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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2018

 

ARTIGOS

 

Violência na Infância e Adolescência: Perfil notificado na mesorregião do Baixo Amazonas

 

Violence in Childhood and Adolescence: Profile reported in the mesoregion of the Low Amazon

 

Violencia en la Infancia y Adolescencia: Perfil notificado en la mesorregión del Bajo Amazonas

 

 

Lorena Guimarães Ferreira HonoratoI; Anselmo Cordeiro de SouzaII; Telma Suanne Rocha dos SantosIII; Odlina Guimarães LopesIV; Cristina Zukowsky-TavaresV

IMestre em Promoção da Saúde pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil. Assistente Social pela Universidade Metodista. Santarém. Estado do Pará. Brasil
IIMestre em Promoção da Saúde e Pós-Graduado em Gestão de Pessoas por Competências pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil. Graduado em Pedagogia pela Faculdade Paulista São José - FPSJ. São Paulo.. Estado de São Paulo. Brasil. Graduado em Teologia pelo Seminário Adventista Latino Americano de Teologia (SALT). Cachoeira. Estado da Bahia. Brasil
IIIMestre em Promoção da Saúde pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil. Graduada em Serviço Social pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Santarém. Estado do Pará. Brasil
IVGraduanda em Psicologia pelo Instituto Esperança de Ensino Superior (IESPES). Santarém. Estado do Pará. Brasil
VMestre e Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil. Pedagoga pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). Docente do Programa de Mestrado Profissional em Promoção da Saúde do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo pretende traçar um perfil da violência infantil notificada na região oeste do Estado do Pará, com ênfase na violência física e sexual. Trata-se de investigação descritiva, retrospectiva e quantitativa realizada por meio de análise documental, a partir das fichas de atendimentos as ocorrências de violência no Programa Pro Paz Integrado, nos anos de 2012 a 2015. Os dados apresentam-se em estatísticas descritivas. Dos 2.078 registros de violência notificados, 72% se deram em vítimas do sexo feminino, 31% das violências ocorridas na casa da vítima. A violência física foi a mais frequente (32%). A faixa etária mais atingida de 12 a 17 anos. Predominou o agressor intrafamiliar (17%) e as violências notificadas concentraram-se nas regiões periféricas (60%). Caracteriza-se um perfil prevalente de violências físicas, precedidas das sexuais, em vítimas do sexo feminino, adolescentes, de baixa renda e escolaridade, cor parda, religião católica, ocorridas na casa da vítima e com agressor intrafamiliar. Conclui-se a urgência desses resultados estarem inseridos na agenda de políticas locais de enfrentamento.

Palavras-chave: Maus-tratos infantis; Adolescentes; Violência; Notificações; Promoção da saúde; Baixo Amazonas.


ABSTRACT

The article aims to trace a profile of reported child violence in the western region of the State of Pará, with emphasis on physical and sexual violence. It is a descriptive, retrospective and quantitative research carried out through documentary analysis, from the records of attendance to the occurrences of violence in the Program Pro Paz Integrado, in the years 2012 to 2015. Data are presented in descriptive statistics. Of the 2,078 records of reported violence, 72% occurred in female victims, 31% of the violence occurred in the victim's home. Physical violence was the most frequent (32%). The most affected age group was 12 to 17 years. The intrafamily aggressor predominated (17%) and reported violence was concentrated in the peripheral regions (60%). The prevailing profile of victims is characterized by physical violence, preceded by sexual violence, female, adolescent, low income, low schooling, brown color, Catholic, and violence occurs in the victim's home and with intrafamily aggressor. It is concluded that these results are included in the agenda of local coping policies.

Keywords: Child abuse; Adolescent; Violence; Notifications; Health promotion; Low Amazon.


RESUMEN

El artículo pretende trazar un perfil de la violencia infantil notificada en la región oeste del Estado de Pará, con énfasis en la violencia física y sexual. Se trata de una investigación descriptiva, retrospectiva y cuantitativa realizada por medio de análisis documental, a partir de las fichas de atención a las ocurrencias de violencia en el Programa Pro Paz Integrado, en los años 2012 a 2015. Los datos se presentan en estadísticas descriptivas. De los 2.078 registros de violencia notificados, el 72% se dio en víctimas del sexo femenino, el 31% de las violencias ocurridas en la casa de la víctima. La violencia física fue la más frecuente (32%). El grupo de edad más afectado de 12 a 17 años. Predominó el agresor intrafamiliar (17%) y las violencias notificadas se concentraron en las regiones periféricas (60%). Se caracteriza un perfil prevalente de violencias físicas, precedidas de las sexuales, en víctimas del sexo femenino, adolescentes, de baja renta y escolaridad, color parda, religión católica, ocurridas en la casa de la víctima y con agresor intrafamiliar. Se concluye la urgencia de que estos resultados estén insertados en la agenda de políticas locales de enfrentamiento.

Palabras clave: Maltrato contra niños; Adolescente; Violencia; Notificaciones; Promoción de la salud; Bajo Amazonas.


 

 

Introdução

A violência pode ser caracterizada como fatal e não fatal e definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou possa resultar em lesão, morte, dano psicológico, malformação ou privação (Organización Panamericana de la Salud, 2003). Sua abordagem se faz de diferentes maneiras, a saber: por tipo/categoria (coletiva, interpessoal, autoinfligida, estrutural), local da violência (doméstico, institucional, lugares fechados, lugares públicos) e quanto ao agressor como intrafamiliar/extrafamiliar e também a espécie/natureza da agressão como física, sexual, psicológica, privação ou negligência (Macedo, Bezerra Filho, Feitosa, & Moreira, 2015). A natureza da agressão à criança e ao adolescente em destaque nesse estudo é a física, seguida da sexual.

Além dessas classificações, a violência pode ser definida considerando a qual grupo ou pessoa ela é direcionada como a violência entre casais, violência nas relações afetivas, violência contra mulheres, violência por parceiros íntimos e a violência contra crianças e adolescentes que é o foco dessa investigação (Coelho, Silva, & Lindner, 2014).

Atualmente a violência em suas variadas formas se configura como grave problema de saúde pública no mundo, com desdobramentos e consequências trágicas que desafiam o estabelecimento de uma sociedade dita sustentável (World Health Organization, 1996; Organização Mundial da Saúde, 2015). Diante disto a OMS lançou o relatório mundial sobre violência e saúde em 2002, que já apontava apenas no ano 2000 o exorbitante número de 1 milhão e 600 mil pessoas mortas no mundo em virtude de algum tipo de violência (Krug, Dahlberg, Mercy, Zwi, & Lozano, 2002).

O recente relatório da OMS "Global status report on violence prevention 2014" destaca, em relação aos maus-tratos infantis, que um quarto de todos os adultos relatam ter sido abusados fisicamente quando crianças, incluindo uma em cada cinco mulheres e um em cada 13 homens. As consequências do maltrato infantil incluem problemas de saúde física e mental ao longo da vida e os resultados sociais e ocupacionais podem, em última instância, retardar o desenvolvimento econômico e social de um país. Assim, maltrato infantil se caracteriza como violência que ocorre às crianças menores de 18 anos de idade. Inclui todos os tipos de maus-tratos físicos e/ou emocionais: o abuso sexual, a negligência, a exploração comercial ou outra, o que resulta em danos reais ou potenciais para a saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da criança no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder (Organização Mundial da Saúde, 2015).

Em um dos artigos da série de seis estudos sobre a saúde no Brasil publicados na revista The Lancet, a violência é relatada como um importante problema de saúde pública, por ser fonte de grande proporção de morbidade e mortalidade, o que se traduz em altos custos individuais e coletivos (Reichenheim et al., 2011). E de forma mais específica em relação à violência contra crianças e adolescentes no Brasil, esta apresenta alta prevalência, constituindo-se como uma das principais causas de morte de crianças e adolescentes a partir dos cinco anos de idade (Massoni, Almeida, Martins, Firmino, & Granville-Garcia, 2014).

Entre as espécies de atos violentos predominantes em crianças e adolescentes priorizamos nesse estudo as violências físicas e sexuais para aprofundamento teórico estatístico.

Violência física significa o uso intencional, não acidental, da força para produzir injúrias, feridas, dor ou incapacidade na criança ou adolescente atingidos, causando danos físicos e também psicológicos. Os atos de violência física são classificados, de acordo com sua gravidade em moderados que se traduzem em empurrões, tapas, beliscões, sem uso de instrumentos perfurantes, cortantes ou que causem contusões e severos, que causam lesões temporárias, cicatrizes; lesões de caráter permanente, queimaduras; uso de armas. A violência psicológica, pode afetar a criança de forma isolada ou como uma das consequências da violência física e psicológica. Consiste em agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a vítima, corromper e criar expectativas irreais, restringir a liberdade ou, ainda, isolá-la do convívio social (Macedo et al., 2015; Coelho et al., 2014).

A violência sexual se refere ao ato ou ao jogo sexual que ocorre na relação hetero ou homossexual e visa estimular a criança ou adolescente vitimizado ou utilizá-lo para obter excitação sexual e práticas eróticas e sexuais impostas por meio de aliciamento, violência física ou ameaças. A violência sexual pode também estar associada ao abuso e exploração comercial (Macedo et al., 2015; Coelho et al., 2014). O abuso e exploração sexual e comercial tem se tornado recorrente no estado do Pará e, de acordo com o Relatório da Comissão de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), deve-se considerar que a questão da violência e o crime contra direitos de crianças e adolescentes precisam ser enfrentados de maneira conjunta pela escola, pelo estado e também pela família:

A violência familiar também pode favorecer a ação dos exploradores visto que muitas vezes o ambiente é de alcoolismo, drogas, agressões físicas e psicológicas, e até mesmo estupro, estes fatos muitas vezes levam crianças e adolescentes para as ruas como uma maneira de fugir da violência que sofrem em casa (Comissão de Justiça e Paz, 2017).

Salienta-se ainda que as diferentes formas de violência não são excludentes, ou seja, a violência sexual também é física e psicológica; a violência física também é psicológica, evidenciando o aspecto cumulativo das violências em suas variadas classificações e abordagens.

Ações e programas eficazes de assistência, prevenção à violência e promoção da saúde se constituem como importantes empreendimentos de apoio social à criança e ao adolescente, tidos como vulneráveis a diversos fatores de risco que se intensificam diante de agravos sociais eminentes em comunidades marginais aos centros urbanos (Zukowsky-Tavares et al., 2017; Organização Mundial da Saúde, 2015).

Neste sentido se institui o Pro Paz Integrado (PPI), serviço público estadual especializado no atendimento às crianças, adolescentes, mulheres em situação de violência no Pará. Este Programa foi desenvolvido a partir de um estudo das demandas da Fundação Pro Paz na Região Metropolitana de Belém (RMB) e regiões de integração do estado. O PPI oferece em um único espaço assistência básica relacionada à saúde física, emocional e mental (Pará, 2017). Ao mesmo tempo em que serviços municipais, estaduais e federais são destinados ao acolhimento e cuidado de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, entende-se também que há omissão e pouco envolvimento do poder público que, em escuta realizada pelos membros da Comissão de Justiça e Paz no estado do Pará, denuncia que a população reclama a questão da impunidade, da corrupção e nepotismo nos poderes públicos locais que se tornam entrave para a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e do adolescente (Comissão de Justiça e Paz, 2017).

O objetivo desta investigação foi traçar um perfil da violência à criança e ao adolescente segundo ocorrências notificadas no PPI do oeste do estado do Pará.

 

Método

Trata-se de uma investigação descritiva, retrospectiva e de natureza quantitativa realizada por meio de análise documental (Ludke, & André, 2014), que traçou o perfil sociodemográfico das vítimas e as características de violência notificadas. Realizou-se um estudo exploratório a partir da análise das fichas de atendimentos as ocorrências de violência no programa PPI Baixo Amazonas, alocado na Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente no Município de Santarém.

O Território Baixo Amazonas, segundo o Sistema de Informações Territoriais elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, permite a visualização de regiões brasileiras apoiadas pelo Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais e abrange uma área de 317.273,50 Km2. É composto por 15 municípios: Alenquer, Almeirim, Belterra, Curuá, Faro, Juruti, Monte Alegre, Mojuí dos Campos, Óbidos, Oriximiná, Prainha, Placas, Porto de Moz, Santarém e Terra Santa. A população total do território é de 678.936 habitantes, dos quais 271.161 vivem na área rural, o que corresponde a 39,94% do total. Seu Índice de Desenvolvimento Humano médio é 0,71 (Brasil, 2017a).

Após a autorização do PPI foram extraídos das fichas em dias alternados, durante o expediente, nos meses de novembro e dezembro de 2016, e fevereiro de 2017, organizados manualmente em um Diário de Campo os dados: 1. Da violência: local da ocorrência; tipos de violências (negligência familiar/maus-tratos, violência psicológica, violência física e violência sexual); 2. Das vítimas: faixa etária, sexo, grupo étnico, religião, escolaridade, núcleo familiar, moradia, renda familiar; 3. Dos agressores: vínculo com a vítima.

A partir dos dados transcritos no Diário de Campo da pesquisadora foi organizado um Banco de Dados em planilha Excel. A análise estatística descritiva dos dados se apresentou em frequência relativa e absoluta, entre as diferentes formas de violência, local do ocorrido, características sociodemográficas da vítima e vínculo com o agressor.

A pesquisa seguiu os princípios éticos das Resoluções no 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2016). Submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), pelo Parecer nº 1.361.208.

 

Resultados

De acordo com os registros do PPI no Baixo Amazonas, entre os anos de 2012 a 2015 foram registradas 2.078 ocorrências de violência contra crianças e adolescentes. Apresentou-se um crescente de ocorrências nos primeiros três anos do período, a saber, em 2012 foram registrados 416 (20%), em 2013 totalizou-se 570 (27%), em 2014 foram 583 (28%) notificações de violência, e em 2015 houve uma queda das ocorrências com 509 registros.

Em relação ao perfil sociodemográfico das vítimas apresentam-se características de sexo, faixa etária, etnia, religião, escolaridade, bem como se compõem o núcleo familiar e características socioeconômicas envolvendo renda familiar e moradia.

No que diz respeito à composição do núcleo familiar houve maior prevalência de vítimas da violência pertencentes as composições familiares compostas por pai, mãe e irmãos (22%), mãe e irmãos (14%) mãe, padrasto e irmãos (14%). Não foram informados os núcleos de constituição familiar de 278 (13%) vítimas, em alguns casos a vítima vivia só com o pai (7%), com as mães (5%), em outros casos conviviam com mãe e padrasto (3%), com os avós (2%), apenas com pai (2%), entre outras configurações familiares (18%).

Em relação a faixa etária das vítimas de violência entre crianças e adolescentes no Baixo Amazonas organizou-se os dados a partir da idade relatada em períodos de dois anos. Nota-se que 74,2% das ocorrências de violência se deu na faixa etária de 10 a 17 anos, sendo 492 (23,6%) de 16-17 anos, 457 (21,9%) de 14-15 anos, 395 (19,0%) de 12-13 anos, 203 (9,7%) 10-11 anos, respectivamente por número de ocorrências.

Quanto ao sexo dos pesquisados, totalizaram 1.491 (71,7%) do sexo feminino, e 587 (28,2%) do sexo masculino.

Com relação aos dados de etnia apontados nos registros documentais pesquisados, em 1.187 (57,1%) formulários este dado não foi informado. Dentre os 891 formulários restantes constatou-se que 759 (36,5%) das vítimas são pardas, 86 (4,1%), brancas, 39 (1,8%), pretas.

Nota-se que em 1.036 (49,8%) das notificações não foi informada a religião das vítimas, 633 (30,4%) relataram ser católicas, 392 (18,8%) evangélicas, 16 (0,7%) declararam não professar religião.

Com relação à escolaridade, aponta-se que em 537 (26%) não foi informada, 1.186 (57%) das vítimas de violência cursavam o ensino fundamental, 284 (13,6%), o ensino médio, 49 (2,3%), o nível superior, e cinco (0,2%) foram identificadas como "outros", como se segue na Tabela 1.

Quanto à renda das vítimas de violência, a maior parte, ou seja, em 767 (36,9%) ocorrências não foi informada, em 406 (19,5%) são de um salário mínimo, 383 (18,4%) declararam viver apenas da renda do programa Bolsa Família, 144 (7%) recebem de um a três salários mínimos, 141 (7%) declararam não ter nenhuma renda familiar. A situação da família das vítimas em relação a sua moradia em 382 (18,3%) notificações não foi informada, em 1.209 (58,1%) casos residiam em casa própria, 338 (16,2%) residiam em casas alugadas, 144 (6,9%) residiam em casas cedidas e cinco (0,2%) em outras moradias. Em relação aos tipos de moradias em 1.252 (60,2%) notificações não foram identificados, 530 (25,5%) residiam em casas de alvenaria, 207 (9,9%) em casas de madeira, 78 (3,7%) casas de construção mista como descreve a Tabela 2.

Entre os tipos de violência denunciadas, a violência física apresentou o maior número de casos com 666 (32%) ocorrências, seguida pela violência sexual com 470 (22,6%) casos, violência psicológica com 324 (15,5%) casos, violências múltiplas com 288 (13,8%) casos e suspeita de abuso/exploração sexual em 283 (13,6%) casos como descrito na Tabela 3.

Dos tipos de lesões registradas na unidade prevalece ocorrências de hematomas no corpo (9%), arranhões (3%), registros como lesão corporal (1%), ferimentos por armas e outros objetos (1%) e em 1.804 (86,8%) casos não foram identificadas.

Referente às notificações de violência de acordo com agravantes 2.036 (97,9%) não foram identificadas, uma (0,04%) resultou em aborto, quatro (0,1%) em doenças sexualmente transmissíveis, 29 (1,3%) casos de gravidez, cinco (0,2%) vítimas com deficiência mental ou física, e três (0,1%) identificados como "outros".

No que tange ao local onde ocorreram as violências, 639 (30,7%) ocorrências foram perpetradas na casa da vítima, em 442 (21,2%) das situações de violência notificadas o local não foi informado, 389 (18,7%) ocorreram em local público, 275 (13,2%) na casa do acusado/agressor, 195 (9,3%) foram identificadas como em outros locais (casa da tia, casa de irmã, no mato), 83 (3,9%) na escola, 24 (1,1%) na casa da vítima e do agressor, 17 (0,8%) no motel e 14 (0,6%) no espaço virtual/celular como representado na Tabela 4.

No que diz respeito ao fator de risco, segundo as diferentes formas de violência, verificou-se que os conhecidos foram os agressores que contribuíram com a maior prevalência para a violência (17%), logo após os vizinhos (11%), seguido de pai (10%) e padrasto (9%). Também contribuem para o quadro de violência, mas com menor prevalência os desconhecidos (8%), namorados (7%), amigos ou colegas (6%) e tios (4%).

No que se refere à cidade de residência das crianças e adolescentes vítimas de violência, a grande maioria das ocorrências notificadas são casos no município de Santarém (97%), seguido por casos de outras cidades subjacentes (2%) e casos não informados (0,9%).

No município de Santarém, os bairros com maior número de ocorrências são de regiões periféricas e somam 60% das ocorrências de violências com 1.231 notificações. Nas regiões urbanas estão cerca de 18% das ocorrências seguido das regiões rurais com 13%. Destaca-se que na zona rural 10,7% dos registros ocorreram nas comunidades dos rios Tapajós, Arapiuns e Várzea se tornando em relação a origem os locais de maior número de registros de violência. Ao todo 9% dos casos não foram notificados quanto ao local de origem das vítimas.

 

Discussão

O PPI é um órgão público estadual, cuja função é acolher as vítimas, sem que haja revitimização no processo, em um atendimento diferenciado, fazendo a junção de uma equipe como polícia civil, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e técnicos de enfermagem, e médicos peritos, para fazer cumprir os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei Nº 8.069/1990). O PPI do Baixo Amazonas, inaugurado no dia 8 de março de 2012 em Santarém, Pará (população geral de 300.000 habitantes), é responsável pelos atendimentos dos casos suspeitos ou confirmados de violências contra crianças e adolescentes bem como mulheres. A parte policial é responsável por instaurar inquéritos e encaminhá-los à Justiça para que sejam tomadas as medidas de proteção necessárias (Pará, 2017). Investigação realizada em todas regiões brasileiras sobre o acolhimento e condições de atendimento em delegacias especializadas que atendem mulheres vítimas de violência atestou que as mesmas não conseguem cumprir cabalmente suas funções isoladamente e que é preciso investir em esforços para que municípios organizem redes de atendimento que interliguem órgãos da comunidade nas áreas de saúde, educação e assistência social, e também da justiça e segurança pública. Só assim as mulheres, e acrescentamos nesse caso as crianças e adolescentes que são objetos de atenção do programa Pro Paz nas delegacias especializadas, poderão receber a proteção e a ajuda de que precisam (Osis, Pádua, & Faúndes, 2013).

A violência contra a criança é um tema identificado e discutido ao longo da história da civilização ocidental. Vem ganhando espaços importantes nas agendas e compromissos internacionais e nacionais (Deslandes, & Lemos, 2008). O ECA trouxe a implantação dos Conselhos Tutelares, das Casas Abrigos, a organização dos sistemas locais de saúde e a criação dos serviços voltados para de prevenção de violência infantil (Portaria GM Nº 936, 2004).

A perspectiva de resposta social à problemática vem estimulando interação individual e coletiva em situações de violência, fazendo com que gradativamente a "lei do silêncio" venha sendo quebrada (Ricas, Donoso, & Gresta, 2006). Assim, cresce a necessidade de aprofundamento nos estudos sobre violência contra a criança (Organização Mundial da Saúde, 2015), como a análise e discussão dos dados aqui investigados.

O presente estudo trouxe registros do PPI do Baixo Amazonas, no período de 8 de março de 2012 a 31 de dezembro de 2015 e, tendo como base o total de ocorrências notificadas (2.078 casos), numa média aproximada de 500 atendimentos ou denúncias/ ano.

As faixas etárias mais acometidas foram de 12 a 17 anos, como corroborado investigação de notificação de violência de acordo com a faixa etária na cidade de Belém no período de 2009 a 2011. Os autores descrevem que das 1.500 ocorrências 45,9% se manifestaram entre os de faixa etária entre os 10 e 19 anos (Veloso, Magalhães, Dell'Aglio, Cabral, & Gomes, 2013).

O sexo feminino foi predominante entre as vítimas desses eventos, o que pode ser justificado por fatores culturais que se referem ao machismo ou a aspectos vulneráveis do sexo feminino. A literatura tem relatado que, independentemente de idade e contexto social, as mulheres têm sido vítimas de violência, e isso acontece em diferentes culturas. A violência contra crianças e adolescentes pode também ser considerada como um fenômeno determinado por relações sociais desiguais de gênero (Gadoni-Costa, & Dell´Aglio, 2006). Na cidade de Belém, no estado do Pará, estado onde realizou-se esta pesquisa, observou-se que em todos os anos, há prevalência de casos do sexo feminino em todas as faixas etárias independentemente do tipo de violência (Veloso et al., 2013). Já em outro estudo realizado em Feira de Santana na Bahia ocorreu maior número de violência contra o sexo masculino de 0 a 13 anos, não obstante, na faixa etária de 14 a 19 anos prevalece novamente o sexo feminino (Costa et al., 2007) o que segue na direção de depoimentos de relatórios que investigam a violência em regiões de alta vulnerabilidade social no estado do Pará. "A cultura machista faz com que muitos homens tratem o sexo feminino como objetos de prazer sujeitas a serem compradas ou vendidas e esse pensamento não distingue mulheres de crianças e adolescentes" (Comissão de Justiça e Paz, 2017).

Em relação ao grupo étnico, segundo resultados deste estudo, em 57% dos prontuários não constavam registros desta variável. Nos demais houve predomínio de vítimas na cor parda em 37% dos casos e com baixa escolaridade (57%), ou seja, apenas ensino fundamental.

Nessa pesquisa (n = 2.078), crianças e adolescentes foram vítimas de diferentes tipos de violência no período de quatro anos sendo acometidas em sua maioria pela violência física (32%). Diferente do resultado de investigação realizada na capital do estado do Pará (Veloso et al., 2013) em que houve prevalência da violência sexual (41,8%), 26,3% violência psicológica e moral, seguidos da violência física com 24% das denúncias (Veloso et al., 2013). Uma possível inferência que podemos realizar refletindo na diferença de resultados em regiões tão próximas pode estar relacionada ao fato que adicionando os casos de violência sexual aos de suspeita de abuso e exploração sexual nos municípios do Baixo Amazonas investigados chegaremos a uma porcentagem superior (36,2%) aos casos de violência física (32%). Também precisaremos considerar a possibilidade de mais de um tipo de violência estar associada ao ato da agressão e apenas uma delas ser notificada.

Na adolescência, a violência física pode estar relacionada com a urgência de conter comportamentos, falas e ações características dessa fase, o que pode estar associado rejeição entre pais e filhos (Costa, Bigras, Souza, Carvalho, & Santos 2008).

No entanto, outra investigação em nível nacional realizada nas capitais e setenta municípios nos anos de 2006 e 2007 (n = 106.075) concluiu que a violência física foi a principal forma de ataque contra as crianças, apresentando maior frequência entre os meninos entre cinco e nove anos de idade (razão M/F = 1,6). Importa ressaltar que essa investigação ocorreu em nível nacional e não incluiu adolescentes em sua amostra. Nota-se também o aumento do risco de violência entre as meninas após os oito anos de idade, ao contrário dos meninos em que os coeficientes declinam a partir desta idade (Martins, & Jorge, 2010). Logo, os dados desta pesquisa se assemelham aos dados do estudo nacional aqui mencionado que foi publicado em 2010 por Martins e Jorge e diferem do estudo com dados coletados no mesmo estado da região norte onde se deu esta investigação (Veloso et al., 2013).

Já na cidade de Curitiba, no sul do país, observou-se, em relação à forma de violência contra crianças, que houve predominância da negligência/maus-tratos com meninos, chegando a 71,4% dos casos em 2008. Já o sexo feminino foi mais acometido pela violência sexual que chegou no mesmo ano a 81,2% das notificações nessa capital, ultrapassando os casos notificados na capital Belém (41,8%) e os casos de violência sexual e suspeita de abuso (36,2%) nesta pesquisa (Apostólico, Nóbrega, Guedes, Fonseca & Egry, 2012; Veloso et al., 2013). Mais um questionamento se levanta nesse momento alertando para a relevância do cuidado, orientação e educação quanto a sexualidade na infância e adolescência. Também se faz necessário investigar a possibilidade de subnotificação da violência nos municípios envolvidos nesse levantamento documental.

Essa pesquisa constata uma triste realidade em nosso país. De 2.078 casos, 98%, não informam os agravantes. Dos agravantes notificados 1% de casos são de gravidez decorrente da violência.. No caso dessa investigação, a gravidez foi mencionada e não pode ser desconsiderada. Um outro estudo ressalta que a adolescência é o período de transição entre a infância e a vida adulta, tendo como característica a mudança do corpo, da mente, mudanças emocionais, sexuais e sociais. O autor explicita ainda que a adolescência tem seu início nas mudanças corporais, puberdade, e finda no firmamento da personalidade, obtendo progressivamente sua independência econômica, além da integração em seu grupo social. Assim, quando se torna vítima da violência, todas essas etapas de vida do adolescente são prejudicadas, que de certa forma têm sua vida completamente modificada, primeiro pela violência, depois em alguns casos, por assumir uma gestação precoce (Eisenstein, 2005).

Dos tipos de lesão ocasionados pela violência, um número significativo de casos não é informado, a saber, em cerca de 87% das notificações não há registro. Dos registrados, 9% são hematomas, o que vem confirmar também os dados notificados de maior incidência de agressão física.

Quanto à religião, ignorando o índice dos não informados (49,8%), predominou a religião católica (30,4%), seguida de evangélicos (18,8%). Em recente revisão da literatura é abordado o papel da religião na promoção da saúde e prevenção da violência e temas correlatos. Apesar de apontarem o papel exitoso da religião na prevenção da violência e na reabilitação de pessoas, alguns estudos põem em xeque esta relação e destacam conflitos entre os conceitos utilizados e os resultados obtidos (Ribeiro, & Minayo, 2014). Outra revisão sobre a evolução histórica das percepções de criança e maus-tratos aborda uma visão positiva da compreensão religiosa em relação ao infante ainda que isso não fosse relevado em dados momentos históricos (Oliveira, & Pais, 2014). Em interessante reflexão sobre violência e religião, destaca-se que as análises feitas sobre esta relação permanecem muitas vezes, na superfície das coisas. A questão é, na verdade, muito mais ampla e profunda do que práticas religiosas e religiões em termos de compreensão e vivência (Bingemer, 2014).

Em relação ao provável agressor destaca-se que por vezes se relaciona de algum modo com a vítima, ocorrendo a agressão em vários casos no próprio seio familiar e doméstico. Os resultados desta investigação apontam para o provável autor da agressão como um conhecido ou alguém que possui uma relação de proximidade com a vítima (17%), na mesma direção de outro estudo em que familiares e conhecidos são os agressores prevalentes (Deslandes, & Lemos, 2008; Mascarenhas et al., 2010).

Explicita-se ainda neste estudo com respeito a identificação do agressor de crianças e adolescentes na região do Baixo Amazonas que seguido de pessoas de forte proximidade com a vítima (17%) estão os vizinhos (11%), em terceiro lugar surgem os pais (9%), e em quarto lugar os padrastos (9%). Entende-se que, para além do círculo familiar e de convivência da criança e adolescentes, existem fatores externos, políticos, sociais e morais que perpassam toda essa problemática de educação, de saúde pública e equidade social (Deslandes , & Lemos, 2008).

Em investigação realizada em Belém do Pará (Veloso et al., 2013), os agressores amigos/conhecidos da família representaram 38,2% dos casos, sendo indicados como principal fator de risco, o que se assemelha com esta investigação realizada na mesorregião do Baixo Amazonas em que conhecidos da família também ocuparam o primeiro lugar (17%) dentre as notificações registradas. Em seguida, figuram em Belém os desconhecidos (15,2%) e neste estudo os vizinhos é que surgem como o próximo agressor (11%). Depois desses, padrastos e pais seguem como os agressores mais citados tanto neste estudo nas imediações de Santarém como em Belém (Veloso et al., 2013).

Na cidade de Curitiba, ao se tratar de violência sexual, o pai foi o principal agressor (Apostólico et al., 2012) e, na cidade de Londrina no mesmo estado, o abuso sexual contra crianças e adolescentes teve o padrasto (30,1%) como principal agressor (Martins, & Jorge, 2010).

A família tem uma importante participação na sociedade e na educação dos filhos para o exercício da autonomia e participação cidadã. De fato, as instituições familiares têm sofrido transformações no decorrer da história, que podem variar de uma cultura para outra com potencial de gerar desentendimentos entre pais e filhos, conflitos entre casais, separações, e em alguns casos composição de nova família, o que sempre representará um desafio para a convivência saudável entre seus participantes (Oliveira et al., 2013).

A educação e vigilância em saúde, bem como a garantia de proteção aos direitos de crianças e adolescentes dizem respeito a diferentes agentes e interlocutores nesse processo. Importa rejeitar um discurso unilateral de culpabilização da família pela violência ocorrida dentro de suas portas sem considerar todo o cenário social que a circunda. Também não podem a escola e o estado assumirem sozinhos o enfrentamento. Trata-se de uma ação conjunta.

Cumpre à família, à comunidade, à sociedade em geral e ao poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária (Sarti, 2011).

Mesmo com notáveis diferenças de configuração familiar, constatada pelos registros notificados no PPI do Baixo Amazonas, prevalece o núcleo familiar "pais e irmãos", seguido de família monoparental feminina (mãe e irmãos). O papel da família na contemporaneidade assume uma nova responsabilidade e modificações para o jogo de relações de autoridade. O papel masculino, antes, era muito abalado se o homem não cumprisse seu papel como autoridade e chefia. Hoje, devido às grandes transformações no mundo contemporâneo, não se constitui problema a mulher assumir esse papel de figura patriarcal feminina e chefe de família (Brasil, 2017b). Vale destacar o terceiro lugar, que aparece a composição de "mãe, padrasto e irmãos". Tendo ciência de que há pesquisas em que até 80% de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, o padrasto apresenta-se como responsável pode-se atentar nos veículos de saúde e educação para esse especial fator de risco (Araújo, 2002).

De 2.078 casos, 639 (31%) das agressões ocorreram na casa da vítima, tornando este um local favorável para a consumação das agressões e abusos contra crianças, principalmente as meninas. Um estudo argumenta que isto se deve às crianças e adolescentes terem a casa como o local em que permanecem mais tempo (Costa et al., 2007). No entanto, fica mais uma vez a constatação de um resultado que precisa servir de alerta e orientação as famílias no cuidado de seus filhos, e aos serviços de saúde na atenção e atendimento nas unidades e domicílios. É grande o número de estudos que apontam para a casa onde reside a vítima como local da violência o que permite refletir em medidas preventivas nos atendimentos em domicílio e nos espaços descentralizados de formação e educação em saúde na cidade (Veloso et al., 2013; Apostólico et al., 2012; Mascarenhas et al., 2010).

Sendo o Território Baixo Amazonas - a região oeste do estado do Pará composta por 15 municípios, realizou-se o estudo com dados dos municípios/cidades que mais apresentaram casos de violência contra crianças e adolescentes, e observou-se que 2.016 (97%) casos ocorreram no município de Santarém. Por se constituir na maior cidade integrante do programa e também por ter a sede do Programa Pro Paz justifica-se a maior parte das notificações serem oriundas da própria cidade.

Foram registradas também as violências notificadas por bairros, dentro do Município de Santarém, e constatou-se 279 (13%) casos registrados na Zona Rural, ou Interior, ou Sítio, Eixo Forte, comunidades que são pequenos vilarejos, (ribeirinhos ou não) e ficam nas proximidades do município de Santarém, fazendo parte da área de abrangência do município. Há estudos apontando a relação existente entre a violência familiar e contextos socioeconômicos e culturais, que podem influenciar o comportamento familiar, somando com a perpetuação da violência contra crianças e adolescentes, e gerando um ciclo vicioso (Silva, Nascimento, Silva, & Guimarães, 2002). Neste estudo apresentam-se bairros periféricos e regiões que concentram 60% das notificações de violência e podem ser acompanhados e monitorados por políticas locais de atendimento, educação e cuidado sendo áreas consideradas como espaços de exclusão social ou não, embora este fator não seja um interveniente determinante do agravo em curso uma vez que "a violência é fruto, mais da ignorância, que da pobreza" (Chesnais, 1999, p.64) e para a formulação de políticas de intervenção é necessário antes de tudo ouvir, escutar, entender e refletir na realidade que circunda os grandes centros urbanos:

A violência, cada vez mais, é pesquisada no Brasil. No que tange às periferias, no entanto, falta um detalhe importante: ouvir. "Vale a pena o esforço de escuta sobre o que as pessoas dizem. Todas as pessoas. É imprescindível ouvir as pessoas que estão direta ou indiretamente implicadas na vida das periferias para estabelecermos os contornos de o que é pertinente e o que não é para tudo o que discutimos (Hirata, 2018, p. 27).

No esforço de tecer um diálogo temos o caso de integrantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e de movimentos sociais, além de lideranças rurais e moradores de comunidades remanescentes de quilombos de Santarém, PA, que participam desde 2012 do Projeto "Direitos Humanos e Desenvolvimento no Oeste do Pará: Combate à pobreza extrema através da educação em direitos humanos". No entanto, não se encontra na mídia coletiva menções de continuidade dessa proposta e seus resultados. Entende-se que há complexos desafios sociais que intensificam cenários de violência no município de Santarém e seus arredores:

Santarém se consolida como lugar da elite local, e as cidades de Belterra e Mojuí dos Campos passam a exercer a função de periferia da região metropolitana, devido à valorização das terras em toda a região metropolitana. É clara a expulsão das classes mais pobres para as cidades vizinhas sem o fornecimento do mínimo de infraestrutura ou de serviços essenciais (Gomes, Cardoso, Coelho, & Oliveira, 2017).

Nesta investigação verificamos que a renda familiar da maior parte das vítimas 767 (37%) não foi informada, porém 406 (20%) recebiam apenas 1 salário mínimo, 383 (18%) declararam viver apenas do Programa Bolsa Família, ou seja, uma parcela significativa dependia apenas de programas sociais para a sobrevivência. A grande maioria destas famílias possuíam casas próprias 1.209 (58%), mas 338 (16%) residiam em casas alugadas, com significativa quantidade de moradias de alvenaria 530 (26%).

Os resultados encontrados nos registros dessa pesquisa documental omitem alguns dados que foram aqui descritos como "não informados", tais como etnia (57,1%), religião (49,8%), situação de moradia (50,1%), tipo de moradia (60,2%), renda (36,9%), e local da violência (21,2%), tipos de lesões (86,8%) e agravantes decorrentes da violência (97,9%). Os possíveis sentidos da ausência dos registros no entendimento de assistentes sociais que faziam a triagem foi em alguns momentos a falta de tempo, ou por alguns itens do formulário não serem considerados de preenchimento obrigatório, ou porque o informante declarou não ter conhecimento em se tratando de etnia, religião com declarações do tipo "Não sei", "Não tenho":

Apesar do reconhecimento da relevância da ficha de notificação como ferramenta de sucesso do enfrentamento da violência, ainda assim existe a subnotificação que, dentre outros motivos, está relacionada à dificuldade para identificação dos casos, por falta de informações básicas que permitam o diagnóstico, sendo este um dos principais responsáveis pela subnotificação da violência ou maus-tratos contra crianças e adolescentes (Pereira et al., 2013, p. 292).

Refletimos nesse caso ainda mais sobre a relevância do registro correto e sistemático de dados em órgãos oficiais que permitam levantamentos estatísticos e qualitativos mais fidedignos para subsidiar futuras intervenções e formulação de políticas locais.

De acordo com a Polícia Civil no estado do Pará, a maioria dos crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes são estupros: entre 2004 e 2012 foram 7.704 casos e mesmo sendo considerado um número elevado, também pode esconder uma realidade muito pior já que muitos crimes não são denunciados, gerando uma subnotificação (G1. Pará, 2013).

A violência é um ato de brutalidade, exploração, abuso físico ou psíquico de incapaz e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, medo e terror (Silva et al., 2002; Coelho et al., 2014; Massoni et al., 2014; Macedo et al., 2015; Organização Mundial da Saúde, 2015). Daí a importância do trabalho multidisciplinar que seja voltado para ações integradas de cuidado e atenção à saúde e a vida, bem como proteção às crianças e famílias que passam por situações de violência.

Analisa-se a violência sob três dimensões que configuram os fenômenos sociais. Na dimensão estrutural, onde estão inclusas as políticas (nacionais e internacionais) de atenção à saúde da população violentada. Na dimensão particular, por meio da instrumentalização de profissionais e em programas locais que visem o esclarecimento da população sobre a importância e emergência em se discutir a problemática. E por terceiro, a dimensão singular, que é relacionada aos processos individuais ou aos grupos homogêneos. Nesta dimensão, vê-se a violência alterar a estrutura familiar, alterando o desenvolvimento das crianças e adolescentes, numa realidade de desigualdade e exclusão social, falta de direitos ou acesso (Azevedo, 1990).

 

Conclusões

Podemos sintetizar o perfil da violência no Núcleo Pro Paz do Baixo Amazonas/sede Santarém como incidindo prioritariamente contra o gênero feminino, adolescente, de baixa renda e escolaridade, cor parda, religião católica, que mora em casa própria de alvenaria, na cidade de Santarém e no bairro Zona Rural. Dentre as vítimas, em todas as faixas etárias, predominaram as idades entre 12 a 17 anos. As formas de violência prevalentes foram a violência física, sexual, seguida da violência psicológica, tendo como lesões, hematomas, arranhões e agravantes notificados como a gravidez, aborto e doenças sexualmente transmissíveis (DST). Os registros sobre os supostos agressores destacam primeiramente conhecidos e vizinhos, seguidos de pai e padrastos. A violência tem ocorrido na casa da vítima e o agressor é conhecido da família. Faz-se urgente que esses resultados façam parte das discussões e das políticas locais de enfrentamento para que possam desencadear intervenções na região do Baixo Amazonas, a começar pelos casos de violência física e sexual.

A implantação e a continuidade das notificações de violência nos programas e serviços oficiais representam estratégias fundamentais para o não silenciamento das ocorrências e, mesmo que insuficientes, para o enfrentamento da violência à criança e adolescentes no oeste do Pará. Caracterizar o perfil das pessoas vitimizadas e dos agressores por meio de notificações adequadas pode colaborar com as políticas públicas de enfrentamento e promoção da saúde.

 

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Endereço para correspondência:
Lorena Guimarães Ferreira Honorato
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Anselmo Cordeiro de Souza
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Telma Suanne Rocha dos Santos
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Odlina Guimarães Lopes
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Cristina Zukowsky-Tavares
cristina.tavares@ucb.org.br

Submetido em: 04/12/2017
Revisto em: 28/03/2018
Aceito em: 26/04/2018

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