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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.3 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2018

 

ARTIGOS

 

Princípios fenomenológicos da compreensão da esquizofrenia fundamentados em Vigotski

 

Phenomenological principles of the understanding of schizophrenia based on Vygotsky

 

Principios fenomenológicos de la comprensión de la esquizofrenia fundamentados en Vygotski

 

 

Eduardo Moura da CostaI; Savio Passafaro PeresII

IDoutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Assis. Estado de São Paulo. Brasil
IIDocente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Assis. Estado de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A tradição filosófica iniciada por Edmund Husserl, a fenomenologia, e a teoria histórico-cultural, desenvolvida por Vigotski, rompem com a ideia da consciência cartesiana, como algo fechado. Ambas as concepções propiciam uma rica perspectiva de estudo das psicopatologias. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é contrastar as descrições provenientes da fenomenologia com as tentativas de explicação desse fenômeno desenvolvidos por Vigotski. Uma das posições mais aceitas entre os fenomenológos contemporâneos compreende essa patologia como um distúrbio do self, decorrente de alterações da estrutura da temporalidade, da corporalidade e das relações sociais. Para Vigotski, a esquizofrenia decorre da desintegração da formação conceitual da consciência, ocasionando o prejuízo na percepção da realidade, dos outros e de si mesmo. Por fim, apontaremos alguns nexos possíveis por meio do contraste das duas abordagens sobre estados patogênicos típicos da esquizofrenia.

Palavras-chave: Fenomenologia; Psicologia histórico-cultural; Esquizofrenia.


ABSTRACT

The philosophical tradition initiated by Edmund Husserl, phenomenology, and the historical-cultural theory, developed by Vygotsky, break with the idea of consciousness as something closed. Both conceptions provide a rich perspective on the study of psychopathology. In this sense, the aim of the present article is to contrast the descriptions coming from phenomenology with the attempts of explanation of this phenomenon developed by Vygotsky. One of the most accepted positions among contemporary phenomenologists understands this pathology as a disturbance of the self, causing changes in temporality, corporality and social relations. For Vygotsky, schizophrenia stems from the disintegration of the conceptual formation of consciousness. As a result of this, there is a loss in the perception of reality, of others and of oneself. Finally, we will point out some possible links through the contrast of the two approaches to pathogenic states typical of schizophrenia.

Keywords: Phenomenology; Cultural-historical psychology; Schizophrenia.


RESUMEN

La tradición filosófica iniciada por Edmund Husserl, la fenomenología y la teoría histórico-cultural, desarrollada por Vygotsky, rompen con la idea de la conciencia cartesiana como algo cerrado. Ambas concepciones propician una rica perspectiva de estudio de las psicopatologías. En ese sentido, el objetivo del presente artículo es contrastar las descripciones provenientes de la fenomenología con los intentos de explicación de ese fenómeno desarrollados por Vigotsky. Una de las posiciones más aceptadas entre los fenomenólogos contemporáneos comprende esa patología como un desorden del self, resultante de alteraciones de la estructura de la temporalidad, de la corporalidad y de las relaciones sociales. Para Vigotski, la esquizofrenia deriva de la desintegración de la formación conceptual de la conciencia, ocasionando el perjuicio en la percepción de la realidad, de los demás y de sí mismo. Por último, apuntaremos algunos nexos posibles por medio del contraste de los dos enfoques sobre estados patógenos típicos de la esquizofrenia.

Palabras clave: Fenomenología; Psicología histórico-cultural; Esquizofrenia.


 

 

Introdução

Os tratamentos das diferentes formas de sofrimento psíquico, desenvolvidos pela psiquiatria e pela psicologia, ao longo do século XX, se pautaram, sobretudo, no paradigma biológico medicalizante. Ainda hoje o paradigma psiquiátrico é baseado na concepção do paciente como um indivíduo fechado, possuidor de disfunções cerebrais (Fuchs, 2015). Nesse sentido, se tornaram hegemônicas as pesquisas de mapeamento cerebral, psicofarmacológicas e aquelas que procuram buscar as causas das psicopatologias na herança genética.

Foi o psiquiatra suíço, Eugen Bleuler (1857-1939), quem introduziu o termo e o conceito de esquizofrenia. Em sua crítica à descrição do fenômeno como uma "demência precoce", Bleuler considerou os fatores psicológicos e sociais junto com os processos neurobiológicos. Isso o tornou um dos precursores da compreensão bio-psicossocial da doença mental (Maatz, Hoff, & Angst, 2015).

Pode-se atribuir aos psiquiatras fenomenólogos, como Karl Jaspers (1883-1969), as primeiras tentativas rigorosas de descrição das experiências subjetivas dos pacientes. O objetivo da descrição psicopatológica é captar as estruturas típicas das vivências do paciente, sem um arco teórico prévio. Nesse sentido, do ponto de vista epistemológico, a fenomenologia possui como foco de interesse o estudo das experiências subjetivas, bem como sua forma de expressão nos estados patológicos.

Dada a importância da nosologia para o diagnóstico e para as investigações em psicopatologia, Miret, Fatjó-vilas, Peralta e Fañanás (2016) realizaram uma revisão da literatura com o objetivo de atualizar os sintomas básicos da esquizofrenia. Segundo os autores, do ponto de vista neurobiológico, estudos corroboram o possível papel do sistema límbico juntamente com um déficit dinâmico na alteração de processamento de informações. Do ponto de vista cognitivo, os sintomas básicos são interferência de pensamento, perseveração de pensamento, bloqueio de pensamentos, alteração da fala, capacidade reduzida de discriminação de ideias, percepções, fantasias, referência a ideias instáveis, desrealização, alteração da percepção visual, alteração da percepção auditiva, incapacidade de dividir a atenção e alteração do pensamento abstrato. Do ponto de vista fenomenológico, a esquizofrenia mostra-se como uma alteração nas estruturas mais fundamentais do self, comprometendo várias formas de vivências, ocasionando, em casos mais graves, a despersonalização.

O psicólogo soviético, Lev Vigotski (1896-1934), foi um dos primeiros a tentar buscar uma explicação para a esquizofrenia. Para tanto, ele articulou uma interpretação da origem dessa patologia com a formação dos fenômenos conscientes. O autor constatou que a esquizofrenia se constitui como uma desintegração do pensamento conceitual, base do sistema psicológico consciente (Vigotski, 1982/2004b). Nesse sentido, para o autor, os sintomas decorrentes do quadro esquizofrênico surgem porque essa patologia afeta a articulação da formação dos conceitos com outros processos psicológicos, tais como percepção, memória, atenção, concepção de mundo, dentre outros.

O projeto de se abordar cientificamente (embora não empiricamente) a consciência foi muitas vezes colocado em descrédito por várias doutrinas psicológicas ao longo do século XX. Não raro, a fenomenologia foi entendida como uma forma de introspeccionismo fadado ao fracasso. Sabemos que várias correntes de psicologia descartaram a consciência de seu campo de investigação. Um dos pontos que une Edmund Husserl (1859-1938) (1913/1950; 1925/1962; 1901/1984), considerado o pai do movimento fenomenológico, a Vigotski se encontra no fato de que ambos os autores não só consideraram que a consciência não pode ser deixada de lado pela psicologia, mas também no fato de que eles não buscaram reduzi-la à sua dimensão biológica.

Salvo as diferenças metodológicas, a psicologia histórico-cultural e a fenomenologia compartilham o mesmo interesse e atribuem igual valor ao estudo da consciência. Ambas correntes operam como uma concepção de consciência que rompe com as amarras da concepção moderna, de cunho cartesiano, cujo núcleo está no pressuposto de que a consciência só tem acesso aos seus conteúdos internos (representações) (Sokolowski, 1970; 2010; Zahavi, 2005). Essa situação é bem expressa por Moura (2007):

De qualquer forma, esse sujeito cartesiano permanece fechado no domínio de suas ideias, ilhado na sua própria interioridade. Assim, afirmar que toda consciência é consciência de alguma coisa é dizer que ela se relaciona diretamente ao mundo, não está fechada sobre si mesma mas abre-se imediatamente ao "exterior". É esse resultado, que sobretudo, que Sartre aplaudirá, já que ele lhe permitirá dizer, contra seus velhos mestres da Sorbonne, que nossa consciência nos lança diretamente no mundo, no "meio da multidão" (p. 10).

Para Husserl (1950), a relação intencional com o mundo se dá mediante sentido. Estar consciente de algo é estar consciente de algo que se manifesta com um determinado sentido. Vigotski, por sua vez, entende que a relação da consciência com a realidade é mediada via conceito ou significação. É a partir dessa crença, no estudo da consciência, que o diálogo entre essas duas orientações se torna não apenas possível, mas também apta a contribuir para uma abordagem mais rica da consciência em geral e das psicopatologias, em particular. A fenomenologia é, majoritariamente, uma ciência descritiva, embora haja elementos explicativos (Sass, 2010). A psicologia histórico-cultural é majoritariamente ciência explicativa, embora haja elementos descritivos.

Dada a complexidade do fenômeno que foi apresentado, acreditamos que tanto a fenomenologia quanto a teoria histórico-cultural de Vigotski podem trazer muitas contribuições para podermos pensar novas abordagens dos fenômenos psicopatológicos, em especial pelo fato de que as duas correntes abordam a psicopatologia a partir dos processos conscientes. Nesse sentido, objetivamos refletir as vivências subjetivas desencadeadas pela esquizofrenia tendo como base as formulações de Vigotski. Pretendemos lançar luz sobre o problema do método da psicologia ao contrastarmos dois aspectos da produção do conhecimento que se compatibilizam, que se trata do método de observação/descrição do fenômeno e a busca pela sua explicação.

Vigotski (1982/2004a), no seu diagnóstico da crise da psicologia, salientou que um dos problemas dessa ciência seria a cisão entre as orientações descritivas e explicativas. Apesar de criticar a fenomenologia de Husserl neste mesmo texto, em outra ocasião é possível constatar que ele não descartava o método de observação (Vygotsky, 2018b). Ele compreendia a descrição como fundamental para a ciência, pois, para se poder explicar, é preciso antes ter clareza sobre como o fenômeno se apresenta. No entanto, para ele, a análise deveria ultrapassar a mera descrição1. Segundo ele, um método de pesquisa não deve ser utilizado ou descartado tendo como base sua idade. Além disso, o autor é favorável a utilização de diferentes métodos. Contudo, essa posição estaria longe de ser um ecletismo porque ele adverte que o método deve ser corroborado pela prática. Em suma, nosso objetivo não é unir duas orientações que partem de perspectivas epistemológicas distintas, mas tentar analisar as observações da psicopatologia fenomenológica por intermédio das interpretações de Vigotski.

Husserl, embora tenha lançado as bases conceituais e metodológicas da fenomenologia, não abordou frontalmente tópicos ligados propriamente à psicopatologia. Por essa razão, não iremos propriamente confrontar a fenomenologia de Husserl com psicopatologia de Vigotski. A fim de contornarmos esse problema, usaremos o pensamento de um dos maiores nomes da psicopatologia fenomenológica atual, Thomas Fuchs. A escolha se justifica pelo fato de que Thomas Fuchs busca iluminar o fenômeno da esquizofrenia tendo como principal base as reflexões husserlianas sobre a temporalidade.

O artigo se estrutura da seguinte forma: Inicialmente, iremos observar como a psicopatologia fenomenológica contemporânea, tal como exposta por Fuchs (2010; 2013; 2015), compreende a esquizofrenia como um distúrbio do self, intimamente ligado a um distúrbio na consciência interna do tempo. A escolha das obras de Fuchs, como corpus central para a exposição da abordagem fenomenológica da esquizofrenia, além dos fatores já apontados, se justifica pelo fato de ele estar em pleno diálogo não só com os mais relevantes autores da tradição da psiquiatria fenomenológica, mas também com outros importantes autores psiquiatras contemporâneos (Sass, & Parnas, 2003; 2005). E, no que concerne à linha interpretativa husserliana seguida por Fuchs, vale destacar o alinhamento deste último com as novas interpretações apresentadas pelo dinamarquês Dan Zahavi2. Partindo do status quaestionis da fenomenologia e da psiquiatria fenomenológica atual, Fuchs busca compreender como se articulam, na esquizofrenia, aspectos como a autoconsciência pré-reflexiva, o corpo subjetivo, a consciência interna do tempo, a intersubjetividade, a reflexividade, o senso de propriedade das próprias vivências. Em seguida, iremos enfatizar as interpretações de Vigotski sobre esse fenômeno. Optamos por apresentar apenas as formulações de Vigotski em razão das diferenças epistemológicas em comparação aos seus continuadores na União Soviética3.

Vigotski aborda a esquizofrenia como uma desordem no processo conceitual, ocasionando uma regressão, no esquizofrênico, ao estágio do desenvolvimento pré-conceitual. Esse distúrbio do sistema semântico estaria vinculado, segundo o autor, com o prejuízo da capacidade de integração e coordenação das várias funções psíquicas. No final desse artigo, buscaremos ensaiar alguns nexos possíveis, a partir das descrições da fenomenologia e das explicações de Vigotski. O objetivo é levar o leitor a compreender a importância, do ponto de vista metodológico, dessas duas formas de abordagem do fenômeno psicológico.

 

Uma abordagem fenomenológica à esquizofrenia

Zahavi (2005) nos chama a atenção para a dificuldade de se compreender a esquizofrenia, por tratar-se de um fenômeno altamente complexo. Os sintomas dos esquizofrênicos, quando em surto, não apenas são "estranhos" e "bizarros", mas também de difícil acesso, devido à dificuldade investigá-los por meio de relatos. Ao contrário de Jaspers (1913/1979), que buscou compreender os aspectos fenomenológicos da esquizofrenia a partir de relatos de pacientes em surto, Sass e Parnas (2003), Zahavi (2005) e Fuchs (2010; 2013; 2015) buscaram como estratégia examinar os relatos obtidos a partir dos estágios iniciais da esquizofrenia. Uma das vantagens de tal abordagem é que o esclarecimento do desenvolvimento da esquizofrenia em sua fase inicial seria benéfico para os pacientes, pois poderia levar a intervenções terapêuticas precoces. Segundo os autores, apesar da heterogeneidade dos sintomas, a esquizofrenia é fundamentalmente um transtorno do self. Com isso, eles, em linha com a tradição da psiquiatria fenomenológica, buscam aprofundar um insight já presente em Eugène Minkowski (1885-1972), de acordo com o qual "A loucura não é uma desordem do julgamento, da percepção ou da vontade, mas um distúrbio da estrutura mais fundamental do self" (Minkowski, 1997, p. 114).

 

Esquizofrenia e temporalidade

Para Fuchs (2013), o transtorno do self, característico da esquizofrenia, encontra sua raiz no nível pré-reflexivo da consciência, e está, portanto, intimamente vinculado àquilo que Husserl havia denominado "consciência interna do tempo" (2001).

Uma das melhores formas de se expor o que Husserl (2001) compreende como consciência interna do tempo é examinando como se dá a apreensão intencional de objetos temporais, como uma melodia. A melodia é um objeto temporal na medida em que seus diferentes componentes (as notas musicais) não podem ser dados simultaneamente, mas sim em uma determinada ordem temporal. O que Husserl (2001) defende é que, quando escutamos uma melodia, não estamos apenas conscientes da nota que está presente no "instante pontual". Ao contrário, a consciência do instante pontual está articulada com a consciência das notas que acabaram de passar e com a consciência de antecipação, mais ou menos vaga, das notas que estão por vir. Assim, toda vivência intencional (consciência de) jamais é consciência de algo simplesmente presente em um instante pontual. A "consciência de algo" possui, no que concerne à sua estrutura temporal, três componentes: 1) a retenção: consciência daquilo que acabou de passar; 2) impressão primal: consciência do agora pontual; 3) protensão: consciência daquilo que está por vir. Cada um desses três momentos não existe isoladamente, sem que seja acompanhado pelos demais. Eles formam uma estrutura unitária, que possibilita a consciência da duração (Husserl, 2001).

O tempo experenciado no presente não pode ser concebido como uma sucessão de "agoras" pontuais. O presente possui, por assim dizer, uma espessura. Todo objeto manifesta-se em múltiplas aparições que transcorrem no tempo. Para que um objeto apareça, é sempre necessário que tais aparições sejam sintetizadas continuamente pela consciência. Daí que o objeto é dado como uma unidade que se manifesta em uma multiplicidade de aparições, as quais vão se sucedendo continuamente umas às outras. Sem essa estrutura temporal, a consciência não poderia ser consciência de uma identidade que é dada em uma multiplicidade de perfis. Portanto, podemos dizer que a constituição das objetividades para a consciência depende da síntese transcendental da consciência interna do tempo. Para usarmos uma analogia, a consciência está sempre costurando a série de aparições que acabaram de ser dadas com a aparição que é dada no instante pontual. Se alguém está consciente de algo, esta pessoa não terá consciência apenas do instante pontual, mas também de uma sequência finita de aparições que são retidas, bem como das aparições que são antecipadas como estando prestes a aparecer.

A estrutura retenção-impressão primal-protensão descreve aquilo que Fuchs (2013) designa como "consciência implícita da temporalidade". Esta deve ser diferenciada da temporalidade explícita. A retenção não é lembrança, assim como protensão não é expectativa. Lembrança e expectativa são vivências intencionais completas. Nas vivências de se lembrar, estamos conscientes de um evento que aparece explicitamente como passado. Na vivência de expectativa, algo ou um evento se manifesta como futuro. Retenção, impressão primal e protensão são componentes da "microestrutura temporal" de todas as vivências.

Para Fuchs (2013), os sintomas da esquizofrenia, tais como pensamento desordenado, inserção de pensamentos ou alucinações, encontram-se relacionados às perturbações na síntese constitutiva da consciência temporal, ou seja, na estrutura implícita do tempo. Esta perturbação afeta a autoconsciência do corpo, do mundo e dos outros. Fuchs (2013), seguindo uma interpretação proposta por Zahavi (2008), entende que a temporalidade implícita consiste na própria autoconsciência pré-reflexiva. Esta última, vale destacar, engloba a dimensão da autoconsciência corporal.

A estrutura dinâmica da autoconsciência pré-reflexiva (temporalidade implícita) está no pano de fundo da vida da consciência. Um bebê só é capaz de ter consciência de um objeto devido a estrutura implícita do tempo. A automanifestação pré-reflexiva, implícita, do "fluxo de experiência" está sempre presente, mesmo quando estamos absorvidos na realização de uma determinada atividade (Fuchs, 2013, p. 77). É essa temporalidade implícita que possibilita a constituição da temporalidade explícita. Esta última surge mais tarde, por volta dos três anos de idade, quando a criança se torna capaz de manejar a linguagem e adquire a capacidade de referir-se explicitamente ao passado e ao futuro. Antes disso, é como se a criança vivesse mergulhada no presente, na atemporalidade implícita (Fuchs, 2013). Ela não faz planos para o dia de amanhã ou para o mês seguinte. Ela não é capaz de explicitar, para si, o seu passado, e organizá-lo a partir de uma estrutura narrativa.

A distinção entre temporalidade implícita e explícita é fundamental para a compreensão de várias psicopatologias. Os distúrbios psíquicos, tão bem abordados por Ludwig Binswanger (1881-1966), como a mania e a melancolia, dizem respeito a um determinado modo como o tempo explícito se articula. A atenção do melancólico está fixada no passado. Já o maníaco vive inteiramente mergulhado no presente, "como se" não existisse o passado e o futuro. Na esquizofrenia, o problema da temporalidade é mais profundo, pois afeta, como já observamos, a consciência interna pré-reflexiva do tempo. Segundo Fuchs (2013), nos esquizofrênicos, a própria estrutura do presente está danificada, de modo que todas as vivências intencionais (como lembrar, perceber, vivências linguísticas, empática, de planejamento) se tornam descontínuas e fragmentadas. Em razão disso, o self passa a perder a coerência e a unidade temporal. A automanifestação de si próprio e do corpo se torna problemática. Sua relação com o outro torna-se dessincronizada, afetando todas as formas complexas e simples das relações intersubjetivas.

Fuchs (2013) aponta que a perda da compreensão do significado das palavras, seja na leitura ou na comunicação, também decorre do distúrbio da síntese temporal. A quebra da consciência interna do tempo faz com que o esquizofrênico perca a capacidade de sustentar, com uma determinada duração, de maneira contínua e coerente, um ato intencional de escuta ou fala. Uma das consequências mais drásticas disso é o prejuízo na capacidade de apreender e articular a sucessão temporal entre os acontecimentos, o que acaba por compreender as funções atencionais. Fuchs (2013) apresenta a fala de um paciente que demonstra como essa situação é vivenciada:

Quando eu me movimento rapidamente é uma pressão sobre mim. As coisas se movimentam muito rápidas para minha mente. Elas ficam desfocadas e é como se ficasse cego. É como se você estivesse vendo uma foto num momento e outra no momento seguinte (p. 86, tradução nossa).

Esse delay na percepção temporal contribui para a situação de estranheza em relação ao controle do próprio corpo. De maneira resumida, Fuchs (2013) aponta que os sintomas, tais como pensamentos desordenados, inserção de pensamentos, alucinações auditivas:

[...] são melhor descritas como distúrbio da constituição transcendental da "consciência do tempo interno", ou da microestrutura da temporalidade. Esse distúrbio manifesta em si como uma desintegração dos atos intencionais, na fragmentação da coerência interna e em uma externalização dos fragmentos, finalmente resultando em uma despersonalização transcendental (p. 88, tradução nossa).

 

Esquizofrenia, hiper-reflexividade e corporeidade

O lapso na microestrutura básica da temporalidade, característico do esquizofrênico, seria compensado por uma tendência à reflexão. Para Fuchs (2013, p. 77), a reflexão seria uma maneira como o esquizofrênico buscaria fechar as lacunas da temporalidade implícita. Em outros termos: há, no esquizofrênico, uma tendência à hiper-reflexão, a qual se apresenta como um monitoramento "desesperado" da vida pré-reflexiva. É como se o paciente perdesse a percepção em primeira-pessoa e a substituísse por uma perspectiva em terceira-pessoa (Zahavi, 2005).

Fuchs (2010) desenvolve, no estudo da esquizofrenia, a distinção realizada por Husserl, sobretudo em Ideias II (1962), entre o corpo subjetivo (Leib) e o corpo objetivo (Körper). A estrutura da encorporação humana é marcada por uma ambiguidade. Há, em todo ser humano, uma tensão entre ser um corpo (Leib) e ter um corpo (Körper). No momento em que o esquizofrênico, nos estados iniciais da patologia, lança sobre si uma perspectiva em terceira-pessoa, a estrutura da encorporação, tal como dada em primeira pessoa, é abalada, resultando em uma interrupção da relação entre "ser um corpo" e "ter um corpo". Neste distúrbio, ocorreria um fracasso na mediação do corpo com o mundo no qual ele está inserido. Nas palavras de Fuchs (2010, p. 239, tradução nossa), "[...] em vez de o corpo servir como um mediador na relação com o mundo, o corpo passa a ser notado como perturbador ou resistente". Essa descrição é corroborada por Zahavi, o qual afirma que, na esquizofrenia, há, no sujeito, "uma ipseidade diminuída, onde o sentido do self não mais satura a experiência" (2005, p. 135). E Parnas (2003, p. 223) afirma que um de seus pacientes esquizofrênicos sumarizou sua aflição dizendo que sua vida em primeira pessoa foi perdida e substituída por uma perspectiva em terceira pessoa4.

Na esquizofrenia, a autoconsciência implícita do corpo é abalada, resultando em um estranhamento de si próprio e, como consequência, uma auto-observação exacerbada. Este quadro é geralmente denominado na psicopatologia fenomenológica de hiper-reflexividade. Esta pode piorar a condição patológica. Em um nível extremo, pode acarretar a perda da auto-organização psíquica.

É preciso observar que a hiper-reflexividade não se confunde com a esquizofrenia. Hiper-reflexividade é, por si só, um quadro patológico (Fuchs, 2010; Frankl, 2009; Sass, & Parnas, 2003). E pode ocorrer em pacientes não esquizofrênicos. Contudo, no caso dos esquizofrênicos, ela é uma consequência de um distúrbio da autoconsciência pré-reflexiva, uma forma espontânea, não voluntária, de suprir suas deficiências. O problema é que ela contribui para o agravamento do quadro da esquizofrenia.

É fundamental para compreender o desenvolvimento desse tipo de psicopatologia a concepção de estrutura implícita da encorporação e sua relação com a consciência reflexiva (Fuchs, 2010). O corpo faz a mediação entre nós e o mundo. Contudo, uma vez que ele se manifesta de maneira tácita, nossa relação com o mundo se torna imediata. A consciência reflexiva exige a efetuação de "percepções dirigidas à imanência" (Husserl, 1913/1950), nas quais a nossa atenção se foca em vivências pertencentes ao próprio fluxo de consciência, inclusive às vivências que compõem a autoconsciência corporal, como as sensações cinestésicas e táteis. Esse giro da atenção para o corpo não é necessariamente maléfico, mas é até mesmo necessário, por exemplo, para quem está começando a aprender alguma nova habilidade, como dançar ou dirigir um automóvel. Quem está aprendendo a dirigir costuma a prestar atenção em seus pés para saber se está pisando no freio ou na embreagem. Uma das marcas do sucesso da aprendizagem ocorre quando já não mais precisamos prestar atenção em nossos movimentos corporais, quando "esquecemos" nosso corpo. Quando isso acontece, "o corpo se torna transparente para a nova habilidade, então a consciência focal pode retirar-se da ação e pode ser direcionada para o objetivo externo" (Fuchs, 2010, p. 241, tradução nossa). Uma vez adquirida uma habilidade corporal, podemos realizá-la espontaneamente.

O distúrbio, nos esquizofrênicos, da autoconsciência pré-reflexiva e sua consequente compensação pela hiper-reflexividade, compromete seriamente a transparência do corpo, o que pode dificultar as realizações de tarefas corriqueiras, conduzindo à irritação e à alienação. A alienação advém da perda da familiaridade com o corpo, o qual passa a ser observado como que a partir de fora, como se fosse um corpo estranho, o corpo de um outro. De acordo com Fuchs:

Uma vez que a espontaneidade e a transferência do corpo são perturbadas, a reflexão sobre a consciência atua sobre a desordem e fica enredada em uma infrutífera, ou compulsiva, observação pessoal hiper-reflexiva. Isso também promove a explicitação do implícito e frequentemente leva a círculos viciosos de auto-observação e autoalienação (2010, p. 243, tradução nossa).

Nos estágios iniciais, os pacientes esquizofrênicos vão perdendo gradualmente os conhecimentos tácitos e suas habilidades implícitas. Essa perda de familiaridade com o próprio característica da desencorporação (desembodiment) encontra-se vinculada com a desintegração dos hábitos corporais, fazendo com que situações corriqueiras passem a ser questionadas. Nesse processo de desencorporação, se dá a perda de familiaridade não apenas consigo próprio, mas também com o mundo e com outras pessoas. As ações de planejamento e execução começam a ser cada vez mais dificultadas. Mesmo a realização das ações mais simples se torna um fardo, pois acaba exigindo que o paciente controle um corpo ao qual já não sente como seu.

Como afirma Fuchs (2010), não é incomum os pacientes relatarem que há uma quebra entre eles e o corpo, como se sentissem "esvaziados" ou como "robôs" sem vida. Em casos extremos, os pacientes podem desenvolver uma forma de compulsão à auto-observação, na qual ele chega a se questionar se os seus pensamentos lhe pertencem. Nestes casos, o que se manifesta, mais uma vez, é o distúrbio do self. Geralmente, as vivências são dadas aos sujeitos como suas próprias vivências. No esquizofrênico, assim como ele se distancia do próprio corpo, ele também pode sentir-se cada vez mais distanciado de suas próprias vivências, como se fossem as vivências de outra pessoa. Neste processo, até mesmo certas vontades e desejos podem ser experienciados como "vindo de fora", como tendo sido inseridos por outras pessoas.

Os pacientes esquizofrênicos frequentemente relatam como se fossem observadores exteriores de si próprio. É a análise de tais fenômenos que levaram autores como Zahavi, Fuch e Parnas, a considerar a esquizofrenia como um distúrbio da automanifestação pré-reflexiva em primeira pessoa. Aquilo que seria dado em primeira pessoa é tomado como se fosse dado em terceira pessoa, o que produz despersonalização e uma auto-alienação de si. A partir desse quadro, Fuchs (2010) afirma que "não é difícil ver como distúrbios do ego como inserções de pensamento ou alucinações podem ser desenvolvidas nessa forma de experiência" (p. 251, tradução nossa).

 

Esquizofrenia e intersubjetividade

Os pacientes esquizofrênicos, segundo Fuchs (2015), apresentam falhas na empatia corporal, isto é, eles têm dificuldades em entender expressões faciais ou gestuais dos outros. Junto a isso, eles possuem uma falta de compreensão social implícita, tornando-se incapazes de entender as regras sociais espontaneamente, o que pode levar ao isolamento e à segregação social. Isso decorre do processo de alienação mencionado na seção anterior. Para Fuchs:

[...] o comportamento dos outros vem a ser observado de um ponto de vista em terceira pessoa em vez de entrar na segunda pessoa na relação encarnada. As relações interpessoais devem então ser gerenciadas por esforços deliberados, levando ao estresse constante em situações sociais complexas e finalmente levando ao afastamento autista (2015, p. 200, tradução nossa).

Além dos transtornos básicos relacionados com a autoconsciência, os níveis mais elevados de distinção self-outro são afetados. Fuchs (2015) retoma o termo criado por Bleuler, em 1911, denominado transitivism, para descrever como os pacientes esquizofrênicos se sentem ameaçados ao "terem consciência de outra consciência". É como se o próprio self pudesse ser substituído pelo self do outro. Ademais, a perda da consciência da fronteira self-outro leva o paciente esquizofrênico a perder o centramento corporal, o que constitui um aspecto vital para que ele se diferencie frente aos outros. Um exemplo empregado por Fuchs é o de um jovem que, em uma conversa, sentia-se como se o interlocutor o invadisse, e começasse a minar, a partir de dentro, seu senso de identidade, situação essa que lhe provocava enorme ansiedade.

Além da dificuldade de diferenciação entre a sua vida mental e a dos outros, Fuchs (2015) aponta que os delírios deixariam transparecer um prejuízo nas relações intersubjetivas. Isto porque os delírios podem ser considerados fenômenos interativos, e não somente produções individuais. Nas palavras do autor:

[...] a confiança básica nos outros é quebrada e é substituída por um quadro delirante paranoico que agora converte até os eventos mais inofensivos em maquinações insidiosas e em intrigas. [...] Além disso, há um efeito circular entre a ideação paranoica emergente e a reação dos outros ao comportamento alterado e suspeito do paciente. A reação irritada dos outros contribui para a sua sensação de que há algo suspeito, o que por sua vez retroalimenta a falha nos outros em se fazerem compreendidos (2015, p. 206, tradução nossa).

Em suma, a psicopatologia fenomenológica contemporânea compreende a esquizofrenia como um distúrbio do self, que se revela em uma série de fenômenos correlatos e interligados, como hiper-reflexividade, autoalienação, desencorporação, falhas na consciência interna do tempo, falhas na autoconstituição temporal e falhas nas relações intersubjetivas. Passaremos agora para interpretações de Vigotski desse mesmo fenômeno.

 

Vigotski e o processo de desintegração da consciência na esquizofrenia

Vigotski foi um psicólogo soviético que teve como projeto criar um sistema psicológico que superasse a crise da psicologia existente no início do século XX. Assim como o filósofo francês Georges Politzer (1903-1942), ele entendia que era preciso "humanizar a psicologia". Isto é, era preciso romper com as orientações idealistas e materialistas mecanicistas, que cada qual a sua maneira, desconsideravam o homem em sua vida concreta (Politzer, 1973).

Vigotski (1986/2000c) ressaltou a gênese social da consciência, pois esta é formada com base nas relações reais entre as pessoas. A consciência possuiria um caráter dramático porque a personalidade se constitui a partir das relações sociais, que são encenadas no psiquismo. "Minha história do desenvolvimento cultural é a elaboração abstrata da psicologia concreta" (Vigotski, 1986/2000c, p. 35). Nesse sentido, Vigotski entra em acordo com Politzer, quando diz que "pensa não o pensamento, pensa a pessoa" (Vigotski, 1986/2000c, p. 33). A pessoa deveria ser o objeto da psicologia e não as funções psicológicas isoladamente (Vygotsky, 2018b).

A fase mais elaborada do seu pensamento foi quando passou a entender a consciência como um sistema semântico (Zavershneva, 2014). Ele passou a compreender o homem do ponto de vista interno, isto é, a partir do desenvolvimento das conexões sistêmicas intrínsecas ao desenvolvimento dos sistemas conceituais. Essa nova orientação diferiu da anterior, a qual partia das relações externas entre o signo e a operação das funções psicológicas mediados por eles. Vigotski se deu conta na década de 1930 que o significado se desenvolve (Vigotski, 1982/2004b; Vigotski, 1968/2004c). Além disso, o foco passa das funções psicológicas para as conexões interfuncionais, ou seja, na adolescência, com o desenvolvimento dos conceitos, ocorre uma mudança nas relações entre as funções (Vigotski, 1982/2004b). Essa nova orientação serviu para ele repensar o problema do desenvolvimento humano e também sua desintegração pelos processos psicopatológicos. É nesse contexto que seus estudos sobre a esquizofrenia se encontram.

É importante assinalar que Vigotski lançou hipóteses sobre o mecanismo psicológico por trás da esquizofrenia, pois ele próprio admitiu que seria prematuro e arriscado criar uma teoria psicológica da esquizofrenia naquele momento (Vygotsky, 2018a). No entanto, o próprio autor afirma que:

[...] podemos muito provavelmente, com base nos resultados dos estudos psicológicos, avançar a hipótese de que, do ponto de vista psicológico, o ponto central na estrutura das síndromes esquizofrênicas e na imagem da consciência esquizofrênica como um todo é uma mudança patológica na formação da significação (do sistema semântico de conexões e organização da consciência) e uma perturbação das conexões interfuncionais da consciência. (Vygotsky, 2018a, p. 323, grifos do autor)

Segundo Vigotski (1982/2004b), um dos traços centrais da esquizofrenia consiste na cisão do ser humano com seu meio social. Ao perder as relações sociais com aqueles que o rodeia, o esquizofrênico perde as relações para consigo mesmo. Isso ocorre porque, para o autor, a personalidade se forma a partir das relações externas, interpsicológicas, que são transladas para o interior do sujeito. A partir desta cisão, o esquizofrênico se tornaria cada vez mais introvertido e, em casos extremos, manifestaria uma forma de autismo. Ao romper a comunicação com os demais, o esquizofrênico também deixa de se dirigir a si mesmo através da linguagem. Na esquizofrenia, portanto, "a consciência é arrancada das suas raízes reais: o naufrágio da consciência, das alturas, como se atingisse um penhasco submarino nas profundezas" (Vygotsky, 2018a, p. 320).

No início do século XX existiu uma tendência de conectar a psicologia do adolescente com certos sintomas da esquizofrenia. Segundo Vigotski (1931/1994), aqueles que eram partidários dessa concepção sustentavam que, às vezes, é impossível diferenciar entre um difícil período de ajustamento sexual na adolescência e uma esquizofrenia em estágio inicial. Segundo Vigotski (1982/2004a; 1931/2006a), essa comparação abarcaria apenas o fenômeno do ponto de vista externo, sendo precárias as análises genéticas e funcionais. O autor chegou a conclusões muito diferentes ao apontar que o núcleo dessa divergência é a formação dos conceitos, como observado na criança e no paciente com esquizofrenia. Portanto, haveria uma relação inversa entre idade de transição, adolescência, e a esquizofrenia, pois nesta ocorre a desintegração das funções que se desenvolvem a partir daquela.

No texto "Sobre os sistemas psicológicos", Vigotski esclarece que o que se desintegra na patologia não são as funções psicológicas (memória, atenção, abstração etc.), mas as conexões entre as funções. O autor explica que não experimentamos os sentimentos de maneira pura, mas que estamos conscientes de suas conexões conceituais. Em suas palavras:

No processo de desenvolvimento ontogenético, as emoções humanas entram em conexão com as normas gerais relativas tanto à autoconsciência da personalidade quanto à consciência da realidade. Meu desprezo por outra pessoa entra em conexão com a valoração dessa pessoa, com a compreensão dela. O desenvolvimento histórico dos afetos ou das emoções consiste fundamentalmente em que se alteram as conexões iniciais em que se produziram uma nova ordem e novas conexões (Vigotski, 1982/2004b, p. 127).

O objetivo de Vigotski (1982/2004b) foi integrar a linha genética e a patológica, isto é, investigar tanto o desenvolvimento das crianças até a idade de transição, como também a deterioração do pensamento na esquizofrenia e em outras patologias. Em linhas gerais, sua conclusão principal foi que na adolescência o desenvolvimento mais importante no pensamento ocorre da passagem do pensamento por "complexos" para o tipo de pensamento conceitual5. Tal mudança não apenas revoluciona o processo intelectual, mas determina a dinâmica da personalidade. Nesse sentido, de modo inverso, na esquizofrenia, ocorreria a deterioração dos sistemas de pensamento baseados nos conceitos. Ao estudar a formação dos conceitos, Vigotski e seus colaboradores, tal como Leonid Sakharov (1900-1928), ficaram convencidos de que a psicologia do adolescente "fornece a chave para a compreensão da esquizofrenia, e inversamente que o pensamento esquizofrênico ajuda a compreender a psicologia da adolescência. Em ambos, a coisa mais importante é a compreensão apropriada da função da formação de conceitos" (Vigotski, 1931/1994, p. 314, tradução nossa).

A nova forma de domínio do pensamento, por meio dos conceitos, leva a uma nova forma de pensamento no adolescente. As mudanças no pensamento do esquizofrênico são o resultado das desintegrações dessa forma complexa de pensamento. Vigotski (1931/2006a) explica que para o homem normal a consciência da realidade e da própria personalidade ocorre mediante um sistema de conceitos. Portanto, seria natural que com a dissociação de tal sistema também se destrua todo o sistema de consciência da realidade e da própria personalidade. Para o esquizofrênico, suas vivências estariam divididas em duas esferas, que compõem o entrelaçamento de conexões novas e velhas, gerando confusão e desintegração do pensamento associativo, que seria o sintoma mais característico do pensamento esquizofrênico. Vigotski (1931/2006a) cita a fala de um paciente que confirmaria o caráter indeterminado desse tipo de pensamento. Trata-se de um professor de 24 anos que relata:

Minhas ideias são tão dispersas e tudo tão instável que não há nada preciso para mim. Meus pensamentos se confundem, estão impregnados de sentimento, tudo se junta, um objeto se transforma em outro, parece que estou sonhando, não consigo concentrar-me em nada (p. 190, tradução nossa).

A partir de experimentos realizados, Vigotski (1931/1994) descreve que foi possível observar alguns padrões no pensamento conceitual dos pacientes esquizofrênicos. O autor constatou que o paciente esquizofrênico olha para uma palavra estímulo como um nome de família. Um nome de família, ao contrário de um conceito, constitui uma classe marcada pela proximidade física de seus elementos e pela similaridade concreta de certas partes. O paciente vincula vários objetos a uma família a partir de vínculos heterogêneos. Segundo o autor, esse tipo de associação é comum em crianças antes da adolescência: "A despeito de todas as diferenças no processo de pensamento numa criança e no paciente com esquizofrenia, há uma similaridade fundamental nas características mais essenciais. Portanto, em pessoas com esquizofrenia, o pensamento é realmente regressivo" (Vigotski, 1930/1994, p. 316, tradução nossa). Disso, o autor concluiu que a propriedade de divisão do pensamento, isto é, manter os pensamentos separados, é uma característica fundamental da consciência. Na esquizofrenia essa característica se perde e o paciente "funde tudo com tudo" (Vygotsky, 2018a, p. 320).

Vigotski (1931/2006a) é contra a aproximação entre formas primitivas de pensamento com as formas de pensamento características do esquizofrênico. Alguns autores consideravam que o pensamento primitivo era marcado pela ausência da consciência de objetos constantes. Uma vez que no esquizofrênico o sintoma se dava através de níveis primitivos de percepção do objeto, concluía-se que se tratava de uma regressão aos estágios mais primitivos. O problema dessa tese é que, ao longo do desenvolvimento histórico da consciência, se desenvolveram, entre o pensamento "primitivo" e o pensamento abstrato do homem atual, etapas que completam essa função. Na verdade, segundo o autor, o dano causado na formação dos conceitos conduz a um regresso ao pensamento por complexos. Apesar do uso automático dos conceitos formados previamente, a formação de novos conceitos torna-se extremamente difícil (Vigotski, 1934/1994). Portanto, com isso seria possível comparar o grau de cisão e regressão do paciente esquizofrênico com os vários estágios genéticos do pensamento por complexos.

Como conclusão lógica dessa constatação, o autor aponta que, na esquizofrenia, há a destruição dos sistemas psicológicos que se encontram na base dos conceitos. Para o autor, o significado das palavras modifica-se ao longo do desenvolvimento patológico proporcionado pela esquizofrenia. O processo de comunicação é preservado parcialmente, na medida em que os "complexos" podem coincidir em sua referência direta ao objeto, mas, por outro lado, não possuem um grau de significação alcançado no curso do desenvolvimento dos verdadeiros conceitos. Esse fenômeno também explicaria o porquê das crianças e os adultos conseguirem se comunicar, ainda que os termos empregados pelas crianças não possuam os mesmos significados do que para os adultos. "As palavras do paciente com esquizofrenia coincidem com as nossas em sua relação com os objetos, mas não em seus significados" (Vigotski, 1934/1994, p. 319).

Como exemplo da consequência do distúrbio da formação dos conceitos para outras funções psicológicas, Vigotski (1934/1994) analisa o caso da função perceptual. Em uma das pesquisas relatadas, foi possível constatar que vários dos objetos com os quais o paciente esquizofrênico estava familiarizado perderam suas características perceptuais corriqueiras. Esse distúrbio se explicaria porque, na esquizofrenia, cada uma das funções psíquicas, tomadas por si só, não estão comprometidas, o que está danificado é a conexões entre as diversas funções. Nesse sentido, "a percepção em conceitos, e mesmo a memória em conceitos, se dissocia e é substituída por formas primárias e iniciais de percepção e memória" (Vigotski, 1931/2006a, p. 193).

Como resultado dessa mudança na apreensão do mundo, ocorre também a modificação da "autoconsciência" da própria personalidade (Vigotski, 1931/2006a). Segundo o autor, seria essa a razão da ocorrência frequente da desintegração do "self", culminando na regressão a estágios mais primitivos de desenvolvimento da personalidade. Seria comum nos esquizofrênicos a percepção do "eu" como um complexo de componentes parciais, não agrupados em um todo global. Funções que atuavam em conjunto começam a atuar isoladamente, até mesmo uma contra outra (Vigotski, 1936/1997). A personalidade seria dissociada em partes isoladas, afetando a linha divisória entre o "self" e o mundo circundante. "A desintegração da consciência da realidade é paralela a desintegração da consciência da personalidade. Tanto um como outro vivem conjuntamente e guardam entre si uma conexão recíproca" (Vigotski, 1931/2006a, p. 194). Como exemplo desse processo, Vigotski (1931/2006a) retoma a fala do professor que

conta que mantêm relações sexuais com uma jovem que vive longe dele, que a jovem é sua Eva e ele, seu Adão, mas que ele, ao mesmo tempo, é também serpente; descobriu que era porque andava dando voltas e rodeios, embora sabia que na realidade era ele, porque cada um sabe algo também de si mesmo. Aparentemente, também era Eva, porque havia sentido uma picada no coração que significava uma dor no útero. A tudo que foi dito ele acrescentou que suas ideias não estavam claras, que eram na verdade instintos, sentimentos (p. 194).

Para Vigotski (1931/1994), o terceiro estágio de desenvolvimento intelectual da criança, que está intimamente conectado com a formação dos conceitos, envolve o desenvolvimento da personalidade, da visão de mundo e da cognição de si mesmo e do meio. O prejuízo nesse processo de significação não faz com que os pacientes percam totalmente a capacidade de comunicação, em razão da relação da operação com conceitos a partir das particularidades concretas dos objetos. Contudo, a capacidade de formação de novos conceitos fica comprometida. Nesse sentido, podemos inferir que todos os transtornos desenvolvidos nesse tipo de patologia advêm dessa desintegração. Na medida em que os conceitos dão sustentação para as funções psíquicas, ocorre consequentemente o comprometimento delas. Problemas na função perceptiva e o consequente aparecimento de alucinações visuais, auditivas e de outros tipos, pode ser ocasionado não por fatores intrínsecos à percepção, mas a um prejuízo em sua estrutura conceitual subjacente. Também estaria aí a gênese dos distúrbios da personalidade típicos da esquizofrenia, uma vez que a personalidade é constituída a partir da mediação conceitual com o mundo e com os outros. Em outras palavras, uma falha na produção de conceitos acarretar no prejuízo da relação do sujeito com o mundo, com os outros e consigo mesmo.

 

Alguns nexos possíveis

Vigotski foi um grande conhecedor da produção científica da sua época. A partir de suas obras, podemos perceber que ele travou intenso debate com diversos autores e correntes. Ele se utilizou das observações de autores como Sigmund Freud (1856-1939), Jean Piaget (1896-1980), Pierre Janet (1869-1947), Théodule-Armand Ribot (1862-1926), Ernst Kretschemer (1888-1964), Bleuler, Jaspers, Kurt Lewin (1890-1947), Karl Buhler (1879-1963), Kurt Koffka (1886-1941), dentre tantos outros. Com base no método de pesquisa, desenvolvido a partir do materialismo dialético, Vigotski procurou dialogar com esses vários autores, se apropriando daquilo que se relacionava com seu método e criticando aquilo que não correspondia a sua explicação dos fatos psicológicos. Dessa maneira, o que objetivamos aqui é nos inspirar nessa postura de Vigotski e buscarmos o diálogo entre diferentes concepções.

Os nexos entre as duas formas de análise da esquizofrenia aqui exposto deve levar em conta as diferenças metodológicas entre elas. Como afirmamos, Vigotski incorporou aspectos de outras teorias sem deixar de lado o problema do método nesse processo. Para este autor, o fundamental não eram as interpretações dadas por outros pesquisadores, mas o nível de coincidência entre as análises realizadas e a realidade prática dos fatos. Dessa maneira, podemos apontar dois aspectos metodológicos que antagonizam fenomenologia e o projeto de psicologia de Vigotski. O primeiro é a orientação epistemológica de Vigotski para além da expressão externa do fenômeno, isto é, para ele era preciso alcançar a essência do fenômeno a partir da abstração (Vigotski, 1982/2004a). O segundo aspecto decorre dessa postura, que é a análise histórica do desenvolvimento do fenômeno. Para isso ele criou o método genético-experimental, inspirado no método genético-causal de Lewin, para captar o fenômeno como um processo e não como um objeto (Vygotski, 1960/2000a). A atitude epistemológica da fenomenologia é descrever o objeto tal como ele se apresenta e não propõe buscar sua gênese. Além disso, diferentemente da fenomenologia, tal método estuda o fenômeno como representante típico de uma série e a partir dele se deduz princípios para toda a série (Vigotski, 1982/2004a). Acreditamos que esses princípios epistemológicos não são compatíveis com a fenomenologia. Conscientes dessas diferenças, podemos passar para a busca dos nexos possíveis das descrições da fenomenologia, a partir das explicações de Vigotski.

Com base nas descrições fenomenológicas, foi possível constatar que o problema da desintegração do sistema conceitual apontado por Vigotski foi evidenciado nas descrições dessa psicopatologia, como pudemos observar em vários casos apresentados por Fuchs (2010; 2013). Em vários dos seus relatos os pacientes afirmam ter perdido a capacidade de compreender o significado das palavras. Para Fuchs, essa incapacidade semântica teria sua origem mais profunda na síntese transcendental da "consciência interna do tempo". Esse fato é compatível com a interpretação de Vigotski sobre a relação intrínseca entre linguagem e os sistemas psicológicos.

Para que se desenvolva a consciência interna do tempo, podemos conjecturar, partindo de Vigotski, que a percepção do transcorrer do tempo, a memória de vivências de um tempo que já passou, a imaginação/fantasia do tempo futuro, dentre outras operações psicológicas, devem se unir, interfuncionalmente, tendo como base a significação. As relações interfuncionais estabelecidas entre essas funções são conectadas pelos significados e sentidos atribuídos tanto socialmente como individualmente, para que assim se desenvolva essa forma de consciência.

A própria linguagem depende dessa consciência interna do tempo, pois só pode ser decodificada se ela for percebida dentro de uma cadeia temporal, que impacta à percepção da cadeia lógica da mesma. Vigotski (2018a), nos seus manuscritos recentemente publicados, realizou uma anotação que remete a esse problema. Ele escreveu que o conceito não é uma fotografia, mas uma melodia. Ele completa afirmando que o desdobramento no tempo é a característica mais essencial dessa estrutura. Portanto, podemos perceber com essa descrição da fenomenologia a expressão da explicação do processo tal como proposto por Vigotski, isto é, que liga a propriedade do conceito com alteração da percepção interna do tempo. A importância da linguagem para a "temporalidade explícita", tal qual já citado acima, pode ser observado quando Fuchs (2013) afirma que é a partir do momento em que a criança passa a se apropriar da linguagem que essa percepção se desenvolve. Essa hipótese pode ser investigada realizando pesquisas de outras formas de patologia, bem como em desenvolvimentos atípicos, tal como na Desordem do Espectro Autista (DEA), por exemplo. Nesta patologia há um prejuízo importante no desenvolvimento da linguagem, fato que em tese poderia prejudicar justamente a dita "consciência interna do tempo".

Oliver Sacks, em seu livro o Rio da consciência, ao revisar a literatura sobre os estudos mais recentes da neurologia e das neurociências a respeito da dinâmica do cérebro, chega a conclusões que reforçam as posições de Vigotski. De acordo com Sacks (2017), modelos sobre o cérebro, construídos por neurocientistas como Gerald Edelman (1929-2014), propõem que seu "papel consiste precisamente [em] construir categorias - primeiro perceptuais, depois conceituais - em um processo ascendente, um 'autocarregamento' no qual, repetindo a recategorização em níveis cada vez mais elevados, a consciência finalmente é alcançada" (p. 61). O autor completa que para essa concepção, toda percepção seria uma criação e cada memória seria uma recategorização. Portanto, é possível constar que a generalização é uma das habilidades principais do nosso cérebro, sendo desenvolvida sistemicamente e tem como "instrumento" para esse processo a categorização propiciada pela linguagem. Dessa maneira, podemos constatar que Vigotski estava correto quando elegeu o conceito, enquanto ferramenta de generalização do cérebro, para explicar o desenvolvimento da consciência bem como seu processo de desintegração.

O impacto no processo de generalização acarretado pela desorganização da experiência temporal leva, consequentemente, como relatado pela fenomenologia, a uma perturbação das relações intersubjetivas. Esse fato ocorre devido ao movimento dialético da interpretação de Vigotski, pois o conceito se desenvolve por meio das relações intersubjetivas e, ao mesmo tempo, são essenciais para que essas relações sejam mantidas.

No processo de desenvolvimento, o outro se apresenta como mediador entre a criança e a experiência social da humanidade historicamente formada (Vygotski, 1931/2006b). Do ponto de vista ontogenético, as funções psíquicas que se tornam "enraizadas" na consciência da criança foram anteriormente uma operação repartida entre ela e o adulto do seu entorno. Para este autor, "me relaciono comigo mesmo como as pessoas se relacionam comigo" (Vygotski, 1960/2000b). É, portanto, o outro que, ao travar relações significativas com a criança, possibilita com que posteriormente ela "enraíze" essas relações em sua personalidade, ao passo que desenvolve o pensamento conceitual. Por conseguinte, a "situação social" é promotora de desenvolvimento. Como vimos nos relatos de Fuchs, há uma "retroalimentação" das relações sociais em relação aos comportamentos do sujeito esquizofrênico, fato que pode contribuir para que se desenvolvam os estados paranoicos. Com isso, podemos pensar que uma abordagem terapêutica deve incidir nas relações sociais do paciente para que se evite o desencadeamento de pensamentos paranoicos e, no limite, e o seu "afastamento autista".

O nível crítico da desestruturação dos sistemas conceituais é a alteração da autoconsciência como já aludido. Para Vigotski (1931/2006b), desde pequena a criança não expressa somente o significado dos objetos, mas também suas próprias ações e estados internos. O autoconhecimento é preparado pela compreensão das outras pessoas sobre nós. Vigotski (1931/2006a) afirma que é somente por volta dos 12-13 anos que a criança tem as categorias imprescindíveis para perceber a "vida anímica" dos outros. O domínio das categorias psicológicas propicia com que o adolescente se dirija cada vez mais a sua vida interior (Vygotski, 1931/2006b). "A linguagem como meio de comunicação nos obriga a designar e expressar verbalmente nossos estados internos" (Vygotski, 1984/2006c, p. 379). Portanto, assim como na fenomenologia, para Vigotski, o outro é parte fundamental para o desenvolvimento da consciência de si, dos seus estados internos e do limite do seu corpo e dos outros.

Apesar desse papel do cérebro nos processos psicopatológicos, as duas abordagens compartilham a concepção de que a psicopatologia não se restringe ao mau funcionamento neurobiológico, de um cérebro individual fechado sobre si mesmo, mas que, ao contrário, trata-se isto sim um fenômeno que está integrado ao desenvolvimento da relação que travamos com os outros e com o mundo. Fuchs (2015) sintetiza essa concepção de seguinte forma:

[] as chamadas doenças "mentais" não devem ser consideradas como processos defeituosos em um cérebro individual, mas como uma forma de transtorno na atuação em um mundo, e, em particular, na "inter-atuação" em um mundo compartilhado através de uma interação adequada com os outros. A doença mental é um fenômeno estendido, um processo que ocorre entre o paciente e os outros (p. 209, tradução nossa).

Ao mesmo tempo, Vigotski (1931/1994) alerta que distúrbios na função da formação dos conceitos não é a causa da esquizofrenia, mas seu resultado imediato. Nesse sentido, o autor reconhece que pode existir causas orgânicas da doença, porém, por outro lado, a psicologia também teria direito de estudar os fenômenos associados, coma as mudanças da personalidade, de um ponto de vista psicológico. Sobre essa questão, Vigotski (1933/1987) assevera que

[...] a orientação biológica para o estudo da esquizofrenia (a qual nós em psicologia temos que agradecer pela introdução do problema da dissociação em pesquisa empírica) estava correta quando enfatizou o papel da personalidade no transtorno, mas estava energicamente errada na compreensão da personalidade, postulando um conceito biológico do organismo no lugar de um conceito socio-psicológico da personalidade (p. 77, tradução nossa).

Zaytseva, Chan, Pöppel e Heinz (2015) revisaram as pesquisas recentes sobre a esquizofrenia à luz da neuropsicologia de Alexander Luria (1902-1977), companheiro de Vigotski e seu continuador, e demonstram que a tendência atual das pesquisas se alinha às posições expressas acima. De acordo com a revisão realizada, os autores atestam que "o desenvolvimento da neuropsicologia atual reflete a tendência universal para substituir a abordagem estática focada em lesões cerebrais específicas para uma abordagem dinâmica que incorpora a dinâmica das interações cérebro-comportamento" (Zaytseva et al., 2015, p. 7). Ainda segundo os autores, o pioneirismo teórico de Luria, no que diz respeito ao conceito de cognição como um sistema dinâmico, o qual foi inspirado na obra de Vigotski, expressa sua grande contribuição não somente para o diagnóstico de sintomas cognitivos, mas também para sua reabilitação. Por fim, os autores concluem que o conceito das funções cognitivas como um sistema dinâmico deve ser revisitado pela psiquiatria e pelas neurociências, tanto no âmbito teórico como prático.

Em resumo, a partir das tentativas iniciais de Vigotski em buscar desenvolver uma teoria da consciência, podemos conjecturar que investir nos estudos do processo de quebra do sistema de abstração acarretados pela esquizofrenia pode ser um frutífero caminho de pesquisa. Para essa tarefa, dados propiciados por vertentes como a fenomenologia podem subsidiar o desenvolvimento de uma orientação mais completa sobre esse fenômeno, somando-se aos dados das neurociências, das ciências cognitiva, psiquiatria, dentre outras áreas.

 

Considerações Finais

Apesar das diferenças de abordagem, tanto a psicopatologia fenomenológica quanto a psicologia vigotskiana podem se complementar na medida em que cada uma ressalta um elemento do fenômeno que a outra não trata ou não chega a tomar como central. Para Vigotski (1982/2004b), a linguagem possibilita compreendermos não apenas os outros, mas também a nós mesmos. Consequentemente, uma perturbação dos sistemas que se originam das relações sociais implica em perturbações nas formas de autopercepção e autorreflexão. Nesse sentido, as duas correntes analisadas se complementam em certos momentos, pois a automanifestação da esquizofrenia, em primeira pessoa, tal como explorada na fenomenologia, encontra-se vinculada ao comprometimento das relações intersubjetivas, produzindo a desintegração dos sistemas de inter-relações desenvolvidos socialmente.

Cada perspectiva teórica aborda o fenômeno a partir de uma metodologia específica, uma enfatizando a explicação e outra a descrição. Apesar das diferenças, as duas abordagens podem ser complementares ao buscarem formas alternativas para tratar os fenômenos característicos da esquizofrenia, sem restringi-los ao nível cerebral e biológico. Ambas não adotaram o objetivismo naturalista-reducionista, que reduz a consciência a um mero epifenômeno sem importância. Pelo contrário, elas salientaram que a consciência é uma dimensão central a ser explorada, uma dimensão que pode trazer uma compreensão mais rica desse e de outros distúrbios.

 

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Endereço para correspondência:
Eduardo Moura da Costa
eduardomcbr@yahoo.com.br

Savio Passafaro Peres
savioperes@yahoo.com.br

Submetido em: 05/10/2017
Revisto em: 14/06/2018
Aceito em: 15/08/2018

 

 

1 Um exemplo nítido dessa diferença pode ser encontrado na crítica de Vigotski à descrição de Piaget sobre a fala egocêntrica. De acordo com Vigotski (1934/2009), o problema de Piaget foi que ele não quis saber "nada além dos fatos" (p. 23). Em razão disso, ele não teria captado os condicionamentos "dinâmico-causais" desse fenômeno.
2 Essa sintonia é particularmente visível no que concerne à interpretação do tema da temporalidade husserliana. Vale destacar que esse tema é alvo de diferentes interpretações. Uma das interpretações é aquela oferecida por Zahavi (2005), na qual considera que a consciência interna do tempo deve ser interpretada como a estrutura da autoconsciência pré-reflexiva, concepção essa que competiria, por exemplo, com a concepção de Sololowski (1970; 2010).
3 Autores como González Rey (2013) atestam que se consolidou entre seus compatriotas uma compreensão do desenvolvimento psíquico calcado no segundo período da sua obra. Alexei Leontiev (1903-1979) teria criticado o último Vigotski por ter dado ênfase ao significado fora da atividade humana concreta. Ainda segundo González Rey, a visão de Leontiev, o qual partiu da categoria de atividade como central para sua concepção, passou a ser dominante naquele país. Um dos autores que investigou a esquizofrenia, por meio desse viés, foi Bluma Zeigarnik (1900-1988) (Silva, 2014). Portanto, em razão dos problemas que poderiam surgir da diferença de orientação entre Vigotski e seus continuadores, priorizamos apenas suas formulações.
4 É importante notar, a fim de se evitar confusão, que esse automonitoramento intenso que ocorre no esquizofrênico não anula ou substitui a estrutura fundamental da ipseidade, a qual, por vezes, Zahavi denomina de núcleo central do self, ou ipseidade. O que ocorre é uma danificação desta estrutura básica e uma exacerbação da reflexão, como, a qual é experimentada como uma perspectiva em terceira pessoa sobre si mesmo. É como se o esquizofrênico olhasse a si mesmo a partir de fora, em função da danificação da autodoação do fluxo de consciência em primeira pessoa.
5 Antes do desenvolvimento completo dos conceitos, que ocorre na adolescência, se processam alguns períodos ou fases, assim delimitados por Vigotski (1934/2009): 1) pensamento sincrético; 2) pensamento por complexo; 3) pensamento conceitual. Cabe mencionar uma ressalva do próprio autor: tal sequência de desenvolvimento dos conceitos foi obtida com base em condições artificiais de análise experimental. Em razão disso, não expressa as particularidades do desenvolvimento real, pois apresenta o desenvolvimento dos conceitos em sua sequência lógica. Nesse processo há uma passagem de uma tendência em substituir os nexos objetivos por nexos subjetivos, do pensamento sincrético, para um pensamento abstrato e analítico dos verdadeiros conceitos. Dada a unidade entre forma e conteúdo, os conceitos estariam inteiramente relacionados às mudanças intelectuais que se processam na adolescência.

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