falei, mas eu sempre respeito a manifestação deles da dor" (M1).

 

Relação entre dor e sofrimento

M2 considerou que, independentemente de suas características ou de suas origens, a dor é um fenômeno que abre a possibilidade para a experiência do sofrimento e vice-versa. Como exemplos, relatou casos de pacientes psiquiátricos que, ao viverem sofrimentos intensos manifestam dores, tais como cefaleia e dor no corpo, ou ainda, de pacientes que relatam dor no peito como experiência relacionada a uma angústia vivida em determinada situação. A delimitação entre dor e sofrimento não é evidente para M2, pois, quando ela mencionou a dificuldade de caracterização das dores que aparecem relacionadas ao sofrimento, qualificou-as como "inespecíficas".

Nos casos das dores de difícil controle, o sofrimento intenso é um aspecto impactante para os médicos. M2 relatou um caso de um paciente oncológico, cujo estado debilitado e a dor sentida devido a lesões no abdômen, o fizeram desejar a morte. M1 e M2 relataram que os pacientes com dores intensas e de difícil controle fazem uso de medicações potentes, como opioides e analgésicos em doses altíssimas, sendo necessário que o paciente seja internado não somente para controlar a dor, mas também para amenizar seu sofrimento via sedação. Conforme a perspectiva das entrevistadas, o sofrimento vivido pelo paciente é compartilhado pelos familiares e pela equipe médica: "Esses são pacientes que eles sofrem muito, a família, a equipe médica também" (M2). O sofrimento, ao mobilizar o paciente em sua dimensão existencial, tal como descrito no clássico de Buytendijk (1958), mobiliza também a família e a equipe multiprofissional, abrindo a perspectiva do sofrimento como parte da expressão da dor crônica.

 

Experiência pessoal do médico como abertura para compreensão da dor do paciente

Segundo a análise das entrevistas, a experiência pessoal de dor é a condição de possibilidade para compreender a dor e o sofrimento de outrem e toca no problema fundamental da empatia na relação de cuidado. M1 afirmou que a dor é uma experiência comum a todos, o que facilita sua compreensão sobre "o que o paciente está passando". Ela considerou que é mais difícil para o médico ter a experiência da empatia quando não vivenciou o que o paciente apresenta, contudo afirmou que a dor do paciente sempre deve ser respeitada. Algo semelhante pode ser observado em M2, que percebeu, em sua experiência pessoal de dor, um facilitador na compreensão da dor do paciente e que a sensibiliza diante de seu sofrimento.

 

Conclusões

A ambiguidade do fenômeno doloroso transborda a experiência do paciente e contamina a estrutura de sentido da dor na avaliação médica. Sendo notoriamente ambígua, a compreensão do sentido da dor pelas participantes apontou que a dor é uma experiência de difícil apreensão e exige um esforço empático. A dificuldade de apreender a dor do outro, está não apenas na impossibilidade de acessar a experiência alheia, mas também pode estar calcada em uma forma de compreensão de mundo que se fundamenta em uma perspectiva dualista, que apesar de ter sido importante para o avanço da ciência médica, ignora o modo próprio de apresentação do fenômeno doloroso: na experiência subjetiva. Tal separação é percebida nas entrevistas quando as médicas, independentemente do tempo de experiência, entendem a dor como um fenômeno que, por ser subjetivo, pode ter sua fidedignidade questionada, uma vez que o único meio de acesso à dor que o médico tem é a expressão do paciente quanto à própria experiência. É um modo de conceber a dor que rejeita a experiência vivida como parte do fenômeno da dor em detrimento dos seus mecanismos biológicos, tal como já denunciado por Fondras (2008), pois segundo o autor, "na abordagem médica do fenômeno doloroso, não é possível substituir a descrição em 'primeira pessoa' por uma descrição científica objetiva" (p. 155). Entretanto, é interessante notar uma ambiguidade também aí, uma vez que as médicas, ao mesmo tempo em que afirmaram esta suspeita sobre o subjetivo e sobre o relato do paciente, consideraram ser relevante que o médico acredite neste mesmo relato.

O problema da ambiguidade do fenômeno doloroso e o da crença médica na equivocidade perceptual por parte do paciente, apontam para a dificuldade enfrentada de lidar com a experiência do paciente na falta de marcadores orgânicos ou fisiológicos. É um problema que desafia o lugar de saber na clínica médica e recoloca a sua atuação em uma posição onde a relação médico-paciente deve ser estabelecida a partir de outros parâmetros que não apenas o saber médico, uma vez que sua decisão deve estar calcada na confiança no relato do paciente. É a lembrança de que a experiência do paciente ancora a ética no contexto da práxis em saúde.

Apesar de calcada em um sentido que se constitui ambiguamente e que se aporta em saberes dualistas, o fato de lançarem mão de avaliações qualitativas e quantitativas, e de valorizarem a clínica médica, evidencia o esforço das entrevistadas em compreender os seus pacientes de modo a alcançar uma intervenção adequada e eficaz. São descritos diversos modos de aproximação ao fenômeno: as escalas objetivas - mesmo que avaliadas como "limitadas" pela subjetividade da experiência, a descrição experiencial dirigida por analogias, uma prática acurada da clínica médica e ainda, uma atitude empática, onde o olhar clínico se sustenta na possibilidade de apreensão da subjetividade do outro a partir da própria experiência e subjetividade do médico. Tal diversidade de meios avaliativos da dor pode dar subsídios para reflexão sobre a afirmação de Barreto et al. (2012), que asseveram haver falhas neste processo.

Porém de que falhas se tratam? Se pensarmos a dor como um fenômeno humano em toda sua radicalidade, podemos entender sua expressão ambígua como condição ontológica, o que nos colocaria em um diferente paradigma científico. Isto significa que a ciência médica, calcada em pressupostos naturalistas, encontra neste fenômeno uma limitação de seu paradigma epistemológico, uma vez que se mostra incapaz de circunscrever a dor - subjetiva e ambígua - em seus métodos de avaliação e compreensão clínica. Neste sentido, as falhas no processo de avaliação são vistas como impossibilidades de uma análise da dor que seja puramente objetiva, entendendo que sua avaliação, por depender do doente, é sempre equívoca. Portanto, para além do campo epistemológico, é nos campos ético e da práxis que a ciência médica é desafiada a uma mudança de paradigma diante da dor, especialmente no que concerne à relação médico-paciente e do lugar do médico como detentor de um saber absoluto sobre o paciente que pouco saberia de si. A mudança de paradigma envolveria, sobretudo, a ética do cuidado com aquele que sofre de dor, situando a queixa e o fenômeno em sua história pessoal. E, para além da história pessoal, retomar o fenômeno da dor em seu caráter subjetivo, é retomar a confiança na relação médico-paciente, onde esta operaria não apenas na direção doente-médico, mas também, no debruçar clínico do médico para escutar quem lhe pede ajuda. Uma abordagem que restabeleça o critério da confiança no relato e não apenas no dado objetivo, tem a possibilidade de produzir uma atenção médica mais alinhada ao tratamento do homem que sofre não apenas da dor, permitindo intervenções em seus múltiplos aspectos, já observados quando este se vale, por exemplo, da utilização de psicotrópicos, ou mesmo se mostra incompleto pela aplicação de analgésicos tão somente.

Espera-se que, com este estudo, ao apontar as dificuldades de avaliação do fenômeno doloroso, este seja melhor compreendido na forma como se dá, e não somente na forma como pode ser visto pelas ciências naturais, aproximando esta perspectiva da dor como fenômeno humano à prática dos agentes de saúde, em especial no que condiz à relação médico-paciente. A partir disto, reconhece-se que os limites deste estudo se fazem presentes na medida em que a clínica médica apresentada está situada no nível secundário de atenção em saúde, delimitando um contexto específico de atuação. Deste modo, impossibilita a universalização das temáticas aqui abordadas, ao mesmo tempo em que se subsidia a possibilidade de novos estudos que se aprofundem no tratamento da dor a partir deste outro olhar, em níveis de atenção à saúde diversificados, além de trabalhos que interroguem as profissões não médicas, como enfermagem, fisioterapia e a própria psicologia da saúde, que também se debruçam sobre a dor em sua prática clínica.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Joanneliese de Lucas Freitas
joanneliese@gmail.com

Henrique Shody Hono Batista
henrique.shody@gmail.com

Thiago Oliari Ribeiro
t.oliari.ribeiro@gmail.com

Submetido em: 11/09/2017
Revisto em: 22/09/2017
Aceito em: 19/03/2018

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