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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versión On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2018

 

ARTIGOS

 

O sujeito autista como figura da segregação

 

The autist as a figure of segregation

 

El sujeto autista como figura de la segregación

 

 

Maria Celina Peixoto LimaI; Thalita Castello Branco FonteneleII; Jean-Luc GaspardIII

IDocente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Fortaleza, Estado do Ceará, Brasil
IIPsicóloga. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Fortaleza, Estado do Ceará, Brasil
IIIDocente, Université Rennes, EA 4050, F-35000, Rennes, França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Considerando a problemática clínico-política concernente ao autismo, nosso objetivo é discutir como o sujeito autista representa uma das figuras da segregação do nosso tempo. Partimos de uma contextualização sobre a nova racionalidade tecnocientífica da medicina contemporânea e seus efeitos sobre os critérios estatísticos de diagnóstico/classificação no campo da saúde mental, para, em seguida, situarmos as questões relativas ao que vem configurando uma batalha política acerca do tratamento do autismo. Assim, observamos que o autismo atualiza a noção de criança generalizada, com a qual Lacan se referia ao sujeito-objeto da ciência, aquele cuja verdade está nas mãos dos especialistas. Concluímos que a contribuição de Lacan permanece atual, e - se em 1967, ele desenvolveu suas ideias sobre a segregação como resposta à psiquiatria da criança - interrogamos o que ele teria dito hoje, 50 anos depois, com relação ao cenário atual, ordenado em torno das políticas de saúde mental infantil.

Palavras-chave: Psicanálise; Autismo; Saúde Pública; Segregação.


ABSTRACT

Considering the clinical-political problematic related to autism, our objective is to discuss how the autistic subject represents one of the figures of the segregation of our time. We start from a contextualization about the new techno-scientific rationality of contemporary medicine and its effects on the diagnostic criteria/ classification in the field of mental health, and then we situate the questions related to what has been forming a political battle about the treatment of autism. Thus, we observe that autism actualizes the notion of generalized child, with which Lacan referred to the subject-object of science, the one whose truth is in the hands of specialists. We conclude that Lacan's contribution remains current, and - if in 1967 he developed his ideas about segregation in response to the child's psychiatry - we question what he would have said today, 50 years later, in relation to the current scenario of mental health policies.

Keywords: Psychoanalysis; Autism; Publichealth; Segregation.


RESUMEN

Considerando la problemática clínico-política concerniente al autismo, nuestro objetivo es discutir cómo el sujeto autista representa una de las figuras de la segregación de nuestro tiempo. Partimos de una contextualización sobre la nueva racionalidad tecnocientífica de la medicina contemporánea y sus efectos sobre los criterios estadísticos de diagnóstico/ clasificación en el campo de la salud mental, para luego situar las cuestiones relativas a lo que viene configurando una batalla política acerca del tratamiento del autismo. Así, observamos que el autismo actualiza la noción de niño generalizado, con la que Lacan se refería al sujeto-objeto de la ciencia, aquel cuya verdad está en las manos de los especialistas. Concluimos que la contribución de Lacan sigue siendo actual, y - se en 1967, desarrolló sus ideas sobre la segregación como respuesta a la psiquiatría del niño - interrogamos lo que él habría dicho hoy, 50 años después, con relación al escenario actual, ordenado en torno de las políticas de salud mental infantil.

Palabras clave: Psicoanálisis; Autismo; Salud pública; Segregación.


 

 

Introdução

A psicanálise permitiu renovar radicalmente uma clínica da criança e do adolescente apoiada antes sobre os paradigmas médicos e categorias importadas diretamente da psiquiatria do adulto. Sua contribuição maior não se restringe apenas à ordem dos remanejamentos feitos na semiologia ou na nosografia, mas está, principalmente, na oferta da possibilidade de uma abordagem estrutural dos fatos psíquicos ou sintomáticos. Mais precisamente, as estruturas às quais a clínica freudiana faz referência não constituem entidades no sentido de reagrupamentos particulares de fenômenos patológicos, mas dizem respeito a modalidades particulares de relação do sujeito ao desejo do Outro, assim como ao gozo e, como consequência, a modos específicos de transferência. A influência dessa clínica deve-se tanto ao lugar que ela ocupa com relação ao discurso da ciência quanto ao fato de ter colocado à prova seu modelo teórico a fim de possibilitar novos ensinamentos.

No entanto, é incontestável que a extensão do domínio psi e as novas orientações das políticas públicas de saúde contribuem, nesse começo do século XXI, para modificar sensivelmente as modalidades do acolhimento e do cuidado dos sofrimentos psíquicos das crianças e dos adolescentes. A inflação diagnóstica e estatística, a medicalização dos humores e o desenvolvimento de um mercado da saúde vêm interrogar o sentido que a palavra política adquire quando ela se refere à prática médica e psicoterápica. Por que e como se fala de política de saúde? Trata-se realmente de política? Até onde podemos puxar o fio da palavra sem perder seus fundamentos?

Não somos, evidentemente, os únicos a questionar o uso, às vezes inflacionado, do termo política e, ao mesmo tempo, tentar diferenciar suas diversas concepções. Milner (2011a,b,c), nos seus três volumes do Court traité politique, conduz-nos a uma análise do/da político(a) através de uma espécie de cronologia invertida. Partindo de uma leitura dos destinos da política no século XXI e passando por uma discussão sobre a política enquanto affaire dos seres falantes, ele traz toda uma reflexão, no terceiro volume, sobre o próprio fundamento do pensamento e do ato político, a saber: a ideia de universal. O autor sustenta a distinção entre a política dos seres falantes, a que supõe a linguagem e a diferença dos lugares atribuídos a cada um dos indivíduos, e a política das coisas, essa que define o nosso século, marcado pelas práticas de avaliação que reduzem o homem a uma dimensão de naturalização e objetivação.

Ora, falar de políticas de saúde na nossa modernidade nos parece bem distante da política da antiguidade grega, desse momento do nascimento da cité democrática, no qual a prática do diálogo organizava a vida social tornava possível a constituição do direito e justificava o exercício da política. Mesmo se o século XXI guarda ainda parcialmente a tradição da discussão política como herança de suas origens gregas e, portanto, da política dos seres falantes, é a política das coisas que melhor parece definir, se podemos ainda assim chamar, o atual contrato social.

Além disso, como não propor aqui a distinção apresentada por Askofaré (2013, p. 288, tradução nossa) entre "a política como discurso, o discurso dito do Mestre, da política do discurso, isto é, a política relativa a tal ou tal discurso". Se a primeira versão reenvia à questão da estrutura do discurso do mestre antigo, da forma como foi estudada por Lacan, a segunda aparece como efeito da incidência da ciência na política.

Nascida das preocupações sanitárias ligadas às epidemias que atingiram o mundo ocidental nos últimos séculos, a paisagem da saúde pública, apesar das fortes resistências provenientes da tradição clínica e de uma cultura do tratamento individual, modificou-se sensivelmente a partir das duas últimas décadas do século XX. Desde então, o significante mestre prevenção, enquanto palavra de ordem da saúde pública, faz-se acompanhar de dois outros, a saber: risco e avaliação.

A noção de risco aparece na nossa atualidade correspondendo àquilo que Hacking (2002) chama de mundo probabilístico. Vivemos, de fato, numa época em que a maior parte de nossas preocupações e de nossas decisões caiu no domínio do cálculo, sob o imperativo da transformação do qualitativo em quantitativo. No campo médico, se o desenvolvimento da genética permite explicar todo um universo de determinações de nossas características corporais, no que diz respeito às doenças, por ora conseguimos somente indicar uma propensão a desenvolver tal ou tal doença física ou mental. Trata-se, nesse caso, de uma distribuição de probabilidades, ou ainda - o que chamamos - uma determinação de risco. O discurso do risco e o método epidemiológico, enquanto pilares dessa nova racionalidade médica que sustenta as políticas de saúde, têm como consequência dois tipos de deslocamento no campo médico: do diagnóstico à prática de avaliação/detecção; da clínica curativa às ações de prevenção. O que muda com a nova racionalidade tecnocientífica da medicina contemporânea é a importância dada (em detrimento do sintoma) aos sinais e outros indicadores que passam a ser os principais alvos da atenção médica.

Se tomarmos o caso da saúde mental, a situação não é diferente. A utilização dos Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Psiquiátrica Americana (DSM) sucessivos se apoia sobre uma cartografia estatística das populações em termos de incidências e transtornos. Os critérios estatísticos de classificação se dissociam, assim, da etiologia e das versões psicogênicas e culturais do sintoma. O que tem como efeito, além da instrumentalização política do diagnóstico, a possível determinação das condições de risco para a emergência eventual de outros transtornos.

Se uma versão modernizada do higienismo pode modelar o discurso médico sem trazer maiores problemas, no que concerne à psicanálise, isso se apresenta incompatível com a noção de pathos e de sintoma inaugurada pelo pensamento freudiano. Ora, se a psicanálise tem que lidar com a demanda de sedação cada vez mais impregnante, como ela pode responder à lógica de erradicação do sintoma e da desconsideração da dimensão subjetiva introduzida pelo campo da saúde pública? Ao recusar a tarefa de governar, própria ao domínio da política, a psicanálise poderia reivindicar uma posição subversiva diante do discurso da saúde mental?

 

Psicanálise e políticas de saúde para o autismo na infância

Para aprofundar a discussão sobre essa possibilidade subversiva da psicanálise, reportamo-nos agora ao tema do autismo, já que ele tem provocado debates transversais que perpassam a clínica e a política - tanto a dos seres falantes quanto a das coisas.

O termo autismo foi cunhado em 1911 por Eugen Bleuler, que o designava como um sintoma da esquizofrenia. Anos depois, Leo Kanner lhe colocou no patamar de síndrome, "onde a etiologia tanto psicopatológica quanto fenomenológica ou relacional se fixa finalmente na organicidade - genética, biológica, fisiológica, neuronal - que permanece desconhecida [...]" (Balbo, 2009, p. 27).

Até então, pensava-se nessas questões a partir de uma perspectiva adultocêntrica. Segundo Cirino (2001), apenas em 1930, depois do advento da psicanálise, é que se pode falar de uma clínica psiquiátrica da criança, a qual nasceu justamente a partir do desenvolvimento de conceitos e hipóteses psicanalíticas, sobretudo no campo do autismo e das psicoses infantis. Os desdobramentos desses estudos se dão até hoje, mas continua complicado chegar a um consenso no que diz respeito à definição de autismo.

Sabe-se que mesmo entre os psicanalistas reina uma querela interminável a respeito disso. Segundo Rocha (2002), há pelo menos três posições diferentes: 1) os que acreditam não haver diferença estrutural entre psicose e autismo; 2) os que consideram o autismo como uma quarta estrutura; e 3) os que o definem como sendo uma a-estrutura. Acrescentamos também a posição de Balbo (2009), que considera o autismo mais especificamente como uma melancolia infantil.

Não há em Freud muitas indicações a respeito desse tema, mas Furtado (2013) alerta-nos que, se recorrermos a ele, encontraremos sua discordância em relação ao termo forjado por Bleuler - que retirou o eros de autoerotismo criando o autismo - e sua insistência em considerar os fenômenos relativos ao autismo a partir dos fatos sociais, da relação com outras pessoas. Ou seja, mesmo quando se tratava de fenômenos em que a relação com a alteridade estava comprometida, Freud sustentava que não podemos separar a psicologia individual da psicologia das massas.

Lacan também se pronunciou muito pouco sobre o assunto. Mais especificamente, na Conferência em Genebra sobre o sintoma, em 1975, Cramer lhe perguntou como algo pode ser transmitido a um autista se, no caso deles, "o passível de receber não está situado e [...] o ouvir não pode ser produzido" (n.p.). Lacan, então, em sua resposta, dá algumas indicações de que o autismo seria um tipo de psicose, pois se refere à alucinação e equipara o autista ao esquizofrênico.

De qualquer maneira, os mais de 100 anos de experiência psicanalítica e os estudos aprofundados das últimas décadas representam um fato: ao contrário do que muitos cientistas e familiares exaltam pelo mundo afora, a clínica psicanalítica com sujeitos autistas é sim possível. Lacan realmente se colocou muito pouco sobre os autistas, mas, talvez, tenha dito o bastante quando respondeu ao dr. Cramer: "É muito precisamente o que faz com que não os escutemos. O fato de que eles não nos escutam. Mas finalmente há sem dúvida algo para dizer-lhes" (Lacan, 1975, n.p.), com a condição de que deles nos ocupemos de modo adequado, considerando suas invenções em vez de lhes prescrevermos uma série de métodos pré-formatados.

No que concerne mais especificamente à Psicologia, o termo psicose infantil tem desaparecido das hipóteses diagnósticas dos psicólogos, pois eles costumam ser extremamente influenciados pelos manuais estatísticos em sua prática. Na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID-10 (OMS, 2010), por exemplo, o termo psicose infantil não existe, mas suas principais características encontram-se sob a nomenclatura de Autismo infantil, F. 84.0. E a partir do DSM-IV, não há mais registros desse quadro clínico na nosografia globalmente referenciada: baseando-se nele, só podíamos nos referir a essas crianças - já tão habitualmente excluídas do laço social - utilizando a denominação geral de Transtornos Globais do Desenvolvimento (Bernardino, 2010).

Em 2013, a quinta versão do DSM (APA, 2013) foi lançada e a situação se complicou. Desta vez, todos os ditos Transtornos Globais do Desenvolvimento - TGDs (Autismo, Transtorno Desintegrativo da Infância, Síndrome de Asperger e Síndrome de Rett) foram absorvidos por um único diagnóstico denominado Transtornos do Espectro Autista. A mudança ocorreu a partir da suposição de que todos esses transtornos são uma mesma condição com gradações apenas nos seguintes grupos de sintomas: 1) déficit na comunicação e interação social; 2) padrão de comportamentos, interesses e atividades restritos e repetitivos (Araújo, & Lotufo Neto, 2014).

Devemos lembrar que o DSM não é um sistema classificatório como outro qualquer, pois, dentre aquilo que produz, ele condiciona os tratamentos obrigatórios pelas companhias de seguro e é utilizado pela justiça mundo afora como texto de orientação, sobretudo no que diz respeito às internações psiquiátricas compulsórias. Ou seja, sua pretensão é de administrar o campo da saúde mental a partir de um sistema de classificação completamente hipotético. Trata-se, como afirma Laurent (2014, p. 173, grifos do autor) de "um instrumento de gestão de populações que não pode lavar as mãos no que se refere às consequências de seu autoritarismo classificatório, que avança mascarado de falsa ciência" e que, em suas sucessivas revisões, "não cessa mais de testar e retestar o efeito de massificação segregativa produzido em seu nome, e a tolerância social em relação a esse efeito" (Laurent, 2014, p. 173, grifos do autor).

Além disso, sabemos que as consequências para a própria criança diagnosticada a partir de um manual são gravíssimas já que, assim, ela fica reduzida a uma linhagem médica totalmente alheia que não contempla seus laços sociais primários, submetida ao que Vorcaro (2011) chamou de efeito bumerangue, o qual, em suas palavras,

amplifica a ordem de grandeza dos quadros clínicos na medida em que atesta um rigor científico capaz de excluir o saber parental ordinário constitutivo do laço social de qualquer criança. Reduzida à orientação do saber médico, a criança perde sua linhagem cultural originária. Nela, decalca-se um nome que, além de anônimo, a classifica como pertencente a outra família: de genealogia médica (Vorcaro, 2011, p. 219).

Como parte da consequência dessas mudanças, que se deram a ver mais claramente a partir de 1994, com o lançamento do DSM-IV, vemos acontecer no mundo uma epidemia diagnóstica sem precedentes. Em vinte anos, a quantidade de itens agrupados sob a categoria autismo foi multiplicada por dez. Realmente, ele se transformou em "um espectro: um fantasma que assombra e tira o sono [...]", como ironiza Kupfer (2015, p. 11). Assim, o discurso estatístico, a-teórico e assujeitador sobre os impasses da infância tem ganhado destaque em nossa época, rechaçando o que entendemos por psicopatologia clínica, muito embora, paradoxalmente, os diagnósticos ainda sejam tomados de maneira clínica, já que ainda não há nada comprovado geneticamente ou biologicamente sobre o autismo. O que existem são hipóteses tomadas como verdades e, por conseguinte, o congelamento do destino de milhares de crianças.

O autismo, portanto, é um importante sintoma contemporâneo; ele está na boca dos especialistas, dos professores, dos pais, e, na grande maioria das vezes, significado como uma doença genética, biológica e sem cura, passível apenas de educação comportamental. No entanto, Maleval (2017), em O autista e a sua voz, argumenta que, por mais bem-intencionados que sejam os métodos de aprendizagem para autistas, eles encontram limites, não implicando uma mudança global significativa da pessoa que se beneficia da intervenção. Isso porque os estudos por trás desses métodos não indagam os autistas a respeito do seu grau de satisfação, não consideram de modo suficiente o devir desses sujeitos. A ciência recusa metodologicamente o conteúdo das monografias clínicas e das biografias de autistas, por exemplo, o que não só constitui um obstáculo epistemológico, como afasta os estudiosos daquilo que Maleval chama de "um saber precioso: aquele que os próprios autistas possuem a respeito do seu funcionamento" (p. 374).

Tal situação não vem sem consequências clínicas, sociais e políticas. Para citar um recorte delas, em 2005 foi lançada uma circular relativa à política francesa de assistência a pessoas com autismo que determinava suas causas relacionadas a fatores genéticos e ambientais diversos, recomendando que as antigas teses psicogênicas que acentuavam a angústia dos pais deveriam ser largamente descartadas - fato que colocou mais uma vez em destaque a insistente versão das mães-geladeira e outras questões relacionadas à psicanálise. Já em 2012, o autismo recebeu na França o rótulo de Grande Causa Nacional, o que, em vez de reunir as pessoas em torno de uma causa justa, produziu campanha midiática virulenta, que solicitava o governo a concentrar todo o atendimento a autistas em protocolos de reeducação comportamental, desencadeando fortes enfrentamentos sociais. A batalha - termo tão utilizado pelos pais de sujeitos autistas com referência ao seu difícil cotidiano - passou a ser travada igual e largamente na esfera pública (Laurent, 2014).

A pólvora dessa batalha também estourou no Brasil e fez surgir, em 2013, o Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP), deflagrando um trabalho epistêmico, clínico e político em defesa da diversidade de abordagens no tratamento do autismo e da implementação e manutenção de políticas públicas que priorizem as singularidades dos sujeitos. Esse movimento se originou em decorrência de uma publicação no diário oficial do estado de São Paulo, em 4 setembro de 2012, que fazia uma convocação pública para o credenciamento de instituições especializadas em atendimento a pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) a fim de eventual contrato ou convênio. O documento exigia, por exemplo, dois psicólogos com especialidade em Terapia Cognitivo Comportamental que utilizassem métodos como Picture Exchange Communication System - Sistema de Comunicação por figuras (PECS), Applied Behavior Analysis - Análise do Comportamento Aplicada (ABA) e Treatment and Education of Autistic and Communication Handiscapped Children - Tratamento e Educação de Crianças Autistas com desvantagem na Comunicação (TEACCH). Além disso, os pacientes a serem atendidos deveriam ser diagnosticados a partir de um laudo médico exclusivamente emitido por um especialista em neurologia ou psiquiatria, com título de especialidade reconhecido etc.

Depois, houve, ainda, a decisão por parte da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo para que se fechasse o Centro de Referência da Infância e Adolescência (CRIA), do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), partindo do argumento de que o trabalho psicanalítico ali realizado não tinha comprovações científicas e que a prioridade para esse tipo de tratamento era dos profissionais cognitivo-comportamentalistas. Felizmente, após uma grande mobilização, o CRIA voltou a funcionar (Ferreira, 2014).

Como se vê, o autismo passeia pelo viés das jurisprudências e políticas públicas. Além da emblemática sanção da Lei nº 12.762/2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, os autores Lima, Couto, Delgado e Oliveira (2014) apontam que também é possível constatar a sua relevância nas discussões nacionais a partir de dois documentos recentes do Ministério da Saúde: Linha de cuidado para a atenção às pessoas com transtornos do espectro do autismo e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2015) e Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo (Brasil, 2014). Oliveira (2015) complementa que se pode averiguar aí uma espécie de divisão de perspectivas sobre o assunto, tendo em vista que: a escrita de um deles foi coordenada pela área da saúde mental e a do outro pela área da saúde da pessoa com deficiência.

No corpo de revisores técnicos desses documentos, que foram escritos em forma de cartilha, é possível identificar profissionais de diferentes abordagens. Há, por exemplo, psicanalistas que ajudaram a pensar o conteúdo de ambos; a presença deles na cartilha que pende mais para as questões da reabilitação gerou polêmicas entre os membros do MPASP, pois alguns acham o trabalho do psicanalista incompatível com a ideologia da reabilitação, enquanto outros defendem que ele deve se dispor a trabalhar onde quer que haja sujeito (Machado, & Lerner, 2013).

Mais recentemente, também acompanhamos no Brasil outra discussão entre psicanalistas em decorrência da sanção da Lei 13.438 (1990), a qual acrescenta um parágrafo ao Artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 1990), tornando obrigatória "a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico". Isso porque alguns psicanalistas estão envolvidos com pesquisas que visam a criação de protocolos de detecção precoce de riscos psíquicos e outros se colocam contra a utilização de instrumentos desse tipo, denunciando o perigo da proliferação de diagnósticos de falsos quadros de autismo e outras modalidades de sofrimento psíquico.

Assim, vemos ressurgir a velha questão da cientificidade da psicanálise. Se internamente o assunto se pauta na ética do psicanalista, externamente vemos grupos contraindicando a psicanálise para autistas porque lhe falta comprovação científica, porque ela não tem método garantido, não funciona etc. Em detrimento disso, recomendam-se as técnicas de adestramento, como citadas no edital comentado mais acima, que apresentam resultados ao passo que foracluem o sujeito do processo. Dunker (2013) nos lembra que comparar essas duas possibilidades é uma tolice, pois o PECS, a ABA ou o TEACCH são técnicas de aprendizagem e não métodos de tratamento: "a cientificidade é um atributo do método, a efetividade um predicado da técnica" (Dunker, 2013, n.p.).

Ao lado do comportamentalismo, que trava uma batalha tanto teórica quanto ideológica e identitária, estão muitos pais dos ditos autistas. Eles geralmente estão ligados a instituições especializadas que adotam métodos comportamentais e rechaçam as posições psicanalíticas e psicodinâmicas sobre o autismo, entendendo-o como um transtorno, uma deficiência cujo tratamento deve ser subsidiado financeiramente pelo poder público (Furtado, 2013; Laurent, 2014; Oliveira, 2015).

O autismo, então, fez com que as resistências à psicanálise se dessem a ver mais uma vez. Na verdade, elas nunca deixaram de existir, mas parecem ter voltado com mais força nos últimos anos. Isso nos indica que é preciso avançar nas discussões; a questão da cientificidade na psicanálise não deve mais ficar voltada apenas aos aspectos epistemológicos ou metodológicos, já que o foco do problema, como explica Dunker (2013) se deslocou para a face normativa.

Quando advogamos que nós temos nossos próprios critérios e que não precisamos da esfera pública para legitimar nossa prática, ainda um último resíduo da prática liberal, isso facilmente pode se transformar em um contra-argumento suicidário. Ou seja, entregamos a racionalidade diagnóstica ao DSM, renunciamos a lutar pela autonomia da psicanálise no interior dos cursos universitários, recusamos as modalidades de reconhecimento interpares em vigor na sociedade civil (em prol de uma segmentação progressiva e divergente de nossas associações), advogamos nossa extraterritorialidade entre as ciências, ao final nos retiramos de todo contexto regido e organizado pela normatividade. Disso para a auto-segregação é um passo (Dunker, 2013, n.p.).

O autismo, enquanto categoria psicopatológica contemporânea, deslizou, assim, da condição unicamente clínica para o cenário político, uma vez que, como vimos, sua discussão já não passa apenas pelos manuais médicos e consultórios psi, mas também por uma série de jurisprudências e instituições públicas. Como diz Laurent (2014, pp. 60-61), "embora seja difícil incriminar uma mutação na espécie humana, o autismo é de fato o espectro que ronda as burocracias sanitárias". Essa conjuntura provoca a psicanálise a sustentar seu posicionamento subversivo diante do discurso universalizante da ciência e seus efeitos de segregação.

 

Os efeitos de segregação

A fim de dar prosseguimento à nossa reflexão, vamos nos servir da noção de segregação utilizada por Lacan, ao longo do seu ensino, para tratar dos efeitos produzidos no laço, quer seja no que diz respeito à situação de insularidade da comunidade psicanalítica, quer seja como processo resultante da política de mercado, ligada aos ideais universalizantes introduzidos pelo discurso da ciência.

Como nos lembra Askofaré (2009), o termo segregação não pertence aos conceitos fundamentais da psicanálise e nem é tão utilizado em nosso vocabulário cotidiano. Trata-se de uma noção muito debatida no campo psicanalítico no final da década de 1990 - principalmente em trabalhos sobre a toxicomania - que tem sido resgatada atualmente a fim de movimentar outras discussões contemporâneas que colocam em xeque o estatuto do sujeito diante de reverberações sociais e políticas. Nesse sentido, podemos utilizá-la para pensar em termos de figura, ou melhor, figuras da segregação, o que diz respeito a "uma pluralidade de aspectos, aparências e manifestações através das quais se pode reconhecer uma mesma forma" (Benslama, 2016, p. 10, tradução nossa). Assim, o autista, o toxicômano, o imigrante, o homossexual e, ainda, o louco são algumas dessas figuras de nosso tempo.

Pode parecer uma grande novidade para a nova geração de estudantes, porém, há mais de duas décadas, Soler (1998) iniciava uma conferência comentando como esse termo estava na moda, não só no campo psicanalítico, mas em todas as partes. O que não era o caso, diz ela, quando, em 1967, Lacan fazia "sua predição a respeito daquilo que chamava de 'uma extensão sempre mais intensa dos fenômenos da segregação'" (Soler, 1998, p. 43). Soler explica que o tema não estava em evidência no final da década de sessenta porque ainda funcionava a ilusão de subversão do capitalismo, algo em que, segundo ela, já não podemos mais acreditar.

Lacan fala sobre segregação essencialmente em três momentos: na primeira versão da Proposição de 9 de outubro (1967/2001a), no Pequeno discurso aos psiquiatras (1967) e no Seminário XVII (1970/1992). Se tomarmos esses textos como indicações, seguindo Askofaré (2009, p. 346), "o tema da segregação surge no entrecruzamento de três problemáticas: o laço social e político, a instituição analítica e o passe e, enfim, o discurso da ciência e a foraclusão do sexo e do amor". Aqui, interessa-nos particularmente o uso que Lacan fez desse termo por ocasião de uma jornada, organizada por Maud Mannoni em 1967, sobre a infância alienada.

Nesse evento, que reunia representantes do movimento da anti-psiquiatria e psicanalistas anglo-saxões, a conferência de Lacan tinha como objetivo sublinhar o destino comum da prática institucional (especialmente dirigida ao tratamento do sujeito psicótico) e do futuro da prática analítica. Em reação às exposições dos analistas pós-freudianos, Lacan aborda uma série de temas, tais como o inconsciente, o corpo, o gozo, o real enquanto impossível, em um verdadeiro esforço de situar o discurso do analista em oposição ao discurso da ciência. No final da conferência, ele anuncia que vai deixar de lado as discussões teóricas para abordar o que chama de "o impasse dos problemas levantados na época" (Lacan, 1967/2001b, p. 367). Nesse mesmo movimento, Lacan introduz uma expressão, um tanto enigmática, mas fecunda: a criança generalizada, fazendo referência aqui ao que André Malreaux afirma nas suas Antimemorias: "Acabei acreditando, veja só, neste declínio da minha vida... que não existe gente grande". Além das consequências clínicas que disso decorrem sobre a necessidade de tomar posição frente a mudança radical do estatuto do pai, cada vez menos capaz de assegurar a distribuição e ordenação do gozo, podemos reconhecer nessa expressão uma evidente conotação política.

Na verdade, a generalização da criança implica a abolição daquilo que constitui a diferença com relação ao adulto, a saber: aquilo que diz respeito à responsabilidade subjetiva. A desresponsabilização com relação às modalidades de gozo resulta da ação universalizante do discurso da ciência, produzindo, como consequência, a criança generalizada. E eis que Lacan, sempre de forma enigmática, associa a entrada no reino da criança generalizada "à entrada de um mundo inteiro no caminho da segregação" (Lacan, 1967/2001b, p. 367). Ora, nós sabemos a importância que Lacan atribui aos efeitos do discurso da ciência sobre o laço social, mas o que nos interroga é a relação que ele propõe entre a criança generalizada e a segregação.

Sobre o primeiro termo, pode-se compreender, como já foi dito, o fato da desresponsabilização do gozo de cada um, o que, mais do que a cronologia, distingue a criança do adulto. Enquanto correlato dos impasses levantados na época, todos iguais, direitos comuns, a criança generalizada tem, como contrapartida, um efeito crescente de segregação.

Lacan afirma que não se trata somente da segregação ligada ao domínio da psiquiatria, a segregação dos loucos, mas ele anuncia, de forma um tanto profética, que iremos rumo a uma segregação tão extensa quanto o universo. Encontramos, na ocasião, uma alusão aos fenômenos de racismo e, mais particularmente, aos campos de concentração nazistas. No seminário XVII, em uma referência a Totem e Tabu, Lacan retoma a palavra segregação como princípio da fraternidade: "Só conheço uma origem da fraternidade... é a segregação. Não há mais segregação em parte alguma, é o tédio quando lemos os jornais. Simplesmente [...] na sociedade tudo o que existe é fundado na segregação, e, antes de tudo, a fraternidade" (Lacan, 1970/1992, p. 107).

Podemos constatar que não é sem um certo paradoxo que Lacan situa a segregação justamente como efeito do ato mítico que institui o laço fraterno, a saber: o assassinato do pai da horda. A contradição dessa afirmação vai ainda mais longe, quando, um ano depois, em 1970, ele anuncia, em uma breve nota de rodapé: "A recusa da segregação está naturalmente no princípio do campo de concentração" (Lacan, 1970/2003, p. 392). Assim, a segregação aparece como princípio tanto da fraternidade quanto sua recusa implicaria o fundamento do campo de concentração.

Podemos já concluir que a forma como Lacan trata esse significante não coincide com o sentido mais corrente da palavra. O termo segregação é frequentemente empregado com uma conotação política ligada à ação de isolar um grupo, por exemplo, pelas suas características raciais. Esse termo, sociológico por excelência, adquire em Lacan uma complexidade em princípio contraditória com relação a seu sentido primeiro que diz respeito ao fato de isolar, de separar. No entanto, ele o compreende como efeito de um ideal uniformizante. Efeito não somente de um discurso particular, mas também efeito de discurso, na sua conotação de estrutura ou de princípio. É, a partir dessa vertente estrutural, que Lacan nos fala da segregação, sublinhando que tanto mais nos dirigimos em direção ao universal, mais segregamos o singular. Daí seu alerta sobre os impasses do nosso tempo na referência ao mundo da criança generalizada, essa figura da criança da ciência, da criança-objeto de um saber sem sujeito, onde predominam as paixões preventiva e educativa acompanhantes da promoção das grandes classificações internacionais, como é o caso do DSM e do CID.

Assim, segregação e discriminação ou exclusão não são a mesma coisa, mesmo se na prática elas se parecem próximas. Isso porque a segregação apenas acontece no contexto da nossa civilização científica, na qual a universalização não passa pelo significante mestre, senão pelas leis do mercado, "por um dever que não o da proliferação dos valores dos ideais, mas um dever real do manejo dos meios econômicos" (Soler, 1998, p. 45). Assim, nesse arranjo social em que todos obedecem a um só modelo, vestem-se com as mesmas roupas, possuem os mesmos objetos etc., quando se apresentam diferenças resistentes, irredutíveis, como é o caso do autismo, o que resta é uma saída que Soler (1998, p. 45) chama de "espacial: cada um em seu devido lugar, ou seja, uma solução que poderíamos caracterizar como sendo pela via da repartição territorial". Temos por segregação, portanto, um efeito de discurso e, sobretudo, uma forma de organização do social, uma "[] via de tratar o insuportável, o impossível de suportar" (Soler, 1998, p. 46).

Na verdade, é possível ver os efeitos da segregação da medicina à psiquiatria, da psiquiatria ao direito, do direito à psicologia, da psicologia à educação. Esses efeitos, explica Askofaré (2012, p. 166, tradução nossa) são não somente espaciais, "com os lugares físicos onde se isolam e concentram aqueles que são identificados como loucos, criminosos, débeis, delinquentes, [...] superdotados e velhos", mas têm também sua versão epistêmica, com as especializações de saberes e de formações profissionais.

O que acontece no cenário da saúde pública hoje é exatamente um deslize nos modos de tratar o autismo que parecem ir na direção dos setores da atenção psicossocial para os centros especializados. Isso quer dizer, de forma clara, que aos sujeitos ditos autistas tem sido reservado menos o tratamento aberto, compartilhado, em comunidade, e mais um tratamento em espaço específico, em território repartido. Os conceitos mesmos que fundamentaram a reforma psiquiátrica e o consequente nascimento dos Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), por exemplo, parecem já não sustentar um trabalho possível com esses sujeitos, porque tais instituições estão em grande parte tomadas também pelo que estamos chamando de universalização.

[...] o discurso da ciência determina um processo paradoxal que, de um lado, efetua um "puro sujeito da ciência" que não existe em parte alguma e, por outro, faz ex-sistir, fora de seu domínio de definição e fora do universo de seu discurso, diferentes fenômenos que presentificam e suportam a protestação lógica do sujeito falante que devia foracluir por se constituir. É entre outros em torno desses fenômenos que objetam ao processo de Um-iversalização e ao Um-perialismo da ciência que vão se constituir os isolados, as concentrações, as novas repartições inter-humanas que propõe denominar efeito de segregação (Askofaré, 2009, p. 352, grifos do autor).

Esse ideal uniformizante, essa universalização, é exatamente aquilo que trata de suprimir diferenças, encaixar todos em um mesmo modelo ou, ainda, aquilo que provoca a homogeneização dos modos de gozar. Ela sempre existiu, já que a civilização sempre mandou no gozo, mas nunca foi tão alarmante quanto hoje, em nosso mundo científico, marcado pela crise, ou, como elabora Soler (1998, p. 44), pela "esquizofrenização do significante mestre". Assim, "o discurso da ciência e o sujeito moderno que lhe é correlato iniciam uma prática - quer dizer, um tratamento do real pelo simbólico - da segregação" (Askofaré, 2009, p. 351). E é exatamente nessa época, e não por acaso, que aparece o autismo, digamos, como avatar social contemporâneo da insuportabilidade do Outro.

A Um-iversalização e o Um-imperialismo da ciência deram condições de possibilidade para montar o cenário atual, no qual o autismo foi categorizado da seguinte maneira: uma deficiência intelectual sem cura, passível de ser tratada de preferência em centros especializados com técnicas específicas que geram resultados comportamentais e garantem a normatividade dos pacientes, através de todo um aparato tecnológico manejado por especialistas em reabilitação. O autismo atualiza e põe em xeque a tendência à universalização do saber clínico psiquiátrico atual, o qual "promove abordagens técnicas e objetivas de fenômenos que entrelaçam as dimensões histórica, fantasística e ideológica, apagando as singularidades nas diversas formas de viver e aprender" (Furtado, 2013, p. 92). Contexto tal, como aponta Elia (2012), em que vemos o objeto da ciência aprisionado miseravelmente a um único objeto da realidade, qual seja: um cérebro ou um repertório comportamental.

Elia (2012), em seu artigo, toca em um ponto interessante dessa discussão. Segundo ele, o autismo está para a contemporaneidade em posição homóloga àquela que a histeria ocupou, como protagonista na fundação da psicanálise, há mais de 100 anos. "Há no autismo, como houve na histeria, um enigma instigante que convoca o psicanalista a dar uma resposta, tanto clínica quanto teórica, uma resposta que se formule em ato" (Elia, 2012, p. 56). Se a histeria desafiou a ciência de sua época, o autismo desafia a ciência de hoje, com a seguinte ressalva:

enquanto que a histeria desafiava a ciência de sua época, rebelava-se contra ela, apontando sua impotência em tratá-la, o que exigiu de Freud o esforço suplementar de se inventar como psicanalista, superando a ciência e indo além de sua condição inequívoca de um cientista de mão cheia, a "ciência" de hoje tenta enquadrar o autismo, adestrá-lo, reduzi-lo, eliminar sua particularidade positiva (Elia, 2012, p. 56).

Furtado (2013, p. 180) coloca em pauta essa mesma questão e indaga se "a figura do autista não seria um exemplo paradigmático que renova a necessidade da ética da psicanálise enquanto saber que se constitui no particular e não no universal". Laurent (2014), por sua vez, questiona se o século XXI será o da evidência de uma condição ordinária do autismo, levando-se em conta que no começo do século XX se deu a descoberta da extensão da neurose e do conflito psíquico, e, no seu fim, revelou-se a extensão e a frequência da psicose e da depressão, dando-lhes uma condição ordinária.

Temos, então, a psicanálise como uma possibilidade subversiva. Mas, é importante lembrar que: "O discurso analítico pretende escapar à segregação pela via do um por um, o que é astuto. Ou seja, é um discurso que aparentemente não segrega ninguém, salvo o fato de que todos não entram, que todos não podem entrar" (Soler, 1998, p. 49). Além disso, se o que se espera do trabalho do psicanalista é um resultado, então, encerra Soler (1998, p. 53), "a civilização não pode esperar muito do discurso analítico".

 

Considerações finais

Como foi dito, é possível pensar em diversas figuras da segregação, o que diz respeito a "uma pluralidade de aspectos, aparências e manifestações através das quais se pode reconhecer uma mesma forma" (Benslama, 2016, p. 10, tradução nossa). Assim, podemos dizer que o sujeito autista - tal qual o imigrante, o homossexual, e, ainda, o louco - é uma dessas figuras da segregação de nosso tempo. E mais: o autismo - e os efeitos de segregação que recaem sobre as crianças ditas autistas hoje - atualiza a questão da criança generalizada, discutida por Lacan em 1967.

A segregação pode ser interpretada como uma questão central da crise da civilização moderna, científica, a qual revela e acentua o mal-estar inerente a ela mesma. A psicanálise, ainda que nascida nessa civilização, nunca pretendeu suprimir tal mal-estar, nem "entretê-lo", como disse Koltai (1998, p. 106), mas sempre buscou tomar "o sintoma a sério". A partir dos estudos de Lacan, que pôde levar a genialidade de Freud adiante, podemos colocar em pauta os efeitos dessubjetivantes disparados sobre as crianças a partir do discurso totalitário da ciência, que, no que diz respeito ao autismo infantil, situa-lhe mais uma vez em escanteio.

Acreditamos que a evolução da figura da criança, enquanto criança-objeto de um saber sem sujeito da ciência, constitui o apogeu da psicologização das experiências infantojuvenis, assim como dos mais diversos acidentes do laço social, familiar ou escolar. No plano clínico, essa mutação produz, no entanto, um verdadeiro esmagamento da dimensão subjetiva. Não podemos deixar de constatar a forma como uma certa reflexão psicopatológica e psiquiátrica se esforça em construir, na sua dependência cada vez maior aos ideais biológicos e aos desenvolvimentos farmacológicos, um verdadeiro saber do esquecimento.

Nesse abandono progressivo da etiologia psíquica em proveito de dados puramente factuais, comportamentais, as pesquisas mais recentes encontram o mesmo ponto de entrave, essa opacidade do real, no ponto que testemunha o hiato entre a causa e a maneira pela qual afeta o sujeito. Sublinhando a identidade ou a diferença entre manifestações sintomáticas, tais vias de exploração multifatoriais através de modelos quantitativos e estatísticos - embora rigorosos do ponto de vista científico - desconsideram as relações existentes entre os fatores patogênicos subjacentes e impossibilitam definitivamente qualquer compreensão mais aprofundada de um ponto de vista metapsicológico.

Apoiados nas contribuições da doutrina freudiana, em uma referência constante à linguagem no fundamento da subjetividade e dos diferentes laços sociais, podemos avaliar a urgência para os profissionais em reinserir uma certa subversão na pretensa segurança dos novos corpos de saber, mas, sobretudo, em responder ao amordaçamento do sujeito da palavra. A contribuição de Lacan permanece, assim, atual. Se em 1967, ele desenvolveu suas ideias sobre a segregação como resposta à psiquiatria da criança, em especial a de orientação anglo-saxônica, poderíamos nos interrogar o que ele teria dito hoje, 50 anos depois, com relação ao cenário atual, ordenado em torno das políticas de saúde mental infantil.

 

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Endereço para correspondência:
Maria Celina Peixoto Lima
celina.lima@unifor.br

Thalita Castello Branco Fontenele
thalitafontenele@gmail.com

Jean-Luc Gaspard
jeanlucgaspard@gmail.com

Submetido em: 11/12/2017
Revisto em: 21/03/2018
Aceito em: 02/04/2018

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