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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.3 Rio de Janeiro sept./dic. 2018

 

ARTIGOS

 

As tensões de ser professor no setor privado de ensino

 

Tensions of being a teacher in the private education sector

 

Las tensiones de ser professor em el sector privado de enseñanza

 

 

Marcia Souza GerheimI; Fernando Gastal CastroII

IDocente da Faculdade Cesgranrio. Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo analisa as tensões a respeito do que é ser professor em instituições privadas de ensino. Utilizamos a noção de injunção paradoxal de Castro e Gaulejac a fim de pensar atividade de trabalho, seus sentidos e suas incompatibilidades gerados pelos modos de gestão empresarial. Como referencial metodológico, baseamo-nos numa pesquisa de campo de viés fenomenológico e qualitativo, buscando compreender a situação de trabalho como sugerem Alvim e Castro. Os resultados alcançados revelam que ser professor neste contexto mostra-se tensionado por um lado, por possíveis capazes de dar sentido ao ensinar e, por outro, por exigências mercantis produtoras de forte desgaste e conflitos. Concluímos argumentando pela existência de um agravamento de experiências de mal-estar no trabalho, constituída pela situação paradoxal da atividade do docente que se encontra obrigado a ser, ao mesmo tempo e contraditoriamente, agente comercial-flexível e educador-pedagogo.

Palavras-chave: Gestão empresarial da educação; Mal-estar no trabalho; Sentido do trabalho; Trabalho docente.


ABSTRACT

This article analyses the tensions of being a teacher in private educational institutions. It uses Castro's and Gaulejac's notion of paradoxical injunction in order to think work activity, its meanings and the incompatibilities generated under the command of business-oriented management models. Its methodological reference is based on a field research of phenomenological and qualitative bias, seeking to understand the work situation as suggested by Alvim and Castro. The results reveal that being a teacher, in this context, is tensioned by the conflicts between the possible circumstances that give meaning to the work and the commercial demands that produce fret and conflict. We conclude by arguing that there is an aggravation of work malaise experiences, constituted by the paradoxical situation related to the activity of a teacher who has to be, at the same time and contradictorily, a commercial-flexible agent and a pedagogue-educator.

Keywords: Business management of education; Work malaise; Meaning of work; Teaching work.


RESUMEN

Este artículo analiza las tensiones acerca de lo que es ser profesor en instituciones privadas de enseñanza. Utilizamos la noción de injunción paradójica de Castro y Gaulejac a fin de pensar actividad de trabajo, sus sentidos y sus incompatibilidades generadas por los modos de gestión empresarial. Como referencial metodológico, nos basamos en una investigación de campo de sesgo fenomenológico y cualitativo, buscando comprender la situación de trabajo como sugieren Alvim y Castro. Los resultados alcanzados revelan que ser profesor en este contexto se muestra tensado por un lado, por posibles capaz de dar sentido al enseñar y, por otro, por exigencias mercantiles productoras de fuerte desgaste y conflictos. Concluimos argumentando por la existencia de un agravamiento de experiencias de malestar en el trabajo, constituida por la situación paradójica de la actividad del docente que se encuentra obligado a ser, al mismo tiempo y contradictoriamente, agente comercial-flexible y educador-pedagogo.

Palabras clave: Gestión empresarial de la educación; Malestar en el trabajo; Sentido del trabajo; Trabajo docente.


 

 

Introdução: educação e setor privado

A flexibilização tornou-se um imperativo no mundo do trabalho atual. Envolve a jornada de trabalho, a carga horária, as tarefas, os procedimentos e, até mesmo, a flexibilização do caráter (Sennett, 2012). A imposição de práticas flexíveis faz parte de uma nova cultura organizacional que se orienta por metas de excelência e pelo valor supremo de resultados quantitativos. Esta conjunção favorece a geração de um individualismo hipercompetitivo e desagregador dos laços sociais (Castro, 2015).

Este contexto propicia o culto da alta performance (Ehrenberg, 2010) e da gestão de si mesmo como capital humano (Gaulejac, 2007), que se associam aos imperativos da flexibilidade e propiciam a naturalização de um cotidiano laboral carregado de instabilidade, conflitos interpessoais e psíquicos. Assim, a flexibilidade revela uma dinâmica de naturalização na qual cada sujeito retroalimenta os próprios imperativos organizacionais que lhe são impostos.

A esse imperativo de flexibilidade e da alta performance, próprios aos modos de gestão centrados na ideia de capital humano, é preciso incluir os imperativos próprios a cada fazer profissional, os quais buscam dar sentido à atividade. Encontramo-nos, assim, diante de injunções paradoxais, pois são mutuamente excludentes e, ao mesmo tempo, incontornáveis para aqueles sujeitos que as internalizam, conforme sustenta Castro (2012), ao investigar o fenômeno de burnout nos bombeiros militares.

Responder às demandas próprias do fazer profissional e, ainda, buscar dar sentido a esta atividade requerem um tempo e uma autonomia que contradizem os imperativos de flexibilidade e da alta performance, já que não se submetem ao comando da gestão de si mesmo como capital humano. As injunções paradoxais mostram-se, dessa forma, compostas por uma situação de tensão permanente.

Presenciamos, dentro dessa nova ordem flexível e paradoxal, uma batalha pela sobrevivência com formas de concorrência e estratégias competitivas violentas, que operam tanto a nível individual como organizacional. Para Linhart (2007), as organizações lançam mão de dispositivos gestionários que priorizam a adesão subjetiva aos ideais flexíveis enquanto o trabalhador, que outrora lutava contra a jornada excessiva, agora se torna gestor do seu próprio tempo e desempenho, fator imprescindível à própria empregabilidade. Alargam-se, desse modo, os limites do tempo e do espaço de trabalho, com o sujeito do trabalho vendo-se enredado em relações que desfazem as barreiras entre as esferas privada e laboral, assim como os limites entre tempo produtivo e lazer.

Flexibilidade, alta performance, gestão de si como capital humano e injunções paradoxais fazem parte, portanto, da nova cultura gerencial que emerge com a doutrina neoliberal nos anos oitenta, orientada pelo livre mercado e pela alta concorrência. Dentro desse novo quadro histórico, representantes dos países do capitalismo central produziram um documento conhecido como Consenso de Washington, que "balizou a doutrina do neoliberalismo ou neoconservadorismo que viria a orientar as reformas sociais nos anos de 1990" (Frigotto & Ciavatta, 2003, p. 95). Desde então, vê-se a hegemonia de políticas neoliberais ditadas por privatizações dos serviços públicos e reformas sociais que respondem às necessidades do livre mercado. Para Leher (2003), o avanço do setor privado sobre o público coincide com a preponderância do interesse individual sobre o coletivo. Logo, as privatizações são veiculadas como sendo a solução de diversos males.

É dentro dessa reconfiguração do mundo do trabalho que a educação, tal como outros setores de extrema relevância social, torna-se locus propício à expansão de políticas privadas com imperativos de flexibilidade e apologia ao livre mercado. Em 1980, a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (Anped) criou o seu primeiro Grupo de Trabalho sobre trabalho e educação. Desde então, diversos estudos têm sido feitos a respeito do tema. Em publicação organizada por Gentili e Silva (1998), analisa-se a profunda reorganização política, econômica, social e ideológica que as reformas neoliberais trouxeram ao campo da educação. Os autores descrevem a educação como um território fértil para os investimentos financeiros voltados à lógica do lucro, no qual trabalhadores (professores) se submetem aos princípios da gestão, enquanto pais e alunos se tornam consumidores de mercadoria educacional.

No final da década de 1990, a Organização Mundial do Comércio "[...] sinalizou para o capital que um dos espaços mais fecundos para negócios rentáveis era o campo educacional" (Frigotto & Ciavatta, 2003, p. 96). Seguindo na mesma linha, no Brasil, um levantamento quantitativo sobre o ensino privado (FENEP, FGV, IBRE, 2013) afirma que negócios rentáveis no setor da educação são vantajosos aos interesses do Estado, já que o serviço oferecido por tal segmento tem a dimensão econômica de uma despesa pública não realizada, ou seja, poupada. Dessa maneira, cada vez mais, o interesse público tem se associado ao setor privado, a ponto de ambos serem, por vezes, representados por uma mesma pessoa (Arelaro, 2008; Cury, 2008). Um levantamento a respeito do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (Observatório..., 2013), revelou que mais da metade dos conselheiros que compõem o Conselho são sócios, representantes ou consultores de entidades privadas de ensino. Concomitantemente, tem-se a proliferação de instituições privadas e de conglomerados com fins lucrativos no país (Primi, 2014) que funcionam seguindo uma lógica educacional aderida ao imperativo da flexibilidade e aos princípios gestionários relacionados ao livre mercado. Landini e Monfredini (2005), por sua vez, indagam sobre os rumos que a educação pode tomar, ao afastar-se dos processos de formação humana centrada na cidadania para alinhar-se às demandas de lucro centradas no mercado. Observa-se que a educação privada, a fim de suprir o mercado com força de trabalho, negligencia a formação de caráter amplo e se volta para a capacitação do recurso humano (Opera Mundi, 2015).

O sistema privado de ensino, com seus grandes conglomerados econômicos, tem produzido uma revolução silenciosa no campo da educação brasileira. Atuam tanto no ensino superior como também na educação infantil, no ensino fundamental e médio e em cursos livres de língua estrangeira. Inicialmente criados em Belo Horizonte, Curitiba, São Paulo e Paraná, tais conglomerados passaram a movimentar vultosas cifras ao se difundirem por todos os estados do país, através de incorporações de escolas já estabelecidas na comunidade ou da criação de novas instituições e franquias (Carelli, 2002).

Em um estudo sobre o Grupo Anhanguera, Moretti (2013) constata que a falta de regulamentação das organizações privadas de ensino no Brasil tem permitido que estas funcionem com total liberdade para corresponder aos seus interesses econômicos. A grande expansão do Grupo Anhanguera pelo país, a autora analisa, tem sido acompanhada pelo enxugamento do quadro de funcionários via demissões, pela diminuição do valor da hora-aula e pela substituição das aulas presenciais por aulas à distância, medidas que refletem uma política de racionalização de gastos com força de trabalho. O modelo de negócios dos grandes conglomerados educacionais privados revela, dessa maneira, uma sobreposição de valores de mercado aos valores educacionais. Portanto, orienta a organização de ensino para um modo de funcionamento empresarial, que concebe o professor como custo a ser racionalizado, privilegiando resultados financeiros de curto e médio prazo.

Para Antunes (2013) e Queiroz (2004), a educação a distância tornou-se uma modalidade de negócios extremamente lucrativa aos conglomerados privados, produzindo modificações profundas no processo de trabalho dos docentes ali inseridos. Dados revelados por Antunes (2013) indicam a substituição progressiva das aulas presenciais por um formato mecanizado no qual o fluxo de transmissão do conhecimento é administrado pelo próprio aluno. Para os professores, isto implica em novas modalidades de contrato, por meio dos quais eles concedem a propriedade intelectual de suas aulas permitindo que estas sejam filmadas e disponibilizadas nas plataformas de ensino online. Além disso, a nova racionalização do trabalho docente supõe a substituição de parte dos professores por tutores, que auxiliam os alunos em questões relativas aos materiais disponibilizados. Por fim, nesse novo quadro do fazer pedagógico, boa parte da atividade de ensinar passa a ser dividida em unidades de tempo preestabelecidas. Os conteúdos a serem ensinados são alocados nestes determinados espaços de tempo invariáveis. Por fim, o alcance dos objetivos é medido por provas e testes padronizados conforme os padrões estabelecidos por avaliações externas. Estes resultados, por sua vez, possibilitam a elaboração de rankings das instituições de ensino (Zanardini, 2006).

Dado este novo contexto e modo de organização do trabalho educacional, instituído pelos conglomerados de ensino privado voltados para o mercado, um novo modelo de professor passa a prevalecer: "[...] Com o conhecimento inscrito nos 'softwares', nos vídeos e nos livros didáticos, um único docente pode atender a um maior número de estudantes, permitindo cortar custos [...]" (Barreto & Leher, 2003, p. 42). Isto, por sua vez, altera profundamente as práticas de trabalho, visto que docentes, que outrora tinham conhecimento e autonomia para elaborar aulas a partir de um pensamento investigativo, crítico e criativo, agora restringem o seu fazer ao manejo das tecnologias educacionais, monitorando e instruindo os alunos sobre a utilização dos materiais didáticos e recursos tecnológicos. Além disso, altera-se o papel dos diretores que, antes ocupados com questões pedagógicas, transformam-se em gestores educacionais orientados por uma visão estratégica pautada pelas demandas do mercado e do aluno-cliente. Portanto, se amplia um modo de gestão que objetiva a permanência da organização no mercado competitivo e julga a visão dos pedagogos como restrita (Montenegro, Nóbrega, & Souza, 2010).

Surge, desse contexto e dessa dinâmica de trabalho, a exigência de um professor flexível: flexível em seus horários, a fim de poder atender às múltiplas demandas; flexível, também, em sua capacidade de adaptação às prescrições tecnológicas que surgem com as constantes mutações; e, ainda, flexível em suas capacidades, as quais precisam se estender para além do fazer pedagógico. A flexibilidade desponta, dentro desse quadro, muito mais como uma imposição inflexível do que, propriamente, como um potencial de autonomia da prática educacional. Apesar destas injunções paradoxais, os professores articulam modos possíveis de realizar o trabalho próprio à atividade do educador e de dão sentido à sua escolha pela educação.

Desta revisão da literatura se formula a indagação sobre como se pode privilegiar a formação humana cidadã e desenvolver com liberdade o fazer pedagógico no âmbito de instituições educacionais que se organizam conforme os interesses de conglomerados internacionais e resultados econômicos tais como a valorização de suas ações na Bolsa de Valores? Considerando que sobre esta interrogação se formula a situação contraditória do trabalho do professor em instituições privadas de ensino, na sequência deste artigo, nos ocuparemos de tratar de duas questões: a partir de uma exploração fenomenológica das tensões envolvidas na atividade de professor em instituições privadas de ensino brasileiras, como atuam subjetivamente as exigências de flexibilidade e alta performance? De que maneira as injunções paradoxais fazem parte da situação de trabalho desses professores?

 

A gestão empresarial aplicada à educação

Uma publicação organizada por Colombo e Cardim (2010) reúne artigos de gestores e consultores que refletem sobre as práticas gestionárias aplicadas às instituições de ensino. Os autores descrevem ações que estimulam o crescimento das organizações privadas de ensino dentro de um mercado altamente competitivo e tecnologicamente mutante. Frota (2011), num sentido convergente a esta estratégia, afirma ser necessário racionalizar a gestão dos recursos, fixar os salários de acordo com os custos, contratar professores flexíveis e, por fim, garantir a presença dos docentes em atividades extracurriculares. Observa-se, ainda, que princípios basilares de empresas privadas em geral são aplicados à gestão escolar. Ou seja, sua orientação fundamental encontra-se no livre mercado; seu ímpeto é fazer da organização escolar uma unidade competitiva capaz de vencer a concorrência. Sua forma de gerir internamente as atividades de seus profissionais os tornam recursos de capital, impelidos a gerar mais clientes e mais lucros em consonância com a orientação mercantil fundante.

Carvalho (2013), por sua vez, busca um ponto de vista crítico sobre a aplicação da gestão empresarial à educação. Salienta que a administração escolar, vinculada aos interesses mercantis e ao ímpeto concorrencial, não engendra práticas neutras e inofensivas, mas, sim, instrumentais, já que controlam e organizam o trabalho docente em prol dos resultados financeiros, definindo o papel de todos sob os marcos do racionalismo econômico. Em entrevista à Opera Mundi (2015), Roberto Leher raciocina na mesma direção e, denunciando o paradoxo que se estabelece quando a educação se submete ao mercado concorrencial, sustenta que os valores educacionais e pedagógicos são invertidos, pois os meios mais apropriados para se educar ficam subjugados ao ímpeto da lucratividade e competitividade.

As reflexões de Gaulejac (2007) nos permitem alargar este ponto de vista crítico relativo à aplicação da gestão empresarial ao campo da educação. Segundo o autor, a gestão pode ser definida como um mecanismo de organização do poder, operando por meio de procedimentos destinados a tornar o funcionamento das organizações o mais produtivo e competitivo possível, dentro de um setor do mercado concorrencial. Os princípios que norteiam a gestão se dividem em três dimensões essenciais. A primeira contempla as práticas estratégicas que definem a estrutura e a política da organização. No caso das instituições educacionais podemos encontrar, nesta dimensão, a política estabelecida de ensino a distância e sua estrutura, política de preços e marketing. A segunda dimensão engloba desde a organização das atividades, do tempo e do espaço, até as formas de controle e avaliação de desempenho. A última dimensão compreende o conjunto de técnicas e dispositivos que visam produzir a adesão do corpo de funcionários ao funcionamento organizacional. Entre estes citamos as técnicas direcionadas ao imaginário individual que visam: promover a identificação e colaboração com a empresa; os dispositivos de assalariamento por mérito; induzir cada um a ser gestor do seu próprio tempo e produção; e técnicas de sedução que estimulam o desempenho individual.

No plano da educação, a gestão empresarial envolve prescrições que partem da dimensão mais estrutural, estratégica e voltada para a inserção no mercado concorrencial; passam pelo ordenamento, alocação e planejamento racional de recursos humanos; e, ainda, se ampliam com dispositivos e técnicas que permitem a adesão e o comprometimento dos professores com a estrutura e o funcionamento do sistema. Neste sentido, a gestão empresarial de uma organização educacional é considerada eficaz quando coloca seus professores a colaborar de corpo e alma, disponíveis para as atividades extraclasses, desejosos de inovação em sala de aula, sempre prontos dar tudo de si para cativar o seu público e atrair mais clientes. Espera-se deles que sejam, ainda, colaboradores engajados subjetivamente na missão, nos valores, no funcionamento e nas metas organizacionais. Um gestor do ramo educacional, deste modo, aconselha a todos que tomem o crescimento da escola como se fosse crescimento e sucesso de si próprio (Pestana, 2003).

A gestão empresarial aplicada à educação compreende, assim, um paradoxo entre ação educativa e ação empresarial - orientada à lucratividade e competitividade sem, no entanto, deixar de ser ação pedagógica. Como este paradoxo é vivido pelos professores? Como conciliam em sua prática as demandas da gestão empresarial e as demandas educacionais? Como, enfim, mostra-se a experiência de ser professor em uma situação tencionada por exigências aparentemente distintas e contrárias? A estas questões pretendemos nos debruçar na sequência deste artigo, a partir dos dados de uma pesquisa de campo1.

 

Nota metodológica sobre os dados da pesquisa de campo

Os dados sobre os quais trabalharemos a seguir são resultantes de uma pesquisa (Gerheim, 2017) centrada em apreender o que é ser professor em instituições privadas. A partir de viés qualitativo, foram realizadas 19 entrevistas que buscaram conhecer e descrever a experiência profissional de cada docente - suas atividades; suas relações com o fazer pedagógico, com cada instituição e com os pares; e, ainda, os conflitos, as satisfações e modos de sofrimento que experimentam em suas vidas profissionais.

O foco empírico da pesquisa voltou-se para a multiplicidade das experiências de cada sujeito em sua relação com o mundo social das organizações nas quais trabalham. Assim, procurou-se orientar as entrevistas de modo a se apreender como a experiência de ser professor em instituições de ensino privado ocorre em suas variações, conflitos, satisfações, sofrimentos, vínculos afetivos e sociais. A fim de apreender a singularidade das experiências vividas em articulação com os processos sociais, a pesquisa buscou inspiração nas sistematizações metodológicas com viés fenomenológico de Alvim e Castro (2015), Feijoó e Mattar (2014), Boava e Macedo (2011), Giorgi (2008), Moreira (2004) e Migueles (2003).

A seleção dos participantes deu-se por convite ou por indicação, com o requisito de que os professores estivessem regularmente contratados por uma instituição privada de ensino fundamental, médio e/ou um curso livre de idiomas. Ao todo foram entrevistadas 19 pessoas. Dentre estas, 26% homens e 76% mulheres. Deste total, 76% trabalham em mais de um segmento e/ou instituição. Para realizar as entrevistas com professores que acumulam uma jornada de trabalho muito intensa, encontros presenciais foram intercalados com conversas virtuais (realizadas por meio de aplicativos para troca de mensagens de texto e de voz). A pesquisa contou também com postagens em um blog2.

A pesquisa de campo alcançou, dessa maneira, um amplo e rico volume de material empírico. Dentro do escopo desta totalidade de dados, buscaremos expor e analisar algumas unidades de sentido que se mostram reveladoras da situação (Alvim & Castro, 2015) dos professores nas instituições privadas de ensino. De tal maneira, almejamos uma compreensão concreta de seus modos de ser, sujeitados, por um lado, às demandas mercantis e, por outro, às demandas pedagógicas próprias da sua atividade.

 

Dimensões e conflitos de ser professor no setor privado de ensino

A experiência de ser professor em instituições privadas de ensino aparece atravessada por imperativos administrativos, mercantis e tecnológicos; e por conflitos desgastantes ocorridos com a direção escolar e com as famílias. Ao mesmo tempo, mostra-se permeada por possíveis a partir dos quais os professores tentam manter e dar sentido à atividade de ensinar. Trataremos, a seguir, de expor e analisar estas dimensões e conflitos, a partir do viés fenomenológico que objetiva dar visibilidade aos sentidos e tensões das experiências vividas, para que, ao final, possamos tecer algumas considerações sobre a situação do professor em instituições privadas de ensino.

 

Os imperativos mercantis

O trabalho do professor em instituições privadas de ensino, além de relacionado às atividades de ensino concernentes à orientação pedagógica adotada, ao conhecimento a ser ensinado, à seleção e utilização dos meios didáticos, ao planejamento das aulas e a avaliação do processo de ensino-aprendizagem, também contabiliza uma série de prescrições de cunho mercantil e administrativo, as quais muitos percebem como desvio sua função. Para Rejane3, "[...] o papel do professor, além de educar, no sentido de passar o conteúdo, também passa por sugerir a compra de exames internacionais [...]". Clara, mais crítica ao imperativo mercantil, assinala que: "[...] vender exames não é minha tarefa como professora. Bater meta não é tarefa de professor". Nely mostra que a função de professor fica destituída de sua parte pedagógica quando fala que: "[...] Eu não sou vendedora e tive que vender [...], a gente tem medo de dizer não. [...]. O que eu como professora devo fazer? [...] Por que eu até ouvi que é bom a gente ser 'pau para toda obra'!?". Telma busca entender que a instituição privada precisa manter seus alunos-clientes, mas denuncia o exagero da imposição mercantil que atravessa o trabalho do professor: "Eu até entendo que uma escola precisa desses alunos, [...] agora, tem uma cobrança de cunho empresarial, que não é pedagógico, que é uma loucura pela forma muito impositiva como entra na sala de aula [...] voltada para os resultados [...]". Conclui que:

[...] a gente está sendo desvalorizado enquanto função, para agregar coisas que eles consideram prioridade porque vão refletir diretamente no resultado, ou seja, é a campanha de vendas, é o serviço, é o contato com o pai do aluno, por conta de querer que ele continue na escola, e não um contato com o pai do aluno genuíno, de preocupação com um aluno.

Para Aloísio, a cultura empresarial vem sobrepondo-se aos objetivos pedagógicos fazendo com que o "[...] ambiente educacional perca suas características e se torne um business focado nos resultados expressos pelos números [...]". Como sublinhou Renata e conforme descreveu Sonia, exige-se de cada professor que venda seu peixe, posto que: "A educação está muito vendida, muito comercializada. O professor é o vendedor, vendedor de aulas [...] 'Vem aqui e vende o seu peixe' é assim que a gestão fala [...]". Juliana, sem ingenuidade, afirma que: "[...] a escola tem que 'bombar', mas não pode se tornar business total [...] tem que ser ética e responsável com a clientela e com seus profissionais [...]". A consequência de tal imperativo mercantil parece estar expressa na fala de Diana quando afirma que: "Porque, assim, a empresa visa uma coisa, o professor visa outra. O professor não está preocupado com bater metas, entende?". Ou seja, os imperativos mercantis com fins de lucratividade, concorrência, focado nos resultados e nas vendas, têm invadido a prática docente de forma a criar uma metamorfose significativa do sentido pedagógico sobreposto por valores empresariais.

Nossas descrições sobre ser professor no setor privado de ensino são enriquecidas com os elementos que fazem parte do conjunto das atividades extrapedagógicas. Para Rejane, "[...] fazer funções secretariais, tais como observar o número de faltas do aluno e entrar em contato com os pais [...]" não deveria ser sua função. No mesmo sentido, Amparo reclama de que "Eu tinha que fazer uma avaliação individual, e anotar tudo, se o aluno não fazia o trabalho [...], se estava sem uniforme [...], tinha que fazer várias funções que não são de professor, mas são passadas para o professor". Marianne, por sua vez, revela que existe um o excesso de tarefas relativas às festas que são promovidas pelos próprios professores: "Ser funcionária fica misturado com ser professora quando eu tenho que cobrar dos alunos e dos pais presente, comida e bebida. Também tenho que, sozinha, arrumar, servir e tirar foto da festinha".

Junto destas exigências de flexibilidade relativas às tarefas extrapedagógicas se incluem demandas relativas ao próprio fazer pedagógico, vividas e percebidas como excessivas. André afirma que, além da organização de feiras, de festas, de tarefas secretariais e administrativas, "[...] temos que corrigir redações, testes, provas e trabalhos extras ou de grupo, é um pesadelo, pois são horas e horas de trabalho não remunerado! Quantos finais de semanas passei corrigindo avaliações horas a fio?!". Acrescente-se a isso a cobrança de qualificação sem o devido suporte, o que faz a sobrecarga crescer. Para Amparo, "[...] as escolas, cursos e empresas pressionam o professor a se especializar, mas, não, na realidade, não dão suporte/apoio para que isso se realize [...]". Enquanto isto, João Paulo destaca a falta de apoio que poderia viabilizar a capacitação dos professores: "[...] conseguir uma licença sem vencimentos em uma instituição particular para a realização de aprimoramento acadêmico é algo praticamente impossível".

Outro elemento essencial à situação do professor, que se associa intimamente aos imperativos mercantis e suas demandas de flexibilidade, diz respeito à função ocupada pela tecnologia. Os recursos tecnológicos não se apresentam simplesmente como meios à disposição do professor, mas, sim, e antes de tudo, como uma imposição face à qual não há escolha, já que ocupam um lugar de valor prioritário, enquanto que a própria função do professor fica relegada a um segundo plano. Para Telma,

a obrigatoriedade do uso da tecnologia, é uma coisa que me assusta demais. Parece e se torna, pela falta de confiança que você tem no professor e pela falta de entendimento do que acontece em sala de aula, se tornam questões assim prioritárias [...] e ao mesmo tempo, muito superficiais em relação ao uso pedagógico desta tecnologia.

Tal obrigatoriedade, ao relegar a função de professor a um segundo plano, traz consigo outra face, não menos importante, expressa pela restrição da autonomia. Nely se abala porque: "[...] o professor não tem muita autonomia [e] não é realmente livre para fazer várias coisas que ele quer, em termos de tudo: de material, de iniciativa". Francisca confirma esta restrição da autonomia ao expressar que:

[...] eles fazem as regras e a gente tem que seguir, a gente não tem voz [...]. Eu acho que isto desvaloriza muito a opinião do professor. Por que as regras ...bom, é institucional, né? Então, fica em primeiro lugar e a opinião do professor nem importa [...].

Os imperativos mercantis de uma instituição privada, portanto, fazem com que a atividade do professor passe a ser atravessada por interesses e obrigações comerciais. Não apenas no sentido do ensinar, mas, muito além, no sentido de ser convocado a participar de uma lógica empresarial como um agente de negócios que trabalha, com o seu fazer pedagógico e extrapedagógico, para conquistar resultados financeiros e concorrenciais. Neste sentido, o trabalho do professor, tal como ocorre dentro da lógica empresarial em seu conjunto, é contraditoriamente avaliado como um custo a ser otimizado e reduzido, ao passo que os imperativos de flexibilidade e a função ocupada pela tecnologia são considerados como investimentos essenciais. Ser um agente de negócios educacionais implica, deste modo, em vender o produto educacional e se dispor a executar uma série de tarefas e funções, pedagógicas e extrapedagógicas, que se coadunam com os objetivos mercantis. Envolve também submeter-se aos ditames tecnológicos e acomodar-se aos estreitos limites impostos pela prescrição técnica do ensinar.

Podemos dizer que, como salientou Nely, tais imperativos fazem do professor um "pau para toda obra", o que significa dizer que a instituição o considera como um agente flexível capaz de: agenciar vendas; produzir festas e eventos; dar conta de atividades administrativas e secretariais; e, ainda, investir continuamente em sua própria capacitação. Logo, ser professor no setor privado de ensino requer que se responda com excelência e dinamismo às exigências mercantis que permeiam o conjunto de atividades pedagógicas e extrapedagógicas. Em resumo, este quadro apresentado compreende a interiorização de um saber ser flexível, constituído em resposta às injunções paradoxais de demandas contraditórias e mutuamente excludentes de flexibilidade e alta performance, em linha com os entendimentos que Gaulejac (2007) e Castro (2012; 2015) propuseram.

Passemos a analisar, na sequência, uma segunda dimensão da situação do professor no setor privado de ensino que, segundo os dados colhidos, mostrou-se relevante.

 

O conflito com os familiares e com a organização

Segundo Aloísio, "[...] a família tem entrada na escola e consegue interferir em práticas pedagógicas, como projetos e avaliações". Já Juliana enfatiza como essa interferência da família junto ao fazer do professor está permeada por uma relação de intimidação de quem paga por um produto e exige um serviço educacional conforme seus parâmetros. Para ela,

Hoje, [há] uma clientela [...] que demanda serviços a contento [com] intimidação ... estou vivendo um pouco isso no momento. Há uma certa apreensão de minha parte [...]. Sei que sou eu quem tem que dar o tom, mas fico atordoada.

Sônia narra um acontecimento revelador desse novo poder adquirido pelas famílias-clientes face à atividade do professor:

Esta me deixou muito chocada: um aluno estava chutando um colega e acabou jogando uma mesa em cima dele. A professora foi interceptá-lo porque ele estava fora de controle e colocando os outros alunos em risco. A família entrou com um processo contra esta professora [...], alegando agressão física e maus-tratos. A escola não apoiou a professora, mas mandou ela embora no ato.

Por fim, a professora enfatiza que, dentro dessa lógica, "[...] se os pais quiserem, eles tiram você e colocam outra professora". Francisca, no mesmo sentido, salienta a perda de valor que isso acarreta para o professor afirmando que: "[...] quando um aluno, assim, tem um problema, ou até mesmo um pai, eles passam completamente por cima do professor e vão falar com o gerente [...]" e conclui que: "[...] para mim, o fato da escola ser privada enfraquece a educação, porque os pais têm mais voz. E acho que o professor é o mais desvalorizado na escola [...]".

Para Diana, há um problema quando a instituição não dá apoio e não ouve o professor por estar preocupada com: "[...] que as coisas fiquem dentro de um padrão que ela estabeleceu, [por]que ela acha que é isto que vai... manter o aluno". Aloísio, na mesma direção, relata que: "[...] todos os projetos [da escola] eram deturpados quando os pais ameaçavam tirar os filhos devido às notas baixas". Ele acrescenta que, então, a coordenação e a direção interferiam no trabalho para solucionar os conflitos por meio de ações pedagógicas, tais como: aumentar nota de aluno, aceitar trabalhos fora dos prazos estipulados ou, ainda, privilegiar o professor showman para reduzir o número de alunos faltosos.

Francisca sente que há dificuldade de se trabalhar em grupo porque:

[...] não tem muito, assim..., dividir as coisas sem ter na mente um pouco de competição, parece que cada um quer fazer só o que puder mostrar [talvez] por causa das consequências mesmo, para garantir o emprego.

Telma salienta que as escolas não disponibilizam "uma sala para que os professores [possam] conviver, se reunir, trocar experiências". Aloísio conclui que as prioridades [da direção] estão sempre voltadas a agradar aos pais e garantir a permanência dos alunos na escola.

Intimidados pelo poder dos clientes de decidir sobre seu próprio fazer, destituídos de valor por uma direção orientada a satisfazer interesses mercantis, precarizados em seus vínculos pessoais e profissionais dentro do espaço escolar, colocados em segundo plano em relação às prescrições tecnológicas, sobrecarregados por serem "pau para toda obra", os professores sentem os efeitos disso sob a forma de um mal-estar generalizado. Amparo afirma: "[...] estou bem cansada de sala de aula, e se pudesse, daria aula só por hobby [...]". Patrícia não consegue ver futuro para si como professora e acha que "a razão disso é o cansaço físico e mental [...]". Renata diz: "[...] não sei mais se quero isto para o resto da vida [...]". Diana, mais indignada, expressa que:

[...] é muito ruim você trabalhar neste ambiente de engodo [...] de que é uma instituição de ensino quando, na verdade, é quase como se isto fosse uma fachada, porque na verdade é uma grande empresa que no momento está aplicando no ramo da educação [...].

Telma expressa que se sente uma operária de uma fábrica de porca e parafuso. Isabela e Francisca sentem-se desvalorizadas e desconsideradas. Clara afirma: "[...] para mim, tudo está em xeque [...]". Por fim, Isabela diz: "[...] eu acho que os professores [estão] entristecidos com a educação [...]".

Em suma, a fim de se manter no mercado, cada vez mais, a instituição opera e define suas prioridades em função do "cliente rei", orientando suas ações pedagógicas segundo o imperativo da flexibilidade, que faz do professor um agente de negócios e estabelece suas funções a partir de uma lógica empresarial. Neste quadro, observamos que os professores estabelecem relações precárias e conflituosas com alunos, familiares, instâncias gerenciais (coordenação e direção) e, até mesmo, com seus colegas. Em torno destas injunções paradoxais, no contexto deste estudo, se determinam uma série de modos de ser e de fazer o trabalho atravessados por sentimentos de profunda depreciação e desvalorização.

 

Os possíveis que dão sentido ao ser professor

Nossas análises revelam que a situação na qual estão imersos os professores das instituições privadas de ensino acolhe um conjunto de práticas que trazem à tona o sentido de ser educador. Eles tentam, dentro das condições acima descritas, colocar a tarefa de educar no cerne da sua atividade.

Nossas análises revelam que a situação na qual os professores das instituições privadas de ensino estão imersos acolhe um conjunto de práticas que trazem à tona o sentido de ser educador e colocam a tarefa de educar no cerne da sua atividade. Isabela, ao definir a função essencial de ser educador, diz que: "[...] ser professor é amar educação, é gostar de educação". Para Marcos, a função de ser professor é educar para formar agente de transformação social. Para isto, o professor conta que estimula cada aluno a dar opinião, ouvir o outro, discordar e argumentar. Isabela conjuga seus esforços no sentido de fazer da educação não só (uma educação) de conteúdos, mas também de postura de ser aluno, já que, para ela, "[...] faz parte do trabalho, faz parte, a gente ensinar isto". Em sentido semelhante, João Paulo encara sua atividade "[...] como uma missão [de] ajudar a sociedade a combater os preconceitos, a ter mais tolerância [...], porque é na escola que essas coisas acontecem".

Aqui se destacam não mais os imperativos do agente de negócios prescritos pelo caráter mercantil da empresa educacional, mas, sim, o professor como agente pedagógico, focado na sua função de educador e no sentido social de sua atividade. Para Marcos,

[...] não dá para pensar no magistério como apenas uma atividade. Entende? Não pode ser um emprego! Não combina. Aí é ruim, se você acha que dar aula é você fazer aquilo que a escola está pedindo, você faz aquilo, vai cumprindo aquelas coisas, se não pensa que a sua função é educação, uma coisa muito maior, aí é insuportável. [...] Eu acho que eu estou ali realmente para tentar formar uma pessoa boa, um cidadão.

A fim de viabilizar práticas focadas no educar, preservar o amor pela educação e empreender a tarefa de formar cidadãos, os professores revelam que burlam e se opõem às demandas puramente mercantis. Mostram que assim encontram um modo de recuperar, no dia a dia, a essência de sua atividade. Francisca afirma que consegue:

[...] fazer coisas diferentes, sair um pouco do livro, seguir os alunos, ouvir as escolhas deles, entendeu? [...] Mas eu vejo assim, eu fujo das regras, [...] o tempo é curto, é corrido, é tudo planejado [...], se a gente seguir todas as regras deles a gente até consegue dar aula, mas não sei se os alunos aprendem de verdade.

Diana conta que frequentemente burla procedimentos de padronização e não cumpre prescrições de projetos e atividades que não instigam os seus alunos. Marcos, contando sobre a sua sensibilidade para com os adolescentes, destaca que:

[...] o adolescente é estranho, tem lá os seus momentos. Mas se tem uma coisa que eles demandam é isto: sinceridade. Que a gente jogue aberto, jogo limpo. Isto é uma coisa que eu aprendi a fazer com o tempo [...].

Ele conta também que, apesar de se sentir insatisfeito com o volume de trabalho, gosta do desafio de elaborar atividades que visam chegar mais no aluno. Rejane conta que "[...] sempre que tinha alguma coisa mais da parte pedagógica do aluno eu fazia, mas quando era uma coisa só de engodo para fingir que [se está] uma instituição de ensino eu tentava burlar, tipo, não fazia [...]". Renata afirma que, apesar de todo o desgaste e dificuldades, gosta do que faz e percebe que as outras professoras também gostam, pois quando "[...] um professor dá bom resultado, a família reconhece [...]".

Descreve-se, assim, outra face de ser professor em instituições privadas de ensino que se caracteriza pelo esforço em dar sentido a sua atividade. Este sentido transcende aos imperativos mercantis, às limitações prescritivas impostas pela flexibilidade, às prescrições tecnológicas e ao poder das demandas dos clientes sobre o seu fazer. É um sentido orientado pela ação de educador, pelo desejo de formar sujeitos pensantes, cidadãos, pela possibilidade de ir além das prescrições e limitações daquilo que é dado pela lógica empresarial. Ouvir os alunos, buscar controlar o próprio tempo, recusar tarefas que se mostrem um embuste pedagógico, burlar o planejamento prescrito criando novas formas de fazer, inventar um manejo próprio de acordo com a realidade dos alunos e fazendo valer a experiência pedagógica, formam parte dessa outra faceta. Esta faz contrapeso aos imperativos que transformam o professor em um agente comercial ou, conforme Telma descreve, uma operária de uma fábrica de parafusos submetida às demandas dos clientes e do mercado. Assim, fica descrito como os possíveis são capazes de dar sentido ao ensinar, mas são ameaçados por sentidos antagônicos correlatos aos modos de gestão empresarial da educação.

Com esta dimensão, completamos um retrato detalhado de como as injunções paradoxais, tal como definidas por Castro (2012) e Gaulejac (2007), operam na situação de trabalho dos professores do setor privado de ensino.

 

Considerações finais

O resultado a que chegamos revela que a experiência de ser professor nas instituições privadas de ensino está constituída por uma forte tensão. Para apreender o cerne dessa tensão é necessário recusar a lógica binária (Gaulejac; Hanique, 2015) que percebe os contrários como mutuamente excludentes e compreender os fenômenos psicossociais a partir de uma lógica complexa na qual os contrários se interpenetram, coexistem e se complementam.

Em vista disso, demarcamos os aspectos mais característicos que associamos a experiência de ser professor no setor privado. Além da sobrecarga relacionada ao fato de lecionarem em mais de uma instituição de ensino e da instabilidade associada às constantes transformações tecnológicas e competição acirrada, estes professores enfrentam injunções paradoxais que se manifestam, contraditoriamente, pela exigência de ser um agente comercial-flexível e, ao mesmo tempo, ser um educador pedagogo.

O agente comercial-flexível faz-se como aquele que não tem voz, que vende o seu peixe e executa as prescrições técnicas do trabalho com estreita autonomia, tal como um operário de uma fábrica de porcas e parafusos. Além disto, espera-se dele que seja "pau para toda obra", flexível e sempre pronto para assumir um excesso de atividades, sejam elas secretariais ou extrapedagógicas. Ser agente comercial-flexível caracteriza-se não só pela prontidão à alta performance empresarial, mas, ainda, por um estado de submissão às prescrições que restringem a autonomia, conduzem à exaustão e, neste limite, tornam o trabalho insuportável.

A face do educador-pedagogo, por sua vez, mostra-se permeada pelo desejo de educar e pela relevância social da educação orientada à formação de cidadãos. Sob este aspecto, aparece o sentido essencial e mobilizador do trabalho. Ser educador-pedagogo entra em contradição com a orientação empresarial que remete a um plano secundário as iniciativas de se trabalhar com autonomia e em colaboração com alunos, familiares, chefia e colegas. Esta faceta necessita burlar as prescrições da tecnocracia educacional, a vontade soberana dos clientes e os imperativos empresariais para que os possíveis que investem de sentido o seu trabalho possam se efetivar. Portador de uma faceta investida de sentido e de mobilização subjetiva, o educador-pedagogo vive e percebe o seu trabalho como uma missão. O seu agir busca brechas na própria lógica empresarial, a fim de contribuir para humanizar e formar o aluno cidadão. Porém, o conjunto de práticas e alternativas que integram este aspecto do ser professor se realiza em contradição com as demandas que fazem dele um agente comercial-flexível. E, ainda, os possíveis que dão sentido a seu trabalho se constituem um campo instável, atravessado pelo desgaste, por experiências de fracasso, pela vontade de desistir e pela ameaça de desemprego.

De modo sintético, a experiência de ser professor em instituições privadas de ensino revela-se atravessada pelo paradoxo que comporta dois sentidos antagônicos e contrários, mas, ao mesmo tempo, complementares. Uma tensão, pois, entre dois aspetos que habitam o ser professor e a partir da qual emergem formas de mal-estar variadas. A maior parte dos professores declarou experimentar algum tipo de sofrimento relacionado à sua atividade que variaram entre: cansaço, crises de choro, desesperança, tristeza, ansiedade e humilhações, chegando até a perda de sono e de apetite, inflamações gástricas, enxaquecas, doenças cardiovasculares e de pele.

Logo, a tendência dessa situação, ao lidar no dia a dia com modos de ser antagônicos que mutuamente se tencionam, é de que os possíveis que dão sentido a profissão sejam inviabilizados pelas exigências e demandas da lógica empresarial. Portanto, cada vez mais, professores adoecem e se desiludem com sua profissão. Nesse sentido, fazemos ressoar a questão formulada por Diana: "[...] a empresa visa uma coisa, o professor visa outra. O professor não está preocupado com bater metas, entende?".

Com este trabalho pretendemos ter dado certa visibilidade à experiência vivida pelos professores no setor privado de ensino, destacando seus sentidos e suas tensões. Esperamos, com isso, contribuir com o debate a respeito das complexas relações entre os modos de gestão empresarial da educação e trabalho docente. Acreditamos ainda que futuras investigações sobre esta problemática se fazem necessárias de forma a permitir análises e compreensões que aprofundem, por um lado, o entendimento relativo às injunções paradoxais presentes no campo de trabalho docente e, por outro, que verifiquem seus impactos na saúde mental dos educadores.

 

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Endereço para correspondência:
Marcia Souza Gerheim
marciagerheim@gmail.com

Fernando Gastal Castro
fernandogastal@gmail.com

Submetido em: 14/04/2018
Revisto em: 12/05/2018
Aceito em: 01/06/2018

 

 

1 Este artigo analisa os dados de uma dissertação de mestrado, intitulada Gestão empresarial da educação e trabalho: um estudo sobre ser professor no setor de ensino privado, realizada no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com a aprovação do Comitê de Ética da universidade.
2 O blog chamado "Fala, professor de ensino privado!" foi criado durante a realização desta pesquisa. Publicado por Marcia Souza Gerheim em 1 de junho de 2016, está ainda disponível no link: https://falaprofessorensinoprivado.blogspot.com.br/.
3 Os nomes utilizados ao longo do texto são todos pseudônimos.

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