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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2018

 

ARTIGOS

 

Intercessão entre políticas: psicologia e produção de cuidado nas políticas públicas

 

Intersection between policies: Psychology and production of care in public policies

 

Intercesión entre políticas: psicología y producción de cuidado en las políticas públicas

 

 

Roberta Carvalho RomagnoliI; Claudia Elizabeth Abbês Baeta NevesII; Simone Mainieri PaulonIII

IPsicóloga. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
IIPsicóloga. Professora Associada do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIIPsicóloga. Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto tem como objetivo discutir o cuidado no campo das políticas públicas, com especial enfoque à inserção da psicologia nas políticas de saúde e de assistência social. Apresenta, para tanto, a complexidade e tensões que se atualizam neste campo, na medida em que coexistem práticas de cuidado e modos de gestão paradoxais: de um lado, práticas e processos singulares que insistem na produção de autonomia; de outro, práticas de controle que sustentam relações de poder gerenciadoras da vida. Sob tal perspectiva, entende-se que o Estado neoliberal lança mão de estratégias normatizadoras, que administram a desigualdade social e naturalizam a miséria e a vulnerabilidade. Concluímos destacando a importância de se considerar essas tensões produzidas na interface entre produção de subjetividade e política. Deste modo, a ampliação do campo de trabalho da psicologia com as políticas públicas permite afirmar práticas de cuidado em conexão com processos que favorecem a expansão de vida.

Palavras-chave: Políticas públicas; Poder; Autonomia; Intervenção social; Cuidado.


ABSTRACT

This paper aims to discuss care in the field of public policies, with special focus on the insertion of psychology in health policies and social assistance. In this sense, this study shows the complexity and tensions that arise in this field as care practices coexist with paradoxical management models: on the one hand, singular practices and processes that insist on the production of autonomy; on the other hand, control practices that sustain life-managing relations of power. From this perspective, it is understood that the State uses neoliberal regulatory strategies to ensure the capitalist functioning. In such way, social inequality, poverty and vulnerability become naturalized. It is concluded that it is important to consider these tensions that are a product of the interface between subjectivity and politics. Thus, the expansion of the scope of psychology to include public policies allows us to affirm care practices in connection with processes that favor the expansion of life.

Keywords: Public policies; Power; Autonomy; Social intervention; Care.


RESUMEN

Este texto tiene como objetivo discutir el cuidado en el campo de las políticas públicas con especial atención a la inserción de la psicología en las políticas de salud y de asistencia social. Se presenta, para tanto, la complejidad y tensiones que se actualizan en este campo, en la medida en que prácticas de cuidado y modos de gestión paradojales: por un lado, prácticas y procesos singulares que que insisten en la producción de autonomía; de otro lado, de control que sostienen relaciones de poder gestoras de la vida. En virtud de esta perspectiva, se entiende que el Estado neoliberal lanza mano de estrategias normalizadoras, que administran la desigualdad social y naturalizan la miseria y la vulnerabilidad. Concluimos destacando la importancia de considerar esas tensiones producidas en la interfaz entre producción de subjetividad y política. De este modo, la ampliación del campo de trabajo de la psicología con las políticas públicas permite afirmar prácticas de cuidado en conexión con procesos que favorecen la expansión de vida.

Palabras clave: Políticas públicas; Poder; Autonomía; intervención social; Cuidado.


 

 

Sobre políticas e práticas produtoras de subjetivação

Como resultado do movimento de democratização do país, a Constituição Federal de 1988 instituiu um sistema de seguridade social, entendido como "[...] um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social" (Brasil, 1988, art. 194). Esse sistema reconhece oficialmente o direito às estruturas democráticas e à proteção social para toda a população, inclusive para os não segurados, introduzindo a noção de direitos sociais universais como parte da condição de cidadania e modificando a concepção vigente de saúde e de assistência social no Brasil. Os direitos sociais garantidos em lei pela constituição são concretizados através das políticas públicas. Nesse contexto, as políticas públicas são ações do Estado frente às demandas e pressões sociais exprimindo o compromisso público com a carta constitucional e com a população. Estas ações se produzem, no campo das práticas cotidianas, em meio à transversalização das relações macropolíticas e micropolíticas, em seus vetores econômicos - sociais - subjetivos, indicando que sua construção e efeitos não são tão simples e tampouco lineares e desprovidos de jogos de poder.

Nossa história recente mostra a importância do movimento sanitário, em suas articulações com outros movimentos sociais nas décadas de 1960, 1970 e 1980, na indução à reconfiguração do padrão de intervenção estatal brasileiro na saúde, na assistência e no campo dos direitos humanos. As lutas em prol da construção de uma política social universalizante, pautadas na socialização da atenção e num novo pensamento para a saúde, em franca disputa com o ideário e o modelo liberal-privatista emergente, desembocam na construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e na sua promulgação na constituinte de 1988.

No campo da saúde, essas políticas se baseiam na mudança da concepção clássica de atenção à saúde, com seus fundamentos assistencialistas e curativos, para uma visão que se sustenta em um conceito ampliado de saúde, entendida com base no conjunto das condições de vida. Essa mudança de paradigma se viabilizou através da criação do SUS, que tem como um de seus objetivos principais a reorientação do modelo assistencial a partir da atenção básica, atuando no nível primário de atenção (Yamamoto, & Oliveira, 2010).

Em 2005, 15 anos após a implantação do SUS, entra em vigor o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), na tentativa de abalar e transformar a herança assistencialista e clientelista nesse campo, deslocando os usuários da condição de necessitado ou carente para a condição de portador de direitos sociais e unificando as ações da assistência social, em nível nacional.

As práticas socioassistenciais no Brasil, até a constituinte de 1988, não possuíam a conotação de direito social. Tais práticas eram dispostas, em sua maioria - durante o século XX -, por instituições religiosas e, em seguida, por organizações privadas que realizavam algum tipo de trabalho voltado para uma camada miserável da população, através de ações de filantropia, assistencialismo e ações descontínuas respaldadas e financiadas pelo Estado. Além da necessidade de reconfigurar os modos tradicionais de enfrentamento dos problemas sociais, até então vistos como questão médico-filantrópica e policial, foi necessário "[...] superar o arcaico quadro da política de favor e de clientelismo que tanto caracterizou a assistência social no Brasil" (Macedo et al., 2011, p. 480).

A problematização e as tentativas de desmontagem desta herança histórico-política ganharam maior densidade com a inclusão da Assistência Social no capítulo da Seguridade Social da Constituição de 1988 e com a aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) em 1993, que a caracterizou como uma política não contributiva e de direito inalienável para qualquer cidadão em situação de vulnerabilidade e desproteção social. Todavia, como a grande maioria das leis, apesar de outorgada, a LOAS não assegura a efetividade de sua implementação, especialmente se observada a conjuntura vivenciada no momento de sua aprovação. Os princípios da LOAS entram em choque com as diretrizes neoliberais que orientavam as estratégias que vinham sendo priorizadas desde o governo Fernando Collor (1990-1992). Sendo assim, o seu processo de implementação constituía-se efetivamente como um desafio, já que sua inclusão no âmbito da Seguridade Social permitiria à Assistência Social, em tese, uma nova matriz e novas condições de visibilidade diversas de um conjunto de práticas benemerentes.

Os combates para efetivação desta política se deram seguindo outras proveniências e afirmam, segundo Silva (2013), uma história que se fez através da ascensão aos espaços de poder de um grupo de militantes majoritariamente formado por Assistentes Sociais, imbuídos da missão de promover cidadania num país que exclui a maior parte da sua população dos direitos a que deveria ter acesso. Tanto a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), elaborada em 2004, quanto a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB/SUAS), em 2005, são frutos desse contexto de inserção e ocupação de lugares estratégicos e posições políticas importantes da militância de assistentes sociais desde a década de 1980. Gama (2017) afirma que outra importante estratégia foi contar com o apoio do Ministério da Saúde (MS), inspirando-se na experiência do SUS que serviu de referência direta - em termos de sistema descentralizado, participativo e com comando único, níveis de proteção, complexidades etc. - no desenho das bases legais de construção do SUAS. Essa política, a partir daí, estrutura-se como um conjunto de serviços e programas com ações em rede a partir dos níveis de complexidade do sistema, considerando-se a lógica da territorialidade e a centralidade da matricialidade sociofamiliar. A PNAS tem como base de referência a família e é executada nos territórios tendo como parâmetros as demandas, necessidades e potencialidades locais.

A psicologia se insere oficialmente no campo da assistência social em 2011, compondo, junto com o profissional do serviço social, a equipe profissional de nível superior que deve obrigatoriamente integrar as equipes de referência de todos os níveis de proteção do SUAS (Ferreira, 2011). Segundo Silva (2013), somente com a agenda política do primeiro governo Lula (2003-2007), uma nova era se abre para área social na luta por uma Política de Assistência que servisse de anteparo às mazelas de uma economia pautada em preceitos neoliberais. Contudo, o que podemos perceber é que, longe de servir de anteparo às mazelas do capitalismo neoliberal, a PNAS se constitui em meio a práticas político-econômicas nas quais cabe ao Estado intervir:

somente para que os mecanismos concorrenciais do mercado econômico possam ter o papel de um regulador geral da própria sociedade, submetendo-a a dinâmica concorrencial que afeta amplamente nossa compreensão de mundo (Gama, 2017, p. 53).

Segundo Harvey (2014),

O Neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser mais bem promovido liberando-se as liberdades e as capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livres comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. [...] Além disso, se não existirem mercados (em áreas como a terra, a água, a instrução, o cuidado de saúde, a segurança social ou a poluição ambiental), estes devem ser criados, se necessário pela ação do Estado. Mas o Estado não deve se aventurar para além dessas tarefas. As intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nível mínimo [...] (p.12).

O caminho, entretanto, de transformação de uma política de Estado em política pública não é linear. Tampouco será, por conseguinte, os modos de inserção do psicólogo nesse campo. Ao afirmar que as políticas públicas representam "o estado em ação", Souza (2013, p. 09) reforça a ideia de que "[...] a formulação e a implementação de políticas públicas em Estados democráticos é tarefa complexa e requer uma intricada engenharia institucional". No que tange ao SUS, por exemplo, tomando-o como a mais estruturada e talvez pública das políticas emanadas do Estado brasileiro de hoje, podemos dizer que em seus quase 30 anos percebemos avanços importantes na garantia de acesso e na atenção integral, mas também muitos desafios a enfrentar para a efetivação concreta de seus princípios no cotidiano das práticas de atenção e gestão.

Segundo Behring e Boschetti (2011), o desmonte das políticas sociais de caráter universalista a partir dos anos 1990, convertendo o Estado brasileiro em organismo centralizador e unificador das "práticas", mas não efetivamente executor, produziu uma adequação das políticas sociais a medidas pragmáticas e imediatistas, sendo delegada a função executora ao terceiro setor/iniciativa privada e/ou modos de financiamento e execução sucateados as políticas sociais, especialmente a Política de Assistência Social que esteve vinculada à Legião Brasileira de Assistência (LBA) até meados da década de 1990. Oliveira e Heckert (2013), ao discutirem a PNAS e seus dispositivos assistenciais, afirmam que a arte de governar está na própria criação do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), colocando em cena os efeitos da lógica capitalista, desvelando as artes de governar e os efeitos das relações de poder nesse contexto, denunciando como estas desigualdades são necessárias para o campo da assistência social, mesmo após a criação da PNAS. Podemos dizer que o processo de efetivação do SUS e, mais recentemente, do SUAS como Políticas de Estado foi, e é, ainda hoje, construído à "[...] contra-pelo da história" (Benjamim, 1996, p. 225).

Fruto do não questionamento da lógica neoliberal e capitalista, que tem modulado princípios e diretrizes que deram ensejo aos movimentos democráticos em prol da ampliação das políticas sociais brasileiras, as políticas públicas se desenvolvem de forma distinta em nossa sociedade e enfrentam desafios na atualidade que impactam consideravelmente suas potências de viabilização (financiamento precário, gestão terceirizada, precarização da força de trabalho via contratação precária, processos de descontinuidade do cuidado e relações privadas entre as redes assistenciais).

Temos experimentado, na construção e consolidação destas políticas, com todas as suas diferenças temporais e de modus operandi, um campo de tensões que se atualizam na coexistência entre práticas que afirmam a construção de modos de gestão e cuidado aliados dos processos de democratização coletivos e, ao mesmo tempo, singulares, no qual a luta pela saúde e assistência se inscrevem como "[...] valor de uso" (Campos, 2000, p. 228) e produção de autonomia, mas também a produção de práticas que reafirmam um funcionamento do biopoder. Funcionamento no qual se hibridizam processos de estatização e privatização que (des)regulamentam, modulam e controlam os modos de vida e do viver, desde seus aspectos biológicos aos da produção de subjetividade, como veremos mais adiante. O que para nós se evidencia é a urgência de criação de dispositivos teórico-metodológicos de intervenção que deem suporte à experimentação das políticas no jogo de conflitos de interesses, desejos e necessidades dos diferentes atores que compõem as redes de saúde e assistência social. Resguardadas as devidas especificidades cabíveis às práticas e impasses próprios a cada uma dessas políticas e seus diferentes processos de implementação, interessa-nos ressaltar deste campo de problematização a discussão do cuidado, pois acreditamos que estas análises são fundamentais para o enfrentamento dos desafios que a atualidade nos coloca no que se refere à produção de interferências nos processos de construção de políticas públicas.

Monteiro, Coimbra e Mendonça Filho (2006), examinando historicamente o funcionamento das políticas públicas em nosso país, denunciam que estas estão em estreita relação com o Estado capitalista e reafirmam, em seu viés inclusivo, o mito do Estado Democrático de Direito no Brasil como um dos seus mais potentes dispositivos de produção de resignação. Segundo Sader (1988) as lutas contra a ditadura militar no final da década de 70 e anos 80 do século passado vão ganhando um acento diferenciado no que diz respeito aos modos de combate e processos de resistência, os movimentos sociais em suas mais diversas expressões (associações de bairros, moradores, reformas na saúde e na educação, luta partidária, movimentos feministas, negros, gays) enfatizam o cotidiano em suas dimensões microfísicas e capilares e colocam em cena a micropolítica até então desconsiderada pelos movimentos de resistência. Com esta direção, a luta pelo Estado Democrático de Direito ganha força de combate possível para fazer frente aos poderes instituídos naquele momento, trazendo em seu bojo a luta pelas liberdades democráticas e abertura de espaços de participação e engajamento. Contudo, o que vai ganhando força no processo "[...] é a dimensão macro, com seus lugares de poder estabelecidos pela lógica da representação partidária que vai sendo privilegiada: o da conquista de um lugar de poder que se acreditava estar localizado no Estado" (Monteiro et al., 2006, p. 10). Outros modos de captura político-subjetivo se associam e modulam o acento destas lutas num viés mais macropolítico, qual seja: a ditadura de mercado. Para os autores, as relações de poder são imanentes e se materializam em práticas, técnicas e disciplinas cujos efeitos operam no modo de individualização contemporâneo. Nessa perspectiva, o Estado garante, em última instância, um bom funcionamento a esse modo capitalista gerenciando a desigualdade social, naturalizando a miséria e a vulnerabilidade, precarizando a vida. Monteiro (2011) ressalta que a vulnerabilidade que está na base das políticas públicas "[...] não considera o caráter estrutural da sociedade capitalista, não problematiza a superação de suas contradições, na medida em que não as considera como produto das desigualdades sociais" (p. 37).

A economista Lena Lavinas, no artigo "A financeirização da política social: o caso brasileiro", afirma que no Brasil a política social ganha impulso em sincronia com o capital financeiro, no incentivo ao consumo, o impulso do crédito e das diversas modalidades que surgem e se acoplam à política social (Lavinas, 2015). Esses acoplamentos são utilizados para financiar o acesso a bens e serviços, levando ao endividamento das famílias brasileiras em sistemas de crédito produtor do que se chama de democratização do acesso ao setor financeiro. A autora sinaliza que a política social se transforma, através de múltiplos e sofisticados mecanismos de inclusão social via consumo e endividamento, em um setor lucrativo das empresas privadas e em fonte de acumulação de capital, notadamente para empresas financeiras, dando força ao novo mantra do credo neoliberal "a inclusão financeira". Essa é apenas uma das frentes de atuação em que ela vai certamente ganhar ainda mais estofo e seguir inovando. Como bem demonstra Lavinas (2015), "O acesso ao mercado financeiro foi a grande novidade na explosão do consumo de massa e na busca de mais capital humano numa sociedade que mantém suas debilidades estruturais e profundas desigualdades (s/p)".

Neste cenário, no qual se hibridizam mecanismos que se convencionou denominar de social-desenvolvimentismo e estratégias neoliberais, ainda que possamos reafirmar a importância da institucionalização e ampliação das estruturas de direitos e deveres no que se refere à relação com o Estado, e também a importância da ampliação da psicologia nas políticas públicas, interessa-nos pensar a função que os trabalhadores sociais, mais especificamente os psicólogos, têm sido "convocados", como mandato social, a exercer no campo das políticas públicas do SUS e SUAS. Assim, a produção desta parceria muitas vezes comemorada, pelas organizações profissionais dos psicólogos, como ampliação e abertura de novos postos de trabalho no mercado e índice do "compromisso social da psicologia" precisa ser problematizada no que diz respeito a sua naturalização e à produção contemporânea de uma necessidade de "cuidar da vida" (do outro, da saúde, da população, dos ditos vulneráveis sociais), na interface, portanto, entre produção de subjetividade e política.

Assim, o campo das políticas públicas ganha aqui a dimensão de um campo de análise, não se reduzindo, pois, a um mero campo de intervenção, porque diz respeito também ao plano de engendramento das políticas, forças com que são gestadas as ações coletivas, os processos de produção de subjetividade. E nesse ponto, as provocações para o debate em torno deste tema se multiplicam. Convocadas por ele, a discussão que segue tem sua gênese em inquietações partilhadas com colegas pesquisadores, trabalhadores e alunos envolvidos com o trabalho psi nas políticas públicas de saúde, assistência social e formação. Inquietações que nos têm levado a indagar acerca dos maus tratos com a vida proclamados "em nome de": acesso a direitos, acesso a políticas instituídas de saúde, educação e assistência social, dentre outros. E nesse contexto, podemos afirmar que:

Um sentido da inserção pública da psicologia diz respeito à participação nos processos em que ela se engaja. A prática é participativa quando inclui o ponto de vista dos diferentes atores envolvidos, garantindo o protagonismo dos sujeitos implicados. Conduzir uma prática participativa é tomar a intervenção não como ação de um sujeito sobre um objeto, mas estabelecer outra relação entre sujeito e objeto que se faz na ação de produzir com, ou coproduzir (Passos, 2015, p. 18).

Dessa maneira, colocar em análise os modos de "cuidar" que as práticas daí decorrentes convocam, o caráter mais ou menos público que resultam dessas políticas e como a recente e crescente inserção da psicologia no campo das políticas públicas tem interferido no cenário político e também profissional é o ensejo desta discussão. Pautar as questões desse campo problemático em termos alternativos - "ou"... "ou"... - já nos impõe algumas armadilhas às quais precisamos estar atentos, caso queiramos sair dos lugares já dados e recusar saídas fáceis. Habitar esse campo em sua complexidade é enfrentar esse tipo de questão não com oposições binárias, mas sim como pares complementares, faces de um mesmo processo sem soluções simplistas.

 

Sobre poderes e capturas

Tem-se observado uma ampliação significativa nos anos 2000 da inserção de psicólogos no campo das políticas públicas brasileiras, especialmente nas políticas de saúde e assistência social. Na área da saúde, o MS computa a presença de 38.423 psicólogos cadastrados no SUS, em dados relativos ao ano de 2015 (Brasil, 2015). Em levantamento feito a partir do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil (Brasil, 2015), Alexandre (2015) afirma que, desse número, 11.504 estão vinculados à atenção básica, atuando nos centros de apoio à saúde da família, postos ou centros de saúde, unidades básicas ou unidades mistas de saúde, unidades de atenção à saúde indígena, unidades de atenção em regime residencial e serviço de atenção domiciliar isolado (home care). Temos ainda a presença 26.919 profissionais psicólogos em atuação nos níveis secundário e terciário do SUS, como, por exemplo, policlínicas, clínicas especializadas, consultórios, diagnose e terapia, hospitais geral e dia, hospitais especializados e Centros de Atenção Psicossocial/Centros de Referência em Saúde Mental (CAPS/CERSAM)1, pronto-socorro e unidades de emergência (Alexandre, 2015). Por outro lado, Macedo et al. (2011) realizaram uma pesquisa com o intuito de mapear a rede de serviços de referência (CRAS e CREAS) do SUAS e identificar a inserção da psicologia nesse contexto. O Brasil conta com 7.607 CRAS e 2.155 CREAS, distribuídos nos 5.565 municípios que compõem o território nacional. Ao todo, são 8.079 os psicólogos que atuam no SUAS (6.022 em CRAS e 2.057 em CREAS2), sendo que 92,9% desses profissionais atuam em municípios interioranos de pequeno e médio porte. Vale destacar que em apenas quatro anos, entre 2008 e 2011, elevou-se de 140 mil para 220 mil o número de trabalhadores vinculados ao SUAS. (Macedo et al., 2011) Com certeza esses dados hoje são ainda maiores.

Mas afinal o que fazem esses psicólogos, já numerosos como mostram os dados, em suas atuações nas políticas públicas? Que efeitos têm surtido suas intervenções? Na tentativa de problematizar as relações de poder que atravessam as práticas dos psicólogos nesses contextos, Michel Foucault nos chama a atenção para um sujeito constituído enquanto sujeito de saber e resultado das relações de poder, moldado pelas disciplinas. Trata-se de um processo que traz um refinamento da sujeição do homem, que se exerce em diferentes campos institucionais e em estratégias e discursos. Nesse contexto, o poder se constitui por relações, por processos que incidem sobre a subjetividade, não apenas reprimindo, mas, sobretudo, produzindo realidades calcadas nos discursos científicos. Dessa maneira, formas de subjetivação são produzidas amparadas no poder disciplinar em que mecanismos de dominação interiorizados moldam um modo de existência passivo, alienado. Passividade e alienação que podem se exercer na própria atuação do psicólogo ao cindir sua prática do social e do político. Também os usuários, quando se curvam ao saber dos especialistas, sustentado por normas, por ideias construídas pelas disciplinas às quais se concede o status de verdade, tornam-se passivos, alienam-se no saber do outro. Tal processo, a que Foucault nomeou por "naturalização", estimula as pessoas a moldar e a fabricar suas vidas, sendo "controladas" por modelos científicos, monitoradas por poderes cotidianos que se exercem anonimamente nas relações (Foucault, 1999).

Nossa atualidade tem sido marcada por um bombardeamento de ofertas de dispositivos técnico-científicos, midiáticos, religiosos e de segurança que se dirigem a nos ensinar como viver, como ter saúde, como nos proteger de nós mesmos e dos outros, como ser felizes, como reivindicar, enfim, tecnologias diversas de como cuidar de nossa vida, de olho no modo como o outro cuida da dele. Nesta lógica narcísica que o biopoder instiga, o outro em seus modos de vida, como diferente "de mim", é visto, a princípio, como ameaça potencial! Situações corriqueiras e banais do cotidiano, que sequer imaginaríamos necessitar de cuidado, tornam-se objeto de preocupação e alvo de investimento das práticas do Estado. Uma nova racionalidade política, denominada por Foucault (1999) de biopolítica, se operacionaliza sobre as relações de poder entre o estado e os indivíduos, incidindo sobre um elemento fundamental: a vida. Interessa-nos, aqui, pensar a produção de estratégias de poder contemporâneas em seus exercícios de normalização (instituição de normas e padrões afins a diferentes setores da sociedade) e regulamentação (índices de distribuição de valor de normalidade) da vida em meio aos quais se atualizam o funcionamento biopolítico das estratégias de produção capitalistas. Produção, esta, que coloca para nós trabalhadores sociais - médicos, psicólogos, pedagogos, assistentes sociais - imensos desafios e armadilhas no que diz respeito a nossas militâncias e interferências nas políticas do presente. Pois há coisas que nos são ofertadas, sob o nome de cuidado, ou mesmo como mandato social, que são verdadeiros venenos e maus-tratos à vida! Problematizar nossas interferências nas políticas do presente é arma de combate primordial para indagarmos os muitos perigos e armadilhas em que caímos quando nos vemos envolvidos com ações de cuidar do outro e de seus modos de fazer andar a vida.

Falamos, pois, de perigos que circulam no "como cuidar", "quando atuar" e "como intervir" em territórios de vulnerabilidade e risco social e com usuários fragilizados. Naturalizadas sob a insígnia do cuidado, tais práticas desafiam nossas militâncias e interferências nas políticas do presente, já que podem encobrir práticas morais e de controle, assujeitando e oprimindo, em nome de um suposto "mandato social". Sabemos que estas políticas se constituem tanto como vetores de regulamentação da vida, quanto podem funcionar para enfrentar o sucateamento da existência.

Por isto cabe mantermo-nos alertas em relação ao que nos move no campo das políticas públicas e sustentar algumas indagações: De que modo temos acolhido as encomendas de interferir neste campo em um país que sequer experimentou o Estado de bem-estar social? O que temos cuidado no campo das políticas públicas?

 

Sobre cuidado, cuidadores e intercessores

Ao lançar uma reflexão acerca das interferências nos processos de construção de políticas públicas e dos modos com que profissionais psicólogos têm inventado para enfrentar os desafios que a atualidade lhes apresenta neste campo, propomos colocar a instituição do cuidado em análise e, a partir dela, problematizar a ética que tem permeado as práticas de cuidadores mais especificamente inseridos nos campos de intervenção das políticas de saúde e assistência social. Partimos da compreensão de que a lógica que permeia o campo das políticas públicas do SUS e SUAS é a de um contexto biopolítico, dentro do qual se justifica o questionamento acerca dos modos com que temos acolhido as encomendas de interferir neste campo em um país de democracia frágil e instituições ainda vulneráveis a desmandos autoritários e demandas assistencialistas.

Se, por um lado, podemos entender a ampliação da atuação do psicólogo nas políticas públicas como fruto das lutas pela democratização do acesso às políticas sociais e indicador da reconfiguração de sentidos para a saúde e assistência; por outro, chama-nos a atenção o predomínio de práticas psi privadas, restritas a atendimentos ambulatoriais individualizantes (individuais ou grupais) prenhe de indicadores sociais que sinalizam e confirmam vulnerabilidades/riscos sociais, violência e insegurança, assim como uma adesão tarefista à "gorda saúde dominante". Essa última expressão foi utilizada por Deleuze, em 1996, para fazer referência às práticas dominantes na área da saúde, remetendo ao mundo categórico, de "empanturramento" de informações, cuidados, prescrições e tutelas que nos são diariamente ofertados com nome de saúde, cuidado, vulnerabilidade e integralidade (Pelbart, 2000). Nesse contexto, vale lembrar que:

Sim, a psicologia em sua relação com a saúde pública é ela também pública, já que só podemos nos engajar radicalmente nela se abrimos mão de nossas propriedades: meu suposto saber, meu lugar de trabalho, meu especialismo. Eis, então, o desafio de uma experiência que é crítica das propriedades de si e, por isto mesmo, coletiva ou pública. É preciso fazer da prática do psicólogo um dispositivo que opere no, por, com, entre, para, através do público (Passos, 2015, p. 16).

Em nossa formação ainda estamos presos a uma forte cisão entre indivíduo e social, atrelados a tecnicismos e com pouca ou nenhuma problematização da vulnerabilidade e risco social - conceitos centrais na política de saúde e, sobretudo, na política de assistência social. Por este motivo, as práticas de cuidado neste campo correm sempre o risco de atuarem em prol de uma naturalização da miséria para uma parcela da população, com algo dado, sem se questionar a lógica capitalista, como destacam Oliveira e Heckert (2013). Monteiro (2011) ressalta que a vulnerabilidade que está na base das políticas públicas "não considera o caráter estrutural da sociedade capitalista, não problematiza a superação de suas contradições, na medida em que não as considera como produto das desigualdades sociais" (p. 37). Assim, usualmente em nossas práticas, não desvelamos as tensões da nossa sociedade e centramos em nossas atividades apenas e em seus dispositivos técnicos de intervenção com os usuários e as famílias, no preenchimento de cadastros e nas tarefas burocráticas.

Todo esse aparato faz parte da governamentalidade moderna, ou seja, do conjunto de instituições, procedimentos, táticas que permitem exercer o poder, como entendido por Michel Foucault, tendo como alvo a população, como forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. Em seu modo de ação coloca o problema da população e a gestão da vida dos indivíduos no que o filósofo denomina biopolítica. A biopolítica implica a gestão da população, mas também um controle das estratégias que os indivíduos, na sua liberdade, podem ter em relação a eles mesmo e uns em relação aos outros. Nesse contexto, Foucault (2008) nos explica que a noção de caso começa a aparecer em meados do século XVIII, quando diante da complexa emergência da população como problema urbano (a ser governada em suas diferentes demandas), foram produzidos índices de uma curva padrão, em que se aglutinavam os diferentes fatores constitutivos do corpo social em sua naturalidade. A partir da biopolítica é possível, portanto, "individualizar o fenômeno coletivo da doença, ou coletivizar, mas no modo da quantificação, do racional e do identificável, de coletivizar os fenômenos, de integrar no interior de um campo coletivo os fenômenos individuais" (Foucault, 2008, p. 79).

Estes índices, quando interpretados, tornam-se ferramentas para governar essa massa global. Contudo, esses mesmos índices investidos de coletividade, numa perspectiva globalizante, também mensuram os riscos de um indivíduo, família ou território vir a se tornar doente e/ou perigoso. Emerge a ideia de caso como a encarnação de qualidades coletivas num corpo individual; este passa a ser analisado como espécie, e em assim sendo, possui características gerais: o caso individual calcado na generalidade de sua espécie. E é nessa perspectiva que muitas vezes a atuação do psicólogo se dá, desconsiderando a complexidade, os múltiplos atravessamentos e as próprias diferenças dos usuários, naturalizando sua prática como apolítica e individual. Desconsiderando-se efeitos políticos dessas intervenções, por exemplo, na produção de subjetividades miseráveis, subjetividades patologizadas, (re)produção de sujeitos menos sujeitos, assujeitamentos...

Maltrata-se a vida quando se acolhe o intolerável sob a forma de naturalizações imutáveis, quando tornamos a vida uma funcionária submissa e refém de prescrições, programas de saúde, médias e padrões instituídos. Maltrata-se a vida quando nos deixamos submeter por aquilo que captura nossa potência de exploração dos possíveis, fazendo desta potência um ponto de aplicação de estratégias e táticas laminadas pelo capital e servil a processos que a homogeneízam, compondo com os arranjos padronizados.

O que podemos perceber é que o que está em jogo no contemporâneo é uma nova relação entre o poder e a vida, um funcionamento que Foucault (1999) denominou de biopolítico, e Deleuze (1992), a partir de Foucault, denominou como "sociedade de controle". Neste jogo produzem-se novas formas de monitoramentos sutis cujo objetivo é aplacar rebeldias e se apossar das potências através da instauração de médias e equilíbrios automodulantes, que buscam produzir valor de troca na zona imprevisível da vida (experiência vital que se produz nos encontros entre corpos - sociais, políticos, biológicos). A zona imprevisível da vida, como intensidade impessoal que nos é constituinte, é "perigosa" para os dispositivos de controle, pois excede as formas, habita a borda, e aquilo que excede vira doença, vulnerabilidade e risco. Como sinaliza Passetti (2007), governar para conter estes excessos passa a ser uma dieta ao cidadão ativo e tolerante, gestada, compartilhada e empreendida por ele.

Paradoxalmente, vemos-nos ligados a um "mandato social de cuidar da vida", produzido e assumido, muitas vezes, como um destino do qual não podemos abrir mão. Assumimo-lo, muitas vezes, como um dado natural sem problematizar nossas alianças com um aparelho produtor de normalização, docilização e tutela que se oferta como fonte inesgotável de acolhida às frustrações, sintomas, "injustiças sociais", vitimizações e lida cotidiana com os impedimentos impostos pela realidade à nossa dita "natural busca do prazer, bem-estar, segurança e felicidade". Nessa perspectiva, as práticas de cuidado em saúde e assistência social, sem crítica alguma, insistem em normalizar, diagnosticar apressadamente zonas de indeterminação como adoecimento e vulnerabilidade.

Vemo-nos, muitas vezes, participantes e engajados na "melhoria de governos do vivo em estado de conservação", pois, como nos fala Oliveira (2011), "Nossa entrega aos governos dos possíveis produz Vida tornada sobrevivência, de miséria ou abastada. É a mesma miséria" (p. 95). É a delegação de poder de tutela sobre a vida, que "em nome do cuidado", "em nome da produção de saúde". "Em nome da justiça" e "em nome de minimizar riscos e vulnerabilidades", acabam por desqualificar ou desconsiderar modos autônomos de soluções para expressões do ser denominando-as de doenças, desequilíbrios, síndromes e vulnerabilidade/risco.

Trazemos tal paradoxo ao debate das políticas públicas, a fim de elucidar a questão que Foucault (1985) nos convoca a pensar: "O que estamos ajudando a fazer de nós mesmos"? "O que estamos fazendo dos outros"? Trata-se de instituir um pensamento e "uma vida" que problematizem o instituído, e não de pensar e viver a partir dele, assentados nele. A experiência de zonas de determinação - referentes às formas de vida encarnadas em sujeitos, grupos, territórios nos quais incidem nossas práticas de cuidado - convoca-nos a intervir na produção de outro ethos do cuidar. Estamos, portanto, apostando em intervenções de cuidado que se afirmam na indissociabilidade entre a vida que se expressa em estratégias/leis/dispositivos/sofrimentos, e a vida que se enuncia em seus índices de estranhamentos e potência radical de perturbar o instituído e de seguir persistindo no desafio de reinvenção das políticas do presente.

Nesta perspectiva interventiva, propomos pensar o cuidado como uma prática que se dá nas relações e convoca coletivos, sustentando a diferença, com atenção aos seus efeitos e usos políticos. Assim, o cuidado é uma experimentação que ganha consistência nos encontros. Deleuze (2002), baseado em Espinosa, afirma que os corpos se encontram em relação permanente, e os encontros que estes realizam são essenciais para a vida. Esses encontros que ocorrem entre as equipes de trabalho das políticas públicas, as famílias usuárias, os profissionais de outros setores, favorecem mais ou menos a circulação da vida, criando deslocamentos e interferências que fazem a vida pulsar mais forte ou, ao contrário, minguar. Isso porque os corpos e a realidade são compostos tanto pela potência que faz parte de sua essência (corpo intensivo), quanto pelo conjunto de relações que os compõem (corpo extensivo). Tanto o intensivo quanto o extensivo se exprimem nas relações que estabelecemos, diferenciando-se entre si, compondo partes que se modificam de maneiras infinitas.

Para Deleuze (2002), nossos afetos dizem respeito às paixões fundamentais que preenchem nossos corpos: a tristeza e a alegria, produzindo deslocamentos que se dão nos encontros, no espaço do "entre", e que permitem que os afetos transitem. Quando há a diminuição da potência de agir, são os afetos tristes que predominam, produzem padecimento que mina a essência, paralisam o sujeito, separando-o daquilo que ele pode. Na alegria há um aumento da potência de agir, afirmando a existência e ligando o sujeito à sua essência. Alegria e tristeza são, assim, para estes filósofos, efeitos de forças externas, dos encontros que se efetuam entre os corpos. Em meio à vulnerabilidade e aos riscos sociais em que vivem os grupos que acompanhamos, arriscamo-nos a perguntar que tipo de encontros têm aí sido estabelecidos e que cuidados ou não à vida estão sendo com eles produzidos. Nas misturas de corpos que produzem efeitos podemos experimentar bons encontros ou maus encontros. Nos bons encontros, a potência de agir é aumentada e um afeto de alegria é experimentado, ocorre então uma conexão com outro corpo cujas potências se somam. Nos maus encontros, a potência de agir é diminuída, separando um corpo daquilo que ele pode.

Deparamos hoje no cotidiano das políticas públicas com boa parte dos profissionais e dos usuários separados do que podem, presos em segmentos identitários, atados às fôrmas do tecnicismo e da desigualdade social. Deslocar esses moldes é um desafio constante, e poder fazer-se intercessor nesses processos aponta um caminho possível à ética do cuidado tal como vimos até aqui propondo ser pensada. A noção de intercessor remete à aposta no "entre" como espaço de criação e invenção. O intercessor permite dessubjetivar, sair de si mesmo e abrir-se para a processualidade da vida. Não corresponde a algo preexistente, a ser descoberto, mas a algo que deve ser criado a partir desses encontros que mencionamos, da circulação dos afetos. Atuar como intercessor é instaurar desestabilizações que escapem à tutela e vigilância, tentando recuperar o coletivo e apostando na alegria, nos encontros potentes.

Passos e Barros (2000), sustentando a perspectiva deleuziana dos intercessores, destacam que o que importa são os movimentos que eles fazem evidenciar, "não pelo que se passa antes deles, ou pelo que os causa, mas pelo que se dá 'entre', pelo que está se dando (p. 77)". A ênfase dos autores ao abordarem este conceito-ferramenta da esquizoanálise é que não se trata de uma noção abstrata, mas de um conceito híbrido, já que

os intercessores não podem ser pensados fora da relação de interferência que se produz entre domínios [] Compreende-se, portanto, que o intercessor é uma noção funcionalista cujo sentido não pode ser apreendido senão no interior de certa operação - operação de encontro, contágio, cruzamento que desestabiliza e faz diferir (Passos, & Barros, 2000, p. 77).

Ser intercessor é ainda sustentar a singularidade dos usuários e de seu modo de existência, possibilitando a construção de uma saída em que os poderes instituídos falham, em que a naturalização deixa uma fenda, e a prática discursiva hegemônica sustentada pela desigualdade social vacila.

Ao propormos uma reflexão acerca da instituição do cuidado, portanto, apontamos a necessidade de problematização da ética que sustenta as práticas de psicólogos inseridos nos campos de intervenção de políticas públicas justamente para que os discursos hegemônicos (leia-se tutelares e assistencialistas) possam ruir. Ali onde esses discursos "gaguejam", novas práticas discursivas podem advir.

 

Considerações finais

Dado o crescente número e interesse dos psicólogos ligados ao Estado que operam principalmente as políticas públicas de saúde e assistência social, junto a diversos outros trabalhadores sociais, pensar a função que aí tais profissionais têm exercido e os efeitos que suas práticas têm produzido torna-se uma questão que nos parece relevante Nesse sentido, e inspiradas na filosofia da diferença que sustenta uma ética do cuidado à vida pautada pela singularidade e potencialização dos afetos alegres, apostamos nas interferências que usuários, trabalhadores e práticas de formação podem oferecer ao funcionamento dessas políticas, problematizando os processos de regulamentação da vida que as compõem.

As trajetórias recentes das políticas de saúde e assistência social apontam ainda para os limites estruturais da sociedade brasileira, evidenciando a necessidade de um enfrentamento intersetorial, através da conformação de uma rede de proteção social com a construção de interfaces entre setores e instituições governamentais (e não governamentais), como destaca Romagnoli (2017). Essa rede tem como propósito combater os complexos problemas sociais, que ultrapassam a alçada de um só setor de governo ou área de política pública, tornando quase uma imposição a integração entre as políticas. Entendemos, pois, a partir de nossas experimentações no campo das políticas de saúde e assistência social em diferentes regiões do Brasil, que, para além da intersetorialidade que tais políticas hoje demandam em suas complexas interrelações, é necessário também que se trabalhe na intercessorialidade. O campo das políticas públicas, neste sentido, implicaria uma disposição do psicólogo-cuidador a fazer-se intercessor assumindo o desafio, como enunciado anteriormente por Passos (2015), de se deslocar de um lugar de suposto saber para intervir com e como um dispositivo que opera neste plano do comum: produzindo(-se) coletivos.

Apostamos, pois, que nos agenciamentos "entre políticas", na vida que pulsa nos territórios, nas redes afetivas que usuários trazem em suas histórias de vida (tão pouco escutadas nos serviços ocupados com seus protocolos de atendimento, com os fluxos preestabelecidos pelas regras enrijecidas...) é possível produzirem-se intercessões. É possível expandir a vida, fazendo-a menos solitária e mais solidária. A aposta, aqui tomada na radicalidade do termo que carrega o sentido de nos postarmos junto, colocarmo-nos ao lado desta proposição, não é apenas em uma psicologia mais inserida no campo de intervenção das políticas públicas, mas em uma psicologia intercessora comprometida com a dimensão pública das políticas.

 

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Endereço para correspondência:
Roberta Carvalho Romagnoli
robertaroma@uol.com.br

Claudia Elizabeth Abbês Baeta Neves
abbes@luma.ind.br

Simone Mainieri Paulon
simonepaulon@gmail.com

Submetido em: 03/10/2017
Revisto em: 03/11/2017
Aceito em: 06/11/2017

 

 

1 Os CAPS ou CERSAM - serviços equivalentes no estado de Minas Gerais - constituem as unidades de referência especializada da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que, conforme Portaria n 336/GM, que as institui em 2002, devem prestar atendimento a pacientes com transtornos mentais severos e persistentes em sua área territorial, contribuindo, portanto, junto a outros equipamentos substitutivos, com a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos garantida pela Lei Federal n 10.216 de 6 de abril de 2001.
2 Em acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome (MDS), o SUAS divide-se em dois grandes eixos de proteção: a) Proteção Social Básica (PSB), tem como público-alvo as populações que vivem em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, ou que passam por privações e fragilização de vínculos afetivos devendo portanto prevenir situações de risco através do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários; Este primeiro eixo se desenvolve primordialmente em unidades denominadas CRAS. b) Proteção Social Especial (PSE), destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de abandono, maus-tratos físicos e/ou psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil etc. Este segundo eixo se desenvolve em unidades denominadas CREAS (Brasil, 2006).

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