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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.3 Rio de Janeiro sept./dic. 2018

 

ARTIGOS

 

Adolescentes, infração e drogas: cartografando tessituras de redes sociotécnicas

 

Adolescents, infraction and drugs: mapping sociotechnical networks textures

 

Adolescentes, infracción y drogas: cartografiando tesituras de redes sociotécnicas

 

 

Cristiane DamedaI; Irme Salete BonamigoII

IPsicóloga. Serviço de Proteção Social a Adolescente em Cumprimento de Medidas Socioeducativas de Liberdade Assistida e de Prestação de Serviços à Comunidade. Município. Estado de Santa Catarina. Brasil
IIDocente. Mestrado Políticas Sociais e Dinâmica Regional pela Unochapecó. Chapecó. Estado de Santa Catarina. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas, o comércio proibido e outras ilegalidades relacionadas são considerados um sério problema na contemporaneidade, principalmente quando associados a adolescentes em situação de infração. As drogas são concebidas, neste estudo, como um ator da rede de vínculos dos adolescentes, mas também como parte de uma rede em expansão por meio da venda, compra e consumo que os vinculam ao tráfico. Este artigo é decorrente de uma pesquisa que identificou, a partir do método da cartografia e de noções da Teoria Ator-Rede, o consumo de drogas e o ato infracional como efeitos tecidos por uma rede de atores e que implicam a ação da droga, do sujeito, da família e de outros agentes nas relações que os enlaçam, permeadas pelos interesses que são construídos na busca de novas experiências. Trata-se da tessitura da cartografia dessa rede que produz e é produzida pelos vários atores a ela conectados.

Palavras-chave: Adolescência; Ato infracional; Drogas; Tráfico; Teoria Ator-Rede.


ABSTRACT

The abusive use of licit and illicit drugs, prohibited commerce and other related illegalities are considered a serious problem in the contemporaneity, especially when associated with adolescents in infraction situation. Drugs are conceived, in this study, as an actor in the adolescent bonding network, but also as part of an expanding network through the sale, purchase, and consumption which link them to traffic. This article is the result of a research that identified, from the cartography method and notions of the Theory Actor-Network, drug consumption and the infraction act as effects woven by a network of actors and involving the action of the drug, of the subject, of the family and of other agents in the relationships that enclose them, permeated by the interests that are constructed in search of new experiences. It is the texture of this network cartography that produces and is produced by the various actors connected to it.

Keywords: Adolescence; Infraction act; Drugs; Traffic; Theory Actor-Network.


RESUMEN

El uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas, el comercio prohibido y otras ilegalidades relacionadas son considerados serio problema en la contemporaneidad, principalmente cuando asociados a adolescentes en situación de infracción. Las drogas están concebidas en este estudio como un actor de la red de vínculos de los adolescentes, pero también como parte de una red en expansión a través de la venta, compra y consumo que los vinculan al tráfico. Este artículo es el resultado de una investigación que identificó, a partir del método de la cartografía y de nociones de la Teoría del Actor-Red, el consumo de drogas y el acto del infractor como efectos tejidos por una red de actores y que implican la acción de la droga, de la familia y de otros agentes en las relaciones que los enlazan, permeadas por los intereses que se construyen en la búsqueda de nuevas experiencias. Se trata de la tesitura de la cartografía de esa red que produce y es producida por los diversos actores a ella conectados.

Palabras clave: Adolescencia; Acto infractor; Drogas; Tráfico; Teoría del Actor-Red.


 

 

Introdução

A sociedade atual enfrenta um fenômeno considerado cada vez mais evidente e controverso devido a sua complexidade: o consumo abusivo de drogas lícitas e ilícitas, o comércio proibido e outras ilegalidades decorrentes e associadas. Para uma compreensão ampliada da questão, exclui-se adotar a lógica da simples relação de determinação causa e efeito para análise e opta-se pela cartografia do emaranhado de vinculações que contribuem para sua produção. Entende-se que o uso de uma substância química que produz efeitos diversos não ocorre devido a um fator apenas, mas é multideterminada pelo lugar em que o sujeito se encontra, pelas relações que o enlaçam e pelas condições de sua subsistência. Assim, a venda, a compra e o consumo de drogas implicam condições objetivas e subjetivas de vida dos sujeitos envolvidos, o território onde circulam, os vínculos afetivos e sociais estabelecidos, a situação econômica vivida, os sentidos atribuídos por eles a essas práticas, entre outros fatores. Para tal entendimento, a figura de rede sociotécnica torna-se um caminho possível para a identificação das vinculações tecidas no processo de fabricação implicados na produção de mundos e de subjetividades.

Define-se por rede sociotécnica, com base na Teoria Ator-Rede (TAR), a associação de atores, humanos e não humanos, isto é, "essas redes são compostas não apenas por pessoas, mas também por máquinas, animais, textos, dinheiro, arquiteturas - enfim quaisquer materiais" (Law, 1992, p. 3). Já a concepção de "ator", também nominado "agente" ou "actante", remete à produção de efeitos na rede, ou seja, trata-se de pessoas, organizações ou objetos (não humanos) que produzem efeitos na rede. Assim, tanto a rede produz efeitos nos atores como os atores produzem efeitos na rede. A rede, portanto, é definida por suas ligações ou elos, também reconhecidos como "nós", que se constituem nos encontros e nos agenciamentos possíveis entre os atores.

Identificar a rede de atores composta pelos adolescentes em medida socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) foi um dos objetivos estabelecidos em uma pesquisa de mestrado intitulada "Adolescência e Ato infracional: cartografia de processos de subjetivação de adolescentes em Medida de Liberdade Assistida", ligada ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) e produzida nos anos de 2015 e 2016, com amparo do Programa de Bolsas de Pós-Graduação Uniedu/Fumdes. Sob a concepção TAR, principalmente fundamentada em Latour (2006, 2013), as drogas emergiram como um dos atores não humanos que compõem a rede tecida pelos adolescentes em medida socioeducativa de LA - tema sobre o qual este artigo objetiva produzir reflexões.

 

Método

Por se tratar de uma pesquisa realizada no espaço de trabalho de uma das pesquisadoras1, foi possível estabelecer um olhar abrangente para as trajetórias e produções, com base no método da cartografia, a qual permite processualmente vivenciar a realidade pesquisada e produzir conhecimento sobre ela, haja vista que o contato aproximado e frequente com adolescentes, facilitou o convite para se tornarem participantes da pesquisa. As informações que comumente muitas metodologias chamam de "dados coletados" e "resultados encontrados", na cartografia, se constroem nessa relação heterogênea entre pesquisador, participante da pesquisa e produção de conhecimento, significando "admitir que é com base no encontro, na análise da tessitura da pesquisa, que o pesquisador e o campo advêm" (Miranda, & Mourão, 2016, p. 164).

O método da cartografia articulou-se à TAR na descrição da rede composta pelo coletivo de humanos e não humanos. Suas noções e pressupostos permitiram compreender como agentes engendram e são engendrados concomitante na rede, como, no caso do nosso estudo, o adolescente em LA e a droga, entre outros.

Latour (2006) sugere, a partir da TAR, que, para a identificação das associações e agências que compõem a rede, é preciso descrevê-la, bem como os vínculos que se estabelecem entre os atores, e também seguir os atores permitindo que eles se expressem. Para tal, o estudo utilizou-se das técnicas de entrevista, observação participante e pesquisa documental.

A entrevista permitiu o acesso à experiência dos adolescentes sujeitos da pesquisa. Foram entrevistados seis adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de LA2 atendidos nos dois Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) do município pesquisado e que mediante convite, aceite e autorização dos responsáveis tornam-se sujeitos da pesquisa; cinco familiares desses adolescentes; e cinco trabalhadoras da Política de Assistência Social que possuíam experiência com o Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de LA e Prestação de Serviços à Comunidade (PSC). Ressalta-se que foram referidos aqui os entrevistados abrangidos pela pesquisa como um todo, contudo, neste artigo, que é apenas parte da pesquisa, são principalmente as falas dos adolescentes que se sobressaem.

Os adolescentes participantes da pesquisa tinham entre 15 e 17 anos, três são do sexo feminino e três do sexo masculino, cinco considera-se de cor branca e uma de cor preta; quatro vivem com renda de até um salário mínimo, um entre um e dois salários mínimos e um com renda que varia entre sete e 10 salários mínimos. Destes, dois frequentavam o ensino fundamental na modalidade de jovens e adultos, um ensino fundamental regular, uma cursava o ensino médio regular e duas adolescentes estavam evadidas da escola.

No que tange aos responsáveis pelos adolescentes que participaram da pesquisa, quatro mães e um pai, eles apresentavam idade entre 37 a 54 anos, e tinham escolaridades diversas: dois ensino fundamental incompleto, duas ensino médio e uma pós-graduação, atuando nas profissões de motorista, atendente de bar, babá, auxiliar de produção em agroindústria e professor, estando três deles afastados do trabalho por doença no momento da entrevista.

Os seis adolescentes residiam em bairros diferentes, cinco tinham envolvimento direto com tráfico de drogas, e um relatou que apenas o irmão tinha ligação com essa prática. Importante mencionar que nenhum dos adolescentes participantes passou por medida de privação de liberdade e, no que se refere a reincidências, quatro já cumpriram mais de uma medida de meio aberto, alguns cumpriram LA, outros PSC e outros LA e PSC.

Para manter o anonimato, os adolescentes3 participaram das escolhas dos seus nomes fictícios para a pesquisa (Linda, Pimpa, Flor-de-Liz, Yasmin, James e Gui) e dos seus familiares (Gabriel, Generosa, Mulher-batalhadora, Rita e Magali), sendo que não houve familiares de Yasmin envolvidos no estudo4. Cada nome fictício e o seu significado foram cunhados pelo movimento de cada adolescente ao refletir sobre si, sobre sua história ou por se inspirar em nome de pessoa com quem possuía vínculo e admiração.

A observação participante em atividades grupais, visitas domiciliares, com o auxílio do diário de campo também possibilitou cartografar a realidade experienciada e, por meio do registro, fazer análise de implicação5, produzindo novas reflexões e conexões. Também foram acessados, para a pesquisa, documentos como normativas e legislações referentes a esse público, bem como prontuários dos adolescentes.

A análise das informações foi realizada com base na Esquizoanálise, a qual permitiu valorizar o ato da criação na pesquisa, assim como afirmar a valorização da vida em sua potencialidade máxima, conforme descrevem Peres, Borsonello e Peres (2000). Destaca-se que a pesquisa foi aprovada e decorreu dentro dos padrões éticos avaliados pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Unochapecó.

 

O tráfico como trama da rede: o envolvimento dos adolescentes com o comércio ilegal da droga

Cinco dos seis adolescentes entrevistados na pesquisa estavam em acompanhamento de medida socioeducativa de LA por tráfico, e dois deles cumpriam uma segunda medida de LA por esse mesmo ato infracional. Assim, com base na TAR, as drogas se apresentam no estudo, ao mesmo tempo, como um ator da rede de vínculos dos adolescentes e também como uma rede em expansão por meio da venda, compra e consumo que os vinculam ao tráfico.

Os familiares comentaram, com relação às drogas, a facilidade em se obter dinheiro como motivação aos adolescentes a se envolverem em situações ilícitas, principalmente o tráfico. Os relatos dos adolescentes corroboram o que os familiares afirmaram e destacam: que essa atividade se dá pelo envolvimento com pessoas conhecidas nesse universo, por necessidade ou, ainda, como uma maneira de retorno financeiro rápido.

James revela que, através desse ato infracional (tráfico), conseguiu sua independência pessoal e financeira:

O cara vai fazer um corre porque o cara já pensa "ah eu não sou mais um gurizinho". Eu não tenho mais que ficar sendo sustentado pelo pai, eu tenho que eu dar o meu jeito. [...] Eu não conseguia arrumar trabalho de nenhum jeito.

A mãe do adolescente confirma esse posicionamento que o filho tem, mas expressa negação a essa conduta relatando que não seria uma necessidade para ele: "Ele fala porque é que ele quer ir para a balada, porque ele quer ter mais dinheiro, porque é pouco o que a gente dá... Ele quer viver no seu mundinho [...]" (Rita). Em um dos atendimentos, James expôs medo de perder a mãe. Assim, em sua concepção, viver sozinho, emancipar-se seria uma forma de aprender a sobreviver sem a ajuda dela.

Ainda de acordo com os relatos, os adolescentes levam a droga para amigos, conhecidos ou outras pessoas, podendo-se fazer uma analogia com o método da "bola de neve", em que um indica o outro, compram para o seu consumo, vendem nas festas eletrônicas ou nas festinhas íntimas. Esse processo, como eles relatam, "fortalece" um comércio e também gera lucros financeiros formidáveis para aquele que faz esse trabalho.

Recém tinha começado, ganhava mil reais por semana, a cada sexta. [...] quanto mais vai, velho, mais rende. Pode ser por porcentagem, por semana, você acerta como quiser, pode ser por mês, por bucha. Não precisava fracionar, pegava já tudo pronto. Já consegui tirar em um mês vendendo, dez mil, mais [...] (Gui).

Apesar de compreender a ilicitude e os problemas judiciais que podem decorrer, os adolescentes relacionam o envolvimento com o tráfico à falta de trabalho, ao lucro rápido e à busca pela independência econômica. Sob a mesma ótica, os familiares expõem a venda de entorpecentes como fértil financeiramente, no entanto argumentam sobre as vantagens da atividade laboral formal, isto é, o trabalho legal como possibilidade dignificadora, mas tratam esta como uma escolha que não é feita pelos seus filhos adolescentes.

Yasmin também relata o comércio ilegal como a forma de suprir necessidades financeiras, dá destaque ao envolvimento da família nessa atividade e às perdas que teve pelo tráfico:

Se eu te falar, meu irmão morreu porque estava envolvido, minha mãe usava crack, ficou devendo, mataram ela. Minha avó também acho que morreu por isso, não pagou a conta da minha mãe. Meu pai está preso por causa de assassinato, fugiu e foi pego na [nome de uma rua] vendendo pedra. [...] eu também, vim morar para cá, precisava de dinheiro, fui vender, é assim.

No relato de Yasmim, percebe-se que, na situação de rompimento de vínculos familiares ou sociais, a droga medeia a interação com outras pessoas, na constituição de novos vínculos. Ela contou que conheceu seu companheiro nessa atividade e, no dia anterior à entrevista por ela concedida, ele foi preso por tráfico.

Linda, também participante da pesquisa, relata outra situação tão trágica quanto a mencionada por Yasmin, e expõe situações de faltas como um dos motivos geradores dos atos infracionais, incluindo o tráfico:

Quando eu estava morando sozinha, nós só com piazada que não tinha cabeça, que não pensava em nada. Daí não tinha ajuda de ninguém, de pai nenhum, então a gente tinha que roubar, traficar para comer, para ter o que comer de dia, de noite, de tarde, de qualquer momento que tivesse fome, tinha que fazer isso. Eu não tinha cabeça, só pensava em fazer o momento que está ali, e depois?

Estas duas situações retratam um contexto de faltas socioeconômicas em que as atividades ilícitas foram praticadas como uma estratégia para superar as dificuldades de sobrevivência. A partir da TAR, pode-se analisar a facilidade de uma rede de tráfico se constituir pela conexão entre um território de vulnerabilidade econômica, a presença da droga e de humanos que se submetem às normas do tráfico.

Yasmin, Linda e Gui também fazem referência ao meio em que viviam para o envolvimento com o tráfico. Gui, em especial, acredita que se envolveu com o uso, e consequentemente com o tráfico, não por necessidade, mas por estar nesse meio, vivenciar situações e ser "cooptado" para essa atividade. O adolescente descreve, em um breve relato, que ele e toda a sua família sentiram diretamente os efeitos de pertencer a um lugar vulnerável e conduzido pelo tráfico de drogas. Conta ele que sua mãe foi presa injustamente, acusada de venda, quando a droga era de um outro adolescente que a escondeu no bar da família no momento de uma operação da polícia; conta da sua perseguição àquele adolescente, do apoio do "chefe" do tráfico na sanção daquele garoto que prejudicou sua família. Gui mostra raiva e vontade de vingança ao relatar tudo, sendo para ele inadmissível sua mãe ter passado por essa vivência da prisão; vê isso como uma humilhação, mencionando que teve que se organizar sem os cuidados da genitora e sem a renda que advinha do trabalho dela no bar.

Ainda, é possível perceber no emaranhado do relato de Gui alguns princípios e normas presentes nas relações que se estabelecem com o crime organizado: lealdade com outras pessoas envolvidas no tráfico; se houver "batida policial", precisa correr para o "mato" e não envolver a comunidade - regra que foi transgredida, segundo Gui, pelo adolescente que usou o estabelecimento de sua família para esconder a droga, custando a saída deste e da família dele do bairro, uma demonstração de senso de justiça e atenção para com Gui, uma vez que a moralidade daquele meio foi dissipada com a quebra da norma pelo adolescente. A rede de compra e venda de drogas ilegais, muitas vezes, se apresenta como um lugar não só de riscos, mas também de providência, de cuidado, de irmandade, de proteção - são elementos que aparecem nos relatos dos adolescentes.

Algumas falas de outros adolescentes também insurgem no sentido de explicitar maneiras de funcionamento desse comércio considerado ilegal. Yasmin, por exemplo, relatou a existência de um caderno de anotações onde eram registradas as compras, as vendas e os devedores; por meio desse instrumento, minimamente contabilizavam-se os ganhos. Esse relato mostra que o caderno, ator não humano, compunha uma estratégia utilizada para o comércio, no entanto tais escritos estavam, no período da entrevista, servindo de provas para a prisão de seu companheiro. Assim, pode-se observar que os não humanos não são inertes ou passivos, mas também atores da rede à qual estão associados, isto é, à medida que atuam podem mudar o curso da rede, afirma Latour (2006).

James menciona na entrevista que o desempenho desse "ofício", o tráfico, ocorre tal como um trabalho formalizado, no qual há uma jornada de trabalho, um período de descanso e cuidados a serem tomados:

Funciona com horário que nem firma mesmo, das 9h às 9h, o cara tem que ir todo dia, segunda a segunda, só que domingo é dia de folga, mas tem gente que vai igual porque rende mais, os outros menores não vão para o corre6, daí fica só um lá e o dinheiro vai todo para ele. [...] Tem que cuidar da identidade dos outros, porque é melhor mentir do que levar um tiro na cabeça depois.

O dinheiro, a mão de obra, a logística, os instrumentos de registro, regras internas de funcionamento, as armas, o usuário, o policiamento, as leis, as substâncias químicas consideradas ilegais, o bar da esquina, a ausência de políticas públicas nesse território, a presença de adolescentes, famílias, e uma infinidade de outros atores são perceptíveis nessa rede do tráfico. Assim, o tráfico pode ser entendido como um plano coletivo que se funda na multiplicidade, isto é, não há apenas uma rede, mas várias, que se interligam de maneira heterogênea e por elementos heterogêneos, contendo várias vias de acesso, sem que uma se torne principal.

Nesse sentido, a prática de ato infracional análogo ao tráfico de drogas deve ser concebida como um efeito de um processo produzido por diversos atores, os quais atuam na construção e reconstrução de modos e discursos a partir de uma cultura, do ambiente e seus aspectos históricos, há uma rede de entidades e eventos para a sua ocorrência, à vista disso o tráfico precisa ser analisado como uma produção. Produção perpassada pela ilicitude devido a proibição da comercialização e consumo da droga, o que configura um modo diferenciado de organização que se conecta a territórios marginalizados e vincula trabalhadores de populações empobrecidas.

O relato de James descrito anteriormente denota um modo de organização do tráfico e circunstâncias que exigem destreza, rapidez, tomada de decisão, manutenção do sigilo de identidade do comprador, do fornecedor e o risco que essa atividade oferece. Ainda, por ser de natureza ilegal, tanto o uso quanto a venda exigem cuidados cotidianos no que se refere ao "respeito pela família" e para evitar situações constrangedoras ou mesmo punitivas: os adolescentes evitam o uso e a venda próximos de casa ou na escola quando precisam retornar depois de há tempo infrequentes, por exigência de uma medida socioeducativa, por exemplo; medo de os pais serem responsabilizados pela venda; receio de uma medida de privação de liberdade, entre outras.

Tais adolescentes admitem sua conduta como ilícita, visualizam as leis como forma de manutenção de uma ordem, mas não expressam criticidade a respeito do como ou porquê esse ato se tornou uma infração - tal fato demonstra a necessidade de formação política à juventude, para que também consigam questionar com consistência o porquê dessas práticas serem consideradas ilegais e outras não; e também questionar o que se tem feito a partir delas.

Petuco (2010) e Oliveira (2016) destacam que a proibição de algumas drogas expande o poder punitivo e estabelece uma "guerra" contra algumas pessoas, principalmente os mais vulneráveis, "os desprovidos de poder" que - já vulneráveis pelo não acesso a um conjunto de direitos - são tidos como criminosos por terem um comportamento fora de padrões hegemônicos ou socialmente adequados. Sobre estes também recaem efeitos históricos e perversos dispositivos de disciplinamento e controle, facultando processos de assujeitamento.

Outra questão importante a ser mencionada refere-se aos medos dos familiares entrevistados em relação aos adolescentes. Eles mencionaram, em geral, o temor da "perda" dos filhos para o tráfico, no sentido de um maior envolvimento para o consumo de drogas, roupas de marca e devido à facilidade em obter dinheiro. Também temem que essa atividade possa levá-los à morte. Uma das familiares ressalta também o medo de a adolescente "não ser mais réu primária e sair e comprar revólver, ou vender droga, sei lá" (Mulher-batalhadora).

É possível observar que o tráfico também possibilita o conhecimento de outras realidades e, às vezes, conduz a outras práticas ilegais, isto é, engendram uma rede de ilicitudes produzidas pelas políticas proibicionistas: estimulam, por exemplo, o tráfico de armas e de munições, os diversos furtos e receptações, as fraudes em documentos de identificação pessoal e de trânsito, o fortalecimento do trabalho informal, de mercados ilegais, corrupção e sonegação de impostos entre outros agenciamentos. Tais tessituras vistas pela perspectiva da TAR mostram como a rede, tal como o rizoma, pode ser quebrada em qualquer lugar, bem como tem a possibilidade de retomar as linhas rompidas, assim pode desterritorializar e se reterritorializar como processos de ramificação. Pode "fazê-la variar até produzir a linha mais abstrata e a mais tortuosa, com 'n' dimensões, com direções rompidas" (Deleuze, & Guattari, 1995, p. 7). Nesse sentido, as linhas se desconectam e perfazem outra conexão em rumo ao novo, ao devir, como linhas de fuga que se romperam e se encontram, produzindo outro significado.

As conexões de Gui mostram essas possibilidades: relatou na entrevista que possui acesso facilitado a armas de fogo, a placas de carro falsificadas ou mesmo a peças automobilísticas de desmanches clandestinos; receptação e condutas de risco, como dirigir sem ser habilitado e muitas vezes sob efeito de drogas. Por outro lado, Gui também relatou sua habilidade de negociação na compra de motos leiloadas, as quais arrumava e posteriormente vendia. No entanto, não se trata só de ilicitudes, Gui apresenta também conhecimento prático em chapeação e mecânica em geral, tanto em manutenção de carro quanto de motos, e expressa interesse por essa área. Com base em Latour (2015), ressalta-se que Gui produziu no seu cotidiano, apesar das recorrentes dificuldades, novos vínculos, tecendo e sendo tecido na rede que o coloca em movimento e potencializa devires: "Quanto mais vínculos, mais possibilidades o actante terá de circular pela rede. Um bom vínculo é o que proporciona possibilidades inesperadas, situações novas, criativas, interessantes" (Bonamigo, 2008, p. 357), que engendram novos efeitos.

Estabelecer compreensões a partir da TAR é não aceitar reducionismos, por isso torna-se importante um olhar criterioso para perceber e seguir atores humanos e não humanos que estão em interação. É a partir dessa perspectiva que se pode vislumbrar o tráfico como uma rede ampla e complexa, mas também como um ator de outras redes, quando visualizado em uma rede de redes (Law, 1992).

 

O uso da droga como um ator da rede de adolescentes em situação de infração

Produzir reflexões sobre o uso de drogas implica necessariamente olhar para a história como uma forma de compreender as articulações dessa prática na vida contemporânea. O álcool é a droga legalizada mais consumida entre os adolescentes, conforme descrevem Martins e Pillon (2008), fazendo parte de um espectro cultural do Brasil. Era utilizado em festas e rituais de povos indígenas, mesmo antes da vinda dos portugueses, todavia os portugueses conheciam vinho e cerveja e, mais tarde, aprenderam a fazer a cachaça a partir da cana-de-açúcar. O álcool era consumido "[...] para alterar a consciência, para calar as dores do corpo e da alma, para açoitar espíritos em festas, para atiçar coragem em covardes e para aplacar traições e ilusões" (Andrade, & Espinheira, 2016, p. 14). Assim, o ato de beber teve no decorrer da história diferentes intentos e tornou-se parte da maneira de ser social.

Em relação à maconha, seu uso se apresentava com propósitos medicinais que datam de 2700 a.C. No Brasil, ela foi introduzida pelos escravos africanos e depois difundida também entre os indígenas, tendo seu uso proliferado (Andrade, & Espinheira, 2016). Os autores chamam a atenção para o papel da mídia nos anos de 1950, que passou a condenar o usuário de maconha como desordeiro por ser uma substância não comercializada, ou seja, por não fortalecer o capital, deveria ser banida. Outro fator que contribuiu para esse cenário no que se refere à maconha foi a mídia não possuir um comprometimento com o mercado de anunciantes como acontecia com outras drogas - medicações, tabaco e álcool. A proliferação dessa ideia de "desvio de caráter" produziu os modos como as novas gerações foram instruídas sobre o uso da maconha. Por outro lado, a automedicação ainda é presente na nossa cultura, medicações são consumidas sem a devida importância ou prescrição.

Já na década 1970, as drogas enraizaram-se como pertencentes a uma cultura do comum, principalmente com o movimento hippie: que cultuava a natureza, a vida em comunidade e era a favor da busca pelo prazer por meio da utilização de drogas. As drogas passaram a ser vistas, por parcela da população, como elemento estruturante e integrador, para além de sua destrutividade, como uma oportunidade de acessar outros âmbitos existenciais, afirmam Baumkarten e Tatsch (2008).

Andrade e Espinheira (2016) mencionam que, nas décadas de 1980 e 1990, viu-se a emergência do uso de inalantes entre crianças e adolescentes de minorias étnicas e socialmente menos favorecidas - época em que a cocaína também passou a ser mais consumida. Salienta-se que a cocaína, ou na sua espécie mais "natural" a folha de coca, tem sido usada milenarmente pelos povos andinos para reduzir a fadiga e o cansaço das longas jornadas de trabalho e, na cultura brasileira, foi inclusive indicada por profissionais da saúde no final do XIX para a mesma finalidade. Segundo os autores, era comercializada livremente por laboratórios e enaltecida pelas suas propriedades medicinais, foi posteriormente demonizada e largamente censurada na sociedade.

Observar que as drogas fizeram historicamente parte da sociedade, tanto no uso medicinal quanto na busca de prazer facilita compreender por que seu uso - principalmente no caso da maconha - é visto como propulsor de relações coletivas pelos adolescentes. Nas palavras de James: "Usar maconha é valorizar outra cultura, a cultura da coletividade". Fazendo menção como conhecedor dos tipos de maconha existentes, das propriedades medicinais e de um reconhecimento social obtido, afirma James: "essa cultura vê todos como iguais, não tem um ser mais outro menos, tem igualdade, mas, claro, pode ter status: me convidam para as festas, eu vou de graça e tem as gurias também", ressaltando que obtém ganhos com o uso de drogas.

De modo geral, o que se sobressai nas entrevistas com os adolescentes é que o início do uso acontece pelo convite dos amigos e pela integração já comentada. Para Vargas (2006, p. 596), "a droga é usada enquanto substância compartilhada por um coletivo e os efeitos da experimentação carregam uma alta dose de surpresa". Pimpa, participante da pesquisa, afirma: "Tudo começou na escola: eu ia na escola e certo dia um amigo meu apresentou a droga e eu fumei e acabei gostando [...] eu comecei por brincadeira e fui viciando". Outros adolescentes também referem o meio escolar como lugar de experimentações, de contato, de estar com os pares. Por outro lado, Gui relata, emocionado, que o lugar ao qual pertence sempre foi movido substancialmente pelas drogas e que isso teve implicação direta na sua vida, consecutivamente no uso da droga por ele e no cumprimento de medidas socioeducativas que realizou.

Outra entrevistada menciona que conheceu as drogas ilícitas com o grupo de amigas e que seu companheiro, desde o início do relacionamento e até então, faz uso diário de maconha. Conta ela que experimentou, e argumenta: "Eu não usava droga, mas bebida eu bebia bastante, vodka, cerveja, de tudo um pouco, mas não usava baseado" (Linda). Tais relatos corroboram o que afirma Vargas (2006), ao referir que as primeiras experiências quando se trata de drogas ilícitas se dão na companhia de amigos.

Autores como Baumkarten e Tatsch (2008), Marques e Cruz (2000), Martins e Pillon (2008), Pechanscky, Von Diemen, De Micheli e Amaral (2016) apontam a adolescência como uma fase de mudanças incisivas do desenvolvimento humano; é quando, geralmente, iniciam as experimentações, inclusive de drogas. No entanto, Coimbra e Nascimento (2015) analisam que se criou uma identidade adolescente como algo fixo e de passagem obrigatória e que, a partir dessa noção hegemônica de "adolescência", também se criam indicadores padronizados de risco e de proteção para o uso de álcool e outras drogas; por isso a necessidade de se considerar as singularidades dos jovens, dos grupos e das culturas diversificadas.

Cinco dos seis adolescentes participantes deste estudo relataram que já fizeram uso de álcool, tabaco e maconha, e um deles mencionou já ter experimentado outras drogas, fazendo uso frequente de ecstasy quando vai a festas. Cabe destacar que o tabaco e a maconha são mencionados pelos entrevistados como de uso diário, enquanto o álcool é utilizado nos fins de semana; apenas uma das adolescentes, devido à gravidez, cessou o uso, mas os outros o mantêm.

No que se refere aos familiares, todos os adolescentes relataram que possuem membros de sua família envolvidos com o uso de drogas, o que inclui irmão, pai, mãe, tios, avós e companheiros. Em geral, são usuários de álcool e tabaco e, com os de mais tenra idade, também há envolvimento com as drogas ilícitas. Algumas mães/responsáveis participantes do estudo relataram, além da dinâmica de uso de drogas de familiares, a longevidade do uso por membros da família de origem. Vargas (2012) salienta a necessidade de reconhecer o consumo como universal e milenar e que, portanto, é um fenômeno produzido pela sociedade e inerente a ela.

A partir da lógica dualista bem X mal, o uso de drogas ilícitas é considerado "do mal', demoníaco; quando cessa o uso, o sujeito se transformaria, deixando de ser o que era, portanto, até então, suas qualidades foram negadas. Nessa perspectiva, a compreensão do uso não leva em conta a experiência prazerosa buscada pelo sujeito, mas o considera uma escolha que leva a um caminho de desvio; a cura está, muitas vezes, na lógica na abstinência total possibilitada apenas pelo enclausuramento.

Nesse sentido, Deleuze (1991) analisa que não se sabe o que fazer com as drogas (ou drogados), nem mesmo o que/como falar dela: ora se fala dos prazeres provocados, ora das causas gerais que estão fora do sujeito - embora não lhe sejam alheios -, como problemas sociais, de comunicação, a situação dos jovens etc. O referido autor questiona se é possível conceber uma causalidade específica da droga, afirmando que nela haveria o desejo por outra experiência prazerosa: pela mudança no sistema-percepção, incluindo as noções de espaço e tempo. É o que relata Pimpa, quando refere os efeitos do uso da droga: "Essa substância deixa como você precisa, e chega um ponto que você vai querer fumar todo dia e todo dia". No entanto, ele também expressa o receio de que a droga o tenha dominado: "Eu cheguei a um ponto que eu comecei a observar que a droga pode dominar, eu sou dominado pela droga, eu que tenho que controlar os meus atos [...]".

Na relação pessoa-droga, quem domina quem? Latour (2015) rompe com a divisão dominador/dominado. Afirma ele que não se trata de uma relação verticalizada de domínio, mas do vínculo existente entre a pessoa e a droga - um corpo afeta e é afetado por elementos que circulam na rede, numa espécie de "faz-fazer". Latour (2015, p. 128) considera que, portanto, "A questão não é mais de saber se devemos ser livres ou vinculados, mas se somos bem ou mal vinculados". Os bons vínculos "serão capazes de mobilizar mais aliados e de se tornarem estáveis" (Tsallis, Ferreira, Moraes, & Arendt, 2006). Trata-se assim de um processo de agenciamento coletivo composto pelo acoplamento de um conjunto de atores humanos e não humanos que se envolvem numa complexa trama e se movimentam no sentido de se (re)conectarem a outros atores e, à medida que se desterritorializam, reconectam e ampliam a rede. Suscita Latour que a plenitude autônoma ou a liberdade absoluta é um mito, por isso o sujeito precisa encontrar meios de se ligar e se religar com humanos e não humanos, e de substituir os vínculos que o prejudicam por outros mais interessantes e mais salutares nessa rede.

Sustenta Vargas (2005, p. 603) que o uso de drogas ilícitas põe em movimento "a produção de outras 'pessoas', de outros modos de encorporação e de subjetivação, de outras maneiras de engajamento com o mundo, em suma, de modos de existência pautados por uma outra ética que não a da vida em extensão." Trata-se do uso como técnica de produção de êxtase - de modos de existência imanentes povoados por intensidades, modos de subjetivação habitados por ondas de frio, calor, cores e sons: a vida em intensidade.

Na busca pela diversão, pelos encontros, pela visualização do novo, entre outros aspectos, é que as drogas se apresentam, de acordo com os relatos dos adolescentes pesquisados. Vargas (2006) analisa que as políticas antidrogas se fazem da força da lei e expressam apenas que as drogas fazem mal, causam dependência, que usá-las é um absurdo, por isso "diga não às drogas". São políticas oficiais que não demonstram diminuição de drogas ou de usuários. O autor sugere que não se pergunte "por que as pessoas usam drogas?" ou "qual o significado do uso de drogas?", pois se cairá no abismo das faltas. Teorias biologicistas, psicologizantes ou, ainda, de cunho sociológico explicam a busca pelo uso a partir das carências e/ou fracassos, seja devido a predisposições genéticas, atitude regressiva de uma personalidade mal constituída, faltas sociais ou materiais, perda de referenciais simbólicos ou crises de sentido - característica da modernidade; bem como do desvio moral, dos erros de informação, do fracasso das regras sociais. No entanto, para o autor, o que cabe questionar é: "que experiências os usuários realizam?", "qual o barato, ou a onda?"

A discussão se pauta no uso das drogas não medicamentosas como um "evento", no sentido de algo que acontece quando o consumo é efetuado. São novas experiências a cada uso e, como todo o evento, é preciso que ele seja feito, fabricado.

[...] como todo evento, seus resultados são imprevistos e, de um modo ou de outro, escapam àquilo que os condicionam e introduzem alguma surpresa, diferença ou alteração. Ainda como todo evento, a "onda" é algo que passa, que se passa. E o que (se) passa com a "onda" é um "estalo", uma "alteração" da percepção, uma "fruição por outros estados de percepção", uma "percepção intensa", uma "intensificação da percepção", "uma maior intensidade de percepção da vida", uma alteração que faz que os momentos sejam vividos "intensamente", já que "a vida só vale a pena se for vivida intensamente", como se ouve entre usuários (Vargas, 2006, p. 592).

O evento é preparado no sentido de encontrar a droga, os instrumentos e o lugar para usá-la, bem como de deter o conhecimento necessário ao uso para que a "onda" aconteça e não extrapole os limites (que pode ser a overdose). Os eventos como modos de experimentação, segundo Vargas (2006), transformam, produzem alterações intensivas e envolvem uma entrega ou renúncia: nem usuário nem as drogas detêm o controle; isto é, "os usuários são tomados pela droga ao tomá-la" (p. 598) e buscam o "sair de si", o "sair do normal".

Os adolescentes participantes desta pesquisa mencionam, de maneira geral, que o uso das drogas é uma constância que agrega pessoas no sentido da amizade, do namoro e que daí surgem as relações sociais de consideração, de status e de pertencimento a um grupo, bem como um ganho financeiro. Apontam sutilmente para os problemas de relacionamento ou de saúde, por exemplo, que podem aparecer com o uso. É nessa perspectiva, conforme já mencionado, que os adolescentes dão destaque ao receio de virarem reféns da droga pelo prazer originado.

Oliveira (2016) e Vargas (2006) destacam que a definição de o que é droga, droga lícita ou ilícita varia de sociedade para sociedade e também se modifica com o passar do tempo, assim quanto mais drogas tornadas ilícitas, tanto mais se expande o poder punitivo?

As medidas socioeducativas aplicadas de PSC ou LA são preferíveis à prisão, no entanto não são eficazes na diminuição do consumo; há uma lógica do castigo que anula o sujeito, "o sujeito é mais que passivo, ele é convertido em objeto sobre o qual recai a ação definida por terceiros" (Vargas, 2012, p. 42). Existe uma visão social deturpada de que esses sujeitos precisam ser afastados a todo custo das drogas quando, às vezes, essas são parte do lugar onde vivem, uma maneira de enfrentarem vulnerabilidades econômicas, dificuldades afetivas ou mesmo de obterem novos encontros, novas experiências mediante o recurso que possuem.

É interessante o entendimento de Vargas (2006) acerca do uso como produção de alter-ações, isto significa dizer que há a ação de "outros" no uso de drogas, são os agentes que as produzem. Não se trata de uma relação dialética - o uso como produto da sociedade e do indivíduo - ou de razão-organismo, mas sim de associações, de agenciamentos produtores das alterações. Se o uso produz alterações, é porque sempre há um outro que se põe em movimento, afirma o autor. Ou seja, nas palavras de Latour (2015), em uma rede sociotécnica, um ator tem agência, ele produz efeito na rede à qual está vinculado e, nessa vinculação, ao mesmo tempo a rede o "faz-agir". Assim, torna-se necessário olhar tanto para os atores quanto para os vínculos e para a configuração da rede.

 

Considerações finais

Pensar as drogas a partir de um olhar histórico, como parte de uma cultura, de um modo de ser e estar no mundo, contribui para pensar as possibilidades de vinculação entre adolescente e as drogas por meio de tramas de redes sociotécnicas, permitindo tangenciar a tradicional e redutora relação causa-efeito. Os relatos até aqui cartografados e as noções ligadas à TAR mostram que a rede de atores composta pelos adolescentes em medida socioeducativa de LA possui diversas linhas de agenciamentos, e essas se movimentam em um balanço que "fazem-fazer" ao mesmo tempo a rede e os próprios atores.

Tomar as drogas como determinante da condição de adolescente em situação de ato infracional seria reduzir o olhar a ponto de a rede desaparecer e ser substituída por uma única ação ou autoria, conforme descreve Law (1992). É incongruente tratar as drogas como um único aspecto que influencia negativamente a vida dos adolescentes. Ao visualizá-las como um dos atores da rede, abre-se a possibilidade de percebê-las também agenciando a convivência em grupo e momentos prazerosos. Como afirma Latour (2015), nem dominamos a droga nem somos dominados por ela, é uma questão de vinculação, sendo necessário olhar para a rede e para o processo que "faz-fazer": são os atores imbricados, o processo de fabricação e os efeitos produzidos, não cabendo qualquer redução ou simplificação.

Portanto, tanto o ato infracional como o uso de droga são considerados efeitos e não determinantes do processo produzido pela ação de diferentes atores na composição e manutenção da rede. Em especial, neste estudo, as drogas são concebidas como um ator da rede de vínculos dos adolescentes pesquisados, mas também como parte da rede do tráfico que vinculam esses mesmos adolescentes.

Destaca-se que as políticas de combate às drogas estimulam a repressão e a violação de direitos sobre a liberdade de consumo, criando um status de periculosidade e, consequentemente, a criminalização da juventude, tornando a proibição da droga uma forma de fomento ao próprio tráfico e agregando valor à mercadoria ilegal e ampliando o comércio. Além disso, fazem emergir violências, sentimento de insegurança da população, falta de controle de qualidade do produto e efeitos decorrentes.

A rede, conforme a TAR, é definida por suas ligações ou nós, que se constituem dos encontros de atores, linhas que se agenciam, desconectam-se e perfazem novas conexões significantes. Identificou-se que cada adolescente pesquisado produz e é produzido pela rede em que se conecta, e essa rede é tecida por atores humanos e não humanos, isto é, pessoas, estatísticas, conceitos, políticas públicas, família, amigos e também pela maconha, tabaco e outros produtos toxicômanos, pelo tráfico, armas, polícia, dinheiro, dentre outros elementos; também, que ser adolescente pode ser um fator de risco, tendo em vista as questões legais que envolvem a maioridade penal e as mudanças incisivas desse período de vida, no sentido das buscas por novas experiências.

Discursos carregados ora de emoção, dor e insegurança decorrentes de situações já vivenciadas, ora de alegrias, satisfações por fazer parte de um lugar, de um grupo de amigos, de uma família foram cartografados, o que permitiu acompanhar, vivenciar e reconhecer, no caminho da pesquisa, atores que fazem parte da rede de cada adolescente participante. O vínculo estabelecido anteriormente como profissional permitiu a construção de um elo entre pesquisadora, familiares e adolescentes, possibilitando uma abertura para que conteúdos emergissem, como também uma compreensão mais profunda da história de vida, das circunstâncias que levaram ao ato infracional e ao uso de drogas. A pesquisa permitiu identificar como se constrói e se mantém uma rede a partir dos vínculos desses adolescentes com a droga, assim como compreender a presença da droga na trajetória de vida deles. Além disso, o processo de realização da cartografia fortaleceu o vínculo usuário-profissional, desdobrando-se em uma participação mais protagonizada dos adolescentes nos atendimentos.

À medida que o conhecimento sobre as drogas se ampliou, o motivo pelo qual se usa também ganhou abrangência, o que permitiu problematizar o modo como as drogas ilícitas são consideradas demoníacas, assim como a demonização do sujeito adolescente como responsável único por escolher o caminho do "desvio". É nessa perspectiva que o consumo de drogas precisa ser considerado como tecido por uma rede com vários atores vinculados, que vai além do usuário, envolvendo todo o ambiente, as relações que o permeiam, intrafamiliar e social, as políticas públicas, a busca pelo prazer, entre outros fatores, e que também produz atores. Trata-se de uma produção de alter-ações, numa rede que "faz-fazer".

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Cristiane Dameda
crisdameda@gmail.com

Irme Salete Bonamigo
bonamigo@unochapeco.edu.br

Submetido em: 26/02/2018
Revisto em: 01/05/2018
Aceito em: 21/05/2018

 

 

1 Conforme Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (Brasil, 2009), o Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) é um serviço de média complexidade do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e atualmente é o espaço diário de trabalho de uma das pesquisadoras em uma cidade do sul do Brasil, cujo nome foi suprimido para proteger a identidade das pessoas que fizeram parte do estudo.
2 A Liberdade Assistida está definida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990), no Art. 118, como medida adotada sempre que houver necessidade de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente de forma que estabeleçam um novo projeto de vida e rompam com as práticas infracionais .
3 Por considerar-se importante a luta das mulheres pela autonomia e respeito, faz-se necessário pontuar questões de gênero imbricadas nesta pesquisa: quando citar "os entrevistados", "os adolescentes", nesses termos incluem-se as mulheres e as meninas participantes do estudo.
4 Apesar de terem sido atendidos no serviço, os familiares de Yasmin disseram não serem responsáveis pela adolescente e não saberem responder às questões relativas a ela; por isso não participaram da entrevista. Salienta-se que quem a acompanhou em audiências foi o avô, que faleceu no transcorrer da pesquisa.
5 Paulon (2005) e Romagnoli (2009) descrevem que a análise de implicação é um dispositivo que possibilita produzir ou identificar analisadores que evidenciam as contradições de um conceito, de uma verdade considerada absoluta, o que permite visualizar a multiplicidade e complexidade política, social e histórica de uma dada realidade, trazendo para o campo de análise a rede de poder e o jogo de interesses que se fazem presentes no campo da investigação, bem como as percepções, os sentimentos, os acontecimentos que permeiam o ato de pesquisar e envolvem o pesquisador na pesquisa.
6 "Corre" refere-se a uma terminologia utilizada pelos adolescentes para designar um processo de venda de drogas, uma espécie de leva e traz.

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