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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.3 Rio de Janeiro sept./dic. 2018

 

ARTIGOS

 

A medicalização da existência segundo a fenomenologia de Merleau-Ponty

 

The medicalization of the existence according to Merleau-Ponty’s phenomenology

 

La medicalización de la existencia según la fenomenología de Merleau-Ponty

 

 

Neemyas Kerr Batalha Dos SantosI; Almir Ferreira Da Silva JúniorII; Plínio Santos FontenelleIII

IMestre. Programa de Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Maranhão (UFMA). São Luiz. Estado do Maranhão. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Maranhão (UFMA). São Luiz. Estado do Maranhão. Brasil
IIIDocente. Departamento de Filosofia. Universidade Federal do Maranhão (UFMA). São Luiz. Estado do Maranhão. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir a medicalização da existência segundo a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, considerando sua noção de corpo próprio. No contexto dos transtornos mentais e comportamentais, foco da pesquisa, a medicalização se manifesta pelo crescimento massivo de intervenções psicofarmacológicas. Deste modo, realiza-se uma investigação das noções vigentes de corpo, uma vez que, tais intervenções são administradas no mesmo. Este estudo se ancora nas duas primeiras grandes obras do autor: A estrutura do comportamento e Fenomenologia da percepção. O pensamento do filósofo revela uma noção de corpo e psiquismo, os quais não se reduzem ao entrecruzamento de causalidades físico-químicas. Ressalta-se a hipótese de que a medicalização da existência ignora o caráter fenomenal do corpo como expressão quando tem como único objetivo suprimir os sintomas em detrimento da possibilidade de compreensão dos mesmos.

Palavras-chave: Medicalização; Existência; Merleau-Ponty; Fenomenologia; Psicopatologia.


ABSTRACT

The medicalization of the existence according to Merleau-Ponty's phenomenology
This article aims to discuss the medicalization of existence according to the phenomenology of Maurice Merleau-Ponty, considering his notion of the own body. In the context of mental and behavioral disorders, the focus of this research is manifested by the massive increase of psychopharmacological interventions. Thus, an investigation of the prevailing notions of body is carried out, as such interventions are administered in it. This study is anchored in the author's first two major works: The Structure of Behavior and The Phenomenology of Perception. The philosopher's thought reveals a notion of body and psychism, which are not reduced to the intersection of physical-chemical causalities. It is emphasized that the medicalization of the existence ignores the phenomenal character of the body as an expression when it has as its sole objective the suppression of symptoms to the detriment of the possibility of understanding them.

Keywords: Medicalization; Existence; Merleau-Ponty; Phenomenology; Psychopathology.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir la medicalización de la existencia según la fenomenología de Maurice Merleau-Ponty, considerando su noción de cuerpo propio. En el contexto de los trastornos mentales y comportamentales, foco de la investigación, la medicalización se manifiesta por el crecimiento masivo de intervenciones psicofarmacológicas. Así, se realiza una investigación de las nociones vigentes de cuerpo, ya que tales intervenciones se gestionan en el mismo. Este estudio se ancla en las dos primeras grandes obras del autor: La estructura del comportamiento y Fenomenología de la percepción. El pensamiento del filósofo revela una noción de cuerpo y psiquismo, los cuales no se reducen al entrecruzamiento de causalidades físico-químicas. Se resalta la hipótesis de que la medicalización de la existencia ignora el carácter fenomenal del cuerpo como expresión cuando tiene como único objetivo suprimir los síntomas en detrimento de la posibilidad de comprensión de los

Palabras clave:Medicalización; Existencia; Merleau-Ponty; Fenomenología; Psicopatología.


 

 

Introdução

A medicalização tem sido alvo de inúmeras investigações nas últimas décadas. O termo, no entanto, apresenta uma significação plural, da qual emergem diferentes sentidos, tais como: práticas massivas de intervenção médica, transformação de comportamentos transgressivos e desviantes em transtornos médicos, forma de controle social e imperialismo médico (Zorzanelli, Ortega, & Bezerra Júnior, 2014). Não obstante, de modo geral, a medicalização tem sido caracterizada segundo um processo patologizante no qual problemas de ordem não médica passaram a ser submetidos a intervenções medicamentosas (Conrad, 2007). Porém, para que esse processo se tornasse possível, foi autorizado à medicina dizer o que é um corpo e como ele deve se sentir (Illich, 1975). Por este motivo, o enfoque dado à medicalização neste artigo busca discuti-la como fenômeno cuja intervenção, em específico psicofarmacológica, se ancora na concepção de corpo vigente. A medicalização, tomada no sentido acima destacado, apoia-se numa série de pressuposições acerca da ideia de corpo, motivo pelo qual, faz-se necessário um olhar fenomenológico acerca dos prejuízos de tais preconceitos para a terapêutica dos transtornos mentais e comportamentais. O objetivo principal deste artigo consiste numa retomada fenomenológica do corpo como sujeito de expressão a partir da filosofia de Maurice Merleau-Ponty a fim de discutir criticamente o fenômeno da medicalização da existência e em particular os transtornos psicológicos. Nossas reflexões ancoram-se eminentemente a partir das duas primeiras grandes obras de Merleau-Ponty, a saber, A estrutura do comportamento (1942/2006) e Fenomenologia da percepção (1945/2011).

 

A máquina cerebral

Tanto nas primeiras páginas de A estrutura do comportamento quanto no último capítulo da Fenomenologia da percepção é possível perceber um objetivo comum às duas obras. Tratava-se para Merleau-Ponty de compreender as relações entre consciência e natureza seja esta orgânica, psíquica ou mesmo social. Em ocasião da primeira obra, o filósofo revisitou a noção de comportamento empreendendo uma revisão crítica acerca da reflexologia pavloviana, do behaviorismo e da Gestaltpsychologie. Nestas investigações críticas, Merleau-Ponty demonstrou como a tradição realista habituou-se a compreender as relações entre consciência e natureza apenas a partir de uma decomposição do comportamento em processos físicos e, por conseguinte, por uma segmentação do próprio organismo. Já na circunstância da segunda obra, sua preocupação com os prejuízos clássicos apenas reafirmava a necessidade de um retorno aos fenômenos. Com este intuito Merleau-Ponty decide iniciar a Fenomenologia da percepção tematizando a noção de sensação como um dos principais motivos pelos quais se havia deixado escapar, por tanto tempo, o fenômeno da percepção. Nesse particular, o que as duas obras demonstram é que a noção equívoca de sensação foi e é um dos primados pelos quais se entendia o corpo apenas como objeto.

A definição do objeto "é a de que ele existe partes extra partes e que, por conseguinte, só admite entre suas partes ou entre si mesmo e os outros objetos relações exteriores e mecânicas" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 111). Algumas consequências foram herdadas com essa definição. Uma delas é que "o corpo vivo assim transformado deixava de ser meu corpo, a expressão visível de um Ego concreto, para tornar-se um objeto entre todos os outros" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 88, grifo nosso). Por conseguinte e de igual modo o corpo do outro, prossegue o autor, "não era mais do que uma máquina" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 88, grifo nosso). Embora a fisiologia contemporânea não seja mais a mesma à qual Merleau-Ponty se reportava, nós ainda possuímos, de modo geral, uma imagem corporal que toma o corpo como objeto ou até mesmo como máquina. Ainda busca-se explicar o corpo, o organismo, a conduta e até mesmo a subjetividade decompondo-os e buscando encontrar nas partes elementares a verdade do todo complexo. Falamos aqui em uma imagem corporal porque o conceito de corpo como objeto não é apenas algo que se limita ao âmbito das ciências, mas que, amplamente faz parte da cultura e que, inclusive, contribui no modo como os indivíduos percebem seus próprios corpos. Para Helman (2009, p. 27), "o corpo humano é mais do que apenas um organismo físico que oscila entre saúde e doença. Ele também é o foco de um conjunto de crenças sobre o seu significado social e psicológico, sua estrutura e função". Sendo assim, "o termo imagem corporal tem sido usado para descrever todas as formas pelas quais um indivíduo conceitualiza e experimenta seu corpo, de modo consciente ou não" (Helman, 2009, p. 27, grifo nosso). Ainda segundo este autor, isso explica porque

No mundo industrializado ocidental, muitos conceitos contemporâneos de estrutura e função corporais parecem ter sido parcialmente emprestados dos mundos da ciência e da tecnologia. A familiaridade com sistemas de drenagem no lar, eletricidade, máquinas, computadores e o motor de combustão interna fornecem os modelos em cujos termos as pessoas conceitualizam e explicam a estrutura e o funcionamento do corpo (Helman, 2009, p. 37).

Similarmente, esse modelo tem sido também aplicado ao cérebro, pois "aliada a essa imagem de corpo como máquina, está a imagem da mente como um computador" (Helman, 2009, p. 38). Na década de 1950, por exemplo, lia-se que o cérebro humano era uma rede de computação de telefone (Brooks, 2008), no início dos anos 1990, começou-se a falar em uma "Década do Cérebro" na qual, para muitos, este órgão passou a ser eleito como uma espécie de protótipo do computador perfeito. Segundo Epstein (2016), a criação dos computadores propiciou uma confusão entre psicólogos, linguistas e neurocientistas que passaram a entender que o cérebro humano funciona como um computador. Contudo, um computador, literalmente processa informações. Imaginar que o cérebro se comporte do mesmo modo é transformar o pensamento, por exemplo, em simples processamento de dados. Para Canguilhem (2006) tal metáfora se justificaria na medida em que entendemos que o pensamento se reduz a operações lógicas, cálculo e raciocínio. Autores como Epstein (2016) não acreditam nessa possibilidade, ou seja, que o cérebro seja um mero processador de informações ou que ele retenha e armazene informações. Basta que lembremos o exemplo dos recém-nascidos. Um bebê saudável possui mais de 12 reflexos inatos, ou seja, são reflexos que já vieram "prontos". Por outro lado, um recém-nascido não é concebido ou nasce com: informações, dados, regras, softwares, conhecimento, léxico, representações, algoritmos, programas, modelos, memórias, imagens, processadores, subrotina, encoders, decoders, símbolos ou buffers (Epstein, 2016).

Para Brooks (2008), professor em robótica do Massachusetts Institute of Technology (MIT), aparentemente o cérebro sempre se parece com uma das tecnologias mais avançadas que nós dispomos em cada fase da história. O modo como explicamos o cérebro advém de um Zeitgeist peculiar. A realidade fisiológica do cérebro é poderosamente constituída pelo modo que nós o percebemos. Logo, não há uma realidade em si do cérebro esperando para ser captada como tal, pois "não é o mundo real que faz o mundo percebido" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 139). É por essa razão que as nossas antigas metáforas para o cérebro não resistiram ao teste do tempo e, pelo mesmo motivo, talvez a comparação do cérebro com um computador ou uma rede de computadores também será substituída (Brooks, 2008). A história demonstra o quanto a linguagem é inesgotável e isto revela o quanto o cérebro, assim como o corpo, não se restringe a processar informações preestabelecidas, mas dedicam-se a uma tarefa criativa e inventiva. Neste sentido, Canguilhem (2006, p. 196) escreveu que "quer se trate de máquinas analógicas ou de máquinas lógicas, uma coisa é o cálculo ou o tratamento de dados de acordo com instruções e outra é a invenção de um teorema". Segundo estes modelos, "os pensamentos, as ideias, a criatividade, a memória e a personalidade são encarados como formas de 'software' ou programas ocultos dentro do 'hardware' do cérebro e do crânio" (Helman, 2009, p. 38). Não obstante, "essas metáforas de máquina e motor são cada vez mais encontradas pelos profissionais de saúde" (Helman, 2009, p. 38). O grande perigo da prevalência dessas formulações são as consequências práticas que elas podem habilitar no campo da saúde. Conforme apontam Młożniak e Schier (2016), o modelo de corpo como uma máquina é predominante na medicina ocidental e tem larga escala de influência sobre o modo como pacientes e a sociedade em geral interpretam as doenças e os respectivos tratamentos. A cura nesses termos é o sinônimo de concertar as partes do corpo que estão causando problemas. Por conseguinte, a ideia principal é que a doença mental ou o comportamento desviante possam ser unicamente concebidos e tratados como falhas nas conexões nervosas ou na programação cerebral do indivíduo. Conforme esta linha argumentativa, o sofrimento existencial passa a ser um problema interno e, de igual modo, a solução para o mesmo também se aplica internamente. A medicalização da existência "é mais provável se o corpo é conceitualizado como uma 'máquina', vista apenas à parte de seu contexto social e cultural" (Helman, 2009, p. 150).

Compreendendo o corpo e a existência a partir do pensamento de Merleau-Ponty (1945/2011), logo percebemos uma série de dissonâncias com esse modelo teórico e prático. Para o filósofo francês, a verdade não "habita" apenas o "homem interior", quer este interior seja metafísico ou neurológico. Na verdade, "não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 6). O que a fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2011) impõe como veto a perspectivas como estas é que "a existência não é uma ordem de fatos (como os 'fatos psíquicos')" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p.230) e que a vida não é um "entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu corpo ou meu 'psiquismo" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 3). Ademais, o que tal fenomenologia nos sugere é que abandonemos essa perspectiva cumulativa do organismo, pois o corpo não é "uma soma de órgãos justapostos" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 314) e ainda assim, "o todo, numa forma, não é a soma das partes" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 236). Por esses motivos, é necessário considerar que "nós não conhecemos nosso corpo, a potência, o peso e o alcance de nossos órgãos como um engenheiro conhece a máquina que ele construiu peça por peça" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 421).

Talvez um dos principais equívocos cometidos quando se adota a psicofarmacoterapia como única forma de tratamento para transtornos mentais e comportamentais consista no esquecimento de que "o corpo objetivo não é a verdade do corpo fenomenal, quer dizer, a verdade do corpo tal como nós o vivemos, ele só é uma imagem empobrecida do corpo fenomenal" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 578). É preciso, portanto, que os transtornos psíquicos sejam compreendidos a partir dos seus respectivos campos fenomenais, isto é, história pessoal, familiar e social do paciente. Ora, se considerarmos que o cérebro faz parte de um corpo-máquina, então qualquer tipo de mau funcionamento estará diretamente relacionado "a uma disfuncionalidade de uma peça, como se o computador não funcionasse perfeitamente, por conter uma diferença ou deficiência" (Azevedo, 2012, p. 252, grifo nosso). Este tipo de abordagem conceitual erige de uma vez só, tanto uma psicopatologia naturalizada quanto um tratamento naturalizante. A imagem de corpo como uma soma de órgãos, partes, processos e fatos nos conduz com frequência a uma perspectiva de compreensão da vida que só se efetua por uma análise real da mesma. Conforme indica Foucault (1963/2011, p. 100), "uma das consequências mais graves da compreensão de organismo enquanto soma é que o adoecimento é compreendido como subtração e, a doença nada mais é do que a coleção de sintomas". Por sua vez, essa compreensão de patologia revela importantes ideais socioculturais que estão em jogo, conforme descreve o próximo tópico.

 

A performance adulta

Em uma das conferências proferidas por Merleau-Ponty (2004) em 1948, encontra-se um excerto bem emblemático:

Sabemos que o pensamento clássico não dá muita atenção ao animal, à criança, ao primitivo e ao louco. Lembramos que Descartes não via no animal nada além de uma soma de rodas, alavancas, molas, enfim, de uma máquina [...]. O conhecimento das crianças e dos doentes permaneceu por muito tempo rudimentar justamente em virtude desses preconceitos: as questões que o médico ou o experimentador lhes colocavam eram questões de homens sadios ou de adultos; procurava-se menos compreender como viviam por conta própria do que calcular a distância que os separava do adulto ou do homem sadio em seus desempenhos comuns (Merleau-Ponty, 2004, p. 31, grifo nosso).

Em sua obra, Merleau-Ponty faz essa observação em pelo menos outros dois momentos (1942/2006; 1945/2011). Nela encontramos a preocupação do filósofo com os preconceitos que ao tomarem o organismo como máquina favorecem perspectivas que fazem do patológico apenas uma dedução do normal. Em decorrência disso, crianças, loucos, doentes - e, por que não, os idosos - passam a ser vistos como versões primitivas do homem adulto e saudável. Talvez exista aí uma hipótese para a tão crescente tendência de patologização da infância e da velhice. De modo geral, a infância tem se tornado essencialmente patológica na medida em que impõe qualquer tipo de obstáculo, resistência, atraso, inadequação, inconformidade ou mesmo desinteresse por tudo aquilo que diz respeito à normalidade produtiva da vida adulta. Ser saudável nesse sentido é cada vez mais cedo deixar de ser criança e cada vez mais cedo ser capaz de desempenhar uma performance adulta e produtiva, isto é, ser útil. Por outro lado, o louco e o doente, na maioria das vezes, são avaliados muito mais em escalas que demonstram o quão distantes estão de desempenhar a performance adulta. No tocante a este detalhe, Merleau-Ponty (1942/2006) aponta a seguinte crítica: "que a conduta do doente, como aliás a do animal, da criança ou do 'primitivo', não possa ser compreendida por simples desagregação a partir do comportamento adulto, sadio e civilizado, é talvez a ideia menos contestada da psicologia moderna" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 25).

É muito provável que trechos como esse tenham sido lidos por Canguilhem (1966/2015) que, em 1950, isto é, aproximadamente uma década após a publicação de A estrutura do comportamento, recomendava a leitura desta obra no prefácio da segunda edição de O normal e o patológico. É que Canguilhem reconhecia pontos evidentes e comuns entre a sua obra e o primeiro grande trabalho de Merleau-Ponty. Ambos os autores desacreditavam uma patologia que se resumia a uma desagregação ou a uma subtração da fisiologia e conduta normal, porque em primeiro lugar não podiam ver o organismo como um somatório de funções. Em particular, para Canguilhem abordagens como essa resultaram na formação "de uma teoria das relações entre o normal e o patológico, segundo a qual os fenômenos patológicos nos organismos vivos nada mais são do que variações quantitativas, para mais ou para menos, dos fenômenos fisiológicos correspondentes" (Canguilhem, 1966/2015, p. 12). Para Merleau-Ponty (1942/2006) isso significa tratar "a doença como uma simples deficiência ou, em todo caso, como um fenômeno negativo, querem que não haja de fato um acontecimento no organismo".

Uma das condições para esse tipo de postulado é que, se pressupõe uma redução da qualidade à quantidade ao passo em que se tenta identificar a fisiologia à patologia. Semanticamente, o ideal quantitativo do "patológico é designado normal, não tanto como a ou dis, mas como hiper ou hipo" (Canguilhem, 1966/2015, p. 12). No campo da psicopatologia existem muitas descrições sintomatológicas cujos prefixos descrevem hiper ou hipo situações neurológicas ou comportamentais. Por vezes, o reconhecimento de uma síndrome ou transtorno se resume a uma avaliação quantitativa das variações da consciência, da memória, dos afetos, do humor ou da atenção. Por outro lado, com frequência um transtorno mental dá-se a revelar por alterações e desagregações da conduta. Por esta razão, autores como Sacks (1997) ousam afirmar que a noção de déficit se tornou a palavra favorita da neurologia. Fala-se em déficit de atenção, déficit de comunicação social, déficit de autocontrole, déficit de habilidade mental, déficit de aprendizagem, déficit de julgamento. Contudo, assim como a imagem corporal é algo constituído de modo intersubjetivo é necessário que compreendamos os processos de saúde e adoecimento em seu caráter intersubjetivo e fenomenal.

É sob a expectativa do olhar social que o adoecimento e o sofrimento se constituem de modo patológico para um indivíduo. Se, porventura, o sofrimento de alguém sugere defeito ou um problema que o torne disfuncional, por exemplo, é porque de um ponto de vista evolutivo este sujeito retroagiu ou regrediu em relação a seus pares. É neste momento que questões inerentes à existência como a ansiedade, angústia e tristeza passam a se tornar problemas de ordem evolutiva antes de serem problemas de ordem humana. Isso significa que estes "problemas" colocam o indivíduo em uma desvantagem em relação aos outros fazendo dele alguém aparentemente frágil e vulnerável ao olhar da própria sociedade. Destarte, sofrer passa a ser sinônimo de adoecer e adoecer passa a significar uma regressão na escala evolutiva. Este é um dos principais fundamentos da medicalização do sofrimento existencial, pois é a partir daí que ela aparece como uma proposta de conserto da máquina cerebral. O drama que a automedicalização busca resolver advém da ideia de que sofrer é tornar-se primitivo perante uma sociedade competitiva, que a tristeza ou o mínimo desequilíbrio das emoções implicam em um estado ou uma condição primitiva de homem. Contextos como os da educação, da saúde e do trabalho revelam notoriamente essa tendência.

A contrapartida crítica que Goldstein (1934/2000) e Merleau-Ponty (1942/2006; 1945/2011) impõem a esse tipo de psicopatologia é que não devemos avaliar os comportamentos e condutas patológicas apenas como uma espécie de resíduo do comportamento tido como normal, ou seja, como se ao doente restasse aquilo que sobreviveu à destruição do normal. Conforme relembra Sacks (1997), daí surge a importância de voltarmos nossos olhos não apenas para as deficiências das funções, mas para a perda daquilo que Goldstein (1934/2000) chamava de atitude categorial. Isto é, o desenvolvimento de um olhar voltado para o campo fenomenal no qual o organismo está de modo global engajado e em situação. É impossível compreender a atitude categorial decompondo-a, mas situando-a no mundo vivido de cada paciente. É, em virtude disso, que Merleau-Ponty (1942/2006; 1945/2011) convida a psiquiatria e a psicologia à realização de avaliações mais aprofundadas, diferentemente daquelas que se preocupam apenas em determinar as funções que o paciente era capaz de desenvolver e que agora não é mais. A sugestão do filósofo é que tais avaliações orientem suas investigações voltando-se para os novos modos de existir que o paciente consegue desenvolver em sua conduta, indagando sobre os sentidos globais dessa mudança. Infelizmente muitas síndromes psicopatológicas têm sido, de modo restrito, diagnosticadas e tratadas a partir de uma abordagem unicamente quantitativa, é o que tem acontecido frequentemente no tocante ao Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, aos transtornos de ansiedade de modo geral e com episódios depressivos. Tomemos então a depressão como exemplo dessa psicopatologia de abordagem quantitativa.

 

A inespecificidade da existência

A depressão é frequentemente caracterizada como uma síndrome ou um transtorno mental. Isto é, ela compreende um agrupamento de sintomas e sinais, tais como a variação do humor, que descrevem ou apontam para uma definição patológica específica e peculiar (Dalgalarrondo, 2008; APA, 2014). Mas o que exatamente significa a noção de humor? Para Dalgalarrondo (2008, p. 156), "o humor e as emoções são ao mesmo tempo, experiências psíquicas e somáticas, e revelam sempre a unidade psicossomática básica do ser humano". Com essas definições surgem, no entanto, algumas questões. Segundo Helman (2009, p. 36), costuma-se imaginar que a medicina humoral desapareceu da medicina científica moderna. "Entretanto, a fisiologia moderna inclui muitos exemplos de doenças causadas por uma deficiência ou por um excesso de substâncias no corpo" (Helman, 2009, p. 36). Ocorre que a ideia predominante é que tais doenças "podem ser corrigidas pela reposição das substâncias deficientes ou pela contenção do seu excesso" (Helman, 2009, p. 36). A variação quantitativa do humor, como na depressão, estaria enquadrada dentro dessa perspectiva? Essas indefinições de princípio sugerem que minimamente seja necessário questionarmos o que tornou ou torna a depressão um problema médico. Para alguns autores, a descoberta, na década de 1950, de drogas antidepressivas tornou a depressão um problema médico podendo ser tratado à maneira de doenças como o diabetes e a hipertensão arterial. A tendência seria a de crer que assim como o diabético, todo depressivo também deveria usar medicamentos pelo resto da vida a fim de regular seu desequilíbrio químico. Contudo, ainda não se pôde documentar que as grandes doenças psiquiátricas sejam indubitavelmente causadas por defeitos químicos, assim como não há testes biológicos que consigam dizer se alguém tem ou não um transtorno mental (Gøtzsche, 2016).

Não obstante essas incertezas e a existência de pesquisas que revelam as evidências fracas e contraditórias sobre a ideia de depressão como desequilíbrio químico e a correlação humor-deficiência aminérgica (Ruhé, Mason, & Schene, 2007), é possível dizer que esta é uma das teorias psiquiátricas mais aceitas atualmente sobre a depressão (Kirsch, 2010). Segundo esta hipótese, a depressão assim como outras doenças psiquiátricas e seus sintomas são causadas por anormalidades químicas no cérebro e em especial, por uma série de déficits nos níveis de substâncias que realizam as mediações sinápticas, a saber, os neurotransmissores (Bahls, 1999). Contudo, para Gøtzsche (2016) e Moncrieff, (2008) o que acontece é o oposto: na verdade os medicamentos que supostamente deveriam balancear o sistema nervoso são os mesmos que causam um desequilíbrio ou um funcionamento anormal no cérebro e isso pode gerar graves consequências, não apenas para o indivíduo depressivo, mas para a sociedade como um todo. Literalmente os "psicotrópicos não corrigem um desequilíbrio químico, eles o causam, que é a razão pela qual é tão difícil se livrar dos medicamentos de novo. Se ingeridos por mais de duas semanas, esses medicamentos criam a doença que pretendiam curar" (Gøtzsche, 2016, p. 192).

O que está em jogo é a noção de equilíbrio, mas é importante observar que desta vez, diante da hegemonia de uma etiologia bioquímica da depressão, não se fala mais em equilíbrio ou desequilíbrio entre sujeito e meio, agora o desequilíbrio é interno, é um desequilíbrio químico. Tal ideia nos sugere que todos os nossos transtornos mentais se originam de uma instabilidade ou desproporção físico-química no cérebro. Explicações desse tipo têm alterado profundamente o modo como nós nos percebemos (Moncrieff, 2008). A situação do episódio depressivo passa então a ser um problema cerebral, pois é lá que se presume estar a localização do verdadeiro Eu. Tal julgamento é resultante de uma mudança contemporânea na imagem corporal "situando o local verdadeiro da 'pessoa' e do 'self' (bem como da personalidade e do inconsciente) dentro do cérebro em si, e não do corpo como um todo" (Helman, 2009, p. 45). A ideia de depressão como um transtorno resultante de um desequilíbrio químico no cérebro parece justificar de modo geral a compreensão de que o problema está sempre no cérebro do indivíduo. Segundo esse enfoque biológico, a perda de interesse pela vida, a falta de atenção, a ausência de sentido e motivação, prazer ou energia deixam de ser uma matéria de intencionalidade humana para se tornarem sintomas resultantes de uma menor quantidade de monoaminas como a dopamina, norepinefrina, serotonina e dopamina (Moncrieff, 2008; Kirsch, 2010; Wannmacher, 2012). Entretanto, ao retomarmos os próprios fundamentos da farmacodinâmica colocamos em questão os princípios de uma terapêutica que se propõe tratar a depressão (ou outros transtornos) como um simples problema de desequilíbrio químico. O primeiro princípio farmacodinâmico que precisamos considerar é o de que "em geral, os fármacos alteram a velocidade ou a magnitude de uma resposta celular intrínseca, em vez de produzir reações que antes não ocorriam" (Blumenthal, & Garrison, 2012, p. 41) ou ainda, que "fármacos não criam efeitos, apenas modulam funções fisiológicas intrínsecas" (Thaddeu, 2012, p. 104). Logo, os psicotrópicos não criam novas realidades no cérebro, sua função não é inserir no sistema nervoso algo que não exista lá tal como se procede com a insulina no caso da diabetes. Ora, a realidade da depressão não surge nem se sustenta unicamente por uma alteração quantitativa aminérgica. Mesmo porque a realidade da depressão não se encerra no recipiente cerebral do paciente, haja vista que, "a substância nervosa não seria um recipiente em que estivessem depositados os instrumentos de algumas reações, mas o teatro onde se desenrola um processo qualitativamente variável" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 107, grifo nosso).

É preciso, portanto, considerar também inversamente em que medida as variações quantitativas de velocidade e magnitude no sistema nervoso sofrem alterações decorrentes dos aspectos relacionados à qualidade de vida do indivíduo, ao modo como ele vive, às condições de existência e liberdade e, sobretudo à percepção de si no mundo-da-vida. Enquanto os aspectos fisiológicos tanto podem como propiciam demandas existenciais, inversamente e de igual modo as vivências, as experiências, os estilos de se comportar, os modos de ser ou em síntese os modos de percepção de si no mundo podem propiciar alterações qualitativas no funcionamento físico-químico do sistema nervoso central. "Entre o psíquico e o fisiológico pode haver relações de troca que quase sempre impedem de definir um distúrbio como psíquico ou como somático" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 131). E isso também faz parte da inespecificidade da existência humana porque ela não é uma soma de fatos, sejam eles fisiológicos ou psicológicos, mas é antes "o lugar equívoco de sua comunicação, o ponto em que seus limites se embaralham" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 230, grifo nosso).

É a esse lugar equívoco que nos reportamos quando falamos da inespecificidade da existência, ou seja, da indeterminação que a percepção efetua na existência ou que a primeira realiza a partir desta última. É exatamente por isso que "o distúrbio dito somático delineia comentários psíquicos sobre o tema do acidente orgânico, e o distúrbio 'psíquico' limita-se a desenvolver a significação humana do acontecimento corporal" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 131). Portanto, não se trata de dizer que toda forma de transtorno só pode ser tratada por uma proposta psicoterapêutica ou psicofarmacológica, mas de zelar por um discernimento que nos possibilite compreender o que a existência comunica com estes dados fenomenais e que, não podem ser simplesmente suplantados. Existe uma inespecificidade fisiológica do sofrimento existencial porque ele nasce na intersecção do relacionamento entre homem e mundo. Trata-se da inespecificidade do sentido (ou da busca por sentido). Pois o sentido opera por movimento e por relação de significados. "É que o sofrimento, como todo fenômeno fundamental, destaca-se do que está em movimento e do que é vivo, sem que se possa traduzi-los em cifras e talvez nem mesmo em palavras" (Minkowski, 2000, p. 158, grifo nosso). Assim, essa inespecificidade se dá porque o sofrimento existencial pertence à ordem da percepção e "a percepção não é um acontecimento da natureza" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 226). Segundo Merleau-Ponty (1942/2006), é tanto "impossível determinar um substrato somático da percepção" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 316) quanto é impossível "uma análise fisiológica da percepção" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 145).

Se por um lado, a inespecificidade etiológica põe em questão aquilo que se chama de tratamento psicofarmacológico do sofrimento existencial, por outro, ela revela esta ordem perceptiva da vida, a saber, uma ordem que não se pode estabelecer em um local somático específico do sofrimento. É nesse ponto que trazemos a crítica de Merleau-Ponty (1942/2006; 1945/2011) no que tange a impossibilidade de uma psicopatologia extraída apenas de uma análise da neurofisiologia. Essa fé ingênua, de reduzir a subjetividade ao cérebro e nele encontrar as partes da vida advém de problemas que Merleau-Ponty (1942/2006) chamava de localizacionismo. A ânsia de encontrarmos um local no cérebro que seja responsável pelo sofrimento existencial - ou pela sua cura - é no mínimo uma propaganda científica da má-fé. A partir disso, em concordância com Fuchs (2009), é preciso que se substituam ideias tais como aquelas que sustentam que "você é o seu cérebro" por uma compreensão na qual o cérebro faz parte de um todo organísmico, de uma vida humana que, por sua vez, está relacionada a outras vidas.

Ao propor uma releitura especial da ideia de esquema corporal, Merleau-Ponty (1945/2011) mostrou que o indivíduo é também o seu cérebro, mas que a existência e os seus limites não se restringem a um órgão ou sistema, por mais fundamental que ele seja para a totalidade do ser. Segundo uma perspectiva fenomenológica, não existe uma identidade fechada entre aquilo que chamamos de subjetividade e o cérebro. A mente não está localizada em um lugar específico, mas distribuída através do cérebro, do corpo e do mundo, de modo que não podemos limitá-la às fronteiras do crânio, pois a própria realidade fisiológica do cérebro não é representável neste pequeno espaço (Fuchs, 2009; Merleau-Ponty, 1942/2006). De acordo com Merleau-Ponty (1942/2006), a ciência não pôde e não pode construir um "setor central" dos comportamentos "como alguma coisa que esteja confinada no interior da caixa craniana" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 317). Nas palavras do autor, isto significa que o "corpo vivo e o sistema nervoso em vez de serem como que anexos do mundo físico no qual se preparariam as causas ocasionais da percepção, são 'fenômenos' recortados entre aqueles que a consciência conhece" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 317, grifo nosso). Por conseguinte, os transtornos psíquicos, de personalidade ou em geral, de comportamento precisam ser percebidos como fenômenos e não como doenças anexas ao corpo físico. Uma das maneiras mais próprias de Merleau-Ponty para que compreendamos o corpo fenomenal é orientando o olhar e o sentir para o seu caráter expressivo.

 

O corpo como sujeito de expressão

Diante da necessidade de compreendermos o corpo a partir de seus sentidos e significados, o modo de tratamento dos transtornos psíquicos deve, sempre que possível, ser antes o da escuta que o da extinção dos sintomas. A explicação clássica dos sintomas psicopatológicos obedece ao modelo de um corpo em si, isto é, do corpo-objeto, e, portanto, não considera o corpo perceptivo como sujeito. Para Merleau-Ponty (1945/2011, p. 111), se "se quisesse inserir o organismo no universo dos objetos e encerrar este universo através dele, seria preciso traduzir o funcionamento do corpo na linguagem do em si e descobrir, sob o comportamento, a dependência linear entre o estímulo e o receptor". Todavia, o corpo não se limita a uma tradução exata de efeitos da ordem do real. Ou antes, faz-se necessário considerarmos o corpo não apenas como um tradutor de eventos, mas como o produtor de eventos. Pensar na ideia de corpo como tradutor de eventos é vê-lo apenas como um órgão instrumental, é ter dele uma concepção unicamente pragmática, é esvaziar dele sua capacidade de produzir sensações ignorando assim sua intencionalidade. É preciso reconhecer o corpo em sua natureza expressiva. Isto significa dizer que os eventos fisiológicos não foram feitos ou dedicados à ciência fisiológica, mas ao movimento de expressividade de si em relação ao mundo e a outrem.

O corpo enquanto sujeito de linguagem não está comprometido, como que desde sempre, a exprimir-se em uma linguagem biomédica. Como se tal "idioma" antecedesse tudo o que há para ser comunicado no ou pelo organismo em termos de vida e existência. É o corpo quem funda a linguagem biomédica e não o contrário. Nossa crítica à medicalização se sustenta na diretriz fenomenológica de que é necessário retornar à coisa mesma e nesse sentido, é preciso reaprender a ver o corpo em seu estatuto bruto, ou seja, o corpo que existe e é anterior a qualquer acepção ou vestimenta biomédica ou psicológica. Trata-se do corpo vivido (corps vécu), o corpo próprio (corps prope). A fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2011) convida a retomar o corpo como hábito original, como o centro, ou pelo menos o palco de todas as nossas vivências originais. Essas vivências não nascem no corpo ou pelo corpo se utilizando de um idioma biomédico como que se valendo de uma língua materna. O corpo é um sistema aberto e, por ser aberto, não se deixa domar por qualquer idioma científico. O destinatário da linguagem expressiva do corpo transpõe toda e qualquer linguagem da ciência. A linguagem do corpo próprio não é uma linguagem dada. Sendo assim, Merleau-Ponty (1942/2006; 1945/2011) nos ajuda a entender que a sintomatologia não faz do corpo um tradutor de eventos físico-químicos, mas o corpo faz dos sintomas modos de expressão de uma condição atual. Isso significa que os sintomas são fenômenos e enquanto fenômenos precisam ser percebidos, ouvidos e compreendidos e, não apenas combatidos. Ao doente, às vezes, acontece de sofrer menos pelos sintomas do que pelo sentimento de ser incompreendido. Em resumo, como lembra Canguilhem (2006):

a linguagem humana é, essencialmente, uma função semântica da qual as explicações de tipo fisicalista nunca chegaram a dar conta. Falar é significar, dar a entender, porque pensar é viver no sentido. O sentido não é relação entre..., ele é relação com... Eis porque ele escapa a qualquer redução que tente inseri-lo numa configuração orgânica ou mecânica (Canguilhem, 2006, p. 203).

Para uma psicopatologia fenomenológica o que o sintoma psicológico ou psicossomático realiza é tirar do anonimato algo que o sujeito precisa expressar e que já não pode mais ser ignorado. A medicalização opera em um sentido contrário, seu propósito é impedir essa figuração. O princípio da medicalização é nunca permitir que as coisas saiam do anonimato no tocante ao corpo as emoções. Nesse caso, a existência precisaria permanecer totalmente anônima para si, inebriada. Mas o corpo enquanto sujeito de percepção e enquanto sujeito de expressão sempre dará um jeito de colocar em evidência as raízes de seu sofrimento. Quando retornamos à originalidade do corpo como expressão, encontramos nele a sua realidade fenomenal. O corpo como expressão é o corpo fenomenal. É exatamente por ser abertura que o corpo é também passível de adoecer, de ser investido por significações de outrem, de sofrer inevitavelmente, de ser explicado e inclusive estudado em uma perspectiva objetiva. A questão é que o corpo que eu tenho (Körper) nunca consegue fechar-se sobre o corpo que eu sou (Leib) e o corpo que eu sou nunca consegue abster-se do corpo que tenho. Esta distinção não implica em dois tipos diferentes de corpos. Mais do que uma distinção ontológica, é preciso compreendê-la enquanto uma distinção fenomenológica. Em outras palavras, significa dizer que são apenas dois modos distintos pelos quais nós podemos experienciar e compreender o mesmo corpo, o nosso corpo (Gallagher, & Zahavi, 2008). O corpo que funciona, tal como descrito na fisiologia, não deixa de ser o corpo que é tematizado em primeira pessoa, ou seja, o corpo que se move, que percebe e que é expressão de um ser (Zahavi, 2003).

O corpo fenomenal é a um só tempo "eu" e "meu". É desse modo que, para Merleau-Ponty (1945/ 2011), ocorre o "miracle de l'expression" no qual uma significação irrompe no mundo e se põe a existir. É a partir da expressão que nosso filósofo retoma o corpo enquanto obra de arte, ou seja, um corpo de sentidos e significados inacabáveis. "A expressão daquilo que existe é uma tarefa infinita" (Merleau-Ponty, 1960/2013, p.134). Como já demonstrado, não se trata de aniquilar a ideia de sensação, nem tampouco de extinguir a face objetiva do corpo, mas de considerar que "cada contato de um objeto com uma parte de nosso corpo objetivo é na realidade contato com a totalidade do corpo fenomenal atual ou possível" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 425). À maneira do corpo fenomenal enquanto todo perceptivo primordial a obra de um pintor também exprime um todo indiviso. Uma obra de arte não é uma soma de sensações, assim também o corpo não é semelhante a um sõma de sensações, mas a uma totalidade. Este é o motivo pelo qual a psicopatologia fenomenológica de Merleau-Ponty (1960/2013) não nos permite reduzir a doença diante do homem e nem reduzir o homem à doença. Assim como a arte não é apenas uma cópia da realidade, o sofrimento enquanto expressão não é uma simples imitação da natureza esperando para ser traduzida por um saber prévio das ciências da saúde. De modo semelhante ao sofrimento existencial, "a expressão não pode ser então a tradução de um pensamento já claro" (Merleau-Ponty, 1960/2013, p. 139) ou de um processo fisiológico já estabelecido, mas é o colocar em jogo de uma totalidade existencial que não pode ser compreendida de modo dividido. A partir disso, destaca-se a necessidade de compreendermos os sintomas a partir do movimento ambíguo da existência e do corpo. Trata-se de fazer o movimento inverso da explicação mecanicista ao qual "era preciso ligar o fenômeno centrífugo da expressão a condições centrípetas, reduzir esta maneira particular de tratar o mundo que é um comportamento a processos em terceira pessoa" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 87). A medicalização pressupõe uma explicação centrípeta da neurofisiologia. Todavia, não é na fisiologia cerebral que compreendemos os conteúdos dos sintomas psicopatológicos, mas nos movimentos centrífugos da vida, ou seja, nos modos pessoais de expressão.

 

Considerações finais

O propósito deste artigo era o de discutir a medicalização da existência a partir da noção de corpo próprio presente na fenomenologia de Merleau-Ponty. Tal fenomenologia evidencia que "não basta que dois sujeitos conscientes tenham os mesmos órgãos e o mesmo sistema nervoso para que em ambos as mesmas emoções se representem pelos mesmos signos" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 256). De igual modo, não se pode homogeneizar uma terapêutica dos transtornos psicológicos reduzindo-os à intervenção química. Para o autor, "o medicamento psicológico não age sobre o doente fazendo-o conhecer a origem de sua doença" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 223). A peculiaridade da origem da doença psicológica é que ela não se reduz a problemas neurológicos, mas se situa de modo intersubjetivo. Razão pela qual o "doente não assumiria o sentido de seus distúrbios que acabam de revelar-lhe sem a relação pessoal que travou com o médico, sem a confiança e a amizade que ele lhe traz e a mudança de existência que resulta dessa amizade" (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 223).

É, portanto, o caráter interpessoal e ambíguo da cura que queremos evidenciar aqui. É a relação que deve ser terapêutica e é dela que se pode obter uma modulação da existência pessoal do paciente. As considerações e discussões trazidas por esse artigo não nos conduzem nem autorizam a uma invalidação da importância e necessidade da psicofarmacologia em diversos casos. Inclusive para viabilizar outras formas terapêuticas como a psicoterapia quando as condições do paciente são críticas e de risco. Antes se trata de desacreditar a psicofarmacoterapia como única forma de lidar com o sofrimento existencial e os transtornos psicológicos. Talvez fosse aqui o caso de volvermos nosso olhar para aquilo que o "último" Merleau-Ponty anunciava como uma reversibilidade ontológica de intencionalidades entre corpo e mundo e, portanto, entre a ordem físico-química e a ordem humana. Sabe-se, por exemplo, que a psicoterapia pode criar a partir de seus efeitos corticais (top-down) uma transformação nas zonas subcorticais do cérebro. De modo semelhante as intervenções psicofarmacológicas nas zonas subcorticais (bottom-up) podem propiciar transformações no córtex e, por conseguinte, no modo de pensar do indivíduo (Fuchs, 2009). É nessa recomendação que podem se inspirar pesquisas futuras, isto é, de saber em que medida Merleau-Ponty e suas considerações acerca da reversibilidade de intencionalidades podem facilitar a superação de desafios relativos à integração entre a farmacoterapia e a psicoterapia.

 

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Endereço para correspondência:
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Almir Ferreira Da Silva Júnior
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Plínio Santos Fontenelle
fontenelleplinio@ig.com.br

Submetido em: 20/05/2018
Revisto em: 03/07/2018
Aceito em: 15/08/2018

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