SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.70 issue3Phenomenological principles of the understanding of schizophrenia based on VygotskyPsychology in SUAS: a literature review author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.3 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2018

 

ARTIGOS

 

Caracterizando a psicologia policial enquanto uma psicologia social jurídica

 

Characterizing police psychology as a social legal psychology

 

Caracterizando la psicología policial como una psicología social jurídica

 

 

Lucas Mentor de Albuquerque NobregaI; Ana Clara SiqueiraII; Eduardo Trento TurraIII; Adriano BeirasIV; Maíra Marchi GomesV

IPsicólogo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis. Estado de Santa Catarina. Brasil
IIPsicóloga pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis. Estado de Santa Catarina. Brasil
IIIGraduando da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis. Estado de Santa Catarina. Brasil
IVDocente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis. Estado de Santa Catarina. Brasil
VPsicóloga da Polícia Civil de Santa Catarina. Florianópolis. Estado de Santa Catarina. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo problematiza o cargo de Psicólogo Policial, pioneiro na polícia civil do estado de Santa Catarina, dando ênfase a uma abordagem da Psicologia Social Jurídica neste campo. Esta perspectiva coloca ênfase nos direitos humanos, na comunidade, em aspectos de cidadania, prevenção e redução da judicialização das relações sociais. Neste contexto, devido a uma parceria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com a Secretaria de Segurança Pública do Estado de Santa Catarina, houve a inserção de estagiários de Psicologia nas Delegacias de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso da região metropolitana da Grande Florianópolis. A partir das experiências destes estudantes, busca-se elucidar de que forma as práticas em uma organização como a delegacia especializada podem dialogar com a proposta de uma Psicologia Social Jurídica, utilizando gênero e violência como categorias de análise.

Palavras-chave: Psicologia policial; Psicologia social jurídica; Delegacia de proteção à criança, ao adolescente, à mulher e ao idoso.


ABSTRACT

This article problematizes the position of Police Psychologist, pioneer in the civil police of the province of Santa Catarina, focusing on the approach of a Legal Social Psychology in this field of action. This perspective places emphasis on human rights, on the community, on aspects of citizenship, prevention and reduction of the judicialization of social relations. As a result of an agreement between the University and the Secretary of Public Security of the State of Santa Catarina, interns from the bachelor in Psychology were placed in the commissariats for the Protection of children, adolescents, women and elderly of the metropolitan region of Florianópolis. From the experiences of these students, it is sought to clarify how the practices in an organization such as the specialized commissioner can dialogue with the proposal of a Legal Social Psychology, using gender and violence as categories of analysis.

Keywords: Police psychology; Social legal psychology; Police commissariat for the protection of children, adolescents, women and elderly.


RESUMEN

Este artículo problematiza el cargo de Psicólogo Policial, pionero en la policía civil de la provincia de Santa Catarina, centrándose en el abordaje de una Psicología Social Jurídica en este campo. Esta perspectiva coloca énfasis en los derechos humanos, en la comunidad, en aspectos de ciudadanía, prevención y reducción de la judicialización de las relaciones sociales. Resultante de un acuerdo entre la Universidad y la Secretaria de Seguridad Pública de la provincia de Santa Catarina, ha ocurrido la inserción de estudiantes de prácticas en Psicología en las comisarías de Protección al niño(a), al adolecente, a la mujer y al anciano(a) de la región metropolitana de Florianópolis. Este artículo problematiza el cargo de Psicólogo Policial, pionero en la policía civil del estado de Santa Catarina, dando énfasis a un abordaje de la Psicología Social Jurídica en este campo. Esta perspectiva pone énfasis en los derechos humanos, en la comunidad, en aspectos de ciudadanía, prevención y reducción de la judicialización de las relaciones sociales. En este contexto, debido a una asociación de la Universidad Federal de Santa Catarina - UFSC con la Secretaría de Seguridad Pública del Estado de Santa Catarina, hubo la inserción de pasantes de Psicología en las Comisarías de Protección al Niño, al Adolescente, a la Mujer y al Anciano de la Mujer región metropolitana de la Gran Florianópolis. A partir de las experiencias de estos estudiantes, se busca dilucidar de qué forma las prácticas en una organización como la comisaría especializada pueden dialogar con la propuesta de una Psicología Social Jurídica, utilizando género y violencia como categorías de análisis.

Palabras clave: Psicología policial; Psicología social jurídica; Comisarías de Protección al niño, al adolescente, a la mujer y al anciano.


 

 

Introdução

As possibilidades da psicologia jurídica, enquanto campo de intervenção do profissional psicólogo, encontram-se em constante expansão (Brito, 2012; Brito, Beiras, & Oliveira, 2012; Cruz, Maciel, & Ramirez, 2005; Rovinski, 2009). Um destes desdobramentos corresponde à psicologia policial (Soria-Verde, 2010), cujas práticas atuam com os fenômenos da violência e do crime, de modo a contribuir com a segurança pública.

Historicamente, crianças, adolescentes, mulheres e idosos possuem uma série de seus direitos violados e são vítimas corriqueiras da violência, encontrando-se em vulnerabilidade. Vale pontuar que o objetivo desde trabalho não corresponde em chegar ao cerne dos modos de produção de violência a estas populações, tampouco realizar levantamentos epidemiológicos sobre índices de violência. Sendo a vulnerabilidade social uma "posição de desvantagem frente ao acesso às condições de promoção e garantia dos direitos de cidadania de determinadas populações" (Guareschi, Reis, Huning. & Bertuzzi, 2007), pode-se pensar que, neste diálogo com a segurança pública, esta temática é de fundamental importância à Psicologia. É importante salientar que a vulnerabilidade não deve permanecer sob a ótica do determinismo econômico, uma vez que as situações nela inseridas não são descritas somente por esse viés. Isso atribui uma visão multifacetada sobre a vulnerabilidade, de modo a ampliar a sua abrangência, incluindo outras questões como raça, etnia, orientação sexual, gênero, entre outros determinantes sociais. Permite-se pensar sobre a produção dos modos de subjetivação por força de determinados discursos hegemônicos, que agrava questões de exclusão social (Guareschi et al., 2007).

O sistema de justiça preconiza o surgimento de novos dispositivos para atender a esta população. Segundo Brasil (2010), as delegacias especializadas no atendimento a este público correspondem a estratégias do Estado, através das Secretarias Estaduais de Segurança Pública, que visam fortalecer as formas de coibir a violência em território nacional. O paradigma de proteção integral identifica crianças, adolescentes, mulheres e idosos como nichos-alvo de diversas políticas de segurança por todo território nacional, incluindo Santa Catarina. No âmbito deste estado, criou-se a organização policial que atende sob o nome de Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (DPCAMI)1.

Nessa direção, as principais atribuições de uma delegacia no atendimento a este público, em Brasil (2010) são realizar ações de investigação e apuração dos atos de violência. Tais ações auxiliam o Estado no processo investigativo, de forma que se tenha acesso à Justiça e direitos resguardados. No que diz respeito à investigação policial, Goes Junior (2012) discorre sobre uma sistematização de procedimentos, de caráter interdisciplinar, que auxilia em identificar aspectos visando apurar provas de infrações penais, ao verificar quais teriam sido os responsáveis e colher informações sobre quaisquer delitos.

No caso dos estudos em Psicologia sobre o processo investigativo, vale lembrar que o saber psicológico clássico esteve relacionado a uma concepção patologizante, individualizante e causal dos processos interacionais (Martins, 2008). Torna-se preocupante a reprodução da lógica positivista no campo de estudos em Psicologia, visto que fornece subsídios ao campo jurídico e policial para validar práticas do Estado que costumam desconsiderar aspectos sociais, contextos culturais e atravessamentos nos modos de subjetivação de pessoas que se encontram inseridas num processo de violência (Brizola, & Zanella, 2015). Percebem-se práticas hegemônicas em Psicologia a compartilhar interesses e finalidades semelhantes com as do Direito Penal, a exercer uma variada gama de opressões junto a sociedade. Desta co-relação surgem dificuldades teórico-metodológicas sobre o campo da Psicologia em interface com a justiça.

Torna-se notória a existência de uma ampla relação entre Psicologia e Segurança Pública, principalmente quando a intersecção entre ambas as áreas se debruça sobre a assistência aos processos de violência. Assim, um olhar ampliado sobre esse tema torna-se fundamental, de forma que a ciência psicológica não naturalize a violência e venha a superar a relação dicotômica de vítima e agressor e contribuindo com um viés sistêmico à análise do fenômeno (Nobrega, Gerlach, Oliveira, Bortoluci, & Beiras, 2017).

Mesmo considerando que o processo de investigação policial demanda um trabalho sob olhar de diferentes profissionais, este artigo aprofundará o âmbito do cargo de psicólogo policial, buscando identificar as potencialidades de atuações da Psicologia na polícia civil especificamente, atrelado a um paradigma social crítico jurídico.

Busca-se diretamente identificar quais seriam as possíveis formas de realizar um atendimento sociojurídico crítico pela Psicologia no contexto destas delegacias, tendo por norteadores os conceitos de violência e feminismos. Em outras palavras, este relato de experiência atrelada à DPCAMI possui a proposta de identificar formas de atuação da psicologia policial em consonância com os pressupostos de uma Psicologia Social Jurídica, enquanto promove justiça e cidadania sob o enfoque do compromisso social e dos direitos humanos, em realidades permeadas por violências e machismos.

 

Contribuições de gênero à Psicologia Social Jurídica

A violência de gênero tem ganhado significativa visibilidade em meio à população e em estudos científicos que a utilizam como importante categoria de análise. Ela se encontra em diversas camadas sociais e faixas etárias, impactando processos psicológicos e momentos de vidas (Guimarães, & Pedroza, 2015; Marchi-Costa et al., 2013; Rifiotis, 2015; Veiga, Lisboa, & Wolff, 2016).

Segundo o Mapa da Violência de 2015, recortando, por exemplo, o homicídio de mulheres no Brasil, Waiselfisz (2015) estima que 1.583 mulheres foram vítimas de feminicídio pelos seus parceiros ou ex-parceiros durante o ano de 2013, contabilizando 33,2% do total dos homicídios contra mulheres no ano supracitado. Dentre as recentes reivindicações e estudos dos movimentos feministas que atuam com a pauta de violência contra mulheres está a preocupação com a superação dessa opressão como condição necessária para a construção de uma sociedade pautada pela equidade, posicionando-se contra o feminicídio e as violências de gênero (Borges, & Gonçalves, 2017).

A perspectiva do feminismo interseccional, segundo Mayorga (2014), considera a complexidade das sociedades contemporâneas para compreender de forma articulada as diversas opressões vividas, embasando formas de enfrentamento das situações de violência. A autora ressalta que a análise interseccional considera os níveis de relação entre as categorias, seus históricos e os aspectos comuns dos sistemas de poder, como sendo a naturalização das desigualdades, a relação entre o público e o privado e a relação entre igualdade e diferença. Entende que, para interseccionar categorias distintas, deve-se levar em consideração as dinâmicas dos sistemas de poder que vão constituir e operar as relações sociais de formas diversas.

Pode-se relacionar essas contribuições dos estudos de gênero à Psicologia Social Comunitária, na medida em que promovem uma atuação sobre a violência. Levam em consideração as questões de hierarquização social, percebendo os impactos das diferenças de gênero, classe social, raça, orientação sexual, nacionalidade, entre outros determinantes sociais. Sousa (2014) estabelece que, para apreender a violência, deve-se levar em consideração os determinantes que viabilizem conceitos, discursos, práticas sociais, modos de viver e de perceber que estejam relacionados à produção sócio-histórica.

As intervenções em Psicologia Social Comunitária configuram-se como tentativas de resposta à necessidade de uma ciência não colonizada, voltada para a emancipação das minorias sociais e para a superação das desigualdades pelos próprios grupos em situação de subordinação (Mayorga, 2014). Butler (2015) auxilia-nos a refletir que uma determinada vivência violenta não é mais passível de atenção em detrimento de outra(s). Ao tomar como ponto de partida que todas violências podem gerar um sofrimento que deve ser olhado pelo profissional de Psicologia, evita-se que haja uma hierarquização de vulnerabilidades que subsidiam e que são decorrentes da violência, uma vez que todos os processos de privação de direitos deveriam ser atendidos.

O exercício da Psicologia Social tem uma atuação que "valoriza a construção de práticas comprometidas com a transformação social em direção a uma ética voltada para a emancipação humana" (Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas, 2008). Nesta direção, Bicalho (2005) propõe que uma das responsabilidades dos psicólogos seria firmar diversidade de subjetividades, com suas variadas conexões, de modo que seja revista a naturalidade dos objetos e sujeitos, produzindo um ambiente democrático que permite outras formas de estar no mundo. O Conselho Federal de Psicologia tem buscado superar as formas hegemônicas de intervenções em Psicologia no contexto jurídico, utilizando a nomenclatura da Psicologia em interface com a Justiça para designar atuações na área inseridas no universo jurídico. Acredita-se que a mudança de nomenclatura auxilia no momento de ressignificar práticas, assim como os profissionais devem lançar mão de elementos que orientem suas intervenções, que devem ser voltadas à criação e aplicação de estratégias de promoção de saúde. Concerne ao psicólogo, em alguns âmbitos do sistema judicial, ser um dos atores sociais envolvidos em demandas psicojurídicas, garantindo espaços de escuta e de autonomia da pessoa na resolução de conflitos, mediante processos de orientações, encaminhamentos e intervenções psicossociais (Conselho Federal de Psicologia, 2011).

Buscando relacionar a Psicologia Social Comunitária e a Psicologia Jurídica, ao se verificar o trabalho de Psicologia, inserido em contextos de assistência à violência, identifica-se que o trabalho deve ser realizado junto aos sujeitos e às suas relações, estimulando-se modos de funcionamento singulares e, ao mesmo tempo, viabilizando-se maneiras de ressignificar vivências violentas. Para isso, considera-se que o compromisso social e ético em Psicologia Social deve conter em si a compreensão das opressões que se constituem hoje, assim como as formas de superação (Maheirie, 1997). O papel do profissional de Psicologia Social vai ao encontro da perspectiva de trabalho a partir de políticas públicas e da articulação com as redes de proteção visando a garantia de direitos. Em suas intervenções, o psicólogo deverá visar à ressignificação de vulnerabilidades, investindo na apropriação, por todos, do lugar de protagonista na conquista e afirmação de direitos (Couto, Yazbek, & Raichelis, 2012).

A Psicologia Social Jurídica representa um campo interdisciplinar entre a Psicologia Social e o Direito, sendo responsável pela observação das normas jurídicas estatais que são garantidoras de direitos. A observância da relação entre o sujeito (indivíduo ou grupo) com as normas jurídicas criadas pelo Estado que regulam os comportamentos permite vislumbrar formas de intersecção entre Psicologia e Direito. Pretende-se ampliar a concepção da Psicologia Jurídica, abordando o diálogo da Psicologia na segurança pública a partir de um viés que não se reduz à repressão, e nem mesmo à judicialização. Dentro desse contexto jurídico, o psicólogo deve "estar sempre atento para a vinculação da psicologia com os mecanismos de ordenamento social, com as subjetividades que o próprio saber psicológico ajuda a naturalizar" (Bicalho, Kastrup & Reishoffer, 2012).

Sendo assim, pensar práticas psicológicas atreladas à concepção de uma polícia cidadã parece bem condizente com a psicologia social jurídica. E isto corresponde a um olhar amparado na acolhida, escuta qualificada e identificação de possíveis formas de encaminhamentos. "A polícia cidadã é uma concepção de polícia que problematiza a segurança, discute sua complexidade e divide responsabilidades" (Bengochea, Guimarães, Gomes, & Abreu, 2004). Firmar o compromisso com uma polícia que possa romper com a lógica opressora e hierárquica presente na polícia civil brasileira corresponde a desenvolver atividades mais próximas e intensas junto à comunidade, que visem a diminuição da violência e da criminalidade e/ou de seus efeitos em consonância com os direitos humanos.

 

Segurança pública: promovendo direitos humanos e cidadania

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988) representou um avanço na conquista de direitos democráticos para a sociedade brasileira, em específico, no que tange aos direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança como inerentes à população, sendo a família, a sociedade e o Estado os responsáveis de provê-los. A segurança constitui uma das garantias do exercício da cidadania, algo central para o sistema democrático das sociedades contemporâneas. A Constituição prevê que um dos órgãos responsáveis por realizar a manutenção da segurança é a Polícia Civil, identificando-a como uma das responsáveis no exercício da cidadania em benefício e com a participação inclusiva da população brasileira.

De acordo com Bengochea, Guimarães, Gomes e Abreu (2004), a polícia civil brasileira foi criada no século XVIII, para atender a um modelo de sociedade extremamente autocrático, autoritário e dirigido por uma pequena classe dominante. Por muito tempo, a instituição policial estava atrelada a uma lógica positivista de criminalização da população que de alguma maneira punha em risco o status quo, cujas compreensões binárias e causais eram responsáveis por enfraquecer a sua dimensão social comunitária e política. "A função do Estado seria, então, conter os impulsos incontroláveis destes indivíduos através de medidas de segurança restritivas e controladoras" (Rebeque, Jagel, & Bicalho, 2008).

O sistema brasileiro de segurança pública é viabilizado através do Ministério da Justiça (Brasil, 2009), especificamente, pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), sendo que um dos projetos promovidos em 2007 foi o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), a preconizar políticas de segurança e de acesso à Justiça de forma integrada com ações sociais, projetos comunitários e educativos. Para Bengochea et al. (2004), a segurança pública é "um processo sistêmico que envolve um conjunto de ações públicas e comunitárias, visando assegurar a proteção do indivíduo e da coletividade e a aplicação de justiça na punição, recuperação e tratamento dos que violam a lei, garantindo direitos e cidadania a todos".

A segurança da população pode ser vista como produto e produtora de cidadania, o que demanda uma maior articulação das leis, decretos, portarias e resoluções do ordenamento jurídico com o contexto social, sem a qual os resultados em segurança pública podem não ter uma efetiva atuação transformadora. Ademais, não se pode reduzir as noções de justiça às leis, que são apenas uma faceta do que o Direito pode contribuir, tampouco vincular a segurança pública ao atendimento de normativas. Carvalho e Silva (2011) identificam que a Segurança Pública, enquanto setor da sociedade, constitui um sistema complexo, que deve ser desenvolvido de forma integrada com efetiva participação social, visando a democratização do aparelho estatal a fim de zelar pela segurança cidadã.

A Criminologia corresponde a uma ciência que estuda a norma, sua transgressão, a pena e castigo, sem representar uma simples vertente complementar ao direito penal. "Trata-se da ciência que estuda o crime, a vítima, o criminoso e as formas de controle social, analisando as causas e consequências do crime para a sociedade" (Goes Junior, 2012). O direito penal desde sua criação busca uma responsabilização jurídica para o fenômeno do crime quando ocorre rompimento do pacto da sociedade (direitos, deveres e limites), e oportuniza formas de controlar a ordem de corpos desviantes. Já a criminologia, ocupou-se historicamente do estudo do crime, de seu autor e do sistema penal (Martins, 2008), cujo conceito, por muito tempo, foi aliado à concepção reducionista de incriminação pela lei penal, a gerar diversas consequências até a atualidade. Entretanto, as questões subjetivas têm ganhado força frente à objetividade legal, e pode-se questionar o impacto no trabalho da polícia enquanto une um campo dogmático ao psicoassistencial.

O enfoque da criminologia crítica passa a considerar o contexto social como um dos grandes fatores de sua prática, de modo a refletir sobre o impacto da sociedade no processo da violência. "O foco dos estudos passou do autor do crime para o contexto social no qual ele está inserido, participando de um jogo de poderes de ordem macro e microssocial, estigmatização, reação social e criminalização" (Martins, 2008). Deste modo, pode-se implicar que toda a sociedade seja corresponsável tanto pela produção quanto pelos efeitos dessa violência. As críticas em direção ao controle sociopenal tomam evidência, o que leva a questionar a hegemonia dos paradigmas anteriores, que legitimavam exclusões e privações de direitos humanos. Tais exclusões davam-se por atuações orientadas por uma perspectiva naturalizante, atrelados a lógicas deterministas de institucionalização, que, na vanguarda do pensamento científico, o isolamento fazia parte de uma das diretrizes da defesa social, controlando e afastando os considerados incuráveis.

Ao identificar a relação que os saberes criminológicos críticos possuem com a violência, a intervenção psicológica pode servir para promover processos emancipatórios, substituindo vias punitivo-correcionais por aspectos subjetivo-relacionais. Isto permite ampliar o olhar sobre as determinações das produções de violência e estabelecer uma relação direta entre a promoção de justiça e o campo psicoassistencial.

Entretanto, ainda existe um forte imperativo das práticas de coerção, advindas dos regimes autoritários anteriores à promulgação da Constituição vigente dentro das polícias. A mudança de uma polícia controladora para uma polícia chamada cidadã efetua a troca do uso da força pela argumentação, mediação e resolução de conflitos. Promove uma polícia mais pacificadora, democrática e comunitária, buscando acima de tudo garantir e efetivar os direitos fundamentais dos cidadãos (Bengochea et al., 2004). A transição de modelos tradicionais de controle para uma filosofia de polícia cidadã está em consonância com uma atuação orientada a zelar pelos direitos humanos da população, com práticas de promoção de segurança que produzam cidadania.

 

Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso: relato de experiência de estagiários de psicologia social jurídica

Neste artigo, apresenta-se a vivência de estudantes de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina enquanto estagiários das DPCAMI da Grande Florianópolis, região metropolitana da capital catarinense, cujos campos de estágio referidos são nos municípios de São José e Palhoça. Através de um convênio entre a universidade com a Secretaria do Estado de Segurança Pública, viabilizaram-se projetos de ensino, pesquisa e extensão, que culminaram na inserção de estagiários de Psicologia Social Jurídica nestas organizações. Foram realizadas aproximadamente 36 visitas por estagiário, o que totaliza 1 ano de estágio curricular obrigatório.

Buscando descrever a forma como são realizados os atendimentos às vítimas de violência em uma delegacia especializada, o uso do diário de campo é de extrema relevância. A atitude do pesquisador é sempre direcionada para a elucidação dos diversos interesses e aspectos envolvidos na situação, incluindo-se aí, necessariamente, a relação existente entre os objetivos da pesquisa e os objetivos da ação (Paulon, 2005). Ressalta-se a importância de caracterizar a pesquisa-intervenção de modo que ela promova participações críticas, a abranger um espectro complexo, multideterminado e imprevisível das possibilidades de vivências humanas.

A partir das experiências em campo, os estagiários podem realizar uma análise das narrativas de suas práticas. As atividades previstas para o campo foram: atendimento a vítimas de violência; acolhimento; orientação sobre seus direitos legais e de que forma a delegacia pode auxiliá-los; articular encaminhamentos na rede de atenção do território e/ou fortalecimento da rede pessoal; produção de documentação psicológica, como relatórios psicológicos; elaboração de informações (documento de comunicação com breve resumo do atendimento realizado pelo Setor de Psicologia em resposta ao delegado); visitas às instituições da rede de atendimento e domiciliares (em casos nos quais a vítima é impossibilitada de comparecer devido à significativa idade ou limitação); realizar intimações e estudos de caso.

No que diz respeitos ao quadro funcional de policiais que compõem a estrutura de uma delegacia especializada e que auxiliam no decorrer do processo investigativo, têm-se: escrivães de polícia, que realizam oitivas dos envolvidos no Boletim de Ocorrência (BO), inclusive nos casos de solicitação de Medida Protetiva de Urgência ao Poder Judiciário para casos de violência doméstica e desempenham outras atividades administrativas; agentes de polícia, responsáveis por realizar plantões de atendimento, realização do BO e orientações, assim como atividades de ordem investigativa e redação de correlatos relatórios; e delegados de polícia, autoridades máximas da delegacia, responsáveis por acompanhar as oitivas, realizar os despachos relacionados aos BOs dentro da delegacia, instaurar - ou não, inquéritos policiais e elaborar um relatório deste inquérito - que corresponde ao procedimento policial resultante da investigação. Às vezes, o trabalho de todos os profissionais da delegacia subsidia justamente o arquivamento ou não indiciamento.

O fluxo de atendimento dentro da delegacia ocorre primeiramente com os agentes de polícia, por quem a demanda do suposto fato criminoso é recebida em forma de comunicação de ocorrência policial, identificando os elementos relacionados à situação vivenciada pela(o) denunciante, culminando no BO. Este documento apenas manifesta relatos dos fatos de um incidente por um discurso unilateral, ou seja, informado pelo(a) próprio(a) ofendido(a), não criando, em si, antecedentes criminais. Após o seu registro, o delegado encaminha os casos que julgar necessário de avaliação pelo psicólogo policial ao setor de psicologia. Também há a possibilidade de as notícias de violência chegarem por meio de denúncias (anônimas ou não) feitas por telefone ou internet à polícia civil, ou por telefone à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

A partir disso, o Setor de Psicologia entra em contato com o sujeito que figura como vítima no BO, via contato telefônico ou por documentos oficiais da polícia civil em forma de correspondência, intimações, a fim de que ele(ela) compareça à delegacia em data agendada para atendimento psicológico. Caso não tenha sido possível a localização, as(os) psicólogas(os) policiais elaboram um documento, chamado de informação, explicando as diversas tentativas de contato sem êxito, ao que o(a) delegado(a) recebe e toma as devidas providências. Nestes casos de não localização, o processo é temporariamente arquivado. Nas hipóteses de suspeita de que a vítima esteja impedida pelo próprio autor de comparecer à delegacia ou impossibilitada de o fazer por qualquer razão além de sua vontade, o(a) delegado(a) determina a ida de uma equipe policial até a residência da(o) denunciante.

O início do atendimento pelo Setor de Psicologia corresponde à apresentação dos responsáveis por coordenar o atendimento, dizendo os seus nomes e as respectivas funções. Costuma-se solicitar um documento de identificação a fim de relacionar a pessoa assistida ao BO. A partir disso é feito uma breve descrição da proposta do atendimento, que reside em identificar o histórico de violência, verificando se foi um episódio pontual, ou possui uma certa recorrência, identificar a prevalência, possíveis prejuízos relacionados à produção de violência, histórico de acompanhamento com outros profissionais, orientações e possíveis encaminhamentos sugeridos. Ao final do atendimento, deve ser gerado um documento formal a ser enviado para o delegado, a fim de relatar brevemente o atendimento, e a atestar o interesse ou não pela representação criminal, caso seja um atendimento de ação penal pública condicionada, encaminhando o BO para as vias judiciais cabíveis ou para o arquivamento.

Caso o desejo de representar seja manifestado, a(o) denunciante assina um termo de representação, que passa a acompanhar o BO. Quando o delegado do caso instaura um inquérito policial a fim de apurar a situação de violência, ouvem-se todas as partes relacionadas, incluindo eventuais testemunhas, bem como se coletam eventuais provas de outra natureza. Caso a(o) requerente opte pela não representação criminal, não será instaurado nenhum procedimento policial, havendo somente o registro dos fatos da ocorrência junto ao Sistema Integrado de Segurança Pública (SISP). A(O) denunciante tem o direito, durante um período de seis meses após o registro do BO, de representar criminalmente contra aquele que cita como autor(a) utilizando-se do mesmo BO. Caso contrário, após esse prazo o boletim é arquivado. Na hipótese de ocorrerem novos fatos, é necessário o registro de outro BO.

Vale salientar que crimes que violem os direitos de crianças e adolescentes comumente são ações penais públicas incondicionadas à representação, em que aquele ou aquela entendida como vítima e o seu representante não possuem autonomia de optar pela representação criminal; a representação é vinculada ao delito capitulado, e o inquérito é iniciado automaticamente. Se o delegado identificar que houve o fato da violência com os indícios produzidos durante a etapa de inquérito, ele é encaminhado ao Ministério Público, para que avalie se oferecerá denúncia do caso ao Poder Judiciário. Eventualmente o Ministério Público devolve o inquérito à delegacia, requerendo novas diligências para que melhor se convença e fundamente o oferecimento da denúncia. Se não for possível encontrar pelo menos indícios de autoria e também a materialidade do crime na fase policial, não há o indiciamento. O inquérito é enviado ao Ministério Público com as justificativas no sentido de que não tenha ocorrido indiciamento2.

Ao final do atendimento, é realizado um relatório psicológico, a fim de fornecer subsídios para orientar os trabalhos de compilação de informações e de sugerir novas investigações, atendendo a possibilidade de ser utilizado em conjunto a outras evidências. Ressalte-se que este relatório não poderá ser considerado um único meio de prova (Rovinski, 2004). Não se pretende fazer do relatório um substituto às oitivas judiciais de crianças e adolescentes, sendo que deve tampouco ser considerado elemento isolado para a oferta da denúncia. A proposta é que haja um profissional capacitado em avaliar a situação de modo a respeitar o momento do desenvolvimento de uma criança, o que não exclui outras formas de informação para fundamentar as decisões exaradas no inquérito policial.

 

Práticas de psicologia policial

A psicologia policial corresponde a uma recente vertente da psicologia jurídica, sendo o cargo de psicólogo policial, no âmbito da polícia civil, pioneiro no estado de Santa Catarina, como observado no Plano de Carreira dos Servidores do Grupo Segurança Pública (Lei complementar Nº 453, 2009). Em outros estados, também existe a presença de psicólogos na polícia civil, muitas vezes a realizar as mesmas ações, mas, em sua maioria, eles não são do quadro efetivo da Segurança Pública e, devido à formação em psicologia, atuam enquanto psicólogos3.

Em um primeiro momento, Soria-Verde (2010) pontua que as primeiras atividades do psicólogo em organização policial estavam vinculadas a funções avaliativas-instrumentais, e com o passar do tempo e o surgimento de novas demandas, fora possível conquistar outros espaços, como saúde ocupacional de servidores, gestão de pessoas, projetos de educação continuada; o que possibilita encontrá-los em diversos órgãos de Segurança Pública, dentre elas, as delegacias especializadas em crianças, adolescentes, mulheres e idosos. Apesar de citar estas outras formas de estabelecer relações entre Psicologia e Polícia, este artigo não pretende explorar essas nuances no trabalho, a não ser aquelas relativas à Psicologia na Polícia Civil Catarinense e, em específico, aos Setores de Psicologia das DPCAMI da Grande Florianópolis.

Entende-se que existe um grande enfoque na realização de denúncias como modo de responsabilização da sociedade perante os modos de acessar a justiça. Nascimento (2014) reflete que, apesar de a proteção corresponder a um direito absoluto e necessário, a interpretação que se tem hoje é de que todas as práticas relacionadas à segurança sejam justificadas, de modo que o sistema vigente sustente a cultura do castigo, com auxílio da lógica penal e de práticas autoritárias que atuam na judicialização da vida, em que legislações controlam a vida através do discurso de proteção. O alinhamento da proteção policial e diversos dispositivos em sociedade contra violência com uso da judicialização da vida pode nos auxiliar a refletir sobre as pessoas envolvidas nesse processo. Pode-se observar no caso da Lei Maria da Penha (Lei Nº 11.340, 2006) que, a despeito de estabelecer diretrizes projetos sem a necessidade de vias judiciais, há uma constante criminalização da violência contra as mulheres, não só pelos dizeres das normas ou leis, mas também fundamentalmente pela consolidação de estruturas específicas, mediante as quais o aparelho policial e/ou jurídico podem ser mobilizados para proteger as vítimas e/ou punir os agressores (Waiselfisz, 2015). Mesmo que a lei oriente sobre a sensibilização e pela criação de programas de prevenção à violência, assim como espaços reflexivos sobre relações abusivas, a solução do Estado brasileiro costuma seguir uma lógica punitiva em detrimento de propostas de educação continuada sobre gênero e prevenção de violência.

Levando em consideração que os delitos sofridos pelos sujeitos que figuram como vítimas nas delegacias especializadas ao atendimento de crianças, adolescentes, mulheres e idosos manifestam-se de formas múltiplas, uma intervenção psicossocial calcada nas demandas dos possíveis ofendidos firma um aspecto intersubjetivo das situações de violência. É pertinente mencionar que a leitura relacional das violências e o reconhecimento da responsabilidade dos envolvidos não implicam em vitimizar e culpabilizar, mas sim em focar na garantia de direitos ao invés da repressão. "É importante partir de uma criteriosa análise, fugindo da lógica culpabilizatória e da tendência criminalizante, porém sem minimizar as questões socioculturais envolvidas e tão importantes para a compreensão da violência" (Batista, Medeiros, & Macarini, 2017).

Nos casos de atendimentos a mulheres, por exemplo, procura-se atender a essa prerrogativa oportunizando-se um momento para uma psicoeducação sobre processos psicológicos decorrentes da violência sofrida, a fim de que o sujeito que se apresenta como vítima nestas delegacias sempre possua uma maior amplitude de possibilidade para resolubilidade de seus conflitos. Isso permite que se transcenda o aparelho criminal (e estatal, inclusive) enquanto espaço de reconhecimento, permitindo ir além de uma fixação identitária de vítima. Procura-se pautar pela lógica do acolhimento das demandas que surgem de modo a acolher o sofrimento psíquico da denunciante antes e depois da realização dos devidos encaminhamentos. Isto permite que a denunciante encontre outros espaços oferecedores de insígnias identificatórias mais amplas que a de "vítima de crime". Por fim, ressaltamos: "não se trata, portanto, de negar o sofrimento e a dor daqueles que são violentados, mas enfatizar outros aspectos, em que essas pessoas mesmo violentadas, tomam as rédeas de suas próprias vidas" (Mansur, & Machado, 2014).

Não se pode deixar de considerar que estes encaminhamentos também são uma forma de legitimar as demandas das vítimas por outras respostas que não a criminalizadora. Referimo-nos às vítimas que não desejam criminalizar sua dor (e que, por exemplo, buscam a delegacia apenas para orientação, sequer registrando BO) e que muitas vezes são culpabilizadas por isto.

Considerando a preocupação com a autonomia daqueles que recorrem à polícia, cabe relatar que, durante o andamento do estágio, observou-se que muitas pessoas não possuíam ciência do trabalho do Setor de Psicologia em uma delegacia especializada. Isto demanda que as profissionais reservem um espaço durante o atendimento para discutir sobre suas atribuições, a fim de se alinhar as expectativas daqueles que demandam a atuação da polícia civil na condição de vítimas com o serviço oferecido. As orientações vão ao encontro de frisar que a atuação do Setor de Psicologia corresponde a uma das etapas do processo investigativo, não sendo ali um espaço com viés terapêutico, que busca identificar atravessamentos dos processos psicológicos e sociais nas situações de violência.

Um desafio significativo na atuação neste campo é, justamente, numa perspectiva crítica, compor um processo investigativo não é o mesmo que realizar um trabalho investigativo. Pelo menos para algumas vertentes da Psicologia (como a social), o processo investigativo é composto por ações não investigativas, como pode ser o caso da Psicologia (Batista, & Medeiros, 2017).

A autonomia de pessoas em processos de violência perante o sistema judicial é imprescindível, concebendo-se fundamental que o saber psicológico não seja objeto subordinado ao saber jurídico. Mesmo nas situações de ações penais públicas incondicionadas, cabe à psicologia não apenas garantir ao sujeito espaços de autonomia, como propor maneiras com que a subjetividade dos envolvidos possa inclusive dispor do aparato judicial como maneira de exercer sua autonomia. Para isto, a singularidade de cada caso possibilita diferentes possibilidades de relação com o Estado, o saber psicológico e recursos da rede comunitária.

A partir dos constantes diálogos estabelecidos pela Psicologia Social com o jurídico, pode-se destacar que o trabalho do psicólogo na delegacia exige um trabalho integrado com outros campos de conhecimento, de modo que as demandas subjetivas e jurídicas sejam abordadas. O processo de produção de violência possui diversas facetas e, em meio a sua complexidade, verifica-se como imprescindível a atuação de uma equipe multidisciplinar, a fim de ampliar o olhar sobre os impactos da violência em seus cotidianos (Nobrega et al., 2017).

Muitas vezes torna-se necessário demarcar as atribuições de cada profissional dentro da delegacia, a fim de evitar divergências entre as diversas atribuições, além de demarcar o que eles podem fazer para auxiliar os envolvidos. Delimitar suas possibilidades de atuação denota responsabilidade às diversas demandas dos operadores do direito e da força policial que, por exemplo, ocasionalmente solicitam que as(os) psicólogas(os) providenciem respostas precisas a demandas de ordem não psicológica, entrando em conflito com o compromisso social da psicologia em defesa da ética e dos direitos humanos. Isto é mais evidente nos casos dos atendimentos a crianças e adolescentes, porque se espera do psicólogo, de forma contundente, uma resposta sobre a dúvida se houve ou não crime.

Tratando-se de profissional de Psicologia em face de busca pela "verdade absoluta dos fatos", Andreotti (2012) justifica que não se tem como aferi-la, já que o trabalho do psicólogo envolve a construção psíquica de uma cena possivelmente traumática, na qual muitas vezes lhe é suprimida elementos do ocorrido em questão, ou na qual há uma reconstrução, de maneira a torná-la mais suportável para própria realidade interna - corroborando o entendimento da necessidade de se recorrer a outras fontes de informação. As considerações iniciais da Resolução no 10/2010 do Conselho Federal de Psicologia orientam sobre as responsabilidades com a escuta psicológica de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência. Ressalta-se que:

a escuta deve ter como princípio a intersetorialidade e a interdisciplinaridade, respeitando a autonomia da atuação do psicólogo, sem confundir o diálogo entre as disciplinas com a submissão de demandas produzidas nos diferentes campos de trabalho e do conhecimento. Diferencia-se, portanto, da inquirição judicial, do diálogo informal, da investigação policial, entre outros (Conselho Federal de Psicologia, 2010)4.

 

Considerações finais

Houve mudanças na forma da atuação em Psicologia, em específico, nos campos de interface com a Justiça, que continuam a fortalecer as políticas de segurança pública do Estado de Santa Catarina. Deve-se refletir sobre os possíveis rumos da Psicologia enquanto ciência e profissão, a ampliar o seu escopo de atuação e visando romper com a lógica clássica de intervenção no âmbito criminal.

As reflexões acerca do policiamento dirigido por um paradigma que não associa eficácia policial à repressão promovem novas formas relacionais da sociedade com a polícia, o que contribui para os estudos de psicologia policial. Deve-se ter cautela ao firmar uma prática psicológica em uma instituição tão ambivalente quanto a própria polícia, que "mobiliza nas pessoas sensações de proteção e segurança, mas também de medo e tensão" (Nascimento, 2017). Ao desenvolver práticas que potencializem ações em resgate de direitos, promove-se a cidadania ao se dispor dos recursos estatais e ao recorrer às redes sociais informais, potencializando nos sujeitos processos emancipatórios, conferindo-lhes autonomia.

Durante o período de estágio, pôde-se ter um maior contato com profissionais de Psicologia que atuam na segurança pública. As atividades não se limitaram em presenciar os atendimentos, mas também se acompanhou o preenchimento dos boletins de ocorrência, a tomada de depoimentos e as discussões informais sobre os casos (Rifiotis, 2004). Busca-se estabelecer diálogos da participação desta categoria profissional junto à Polícia Civil, identificando as atribuições investigativas realizadas em uma delegacia especializada ao atendimento de crianças, adolescentes, mulheres e idosos, a fim de ressignificar a violência. Para Lopes (2009), oportunizar a ressignificação de subjetividades é dar espaço para a mudança de relação com as representações desses atos violentos.

Pretende-se com este escrito ampliar a literatura que articula políticas de segurança com ações sociais, necessária para embasar práticas de Psicologia em contextos de violência e justiça. Especialmente delimitando um novo espaço de atuação profissional ao ampliar noções sobre o cargo de psicólogo policial e identificar de que forma ele atua com um compromisso crítico pelo olhar da psicologia social. Assim procedendo, firma-se o compromisso da Psicologia com os direitos humanos e com os modos de subjetivação envolvidos nos processos de violência, e se estabelece um nexo entre Psicologia Social e Psicologia Jurídica.

Ressalta-se ainda a compreensão de que a inserção de profissionais de Psicologia em uma organização como a delegacia corresponde a uma demanda técnica por parte dos saberes psicológicos com o sistema de justiça e a lei. Ao inserir a complexidade das relações da Psicologia com direito penal, sob enfoque da polícia civil, indaga-se em que medida o seu trabalho proporciona acesso à justiça, atuando perante os desequilíbrios vigentes da sociedade capitalista, cujos desdobramentos englobam sofrimentos psíquicos. A este respeito, observa-se que os códigos e postulações vigentes ainda se reportam a concepções clássicas, ao adotar práticas punitivas justificadas por um dano previamente causado.

A perspectiva de gênero e violência, por sua vez, como categorias analíticas trouxeram compreensões acerca dos pensamentos feministas pós-coloniais, que avançam nas críticas às intervenções nas demandas sociais em países da América Latina. Para Schuck (2015), o feminismo pós-colonial busca a construção de conhecimento consoante às críticas ao colonialismo de diversos países exploradores e à dominação epistemológica eurocentrada. O enfoque nos estudos pós-colonialistas e descoloniais é de certa forma subverter o paradigma científico clássico, auxiliando a pautar a ciência do "terceiro mundo"/periferias a fim de contribuir para realizar críticas às estruturas de poder/saber do mundo contemporâneo (Ballestrin, 2013). Atrelado a essa concepção, pauta-se um feminismo interseccional que atue nas relações desiguais e opressivas à nível social comunitário, fomentando processos emancipatórios. Compreende-se como a interseção entre classe, raça e gênero produz experiências comuns e diferenças, sendo constitutivos da desigualdade social (Mayorga, 2014).

Deve-se frisar, por fim, que a psicologia policial enquanto uma "vertente" da Psicologia Social Jurídica ainda está em processo de construção, adotando propostas de outras áreas de atuação a fim de aprimorar suas formas de intervenção. Amparar as práticas psicológicas que atendam a demanda por resguardar os direitos humanos e realizar uma escuta qualificada corresponde a um desafio que não possui vasta literatura, ainda que as consequências subjacentes à violência no âmbito investigativo dos delitos em uma delegacia especializada esteja sendo foco de mais pesquisadores. Desta maneira, cumpre-se o objetivo de promover diálogos entre a psicologia e a polícia, elaborando-se uma crítica filosófica e conceitual, a avançar para a indicação de possibilidades de intervenção que certamente orientarão caminhos aos iniciantes (Nascimento, 2017).

 

Referências

Andreotti, C. (2012). Enfrentamento da revitimização: a escuta de crianças vítimas de violência sexual. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Ballestrin, L. (2013). América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, (11), 89-117. https://doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004        [ Links ]

Batista, A. P., & Medeiros, J. L. (Orgs.) (2017). Psicologia e polícia: Diálogos possíveis. Curitiba, PR: Juruá         [ Links ].

Batista, A. P., Medeiros, J. L. & Macarini, S. (2017). Violência conjugal e as delegacias especializadas: As implicações da judicialização dos conflitos. In A. P. Batista, & J. L. Medeiros (Orgs.), Psicologia e polícia: Diálogos possíveis (pp. 103-122). Curitiba, PR: Juruá         [ Links ].

Bengochea, J. L. P., Guimarães, L. B., Gomes, M. L., & Abreu, S. R. (2004). A transição de uma polícia de controle para uma polícia cidadã. São Paulo em Perspectiva, 18(1), 119-131. https://doi.org/10.1590/S0102-88392004000100015        [ Links ]

Bicalho, P. P. G. (2005). Subjetividade e abordagem policial: Por uma concepção de direitos humanos onde caibam mais humanos (tese). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.         [ Links ]

Bicalho, P. P. G., Kastrup, V., & Reishoffer, J. C. (2012). Psicologia e segurança pública: Invenção de outras máquinas de guerra. Psicologia & Sociedade, 24(1), 56-65. https://doi.org/10.1590/S0102-71822012000100007        [ Links ]

Borges, E. N. M. F., & Gonçalves, E. (2017). Sujeição e agência em situações de violência contra as mulheres: Trajetórias de superação e ressignificação. Ciências Sociais Unisinos, 53(1), 119-127.         [ Links ]

Brasil (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal.         [ Links ]

Brasil (2009). Ministério da Justiça. Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Brasília, DF: o autor.         [ Links ]

Brasil (2010). Ministério da Justiça. Normas técnicas de padronização das delegacias especializadas de atendimento às mulheres - DEAMs. Brasília, DF: o autor.         [ Links ]

Brito, L. M. T. (2012). Anotações sobre a psicologia jurídica. Psicologia: Ciência e Profissão, 32(spe), 194-205. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500014        [ Links ]

Brito, L. M. T., Beiras, A., & Oliveira, J. D. G. (2012). Psicologia jurídica: Reflexões críticas sobre demandas emergentes e exigências profissionais. Cuadernos de Psicologia, 14(2), 25-36. https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1134        [ Links ]

Brizola, A. L. D., Zanella, A. V. (2015). Psicologia social, violência e subjetividade (Coleção Práticas Sociais, Políticas Públicas e Direitos Humanos). Florianópolis, SC: Abrapso.         [ Links ]

Butler, J. (2015). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Carvalho, V. A., & Silva, M. R. F. (2011). Política de segurança pública no Brasil: avanços, limites e desafios. Revista Katálysis, 14(1), 59-67. https://doi.org/10.1590/S1414-49802011000100007        [ Links ]

Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (2008). Referência técnica para atuação do(a) psicólogo(a) no CRAS/SUAS. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia.         [ Links ]

Conselho Conselho Federal de Psicologia. (2010). Institui a regulamentação da Escuta Psicológica de Crianças e Adolescentes envolvidos em situação de violência, na Rede de Proteção. Recuperado de site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2010/07/resolucao2010_010.pdf. Acesso 20 fev 2018.         [ Links ]

Conselho Federal de Psicologia (2011). Psicologia em interface com a justiça e os direitos humanos. Brasília, DF: o autor.         [ Links ]

Couto, B. R, Yazbek, M. C., & Raichelis, R. (2012). A Política Nacional de Assistência Social e o SUAS: Apresentando e problematizando fundamentos e conceitos (3a ed.). São Paulo, SP: Cortez.         [ Links ]

Cruz, R. M., Maciel, S. K., & Ramirez, D. C. (Org.). (2005). O trabalho do Psicólogo no campo Jurídico. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Guareschi, N. M. F., Reis, C. D., Huning, S. M., & Bertuzzi, L. D. (2007). Intervenção na condição de vulnerabilidade social: Um estudo sobre a produção de sentidos com adolescentes do programa do trabalho educativo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 7(1): 20-30.         [ Links ]

Guimarães, M. C., & Pedroza, R. L. S. (2015). Violência contra a mulher: Problematizando definições teóricas, filosóficas e jurídicas. Psicologia & Sociedade, 27(2), 256-266. https://doi.org/10.1590/1807-03102015v27n2p256        [ Links ]

Goes Junior, C. M. (2012). A importância da psicologia criminal na investigação policial. Cógito, 13, 32-40.         [ Links ]

Lei N°11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, 8 agosto de 2006.         [ Links ]

Lei complementar Nº 453, de 5 de agosto de 2009. Institui o Plano de Carreira de Servidores do Grupo Segurança Pública - Polícia Civil e adota outras providências. Florianópolis, SC. Recuperado de http://www.portaldoservidor.sc.gov.br/ckfinder/userfiles/arquivos/Legislac ao%20Correlata/Leis%20Complementares/2009_-_LEI_COMPLEMENTAR_N%C2%BA_453%2C_de_05_de_agosto_de_2009.pdf        [ Links ]

Lopes, Z. A. (2009). Representações sociais acerca da violência de gênero: Significados das experiências vividas por mulheres agredidas (tese). Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil.         [ Links ]

Maheirie, K. (1997). Contribuições da psicologia social ao estudo dos movimentos sociais. In L. Camino, L. Lhulier, & S. Sandoval (Orgs.), Estudos sobre comportamento político (pp. 161-173). Florianópolis, SC: Letras Contemporâneas.         [ Links ]

Mansur, T. S., & Machado, L. A. D. (2014). Problematizando a noção de 'vítima' de violência. Psicologia & Sociedade, 26(n. spe.), 183-192.         [ Links ]

Marchi-Costa, M. I., Diflora, M. C., Marchi-Sousa, M., Redondo, R. C., Negrão, D. P., & Soubhie, D. C. L. (2013). Relação de gênero e violência conjugal para além do instituído: O construcionismo social como uma possibilidade integradora. Mimesis, 34(1), 91-114.         [ Links ]

Martins, S. (2008). Relações arqueológicas entre discursos criminológicos e psicológicos: A legitimação de saberes e práticas (dissertação). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.         [ Links ]

Mayorga, C. (2014). Algumas contribuições do feminismo à psicologia social comunitária. Athenea Digital, 14(1), 221-236. https://doi.org/10.5565/rev/athenead/v14n1.1089        [ Links ]

Nascimento, D. M. (2017). Prefácio. In A. P. Batista, & J. L. Medeiros, (Orgs.), Psicologia e polícia: Diálogos possíveis (pp. 13-17). Curitiba, PR: Juruá         [ Links ].

Nascimento, M. L. (2014). Pelos caminhos da judicialização: Lei, denúncia e proteção no contemporâneo. Psicologia em Estudo, 19(3), 459-467. https://doi.org/10.1590/1413-73725000609        [ Links ]

Nobrega, L. Gerlach, C., Oliveira, H., Bortoluci, P., & Beiras, A. (2017). A inserção de estagiários de psicologia policial em uma delegacia especializada. Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental, Florianópolis, SC, 3.         [ Links ]

Paulon, S. M. (2005). A análise de implicação como ferramenta na pesquisa-intervenção. Psicologia & Sociedade, 17(3), 18-25. https://doi.org/10.1590/S0102-71822005000300003        [ Links ]

Rebeque, C. C., Jagel, D. C., & Bicalho, P. P. G. (2008). Psicologia e políticas de segurança pública: O analisador 'Caveirão'. PSICO, 39(4), 418-422.         [ Links ]

Rifiotis, T. (2004). As delegacias especiais de proteção à mulher no Brasil e a "judicialização" dos conflitos conjugais. Sociedade e Estado: Brasília, 19 (1) 85-119.         [ Links ]

Rifiotis, T. (2015). Violência, justiça e direitos humanos: Reflexões sobre a judicialização das relações sociais no campo da "violência de gênero". Cadernos Pagu, (45), 261-295. https://doi.org/10.1590/18094449201500450261        [ Links ]

Rovinski, S. M. (2004). Fundamentos da psicologia forense. São Paulo, SP: Vetor.         [ Links ]

Rovinski, S. L. R. (2009). Psicologia jurídica no Brasil na América Latina: Dados históricos e suas repercussões quanto a avaliação Psicológica. In S. L. R. Rovinski, R. M. Cruz (Orgs.), Psicologia jurídica: Perspectivas teóricas e processos de intervenção (pp.11-22). São Paulo, SP: Vetor.         [ Links ]

Shuck, E. O. (2015). O papel do pensamento feminista brasileiro nos pós-colonialismos latinoamericanos. Seminário Internacional de Ciência Política (SICP), Porto Alegre, RS, 1.         [ Links ]

Sonia-Verde, M. A. (2010). La psicología policial. In M. A. Soria-Verde. (Org.), Manual de psicologia jurídica e investigación criminal (pp.167-188). Madrid: Psicología Pirámide.         [ Links ]

Sousa, A. M. (2014). A consagração das vítimas nas sociedades de segurança. Revista EPOS, 5(1), 29-56.         [ Links ]

Souza, E. M. C. Z., & Lopes, P. B. (2017). 30 anos de inserção do trabalho de psicologia na Polícia Militar de Minas Gerais. Psicologia: Saúde Mental e Segurança Pública, 6, 11-33.         [ Links ]

Veiga, A. M., Lisboa, T. K., & Wolff, C. (Orgs.). (2016). Gênero e violências: Diálogos interdisciplinares. Florianópolis, SC: Edições do Bosque.         [ Links ]

Waiselfisz, J. J. (2015). Mapa de Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Brasília, DF: Flacso.         [ Links ]

Weber, C. M., & Medeiros, J. L. (2017). Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come: os diálogos possíveis e os conflitos inevitáveis da psicologia como ciência e profissão com a polícia judiciária. In A. P. Batista, & J. L. Medeiros, (Orgs.), Psicologia e polícia: Diálogos possíveis (pp. 21-31). Curitiba, PR: Juruá         [ Links ].

 

 

Endereço para correspondência:
Lucas Mentor de Albuquerque Nobrega
lucasmanobrega@gmail.com

Ana Clara Siqueira
anaclarasqr92@gmail.com

Eduardo Eduardo Trento Turra
eduardot.turra@gmail.com

Adriano Beiras
adrianobe@gmail.com

Maíra Maíra Marchi Gomes
mairamarchi@gmail.com

Submetido em: 25/03/2018
Revisto em: 21/05/2018
Aceito em: 11/06/2018

 

 

1 É pertinente apontar que estas delegacias especializadas situam-se no organograma da polícia civil, que no Brasil é apenas uma das polícias. A Constituição Federal, por meio do Art.144, assim as define:
A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se a:
I apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
II prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;
III exercer as funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras;
IV exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
 § 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais.
 § 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais.
 § 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
 § 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.
 § 6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
 § 7º A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.
 § 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
2 O art.129 da Constituição Federal dispõe que é função institucional do Ministério Público promover ação penal pública. Por sua vez, no art.24 do Código Processual Penal encontra-se que, nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, dependendo, quando exigido por lei, de requisição do ministro da Justiça ou de representação do ofendido ou de seu representante. A ação penal pública incondicionada seria a promovida pelo Ministério Público sem que haja necessidade de manifestação de vontade da vítima ou de outra pessoa, a ação pena. A ação penal pública seria condicionada quando o Órgão Ministerial depende da representação da vítima ou da requisição do Ministro da Justiça para a interposição da ação. No caso da Lei Maria da Penha, crimes de lesão corporal são todos incondicionados à representação, independendo portanto da extensão da lesão (leve, grave, gravíssima), bem como se ela é culposa ou dolosa. Já os crimes de calúnia, injúria, difamação e ameaça são condicionados.
3 O cargo foi criado em 1986 na polícia civil do estado em questão. Sabe-se que em outras polícias também há psicólogos atuando, como é o caso da Polícia Militar, na qual se encontram desde 1987, tendo como pioneiro neste caso o estado de Minas Gerais (Souza, & Lopes, 2017). Na Polícia Militar, ingressam no oficialato, posto que nomeados pela patente. Porém, o concurso exige título de psicólogo e possui prova com conteúdo específico de Psicologia. Já em relação a Polícia Federal, encontra-se enquanto requisito e atribuições de cargo o seguinte: "PSICÓLOGO CLÍNICO - REQUISITO: diploma, devidamente registrado, de graduação de nível superior em Psicologia, fornecido por instituição de ensino superior credenciada pelo Ministério da Educação, e inscrição no Conselho Regional de Psicologia. ATRIBUIÇÕES: atividades de supervisão e coordenação, relativas ao estudo do comportamento humano e da dinâmica da personalidade, com vistas à orientação psicopedagógica e ao ajustamento individual" e "PSICÓLOGO ORGANIZACIONAL - REQUISITO: diploma, devidamente registrado, de graduação de nível superior em Psicologia, fornecido por instituição de ensino superior credenciada pelo Ministério da Educação e inscrição no Conselho Regional de Psicologia. ATRIBUIÇÕES: atividades de supervisão e coordenação, relativas ao estudo do comportamento humano e da dinâmica da personalidade, com vistas à aplicação, à correção e à análise de testes visando à seleção de profissional" (www.pf.gov.br). É fato que nestas polícias há desvios de função; assim sendo, psicólogos podem ingressar nos cargos que exigem curso superior, como o de escrivão, oficiais e perito que não exija formação específica como medicina, química, etc. Uma vez atuando, pode propor (ou ser convocado a) atuação como psicólogo.
4 Batista, & Medeiros (Orgs.) (2017) apresentam alguns debates mobilizados por esta Resolução, especialmente por sua suspensão. Neles percebe-se o desafio que é a atuação do sicólogo na polícia civil após a lei Nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.

Creative Commons License